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    Roland Barthes e a fotografia

    Rodrigo Fontanari

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    Resumo:O presente artigo constitui-se numa resenha e numa pequenaexegese de alguns dos mais notveis textos de comentadoresinternacionais, notadamente aqueles ainda no traduzidos em lnguaportuguesa, a se consagrar ao derradeiro livro de Roland Barthespublicado em vida do autor: A cmara clara. O que aqui se prope

    oferecer subsdios para uma melhor elucidao dessa importanteobra, que, a trinta anos de seu surgimento, continua pouco estudada,sendo assim desperdiada sua enorme contribuio s cincias dacomunicao e, sobretudo, s reflexes em torno do papel da imagemfotogrfica no mundo contemporneo. Sustentamos a hiptese deque, sendo um semioclasta, mais que um iconoclasta, Barthes estavaem melhor posio para ler e entender imagens.

    Palavras-chave:Roland Barthes; fotografia; semitica; imagem.

    Abstract:This is a review article and a short exegesis from one of themost important texts of international commentators, especially thosenot yet translated into Portuguese, that we may consider the last workin Barthess life, Camara Lucida. What is proposed here is to offersubsidies to elucidate this important work, which, thirty years afterits formation, it hasnt been so much studied, and its huge contributionto science communication got lost, and especially the reflections onthe role of photographic image in the contemporary world. Its possibleto make some hypothesis that, being a semioclasta, rather than aniconoclast, Barthes was in a better position to read and understandimages.

    Keywords: Roland Barthes; photography; semiotics; image.

    Rodrigo Fontanari *

    Roland Barthes e a fotografiaRoland Barthes and Photography

    * Graduado em Comunicao Social pela Universidade de Ribeiro Preto (2005). Mestre pelaPUC/SP Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (2008). Doutorando em Comunicaoe Semitica na mesma instituio. E-mail: [email protected]

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    Introduo

    O objetivo desse artigo apresentar uma resenha e exegesedos principais textos de comentadores internacionais, de difcil acesso,atualmente, no Brasil e, sobretudo, daqueles textos ainda notraduzidos em lngua portuguesa que se lanaram na tentativa decompreender a ltima obra publicada em vida de Roland Barthes,Acmara clara.

    Cabe, nesse momento, uma pequena e breve apresentao do

    autor e sua obra. Roland Barthes (1915-1980) um dos maioresexpoentes da intelligentsia francesa do sculo XX, influenciado pelopensamento do linguista Ferdinand Saussure, pertenceu escolaestruturalista, foi um intelectual irrequieto, o que dificulta qualquertentativa de chancel-lo sob um ttulo. Como ele mesmo se apresentaem sua aula inaugural no Collge de France, um sujeito incerto, noqual cada atributo , de certo modo, imediatamente combatido por seu

    contrrio. (BARTHES, 2002, p.429).Podemos considerar que ele foi escritor, crtico literrio,semilogo, e sobretudo, um filsofo.A cmara clara constitui umameditao a respeito da imagem fotogrfica, como de sada j sugereo prprio subttulo da obra nota sobre fotografia. Seus 48 fragmentosescritos em 48 dias (15 de abril 3 junho de 1979) sugerem mesmose tratar de um dirio de Barthes que reflete sobre a imagem e a morte

    e, notadamente, sobre um luto recente, a perda de sua me, HenrietteBarthes (1893-1977). (SAMAIN, 1998, p.128). A Fotografia doJardim de Inverno, em que figura sua me, desempenha um papelimportante nesse livro. do que advm dessa imagem, que Barthes

    busca interrogar a essncia da fotografia.O que nos revela, na atualidade, o conjunto da obra barthesiana

    que, apesar de seus inmeros deslocamentos, h uma coeso interna de

    seus escritos. Barthes busca, no decorrer de toda sua obra, as brechasdo grau zero por meio da evocao da abstinncia de imagens,

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    suspenso, silncio e vazio. Ao contrrio dos iconoclastas, a intenodas brechas do grau zero no pretendia destruir as imagens, masdescol-las e coloc-las distncia para melhor perscrut-las. Os escritos

    barthesianos ensinam que o caminho para subverter a imagem ecorromper a linguagem a esttica e a literatura.

    Uma pequena histria da fotografia?

    Na busca de levantamento do estado da arte a respeito dosescritos sobre fotografia de Roland Barthes, deparamo-nos,recentemente, com dois textos instigantes, ambos publicados na revistaComunicao & Linguagem da Universidade Nova de Lisboa, numdossi intitulado Fotografia(s): uma abordagem multidisciplinar.(MEDEIROS, 2008). Um deles A cmara clara: outra pequenahistria da fotografia, de Geoffrey Batchen, professor da City

    University of New York, um dos maiores especialistas em teoria ehistoriografia da fotografia. O autor questiona as muitas histrias dafotografia de que dispomos hoje, vendo faltar nelas tudo aquilo que, poroutro lado, encontra em Barthes. O ltimo dos escritos barthesianos ,no seu entender, outra Pequena histria da fotografia, digna doimportante texto de Walter Benjamin, escrito em 1931, quase 50 anosantes do volume barthesiano.

    Batchen (2008, p.14) nota que o discurso mais insistente em tornodeA cmara clara o de que a obra seria a pior coisa que teria acontecidoao discurso fotogrfico, uma vez que o livro parece abandonar ocompromisso inicial de Barthes com a anlise poltica das imagens emfavor de um hedonismo textual. De fato, como se sabe, o que Barthes

    buscava era a essncia da fotografia, que permitiria distingui-la de todasas demais imagens. Batchen diz ainda que o livro desenvolve uma histria

    da fotografia, muito mais do que qualquer teoria crtica, e a maneira comope em descrdito a maioria das discusses a respeito do par opositivo

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    studium epunctum, assim como do subtema do livro, a relao dafotografia e da morte. Estas abordagens tpicas da obra desviam o olharda possibilidade de encontrar, justamente, uma outra pequena histria da

    fotografia, nota ele.Desde as primeiras pginas, Batchen (2008) busca comparar

    estruturalmenteA cmara clara ao ensaio de Benjamin, comeando pormostrar que ambos ilustram a sua histria com fotografias relativamente

    banais, que, no entanto, so capazes de disparar leituras poticas, comose tambm Benjamin procurasse apreender o efeito depunctum. Apesardas inmeras correspondncias e similitudes acrescenta ele Barthes

    no faz nenhuma referncia a Benjamin, nem em sua biografia nem emsuas habituais notas marginais. O fato to mais intrigante quanto tudoaponta que, na edio de 1977 da revistaNouvel Observateur Photo,da qual Roland Barthes retirou a maioria das fotografias que ilustraramAcmara clara, constava uma verso francesa do clebre ensaio

    benjaminiano. (BATCHEN, 2008, p.17).O que se nota, a partir da leitura deA cmara clara, que a

    Pequena histria da fotografia implode o tom objetivo e se entrega auma forma narrativa em primeira pessoa que enuncia a experincia dosujeito diante da fotografia e de seu lao traumtico com o passado.O mais inusitado que Barthes escolhe fotografias pblicas para falarde algo bem ntimo, do que h de mais traumtico na experinciafotogrfica: o isso existiu. Essas fotos parecem importar menos comocorpus de uma pesquisa e mais como pretexto (pr-texto) para o texto:uma escritura da experincia do sujeito diante da imagem. Comoescreve Batchen (2008, p.23):

    A Histria continua a ser um lugar poderoso para esse trabalho,como fica evidente na forma como Barthes leva a cabo arepresentao da sua pequena histria da fotografia.Abandonando a narrativa linear e cronolgica, as afirmaesilusrias da compreensibilidade, e os valores hierrquicos damaioria dos estudos em fotografia, esta uma histria guiada por

    uma nica pergunta por responder: o que a fotografia? Ao inserirest ansiedade ontolgica no seio da sua narrativa, Barthes no

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    estabelece previamente nenhuma direo para essa narrativa. Aoinvs, os leitores so conduzidos numa demanda com um poucode ruminao filosfica, um pouco de histria social, um pouco decultura visual, um pouco de romance de detetives que fala tanto

    acerca deles prprios (acerca da conscincia) como da fotografia.

    Barthes (2008, p.22) parece interessado em explorar apossibilidade de inventar uma forma vanguardista de histria, e no emfornecer, uma vez mais, uma histria das imagens vanguardistas. Emqualquer dos casos, o objetivo do seu livro descobrir a natureza daexperincia oferecida por qualquer fotografia. Em suma, a abordagem

    da fotografia e no das fotografias.Batchen tambm sustenta a ideia de que a essncia da fotografia

    a de ser um signo indicirio, o que a distingue de outros sistemas derepresentao. Como ele escreve: A noo perciana de semioseindiciria anula qualquer distino clara entre um referente e asassociaes psicolgicas a ele atribudas por um observador.(BATCHEN, 2008, p.19).

    No entanto, seA cmara clara pode ser lida como uma outraPequena histria da fotografia, isso se deve tambm, segundo Batchen,ao que ela significa em seu momento. De fato, quando foi escrito, no finalde 1979, a fotografia j estava institucionalizada como objeto histrico e

    prtica profissional, e o livro de Barthes soou como ltimo testemunhoque associam intimamente a fotografia histria, e as suas pequenashistrias como a sua prpria experincia de fotografias reais, como se o

    destino de uma dependesse da forma da outra. (BATCHEN, 2008, p.23).Em seu Le pas philosophique de Roland Barthes, Jean-Claude

    Milner parece ir ao encontro a Batchen. Para Milner, cada palavra,cada aluso de Barthes deve ser levada a srio.A cmara clara omomento em que Barthes se solta do mastro do barco e se entrega aocanto das sereias, metfora que referenda O canto da sereia em Olivro por virde Maurice Blanchot.

    Nesta perspectiva, Barthes acaba por condenar o pensamentode Walter Benjamin na esteira de pensamento de Benjamin, a

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    condenao plena e inteira. (MILNER, 2003, p.72). Para esse autorno h nenhuma referncia clara ao ensaio de Benjamin. A nicareferncia e, de maneira explcita aparece em uma entrevista

    concedida por Barthes em 1977 e publicada em 1980 em que eleafirma que, entre os raros textos dignos de nota est o de Benjamin.Porm, nada habilita a constatar que ele referendava Pequena histriada fotografia ouA obra de arte na era da reprodutibilidade tcnica.O seu julgamento a respeito do texto de Benjamin de que ele bom

    por ser premonitrio. (MILNER, 2003, p.72). Estas palavras deBarthes parecem, enfim, sugerir que o texto benjaminiano tem apenas

    valor histrico.De outro ponto de vista, Barthes inverte a tese. Segundo Benjamin,

    o anjo da histria caminha para trs no futuro, nas vidas por vir, mais doque na morte. J o caminho escolhido por Barthes para falar de fotografiafoi de remontar os escombros do passado: Impulsionado pelo progresso,ele contempla os escombros de um passado. (MILNER, 2003, p.72).

    Elencando elementos que afastam Benjamin de Barthes, Jean-

    Claude Milner aponta que Barthes diz no histria uma invenomoderna tal como a fotografia para dizer sim fotografia como artetcnica que congela o tempo, faz do instante algo infinito: reproduzmecanicamente algo que no poder mais se reproduzir existencialmente.

    Este posicionamento barthesiano diante da fotografia vem aoencontro ao pensamento Benjamin desenvolvido em outro ensaioclebre, intituladoA obra de arte na era da reprodutibilidade tcnica,

    pois para Barthes o que se inaugura na era da reprodutibilidade tcnica notadamente para o mundo da fotografia nada altera em relao aoque era considerado como obra de arte at ento, visto que, o que sefotografa no deixa de se tornar o que nico. (MILNER, 2003,

    p.73). O que se fotografa se torna irrepetvel, embora reproduzvel aoinfinito. Para Barthes a fotografia parece no perder o conceito

    benjaminiano de aura, pois, ela sempre por mais reproduzida que a

    fotografia vem a ser ser o registro de um instante nico. Eis-a, oescndalo barthesiano deA cmara clara.

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    A imagem e a morte /a fotografia e o duplo

    O outro texto recolhido nesta revista A fotografia, a modernidadee seu segredo. Antes e depois de Barthes, de Margarida Medeiros,

    professora do Departamento de Cincia da Comunicao da UniversidadeNova de Lisboa. Ao elaborar um fio condutor da passagem progressistada fotografia que emerge centrada no espanto pela revoluo tecnolgicado instante congelado de que nos fala a fotografia, a autora se dedica a

    demonstrar uma concepo mais necrfila, que v na fotografia no oespelho do progresso, mas da dissoluo do Ser, e que fala insistentementeda fotografia como um dispositivo mortfero. (MEDEIROS, 2008, p.27).

    No decorrer de seu artigo, a autora demonstra que a morte esteve maisou menos presente na histria da fotografia. Nem mesmo autorescontemporneos, tal como Philippe Dubois, em O ato fotogrfico,conseguiu retirar a fotografia desse lamaal da morte, ao situar a atofotogrfico entre o mito de Narciso e de Medusa, a Grgona de cabelosem forma de serpente que petrifica de horror que ousa mir-la.

    Nesse artigo, Margarida Medeiros elenca um conjunto de textosclebres a respeito da teoria crtica da fotografia para situar o papel daimagem fotogrfica na cultura moderna, sinalizando que esses textos nonos falam simplesmente de uma evidncia de pensamento a respeito dafotografia, mas tambm de uma experincia dos traumas vivenciados.

    O percurso textual escolhido pela autora parte das primeiras

    utilizaes da fotografia no sculo XIX, quando ento se fotografavam aspessoas em seus leitos de morte. A morte era o vetor da atividadefotogrfica: ter um registro dos seus entes queridos antes ou mesmo depois,

    j morto. At mesmo durante o sonho positivista e cientificista naturalista de fotografar a retina do morto para registrar a ltima imagem vistapelos olhos do mesmo que foi de 1860 at o incio do sculo XX. Aideia de morte, ou pelo menos do cadver, est de certa forma impregnada

    nos primeiros daguerretipos em que os retratados permaneciam longosperodos de exposio de maneira rgida, atribuindo-lhe uma certa face

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    ntida, mas macabra e estranha (morturia), pois para ser retratado eranecessrio se fazer morto.

    A autora aponta, a partir da segunda meta de do sculo XX, um

    crescente estranhamento do dispositivo fotogrfico, que culminou naconstruo de uma viso ttrica desse aparato tcnico de fabricao deimagens. So os textos de Susan Sontag, Sobre fotografia, e de RolandBarthes,A cmara clara, que coroam uma reflexo apurada para umainterpretao do dispositivo fotogrfico como um mecanismo que evocauma reflexo sobre a fugacidade da experincia, sobre a morte(MEDEIROS, 2008, p.28), ao notarem claramente a relao da prtica

    fotogrfica e da fotografia com a morte. Barthes considera talvez a fotografiauma imagem que produz a morte, enquanto Sontag discorre sobre osignificado da fotografia na cultura contempornea, ressaltando os aspectoscomo: o aparelho fotogrfico como arma, a prtica fotogrfica comocaada. Remete constantemente a essa idia de imagem secular,intimamente relacionada passagem do tempo e ao fetichismo damercadoria. (MEDEIROS, 2008, p.39). Neste sentido, como coloca

    Miguel Frade, quando se pe a pensar um outro tempo da fotografia: dopioneirismo e do espanto que representava ainda ao olhar o processopara obter uma fotografia:

    O que equivale a dizer que os espantos, hoje, sofundamentalmente outros: porque a imagem fotogrfica foi-setornando incapaz, ao longo da sua histria, de espantar quemquer que seja pela sua simples natureza foto-grfica. [...] A imagemfotogrfica tornou-se habitual, banal, natural: pensamos saber,ou melhor, esquecemo-nos de que no sabemos exatamente o queela representa o que ela implica o que ela faz e no faz, e esquecemo-nos, sobretudo de que ela existe j que, como tcnica disponvel

    para gerir as aparncias, que por ela se tornam elas mesmasdisponveis, o dispositivo liga-se assim ao domnio damundaneidade banal [...]. (FRADE, 1992, p.13).

    Essa concepo necrofilizante projetou e se amalgamou sobre ahistria da fotografia como se desde o incio a fotografia tivesse sido

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    concebida como um dispositivo de morte. Toda a sua histria olhada eenvolvida num cenrio ttrico, no porque isso seja feito explicitamente,mas porque visvel na forma como a teoria e a histria da fotografia se

    relacionam com o passado desta. (MEDEIROS, 2008, p.33).Nesse sentido, como bem sinaliza a autora, a crtica

    contempornea da imagem tem citado incessantemente o texto deSigmund Freud,Das Unheimliche (O sinistro), texto datado de 1919.Para mostrar a ideia de duplicar um objeto, um personagem acenacom a possibilidade de negar a finitude em detrimento de assegurar asua continuidade, assim como seus desdobramentos amplamente

    experimentados na literatura. Da ideia primitiva da imagem duplicadado eu, essa cpia fiel que surge da projeo do corpo sobre umasuperfcie qualquer seja ela o espelho ou muro traz consigo oconceito freudiano de sinistro ou estranho. Pois a reapario de algoque por muito tempo era conhecido mas que, por algum motivo, foirecalcado, e que ao vir tona se tornou pavoroso. Esse sentimento

    para Freud deve-se ao retorno do recalcado, que est relacionado

    principalmente castrao, compulso, repetio e a medosancestrais parcialmente superados.

    As investigaes freudianas a respeito do conceito de sinistropartem, de um lado, de uma vertente etimolgica, que nos interessaparticularmente nesse momento, da palavra alem empregada porFreud para designar o conceito de sinistro Unheimliche,palavraque encerraos sentidos opostos de algo familiar que , ao mesmo

    tempo, vivido com estranheza. E de outro, uma anlise das obrasliterrias que tematizaram a questo do duplo e que provocam no leitora sensao de Unheimliche. Tal inquietante estranheza pode ser

    provocada pela imobilidade de um ser ou vice e versa. Nas palavrasde Cesarotto (1996, p.127): quando o inacreditvel aparece comoreal [...] um smbolo assume o lugar e a importncia do que simbolizado, o sinistro vem a lume.

    Como lembra ainda Cesarotto (1996), todos os nossos sentidospodem vir a ser atingidos pela sensao de estranheza (Unheimliche).

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    Porm, ele ressalta que a viso o campo escpico o maisprivilegiado dos sentidos corporais a levar esta para acesso essaquesto: a viso nos possibilita a sensao de certeza (realidade das

    coisas: aquilo que vejo realmente existe): A apreenso do real pormeio dos olhos permite ao sujeito posicionar perante o mundo externoque, por esta operao, interiorizada e metabolizada pelo eu.(CESAROTTO, 1996, p.134).

    O pensamento barthesiano da fotografia rebate o de Freud: oque estranho, de grande inquietude (sinistro), parece querer sernegado atravs de um processo de repetio compulsiva que busca a

    banalizao/normalizao, tornando-o familiar. Toda a concepobarthesiana de fotografia est construda a partir da noo semiticade ndice na medida em que para ela a fotografia traz sempre consigoseu referente, numa conexo profunda. Tal a impregnao dessaconcepo indiciria que atribuem a essas imagens tcnicas o papelde almas de um outro mundo que regressam. O projeto inicial deBarthes de chegar essncia da fotografia fracassa na medida em que

    a fotografia revela algo que da ordem do recalcado, aquilo que demasiadamente obsceno e, por isso, no verbalizvel. Nas palavrasde Frade (1992, p.206):

    A fotografia hoje objeto de uma outro mal-estar, tambm este nacivilizao, medida que o seu lugar presente se reconfigura soba presso constante de um futuro que comea a eclodir j hoje,como a exploso das imagens que tudo mimam sem que nada serefiram: face ao que se avizinha, talvez no seja de menorimportncia assinalar de que modo a fotografia, apesar de poderser absolutamente irreal, no deixa de exigir uma contacto com asuperfcie do mundo para se fazer. nesse sentido que ela podeser louca, quando o seu realismo absoluto e original comear asurpreender-nos em demasia apenas por poder fazer regressar conscincia [...] a prpria marca do tempo.

    O que se rompe no horizonte da busca para pensar a fotografia apergunta sobre qual o caminho possvel e interessante para compreender

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    os efeitos comportamentais que a fotografia provoca, quando se esforana denegao de uma inquietante estranheza.

    Alguns toques desutileza fotogrfica barthesiana

    Na mesma perspectiva de leitura psicanaltica deA cmara clara,Serge Tisseron, psiquiatra e psicanalista, autor de inmeros livros

    consagrados imagem. Dentre eles, destacamos aquele em que se dedicaa uma crtica deA cmara clara,Le mystre de la chambre claire:

    photographie et inconscient, apontando trs pontos em que o textobarthesiano fracassa sem, no entanto, deixar de ressaltar o quanto Barthesfez pela fotografia.

    As ideias do autor parecem mais claras e diretas na parte final dolivro intitulado Conclusion, em que coloca a fotografia muito mais

    prxima da ideia de trao [trace] do que de rastro (pegada)[empreintre], pois esta a marca deixada em profundidade por umcorpo pelo contato com uma superfcie, enquanto o trao, menos oresultado do contato do que de uma ao fsica ou qumica. Para Tisseron(1996) pouco importa discutir se o signo fotogrfico mais ndice doque cone. Pouco importa o estatuto semitico desse signo. Ele estinteressado no efeito das relaes que estabelecemos com a fotografia

    tanto como consumidores quanto espectadores. Desta maneira, Tisseron(1996, p.158) nota que: Ela [a fotografia] no a exaltao da morteat a representao da vida [...] mas ao contrrio, a exaltao da vidaat a representao da morte.

    Ao apresentar a fotografia como algo que cativa subjetivamente oespectador, e de engaj-la do lado de um pensamento mrbido, o autor

    parece deduzir que a imagem vincularia o seu espectador, sob uma forma

    atenuada, como a dor de um traumatismo que condenaria o sujeito a umeterno sofrimento (punctum). Tal fato, na viso de Tisseron, no

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    corresponde ao que ensina os casos clnicos, visto que o psiquismo norememora passivamente os traumatismos do passado, mas espera que otempo trabalhe atenuando progressivamente o sofrimento. Sinaliza ainda

    que opunctum no necessariamente algo doloroso, pois [...] o processode simbolizao nos mostrou que a experincia secreta cuja introspecose tornou impossvel, no necessariamente dolorosa pode ter sua origemnuma experincia feliz. (TISSERON, 1996, p.161).

    Sua segunda crtica se coloca sobre a posio barthesiana dafotografia que a situa como o retorno do morto, por se tratar de umaimagem constituda pelo espectro que advm do sujeito fotografado e

    tambm pelo espectador que descobrem o objeto fotografado comodesaparecido para sempre. Nesse sentido, Barthes contribuiu para aconstruo de uma teoria da fotografia como a revelao de um

    processo melanclico. Para Barthes, essa melancolia da fotografia sedeve ao seu carter indicial, que a coloca no status de imagem sagrada

    archeiropotico , mgica, louca, alucinatria intimamenterelacionada morte. Enquanto do ponto de vista de Tisseron a

    fotografia est bem longe dessa ideia corrente de retorno do morto,mas muito mais perto da tentativa de ultrapassar a ferida aberta daseparao primitiva separao da me que marca o funcionamento

    psquico de todo ser humano.A terceira crtica recai na sentena barthesiana de que a imagem

    da qual estou excludo, pois a fotografia um conjunto de signos quefazem referncias a um passado que se torna a nos espectadores

    inacessvel. Entretanto, segundo Tisseron, a imagem s exclui aquele queresiste ao seu convite de entrar e se deixar guiar por ela, ou seja, a fotografiano seno um esqueleto de signos para aqueles que se recusam a [...]abandonar sua carne e de explor-la [a fotografia] como um corpo.(TISSERON, 1996, p.165).

    Ainda no pensamento psicanaltico da fotografia, devemos situar otexto de Franois Soulages, professor na Universit de Paris VIII Institut

    Nacional dHistoire dArte , intituladoBarthes & la folie empreinte ou lafoi, le scandale et la foipor ocasio do Colquio intitulado: Empreintes

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    de Roland Barthes organizado pelo INA Institut Nacional de l Audiovisuel,em 13 de junho de 2008, na Universidade Sorbonne, em Paris.

    Nesse texto, o autor se debrua sobre esse ltimo livro de Barthes

    que ele considera transtornante [bouleversant]. De sada, declara queAcmara clara um livro sobre fotografia, mas tambm da relao deBarthes com sua me e os ltimos dias dela antes de vir a falecer. Nas

    pginas desse livro est entregue ao leitor um problema to vivo naquelemomento na vida de Roland Barthes: como viver a morte daqueles que seama? A fotografia, como sublinha Franois Soulages, um rastro (ndice)louco que em face ao seu escndalo retorno brutal do analgico evoca

    nossa f. Portanto a fotografia nos congela num passado ao qual no sevolta mais. Ela guarda em si mesma um elo essencial com o divino que

    permite segundo a leitura barthesiana uma abordagem de f desse nque o autor estabelece entre fotografia, sofrimento e amor. Na leitura deSoulages, Barthes toma a fotografia como um espao existncia edipianoonde ao filho permitido de reencontrar sua me morta, de continuar aviver este amor e alcanar, talvez a, o xtase: satori /punctum.

    No limite,A cmara clara uma tentativa a todo custo do discursobarthesiano de apresentar ao leitor a dificuldade de apreender a essncia dosujeito fotografado e da prpria fotografia em si. Porm, diante desse xtasefotogrfico que Roland Barthes vivencia na Fotografia do Jardim de

    Inverno de sua me, com cinco anos de idade, podemos acreditar quecertas fotografias provocam uma experincia de f, de amor e de loucuraque no demonstrvel, mas que separa aquele que a pratica daquele

    que no a vivenciou: imaginrio escandaloso e louco que s a f coloca. E a que se situa o sublime da fotografia. Nesse sentido, para Soulages, osigno fotogrfico barthesiano, esse rastro extraordinrio do quase-sobrenatural, no pode ser compreendido por aquele que nunca amou.Embora as crticas, como nota Soulages, sejam inmeras por algumas dasteses barthesianas sobre a fotografia: [...] [A cmara clara] permanecede um valor inestimvel dado a gravidade e a fora de algumas interrogaes

    relativas ao rastro, fotografia, me, ao amor, e morte, relaesobrigatoriamente existenciais e edipianas. (SOULAGES, 2009, p.206).

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    Em outro texto desse colquio sobre Roland Barthes, intituladoIncarnations de Roland Barthes, de Franois Gaillard, professor deFilosofia na Universidade de Paris VII, observamos que a fotografia seria

    para Barthes um objeto que se oferece a vrias prticas nas quais seengaja o corpo, ou mesmo, vrios corpos: o do fotgrafo, do espectadore o daquele que foi objeto da fotografia. Para esse autor, corpo umapalavra-man da obra barthesiana que marca a presena espectral dafenomenologia em tudo o que Barthes escreveu de O grau zero daescritura A cmara clara. (GAILLARD, 2009, p.123).

    A semitica do rastro apresenta uma perturbadora e instigante

    continuidade: o objeto e o sujeito da enunciao no esto claramentedistintos. EmLe singulier a lpreuve1 de Franois Wahl editor que trouxe pblico uma das obras pstumas de Barthes,Incidentes, sublinha aadmirvel maneira pela qual Roland Barthes tomou a fotografia como umatcnica psicoqumica, o que alguns denominam de rastro [empreinte].(ARROUYE, 1990). Nesse tipo de registro, a interpretao somente

    poderia ser esmagada, reduzida a um puro reconhecimento do isso.

    Dessa maneira, no queremos afirmar que Barthes ignorou as intervenesdo homem sobre a fotografia (enquadramento, distncia, luz, etc) mas,como afirma Jean Arrouye professor na Universidade dAix-em-Provence no textoNarrativit photographiques ou lanimadversionde Barthes (MORA, p.40), dedicado ao livroA cmara clara oque parece que todas essas intervenes pertencem ao plano daconotao, a um cdigo cultural de representao que no mudafundamentalmente a natureza do espetculo observado e representado

    pela fotografia. A caracterstica particular da fotografia no seu estadoliteral e em razo da sua natureza absolutamente analgica a deconstituir uma mensagem sem cdigo. no nvel da coisa percebida,do espetculo mostrado plano da denotao que se constri e semanifesta o sentido da fotografia e nessa mesma instncia que seapresenta sua capacidade de fazer histria.

    1 Texto retirado do livro Roland Barthes et la photographie: le pire du signe. Paris: Contrejours,1990. p.14. (Cahiers de la photographie. n. 25), editado por Gilles Mora.

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    Essa semitica ou semiologia do rastro est intimamente associada semiologia segunda que mile Benveniste delineia: sentir o formigamentoda lngua, perceber o quanto o sistema (paradigma) est inscrito no prprio

    corpo daquele que vive naquela lngua.Gabriel Bauret, fotgrafo que teve sua tese orientada por Roland

    Barthes, em seu textoLesquisse dune thorie a la denire aventuredune pense (MORA, 1990, p.7), nota que se em A mensagem

    fotogrfica texto que se inscreve no contexto de Elementos desemiologia e que deve ser lido na mesma perspectiva deMitologias Roland Barthes visionava uma possvel teoria da fotografia.

    A cmara clara se situa margem de toda essa busca, ao menos primeira vista, pois a famosa e instigante distino que ele opera entrepunctume studium poderia ser considerado uma teoria sutil da fotografia.No entanto, essa dicotomia no constitui a mais interessante das teorias arespeito dessa arte. Para Bauret, podemos considerar [A cmara clara]o mais autobiogrfico de Barthes, mas, talvez, tambm o mais filosfico.(BAURET, 1990, p.12). O discurso construdo por Barthes bastante

    estranho histria, tcnica e a todas as teorias elaboradas at aquelemomento; entretanto, no deixa de se ser um dos mais pertinentes einstigantes olhares sobre a fotografia: o olhar barthesiano de uma lucidezque ele mesmo se assusta, afirma Bauret (1990, p.13). Barthes refuta ateoria, como tambm a fotografia artstica, para se dedicar a uma imagem

    particular, singular, ntima a fotografia Jardim de Inverno e colocar emcausa sua forte presena evidente e sua circulao no seio de uma cultura

    da imagem.Daniel Bougnoux filsofo e professor emrito da Universidade deStendhal de Grenoble III , em seu texto de abertura do colquio Lesempreintes de Roland Barthes, intituladoLes empreintes, non lemprise,nota que desde 1968, com o texto O efeito de real, bem como com afotografia, a msica e mesmo com certa poesia (haikai), Barthes inicia suaexplorao de uma semitica inferior a do ndice que privilegia um

    signo no codificado, na fronteira entre a presena real e a representao.Para Bougnoux, opunctum fotogrfico barthesiano e a aura benjaminiana

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    so brechas filosficas e semiticas para ir mais prximo do real: menosinfluncia, mais presena no mundo, e mais distncia. O caminho dissociaro real de realidade. Nesse sentido, os trabalhos de Roland Barthes e

    Rosalind Krauss foram, talvez, os nicos a colocar a fotografia num justoponto de vista: o da relao com o real. Segundo Jacque-Alain Miller,Lacan distinguiu a realidade de tudo o que existe, o real. A realidade seriatudo que seja perceptvel, acessvel, entendvel pelo ser humano, enquantoo real seria o conjunto das coisas, independente de que sejam percebidos

    pelos seres humanos. Refere-se ao que autntico; inaltervel verdadesimultaneamente, um ser e a dimenso externa da experincia. o que a

    linguagem (simblico) no pode e no consegue tocar o impossvel ,impenetrvel pelo sujeito para quem a realidade tem uma naturezafantasmtica.

    Diante das vrias maneiras de denominar esse apagamento dalinguagem: opunctum (xtase fotogrfico), o haikai ou at mesmo aefervescncia amorosa. O sujeito experimenta [...] um engajamento faceao objeto num indivisvel, numa irrefutvel imanncia que a sentena de

    morte do ego transcendental. (BOUGNOUX, 2009, p.5). H a o desejode possuir e ao mesmo tempo ser possudo: um jogo lingustico em que odiscurso ou o sentido no pega. A sensao dopunctum fotogrfico noconstitui a experincia de um sujeito em face a uma imagem, mas de umasensao recebida do mundo a partir de uma invaso de um transe discretoque o deixa cerrado-possudo-paralisado [poign-saisi-transi]. Enfim,nota ainda o autor que o punctum a inverso do possuir, o

    desprendimento [(d) saisissement] do sujeito sensvel, e o apagamentodostudium, ou melhor, de qualquer tentativa e desejo de empreendimentoretrico.

    Nesse sentido, para Bougnoux, o rastro dopunctumparece sedeslocar do sentido da viso para o ttil. Esse deslocamento no querdizer muito, a no ser um maior arrebatamento do sujeito. Essas impressese rastros no so seno maneiras discursivas de colocar em evidncia o

    no-querer-possuir que leva a uma atenuao da arrogncia e dainevitvel violncia de nossas vrias enunciaes. Estamos cada vez mais

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    prximos do desejo de Neutro. No-querer-possuir, como pensa EricMarty editor das Oeuvres compltsde Roland Barthes e professor deliteratura na Universidade de Paris VII, em seu livroRoland Barthes: o

    ofcio de escrever essa queda fora da linguagem que, por sua vez,estaria prximo do sentido de neutro que em uma das suas acepes

    poderia ser entendido como a falta de linguagem, uma forma de silncio,de apagamento, de suspenso do sujeito. O no-querer-possuir oxtase eternamente suspenso em um puro presente.

    O textoDu signe la trace, de Louise Merzeau conferencistaem cincias da informao e da comunicao e membro do laboratrio

    CRIS Centre de Recherche em information spcialise etmdiation des savoirs, desse mesmo colquio em homenagem aBarthes aponta que os rastros, para esse autor, podem assumir vriasformas e ter vrios nomes, segundo o contexto e o objeto evocado:satori, picada, detalhe, punctum, dentre outros. So termos que no

    podem ser teorizados, pois deslocam o texto crtico do campo tericopara conduzi-lo mais prximo de uma escritura-trao. Como sublinha

    Merzeau (2009, p.127), o texto- trao descrito como um corpomarcado de afetos. A obra barthesiana marcada por essa escriturasintomtica em que o discurso perde a arrogncia da certeza de tudosaber. Para Merzeau, na fotografia que o texto-trao volta prximode seu modelo e sua lgica: ela [fotografia] reconstri a mesma lgicaindicial que separa o discurso de sua interpretao. (MERZEAU,2009, p.131).

    Como se pode observar, nesses ltimos escritos sobre fotografia,Barthes no a encara mais como signo analgico, mas como um trao,uma emanao luminosa, uma parte do corpo ou uma pele. Merzeausublinha que Barthes lida com o que h de mais evidente em matriade sentido na fotografia: na fotografia, eu no posso jamais negar quea coisa esteve l. (MERZEAU, 2009, p.131) Para esse autor, no

    podemos encararA cmara clara como uma semitica. Barthes parece

    se entregar ali uma coalescncia do signo, para produzir um discursofenomenolgico que no cede a analogia do signo, fazendo desse livro

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    no uma questo especfica de ndice, mas de um trao do isso existiu[a-a-t].

    Daniel Bougnoux sinaliza um importante passo no horizonte da

    escritura deA cmara clara: aquele ligado ao fato de o livro ter servidocomo forma de investigao num campo de pesquisa que ele denominamediologia, campo terico que traz a lume os efeitos simblicos dasinovaes tecnolgicas. Assim, separando contedo da forma, a maneirade analisar a imagem fotogrfica introduzido pelo rastro, tal qual empregada

    por Barthes, no tem nenhuma relao com a mensagem, mas com omeio e com a forma. o que justifica a substituio [...] da economia da

    mensagem por uma economia do media e a semiologia por umamediologia. (BOUGNOUX, 2009, p.141).

    O olhar barthesiano sobre a fotografia

    Todos os comentadores deA cmara clara sublinham essa buscafenomenolgica pela essncia da fotografia saber a todo custo o que elaem si mesma que passa, por sua vez, pela insistncia barthesiana noaspecto material e qumico da fotografia, pois ela a prova isso [cesta] de que isso existiu [a-a-t].

    Este o noema da fotografia, ou seja, aquilo que percebido,apreendido do objeto da percepo. A fotografia apreendida por Barthescomo fenmeno de conscincia: a coisa em sua essncia que importa.

    na fotografia do jardim de inverno que o autor, ento, reencontrou suame sua realidade, seu passado porque ela (a fotografia) umaemanao do referente, um rastro, um trao dela.

    O efeito que esse trao, essa emanao produz no o de restituiro que foi abolido pelo tempo, pela distncia, mas um atestado de que oque vejo existiu ou aconteceu. A fotografia o testemunho de f que atestaa ressurreio e proclama essa boa nova. Tal esta demonstrao e este

    testemunho nela encontrado que leva Barthes a compar-la ao santosudrio.

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    A questo que fica : como lidar com essa virada terico-conceitualinstaurada pelopunctum no campo das imagens? Podemos de sadadizer que no tem nada a ver, por exemplo, com a concepo de

    memria involuntria to cara obra proustiana,Em busca do tempoperdido.

    Para o ltimo Barthes deA cmara clara, no h nada de memriana fotografia pungente, o que ela provoca um atestado de que aquiloque se registrou sobre a chapa metlica realmente aconteceu, estaval. De resto basta saber o quanto Barthes se refere a Proust e o quantoProust est presente em seus momentos finais, sendo um tema recorrente

    nas derradeiras aulas no Collge de France. Talvez o que induz oscomentadores deA cmara clara a pensar que opunctum o que hde mais proustiano nesse Barthes, apontando apressada e erroneamenteque Barthes se contradiz, pois, no fragmento 28 ele afirma:

    Por uma vez, a fotografia me dava um sentimento to seguroquanto a lembrana, tal como a experimentou Proust, quando,

    ao abaixar-se certo dia para descalar-se, percebeu bruscamenteem sua memria a face de sua av verdadeira, cuja realidadeviva pela primeira vez eu encontrava em uma lembranainvoluntria e completa. (OCV, 2002, p.845).

    J no fragmento 35, logo na abertura, o autor expe: A fotografiano rememora o passado (no h nada de proustiano em uma fotografia).(OC,V, 2002, p.855). Esclareamos o fato. Barthes no afirma que a

    fotografia tem algo de (re) memria proustiana; ele simplesmente comparaa memria involuntria proustiana ao registro fotogrfico para que se faanotar o paradoxo entre um e outro. A fotografia para Barthes arestituio/ressurreio, enquanto a memria involuntria em Proust umlance de embriaguez dos sentidos que nasce das sensaes, do afeto que

    pode, ao mesmo tempo, restituir ou encobrir experincias passadas.Contudo, os leitores deEm busca do tempo perdido sabem o

    quanto essesflashes de memria so postos em dvida pelo narrador, oque o impede de se entregar completamente ao que revela o depoimento

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    de suas prprias sensaes. Assim, essa aparente contradio barthesianase desfaz quando novamente Barthes recorre a Proust para neg-lo (noh nada de proustiano em uma foto), pois emA cmara clara, a fotografia

    no rememora nada, e sim restitui, faz emergir num presente louco, algoque no existe mais, mas que ao mesmo tempo sua essncia est limpregnada nos sais de prata da pelcula fotogrfica.

    Assim, a boa fotografia simplesmente coloca diante do olhar doSpectatorum passado (a a t), um presente (o sujeito fotografado l em forma de spectum) mas, ao mesmo tempo, anuncia uma verdade,(cest a) e um futuro (a eminncia da morte).

    A fotografia est antropologicamente ligada morte pelo seupoder de imobilizar o tempo e a interpretao, o que faz que aqueleevento registrado se perpetue num movimento de eterno retorno,excluindo qualquer possibilidade de catarse. esta viso filosficagrave a respeito da fotografia que leva Barthes a afirmar, bem naabertura do fragmento 38:

    Todos esses jovens fotgrafos que se movimentam no mundo,

    dedicando-se captura da atualidade, no sabem que soagentes da Morte. o modo como nosso tempo assume a Morte:sob o libi denegador do perdidamente vivo, de que o Fotgrafo de algum modo o profissional. (OC,V, 2002, p.865).

    O estatuto semitico da fotografia se situa alm da formaestabelecida pela representao: a fotografia nos coloca diante de umaindividualidade sem cdigo, sem mscara, at mesmo sem mediao. A

    verdadeira ferida da fotografia est no seu curto-circuito temporal: tornaro passado presente. No entanto, esse passado agora presente comomorto. O que parece que a fotografia consolida o sonho barthesianode escritura branca, estatuto que a linguagem s pode sonhar emtangenciar. A neutralidade do signo constitui a caracterstica essencialdesse regime de representao. Porm essa neutralidade na essncia dafotografia parece ser abafada, fazendo-nos esquecer de que se trata de

    uma analogia do retorno brutal para se passar como uma analogia doefeito natural (arte).

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