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109 , Goiânia, v. 11, n. 1, p. 109-121, jan./jun. 2008. educ José Carlos Libâneo * O CAMPO TEÓRICO-INVESTIGATIVO DA PEDAGOGIA, A PÓS- GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO E A PESQUISA PEDAGÓGICA nicialmente, desejo engrandecer esta iniciativa da Reitoria da UniEvangélica de Anápolis e de sua Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa, de consumar este Convênio com a Universidade Católica de Goiás, visando a formação e a titulação em nível de mestrado de seu quadro docente. Tenho defendido em vários lugares uma idéia muito simples: a essência do que acontece na universidade é a qualidade e eficácia do ensino por parte dos professores, da qual depende a qualida- de e eficácia da aprendizagem por parte dos alunos. O principal valor da instituição universitária são seus professores. Uma universidade que se preze precisa ter excelentes professores, com domínio do conteúdo, capacidade investigativa e formação pedagógica, isto é, professores que lidem de forma rigorosa e competente com o saber científico e tecnológico e que saibam ensinar com competência esse saber. Em segundo lugar, agradeço o convite da Coordenadora do Convênio para proferir esta aula inaugural. Minha conferência tem como tema: O Campo Teórico-Investigativo da Pedagogia, a Pós-Graduação em Educação e a Pesquisa Pedagógica, dirigindo-me especialmente aos alunos recém-ingressados no mestrado realizado pelo Convênio entre a UniEvangélica e a UCG. Vocês estão iniciando um mestrado em educação. Sejam vocês sociólogos, estudiosos das políticas públicas, gestores de instituições educacionais, professores de ensino superior, uma coisa é certa: seu mestrado se denomina “mestrado em educação”. Eu gostaria de expressar meu ponto de vista sobre o real significado dos estudos de mestrado no campo teórico e prático da educa- ção, partindo da seguinte pergunta: quais as responsabilidades intelectuais CONFERÊNCIA I

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  • 109, Goinia, v. 11, n. 1, p. 109-121, jan./jun. 2008.educ

    Jos Carlos Libneo*

    O CAMPO TERICO-INVESTIGATIVO

    DA PEDAGOGIA, A PS-

    GRADUAO EM EDUCAO

    E A PESQUISA PEDAGGICA

    nicialmente, desejo engrandecer esta iniciativa da Reitoria daUniEvanglica de Anpolis e de sua Pr-Reitoria de Ps-Graduao

    e Pesquisa, de consumar este Convnio com a Universidade Catlicade Gois, visando a formao e a titulao em nvel de mestrado de seuquadro docente. Tenho defendido em vrios lugares uma idia muitosimples: a essncia do que acontece na universidade a qualidade eeficcia do ensino por parte dos professores, da qual depende a qualida-de e eficcia da aprendizagem por parte dos alunos. O principal valor dainstituio universitria so seus professores. Uma universidade que sepreze precisa ter excelentes professores, com domnio do contedo,capacidade investigativa e formao pedaggica, isto , professores quelidem de forma rigorosa e competente com o saber cientfico e tecnolgicoe que saibam ensinar com competncia esse saber. Em segundo lugar,agradeo o convite da Coordenadora do Convnio para proferir estaaula inaugural.

    Minha conferncia tem como tema: O Campo Terico-Investigativoda Pedagogia, a Ps-Graduao em Educao e a Pesquisa Pedaggica,dirigindo-me especialmente aos alunos recm-ingressados no mestradorealizado pelo Convnio entre a UniEvanglica e a UCG. Vocs estoiniciando um mestrado em educao. Sejam vocs socilogos, estudiososdas polticas pblicas, gestores de instituies educacionais, professoresde ensino superior, uma coisa certa: seu mestrado se denomina mestradoem educao. Eu gostaria de expressar meu ponto de vista sobre o realsignificado dos estudos de mestrado no campo terico e prtico da educa-o, partindo da seguinte pergunta: quais as responsabilidades intelectuais

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    e polticas de algum que escolhe o campo da educao como seu objetode estudo?

    Apresentarei ao longo desta conferncia trs idias. A primeira sobre a natureza da pedagogia, isto , o que caracteriza esse campo deconhecimentos que chamamos pedagogia. A segunda sobre os per-calos, as incertezas, que permeiam hoje o campo da pedagogia ou,dizendo de outro jeito, porque a pedagogia mal-amada no campo inte-lectual da educao. E a terceira idia: reconhecida a necessidade dapedagogia, qual seu objeto de estudo, de que se ocupa efetivamenteesse campo, que problemas lhe so prprios? Quero dizer: afinal decontas, o que identifica uma pesquisa, uma investigao, que seautodenomina pedaggica?

    A NATUREZA DO CONHECIMENTO PEDAGGICO

    Qual a natureza do conhecimento pedaggico? Vou direto resposta. O conhecimento pedaggico tem como objeto de estudo aprtica educativa, ou melhor, as prticas educativas. A pedagogia , por-tanto, a teoria e a prtica da educao, ou, como define o pedagogoalemo Schmied-Kowarzik, uma cincia prtica da e para a educao.

    A idia-chave que temos a de que a educao , na sua nature-za constitutiva, uma prtica. E o que uma prtica? a realizao deuma atividade humana que tem um sentido, uma finalidade, conforme oconceito marxista de atividade. a ao humana que mediatiza a rela-o entre o sujeito da atividade e os objetos da realidade, dando umaconfigurao humana a essa realidade. Ento, toda atividade tem umobjeto, tem um sentido. Na educao, a atividade a atuao sobre aformao e o desenvolvimento do ser humano, em condies materiaise sociais concretas. E o que faz a pedagogia? Ela investiga a teoria paraesclarecimento racional da prtica educativa partindo da investigaodessa mesma prtica, em situaes concretas. Recorro a uma preciosadefinio do pedagogo francs G. Mialaret (1991, p. 9):

    A pedagogia uma reflexo sobre as finalidades da educa-o e uma anlise objetiva de suas condies de existncia ede funcionamento. Ela est em relao direta com a prticaeducativa que constitui seu campo de reflexo e de anlise,sem, todavia, confundir-se com ela.

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    Portanto, temos o objeto de investigao: a educao, isto , aprtica educativa. Temos o campo cientfico: a pedagogia.

    Se me perguntam: a que visa uma pesquisa em polticas da educa-o? A que visa uma pesquisa em histria da educao? A que visa umapesquisa em didtica? A que visa uma pesquisa em sociologia da educa-o? Eu respondo: todas essas pesquisas visam a compreenso e o apri-moramento das aes educativas, dos processos formativos do ser humano.

    Ento, meu raciocnio o seguinte: se o objeto pleno da pedago-gia a prtica educativa, ento, qualquer cincia que se ocupa de pro-blemas educacionais ou educativos, alm da prpria pedagogia, no podedeixar de considerar os elementos bsicos, centrais, do conceito de edu-cao. Sendo mais explcito: a educao vista seja pelo lado da sociolo-gia, da psicologia, da antropologia, da economia, da histria da educao,seja pelo lado da cultura, das polticas sociais, da gesto do sistema deensino e das escolas, da didtica, etc., impossvel deixar de tomarcomo ponto de partida este fato: a investigao em educao aconteceem funo das aes e processos formativos propiciadas pelas vriasmodalidades de educao. Proponho um conceito que expressa essaidia de modo mais completo: a educao uma prtica social, materi-alizada numa atuao efetiva na formao e desenvolvimento de sereshumanos, em condies socioculturais e institucionais concretas, impli-cando prticas e procedimentos peculiares, visando mudanas qualitati-vas na aprendizagem escolar e na personalidade dos alunos.

    Em minha opinio, este o requisito de legitimidade epistemolgicade qualquer das chamadas cincias da educao. Reparem bem noque estou afirmando: o nuclear da educao, o ncleo bsico das prti-cas educativas, a formao e o desenvolvimento humano em situa-es concretas, visando mudanas qualitativas no desenvolvimento e napersonalidade do ser humano. Isso quer dizer que a ao de educar e deensinar, mesmo se iniciando por uma atuao externa, social, obtmseus resultados dentro de um processo endgeno, de dentro para fora.Por mais que seja sumamente necessrio e indispensvel considerar osfatores exgenos, externos, das prticas educativas, o foco, a direoda pesquisa tem que ser este: as mudanas no desenvolvimento e napersonalidade dos sujeitos. Sendo assim, a aposta da pesquisa pedaggi-ca, me perdoem a insistncia, esta: a pedagogia serve para definir-noscomo sujeitos ou que tipos de sujeitos devemos nos tornar. A aprendiza-gem uma mudana na capacidade de agir de uma pessoa em relaoa tarefas a cumprir na sociedade e na comunidade.

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    Posso sugerir, ento, seis elementos do processo educativo quedevem estar presentes nos projetos de investigao (CASTILLEJO,1994, p. 15), a saber:

    a intencionalidade, decorrendo disso a importncia de se definirobjetivos da educao, formulando expectativas sobre o tipo deser humano a ser formado e dimenses da educao a serematendidas (fsicas, afetivas, intelectuais, sociais, morais, estticas).

    contedos, uma seleo de elementos da cultura referentes ao que necessrio aprender, obviamente coerentes com os objetivos.

    uma ao ou interveno educativa, direta ou indireta, realizadapor algum agente educativo sobre um sujeito, para promover, ori-entar, possibilitar a aprendizagem dos contedos e modos de agir.

    a aprendizagem do aluno, um processo de aprender que leve aresultados, isto , ao atendimento de objetivos propostos.

    o ensino, meio pelo qual se favorece a aprendizagem. formas de organizao e gesto da escola.

    Vocs poderiam me dizer que isso que estou falando bvio. Eudigo: e no . Mas para muitos intelectuais da educao, esse bviofica apenas no discurso, fica na declarao de boas intenes. Comessa afirmao, passo ao segundo ponto da minha palestra.

    OS PERCALOS, AS INCERTEZAS E OS IMPASSESDA PEDAGOGIA

    A palavra percalos evoca graves dificuldades, embaraos,transtornos. assim que tem sido a vida da pedagogia, ao menos noBrasil. A pedagogia como campo de estudo terico e prtico tem umahistria de xitos e de insucessos, de progressos e atrasos, de bons emaus servios, mais ou menos como ns mesmos. Em meio a outroscampos cientficos, ela sempre levou desvantagem. Por um lado, pelasua natureza impossvel de ser totalmente positivista, foi hostilizada pe-los positivistas por ter um carter demasiadamente genrico, especulativo,idealista, e, frequentemente, demasiado prescritiva. Por outro, quandocedeu s exigncias positivistas de se buscar um conhecimento objetivo,tornando-se pedagogia experimental, acabou sendo quase que execradatanto pela crtica marxista anti-positivista, quanto pela acentuada vervecrtica de algumas tendncias ps-estruturalistas. Este fenmeno ocor-reu no mundo todo, mas tem sido muito presente no Brasil. A posiohoje da pedagogia em nosso pas situao hoje pode ser resumida em

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    algumas situaes: No mbito das cincias humanas e sociais prevalececom ela uma relao de descaso; dentro do prprio campo da educao(e, atualmente, na prpria legislao e nas diretrizes de formao deprofessores do Ministrio da Educao), persiste uma definio reduzi-da de pedagogia, pela qual a pedagogia o curso de formao de pro-fessores; no ensino universitrio, nos campos cientficos que nopertencem s cincias humanas e sociais e que tm forte tradiopositivista, mantm-se um desdm pela pedagogia. Para alm dessasposies, persiste um grupo mais restrito de investigadores que sustentaa especificidade epistemolgica e profissional da pedagogia, entre osquais eu me situo.

    Tenho cinco hipteses explicativas para esse desdm com a pe-dagogia. A primeira, uma tendncia recorrente, em nosso pas, desociologizao do pensamento pedaggico em prejuzo dos aportes dacincia pedaggica. Meu problema, obviamente, no com a recusa daanlise sociolgica, mas da superposio da anlise sociolgica e polti-ca sobre a pedaggica, decorrente de setores da sociologia marxista, dainfluncia das teorias reprodutivistas, de estudos de sociologia do traba-lho docente. A segunda hiptese refere-se ao enfraquecimento do cam-po terico e investigativo da pedagogia, com conseqncias noquestionamento de sua legitimidade epistemolgica e de seu lugar naformao de professores. Tal enfraquecimento de mostra pelo esvazia-mento terico da cincia pedaggica nos cursos de formao levandoao empobrecimento da teoria e da pesquisa pedaggica, pela eliminaonos cursos de pedagogia da formao do pedagogo especialista (cujosconhecimentos por excelncia so a teoria pedaggica e a didtica). Aterceira hiptese o surgimento e desenvolvimento do discurso ps-estruturalista e sua influncia no campo da educao. Essa corrente, sepor um lado trouxe tona temas imprescindveis compreenso daeducao no mundo contemporneo, como o poder, a linguagem, a cul-tura, a diferena, a fragmentao do conhecimento, relativizou excessi-va do professor tarefeiro esvaziado de contedos e de capacidadereflexiva. mente o papel da escolarizao, do conhecimento, da aopedaggica na formao cultural e cientfica.

    A quarta hiptese refere-se aos impactos diretos e indiretos dasconcepes de polticas sociais do neoliberalismo e sua repercusso nasdiretrizes sobre polticas educacionais e prticas escolares. Nessa pers-pectiva, predomina o vis tecnicista, com nfase nos resultados, insta-lando a competio entre escolas e professores, mantendo a figura

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    Finalmente, a quinta hiptese diz respeito conjugao de fatoresexternos escola e ao ensino (socioculturais, polticos, institucionais)que incidem na diversidade de concepes sobre escola e ensino e nadesvalorizao acadmica da pesquisa voltada para a sala de aula. En-tre esses fatores destaco a dissociao entre as polticas educacionais eo efetivo funcionamento interno das escolas, bem como o distanciamentodas associaes cientficas e profissionais dos problemas mais concre-tos da escola e do ensino, resultando na desqualificao acadmica dasala de aula como objeto de pesquisa.

    claro que essas hipteses merecem uma anlise maisaprofundada, impossvel de fazer neste momento. Mas elas trazem con-seqncias para o sistema escolar e para as escolhas de temas de in-vestigao nos cursos de mestrado e doutorado em educao. Abordareialgumas dessas conseqncias.

    Os colegas que me ouvem, envolvidas de alguma forma com al-gum setor da educao, sabem que existe um fosso, um distanciamentoconsidervel entre as polticas e diretrizes educacionais no nosso pas ea realidade das escolas, do ensino, do trabalho cotidiano dos professo-res, da aprendizagem dos alunos. notria a desateno seja dos espe-cialistas do MEC e das Secretarias de educao, legisladores e polticos,seja entre pesquisadores do meio educacional, com o que acontece efe-tivamente dentro das escolas. Uma investigao mais demorada da nossahistria da educao poderia constatar que raramente houve no Brasilum protagonismo do modo de ver pedaggico das coisas. O que temhavido h dcadas um modo de ver ora burocratizado, ora sociologizado,ora politicizado, tal como atualmente reincide hoje, em pleno GovernoLula, um modo de ver economicizado.

    No poderia ser assim, porque os legisladores, os pesquisadoresda rea da educao, os polticos e militantes de partidos, precisariamter em mente que, em paralelo anlise poltica ou anlise sociolgi-ca da educao, deveria existir uma anlise pedaggica, e que essaanlise tem uma especificidade. precisamente esta especificidadeque tem sido ignorada. Profissionais que esto fora do campo tericoda pedagogia, embora decidam sobre polticas educacionais, raramen-te se do conta do que seja a especificidade da educao, conforme jmencionei: uma prtica social materizalizada numa atuao efetiva naformao e desenvolvimento de seres humanos em condiessocioculturais e institucionais concretas, implicando procedimentospeculiares e resultados. No entanto, penso que uma poltica educacio-

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    nal que ignora esse princpio de base perde solidez, ao ignorar as rea-lidades para as quais formulada.

    Uma investigao histrica mais demorada sobre os condicionantessociais, polticos, culturais e do prprio papel dos pedagogos na formula-o do sistema educacional no pas poderia explicar esse desinteressepelas demandas pedaggicas reais das escolas. Quem sabe temos aquinesta sala pesquisadores interessados nessa questo. O fato que perdu-ra, interminavelmente, esse fosso de que estou falando. E uma coisaestranha e incmoda que o prprio campo investigativo da educao,representado institucionalmente pela ANPEd, e as associaes e sindica-tos ligados ao magistrio, parece fazer vista grossa para a essa questo.

    Tanto no mbito dos intelectuais da educao, quanto no MEC enas Secretarias da Educao, nas ltimas dcadas, a anlise externados problemas educacionais, em que se privilegia uma viso econmico-social, poltica, institucional das questes educacionais tem se sobrepos-to anlise interna, que aborda funcionamento interno da escola taiscomo os objetivos, contedos, metodologias de ensino, a avaliao dasaprendizagens. Ou seja, no mercado acadmico acabam tendo mais pres-tgio as questes da educao vistas de fora para dentro do que aquelasque pensam a educao escolar por dentro, ali onde as coisas efetiva-mente acontecem.

    Arrisco afirmar, j esperando crticas de meus colegas sociol-gicos da educao e especialistas nas polticas educacionais que, emboa parte, as polticas educacionais vm fracassando porque elas nopartem da realidade escolar, de polticas voltadas diretamente s es-colas, aprendizagem dos alunos. Minha hiptese de que, na educa-o brasileira, o modo pedaggico de ver as coisas foi sendo substitudoprimeiramente pelo modo burocrtico, depois pelo modo politicista(mormente pela esquerda) e hoje pelo modo economicizado. H signi-ficativos indcios de que a atual poltica educacional do Governo Lulaconfirma essa hiptese.

    Por que isto ocorre? Em minha opinio, h uma idia muito ar-raigada principalmente entre os polticos, administradores de sistemasde ensino e tcnicos do MEC, de que os problemas da educao po-dem ser resolvidos de fora para dentro. Eles acreditam que fazendoleis, reformas, estabelecendo metas quantitativas, usando tecnologiasde informao e comunicao, criando mecanismos de eficincia e decontrole, isso tudo ir melhorar a qualidade de ensino nas escolas. Dolado de educadores tidos como progressistas, tambm h aqueles que

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    acham que se melhoram as escolas e se muda o ensino fortalecendoos movimentos sociais, as associaes, organizando os sindicatos, fa-zendo congressos, formando a conscincia poltica dos professores. Epor conta disso, muitos equvocos foram cometidos, inclusive por edu-cadores de esquerda.

    Sei que quase sempre so atitudes bem intencionadas, mas halguns problemas nessa maneira de ver que precisam ser alertados.Penso que o ponto de partida deve ser outro: o processo educativo temcarter endgeno, de dentro para fora e, por isso mesmo, as polticaseducacionais deveriam ter como referncia direta para a formulao deplanos e diretrizes as demandas da escola, do ensino, da aprendizagem,considerando-se, obviamente, as demandas da sociedade.

    Seria possvel apresentar uma profuso de medidas vindas dos r-gos de gesto do sistema de ensino que mostram gritantes conseqnci-as desse equivoco: a organizao curricular por ciclos de escolarizao, aescola de tempo integral, a flexibilizao da avaliao da aprendizagempela progresso automtica e a integrao de alunos portadores de neces-sidades especiais em classes no ensino regular, adotadas frequentementesem planejamento, sem considerao das prticas de ensino j em usopelos professores, sem a preparao cuidadosa dos professores e semaes especificas de atendimento pedaggico-didatico.

    So medidas aparentemente progressistas, mostrando um falsopionerismo, e at revestidas de argumentos psicolgicos humanistas, masno vo fundo na soluo dos problemas da escola brasileira, no atingemo que mais se espera da escola: o desenvolvimento das competncias ehabilidades cognitivas atravs do domnio dos contedos escolares, propi-ciando aos alunos meios para participao competente e criticamente navida social, profissional, cultural. Quem j se deu ao trabalho de analisar oque vem acontecendo nas escolas com a promoo automtica ir verifi-car que ocorre a uma das mais gritantes formas de excluso. E as exclu-das no so precisamente aquelas crianas mais pobres?

    preciso que os educadores entrem num acordo sobre que tipode cidado desejam formar e que tipo de escola. Hoje temos objetivosde todos os gostos. Se voc disser: quero que a escola seja principal-mente um espao de socializao dos alunos, que seja um lugar de en-contro e compartilhamento entre as pessoas, que seja um lugar para quesejam acolhidos seus ritmos, suas diferenas, suas inclinaes pessoais,ento, nesse caso, o sistema de ciclos timo, a flexibilizao e o afrou-xamento da avaliao coerente. claro que essas coisas so impor-

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    tantes, mas penso que esperar isso da escola muito pouco.Uma outra viso a que concebe a escola pblica como o lugar

    de atender tanto a necessidades individuais dos alunos como a necessi-dades sociais. Escola democrtica a que, antes de tudo, atravs dosconhecimentos tericos e prticos, propicia as condies do desenvolvi-mento cognitivo, afetivo e moral dos alunos. E que faa isso para todosos que disponham das competncias fsicas e intelectuais requeridaspara isso. Aprender, ento, consiste no desenvolvimento de capacidadese habilidades de pensamento necessrias para assimilar e utilizar comxito os conhecimentos nas vrias instncias da vida social. Ou seja, obsico da escola formar a personalidade e ensinar as ferramentascognitivas para o desenvolvimento mental, educar e ensinar.

    Tenho, ento, esta opinio: no h como definir polticas educaci-onais sem uma poltica clara para as condies do ensino e aprendiza-gem na escola, o que chamei de polticas educativas. At onde sei, noh essa tradio na histria da educao brasileira. No h tradio naformulao de polticas educacionais em abordar a poltica educacionalcom base na realidade concreta do funcionamento do ensino e da apren-dizagem das escolas e das salas de aula. E isso que no temos conse-guido fazer. Ao contrrio, o mais comum tem sido o caminho inverso,que tratar primeiro das polticas, do currculo formal, e esperar que anorma prescrita acontea nas escolas, nas prticas pedaggicas nassalas de aula. H nas estratgias de ao poltica, no planejamento, umasuperposio da anlise externa sobre a anlise interna dos problemasda formao, onde se verifica muito mais uma viso de socilogos epolticos e uma omisso dos pedagogos.

    A anlise externa das questes educacionais sumamente im-portante, elas nos pem alertas para uma viso poltica e contextualizadadas coisas. Mas insisto: o processo educativo, o processo de ensino endgeno, ela acontece de dentro para fora. O que confere qualidadeou no ao sistema de ensino so as prticas escolares, as prticas deensino, os aspectos pedaggico-didticos, ou seja, a qualidade internadas aprendizagens escolares: o que os alunos aprendem, como apren-dem e o que fazem com o que aprendem.

    O que acabo de dizer j d uma idia da responsabilidade intelec-tual e poltica dos pesquisadores em educao. Aps falar da naturezaepistemolgica da pedagogia, mostrando o que nuclear da anlise pe-daggica, e tambm das dificuldades e impasses em que vive o campopedaggico, falarei um pouco da pesquisa pedaggica.

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    EM QUE CONSISTE A INVESTIGAAO PEDAGGICA

    Penso que a educao pode ser objeto de estudo de vrias cin-cias humanas. Nesse caso, a investigao da prtica educativa assumeum carter de multireferencialidade e pluralidade, ou seja, toma a edu-cao como objeto de anlise de vrias cincias humanas e, ao mesmotempo, abarca modalidades educativas escolares e extra-escolares.

    Mas, se por um lado, a pedagogia necessita da contribuio im-prescindvel das diferentes reas do conhecimento que abordam o fen-meno educativo sob a perspectiva de seus prprios conceitos e mtodosde investigao, por outro, ela reclama para si o papel de ser a cinciaque possibilita a aproximao geral e intencionalizada dos fenmenoseducativos, produzindo um conhecimento prprio.

    Concluo disso que um programa de ps-graduao em educao,mesmo lidando com os objetos de investigao a partir da pluralidadedas prticas educativas e de sua multireferencialidade terica, deve con-centrar sua temtica investigativa nos saberes pedaggicos.

    Est claro que estou assumindo a defesa da especificidadeepistemolgica da pedagogia. A exigncia mais legtima e mais elemen-tar para um pesquisador no campo da educao de que sua investiga-o esteja subordinada ao que peculiar e inerente s prticas educativas.Importa menos que o campo cientfico da educao seja denominado depedagogia, cincia da educao ou cincias da educao e, mesmo, quehaja restries a considerar a pedagogia como uma cincia. O que im-porta que a educao um campo de conhecimentos, tem um sistemaconceitual, tem procedimentos investigativos que lhe so prprios e queso definidos a partir de seu objeto de estudo.

    O que defendo, antes de tudo, que as chamadas cincias daeducao devem subordinar suas anlises ao especfico da prticaeducativa. Ou seja, estudam-se as polticas e a gesto, para qu? Paraviabilizar aes educativas. Estudam-se os processos culturais, sociais, daescola, da sala de aula, da globalizao, para qu? Para explicar e viabilizaraes educativas. Estudam-se os elementos da cultura, os processos desubjetivao-objetivao, o universal e o diverso, em funo de qu? Dasaes educativas, dos processos formativos do ser humano.

    Isso significa que a educao (ou as prticas educativas) oponto de partida e o ponto de chegada da investigao educacional. Noentanto, no o que tem acontecido. Um texto clssico de Saviani es-crito em 1980, ainda atual para mostrar como se pode evitar vises na

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    pesquisa educacional quando se perde a clareza epistemolgica em re-lao pedagogia. O grfico abaixo mostra duas situaes que caracte-rizam propostas curriculares de cursos de pedagogia e cursos deps-graduao em educao.

    Segundo a explicao do prprio Saviani (1991):

    Na situao A, a educao ponto de passagem, ela estdescentrada. O ponto de partida e o ponto de chegada estoalhures. Isto significa que as pesquisas no mbito da socio-logia da educao (valendo para as demais reas) circuns-crevem a educao como seu objeto, encarando-a como fatosociolgico que visto, conseqentemente, luz dasteorizaes sociolgicas a partir de cuja estrutura conceitualso mobilizadas as hipteses explicativas do aludido fato.[...] A situao B representa a inverso do circuito. A educa-o, enquanto ponto de partida e de ponto de chegada, tor-na-se o centro das preocupaes. [...] Ao invs de seconsiderar a educao a partir de critrios psicolgicos,sociolgicos, econmicos, etc., so as contribuies das di-ferentes reas que sero avaliadas a partir da problemticaeducacional. O processo educativo erige-se, assim, em crit-rio, o que significa dizer que a incorporao desse ou da-quele aspecto do acervo terico que compe o conhecimentocientfico em geral, depender da natureza dos problemasenfrentados pelos educadores.

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    Minha posio, obviamente, pelo Modelo B. dele que extraioas seguintes concluses para a investigao pedaggica:

    Todos os investigadores do campo da educao tm um compro-misso com isto: a educao uma prtica social que visa mudan-as qualitativas nas pessoas, que chamamos comumente deformao humana.

    O fenmeno educativo pluridimemensional, pode ser explicadoe compreendido sob vrios olhares. Ele tambm abarca vriasmodalidades educativas escolares e extra-escolares, tais comoos movimentos sociais, a educao a distncia, a educaoambiental, educao comunitria, educao de grupos sociaisespecficos (infncia, juventude, idosos) alm de outros grupossociais especficos. Mas os vrios enfoques e as vrias modalida-des de educao requerem um campo cientfico que lhes d uni-dade. Esse campo a pedagogia. Isso assim, porque a pedagogiase auto-define como uma cincia prtica. cincia prtica porestar referida a um fenmeno que se encontra no domnio daprtica, que a prtica social da educao. E nisso que ela sediferencia de outras das chamadas cincias da educao. apedagogia que pode realizar uma aproximao terica e intencio-nal aos problemas educativos, ainda que para isso necessite re-correr s demais cincias da educao.

    Ainda que se deva reconhecer a amplitude das aes educativas, importante lembrar que a educao escolar continua sendo, his-toricamente, a forma mais dominante de prtica educativa. as-sim que penso a pesquisa pedaggica tendo como ncleo a aodo educador em funo da aprendizagem dos educandos.

    Estas concluses caracterizam meu modo de entender aespecificidade de um mestrado em educao e a pesquisa em educao.

    Texto da Aula Inaugural proferida no dia 4.4.2008, em Anpolis (GO), aos professorese alunos do Curso de Mestrado realizado em decorrncia do Convnio UCG-UniEvanglica, estando presentes, tambm, o Prof. Carlos Vogel, reitor da UniEvanglica,Prof. Dr. Itami..., Pr-reitor de ps-graduao da UniEvanglica, Profa. Dra. Elianda A.Figueiredo Tiballi, Coordenadora do Programa de Ps-Graduao em Educao da UCG,Profa. Dra. Raquel A. M. da Madeira Freitas, Coordenadora do Convnio UCG-UniEvanglica, e professores do PPGE-UCG.

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    Referncia

    SAVIANI, D. Do senso comum conscincia filosfica. 10. ed. So Paulo: Cortez; AutoresAssociados, 1991.

    Jos Carlos LibneoUniversidade Catlica de Gois