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    Anlise do uso das contribuies de Gramsci na reforma do ensino mdiono RS luz do caderno 12 do crcere

    Josiane Machado Alexandre1Resumo

    Este artigo ir fazer uma anlise da forma como as contribuies de Gramsciforam apropriadas pela Seducrs ao propor e elaborar sua proposta de reformado ensino mdio. Fizemos uma anlise de contedo do documento orientador dapoltica pblica no que se refere ao referencial gramsciano em torno daeducao, aps apresentamos um esquema interpretativo do caderno 12 doautor e por ltimo fazemos alguns apontamentos em torno da relao entre oque o documento defende e as ideias de Gramsci de forma a estabelecer umacrtica s afirmaes ali presentes. Acreditamos que o debate da relao entrepolticas pblicas e uso de referenciais tericos importante para qualificar osestudos na rea da educao. Como resultados podemos demonstrar que o usodas ideias do terico italiano foi apropriado de forma a-histrica e

    descontextualizado, mas destacamos a inovao por parte da seducrs neste tipoapresentao de documento orientador de poltica pblica.Palavras-chave:Gramsci Reforma do ensino mdio Polticas pblicas Educao

    Este artigo objetiva analisar como as contribuies de Gramsci foram

    apropriadas pelo poder pblico estadual do Rio Grande do Sul ao levar a cabo

    sua reforma do ensino mdio iniciada no ano de 2012 em sua rede pblica tendo

    como parmetro o caderno 12 do referido terico italiano. Para tanto, iremos

    proceder a anlise de contedo do documento orientador da reforma e submete-

    lo ao exame das palavras do prprio Gramsci, entre outros autores, de forma a

    estabelecer uma reviso dos termos apontados pelo documento e dialogar em

    torno da temtica da reforma como um objeto peculiar para pensar a relao

    entre programas de governo na rea da educao e uso de teorias acadmicas

    como subsdio para as prticas polticas.

    Iniciaremos por um exame detalhado em torno do documento orientador

    da reforma no que diz respeito ao uso do referencial gramsciano, em seguidafaremos uma breve apresentao do caderno 12 com o auxlio de comentadores

    do terico italiano. A escolha deste caderno decorre da aproximao dele com o

    tema da educao, pois muito do que se conhece em torno da concepo de

    educao de Gramsci atribuda a este caderno. Por fim, iremos demonstrar de

    que forma ocorre a correspondncia entre o documento base da reforma,

    1

    Graduada em histria pela FAPA, graduanda em Cincias Sociais e mestranda em sociologia pela UFRGS,professora da rede estadual e privada de ensino.

    Email: [email protected]

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    conforme a anlise de contedo indicar, e os resultados apontados pelo estudo

    do caderno 12. Ao final do texto, abriremos um debate em torno da relao entre

    polticas pblicas e uso das cincias humanas no campo da educao.

    Considerando que este debate torna-se cada vez mais necessrio no atual

    momento marcado por grandes mudanas nas perspectivas em torno da

    educao na sociedade conhecimento. Iniciar esta discusso representa

    caminhar no sentido de romper a naturalidade e positividade com que muitas

    vezes so vistas as polticas pblicas que se nutrem de pressupostos cientficos

    submetendo-as a contextualizao de seus postulados ao refazer o caminho

    terico percorrido pelas mesmas.

    Perspectivas gramscianas no documento orientador da reforma do ensino

    mdio no RS

    O documento orientador da reforma do ensino mdio no RS intitulado

    Proposta Pedaggica Para o Ensino Mdio Politcnico e Educao

    Profissional Integrada ao Ensino Mdio 2011 2014foi apresentado pela

    Secretaria Estadual da Educao do RS (Seducrs) no final do ano de 2011 para

    entrar em vigor a partir do ano letivo de 2012. importante ressaltar que este

    documento previa a implantao gradual das novas diretrizes apresentadas,

    sendo que no primeiro ano estariam contemplados somente os alunos do

    primeiro ano do ensino mdio, no segundo ano se acrescentaria o segundo ano

    do curso e no terceiro ano de implantao todos os alunos da rede estariam

    sendo atendidos pelo novo modelo. Outra importante considerao que este

    documento possui fora de lei, mas seu contedo poderia ser discutido em

    assembleias com os membros do corpo profissional da educao, realizadaspreviamente a implantao. Todavia, no ocorreram alteraes significativas

    aps estes encontros e os mesmos redundaram na elaborao de um regimento

    padro enviado as escolas no ano de 20122onde so especificados pontos que

    aparecem de forma mais geral no documento base com a finalidade de

    padronizar para o conjunto das escolas as novas disposies. Optamos por

    2

    O referido regimento padro, bem como o documento orientador da reforma encontram-sedisponveis na pgina da Seducrs no endereo:

    http://www.educacao.rs.gov.br/pse/html/ens_medio.jsp?ACAO=acao1.

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    secundarizar a discusso em torno da reforma em suas questes organizativas

    para focarmos na anlise do referencial terico utilizado no texto do documento

    orientador, mais especificamente as menes que este faz a teoria de Gramsci.

    Comeando pelo ttulo da proposta, pois temos a um indicativo da

    perspectiva a qual a seducrs est trabalhando. O conceito de politecnia tido

    como o mote da proposta do novo ensino mdio da rede estadual gacha,

    todavia este parece estar separado da escola profissional. possvel inferir a

    partir do ttulo que existe uma proposta de currculo para o ensino politcnico e

    uma outra para o ensino profissional ligado ao ensino mdio. Em relao ao

    ensino mdio regular, este passou a ser chamado de politcnico, e segundo o

    documento o mesmo,

    Tem em sua concepo a base na dimensopolitcnica, constituindo-se no aprofundamento daarticulao das reas de conhecimentos e suastecnologias, com os eixos Cultura, Cincia,Tecnologia e Trabalho, na perspectiva de que aapropriao e a construo de conhecimentoembasam e promovem a insero social dacidadania (SEDUCRS, 2011, p. 10).

    Em relao ao ensino profissional, temos a citao da Lei de Diretrizes e

    Bases da educao Nacional a qual prev que a educao profissional dever

    ser realizada em matrcula distinta do ensino mdio regular (Ibid., p. 11). Mesmo

    sendo considerados cursos diferentes sob o ponto de vista do Ministrio da

    Educao, a Seducrs sustenta que possvel haver uma articulao curricular

    entre os cursos de ensino mdio regular e profissional conforme o excerto:

    O mundo contemporneo constitui-se por relaes

    sociais e de produo de carter excludente, queresultam das formas capitalistas de produo ereproduo da existncia e do conhecimento.Nesse contexto, torna-se urgente a reestruturaoda educao profissional, tendo em vista aampliao das possibilidades de incluso nomundo do trabalho e, por essa via, o acesso aosdireitos bsicos da cidadania. Para tanto, torna-senecessrio construir um currculo que contemple aomesmo tempo as dimenses relativas formaohumana e cientificotecnolgica, de modo a rompercom a histrica dualidade que separa a formao

    geral da preparao para o trabalho (Ibid., p. 11).

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    Mais adiante, o documento faz uma destacada referncia ao conceito de

    trabalho como princpio educativo, sendo este um dos subttulos do texto legal.

    A noo de trabalho assim descrita:

    [...] todas as formas de ao que os seres humanosdesenvolvem para construir as condies queasseguram a sua sobrevivncia implica reconhec-lo como responsvel pela formao humana e pelaconstituio da sociedade. pelo trabalho que osseres humanos produzem conhecimento,desenvolvem e consolidam sua concepo demundo, conformam as conscincias, viabilizando aconvivncia, transformam a natureza construindo asociedade e fazem histria [...] (Ibid., p.13).

    Complementando o exposto, o texto prossegue no seguinte sentido,

    Tomar o trabalho, assim concebido, como princpioeducativo, implica em compreender asnecessidades de formao de dirigentes etrabalhadores que caracterizam as formas deorganizao e gesto da vida social e produtiva emcada poca. Ou seja, significa reconhecer que osprojetos pedaggicos de cada poca expressam asnecessidades educativas determinadas pelas

    formas de organizar a produo e a vida social(Ibid., p. 13).

    Aps esta explanao, o texto sugere que assim como as formas

    fordistas/tayloristas de produo demandavam uma educao especfica,

    fundada na memorizao e repetio a criao e utilizao da microeletrnica

    demandam uma educao voltada para uma vida dinmica e instvel que exige

    raciocnio lgico formal, domnio das formas de comunicao, flexibilidade para

    mudar, capacidade de aprender permanentemente e resistncia ao estresse

    (Ibid., p. 13).

    A noo sobre a relao entre teoria e prtica concebida pelo documento

    baseia-se numa dicotomia que se torna acentuada pelas novas tecnologias,

    Se o saber fazer poderia ser aprendido na prtica,sem ou com reduzida escolaridade, o trabalhointelectualizado e a participao na vida socialatravessada pelas novas tecnologias demandam

    formao escolar slida, ampliada e de qualidade,principalmente para os que vivem do trabalho, paraos quais a escola o nico espao possvel de

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    relao intencional com o conhecimentosistematizado (Ibid., p.13).

    Este trecho tambm demonstra a concepo da seducrs em relao ao

    seu pblico, os alunos da rede so genericamente denominados como aquelesque vivem do trabalho os quais necessitam ser introduzidos no mundo

    intelectualizado oferecido pela escola. Adiante, o texto coloca argumentos onde

    so explicitados que muitos dos atuais problemas sociais como o desemprego

    podem ser resolvidos no mbito da escola, como segue,

    Se, por um lado, o novo princpio educativo tempositividades ao demandar o desenvolvimento dacapacidade de trabalhar intelectualmente paratodos os trabalhadores, o mundo do trabalho, emdecorrncia das novas tecnologias de basemicroeletrnica, amplia o desemprego, aprecarizao e a intensificao de trabalho. Estacontradio traz para a escola um novo desafio:desenvolver conscincias crticas capazes decompreender a nova realidade e organizar-se paraconstruir a possibilidade histrica de emancipaohumana (Ibid., p.14).

    No entanto, no subttuloPolitecnia que vamos encontrar uma citaodireta Gramsci, esta usada para definir o significado do conceito. A politecnia

    apresentada como o novo princpio educativo do trabalho, entendida como

    domnio intelectual da tcnica e traduzida por

    [...] pensar polticas pblicas voltadas para aeducao escolar integrada ao trabalho, cinciae cultura, que desenvolva as bases cientficas,tcnicas e tecnolgicas necessrias produo daexistncia e a conscincia dos direitos polticos,sociais e culturais e a capacidade de atingi-los(GRAMSCI Apud SEDUCRS, 2011, p.14).

    Esta citao oriunda da obra Concepo Dialtica da Histria de

    Gramsci, em que so apresentados pressupostos do autor a partir da reviso do

    conceito marxista de prxis, entendido como construo histrica e relacional

    entre teoria e prtica.

    Todavia, o trecho utilizado no contexto em que se apresenta no

    documento leva-nos a inferir que a seducrs entende como sinnimos os

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    conceitos de trabalho como princpio educativo e politecnia, bem como atribui a

    Gramsci a construo desta perspectiva. Aps a citao de Gramsci temos a

    citao do filsofo e pedagogo brasileiro Dermeval Saviani que complementa

    [...] A noo de politecnia diz respeito ao domnio dos fundamentos cientficos

    das diferentes tcnicas que caracterizam o processo de trabalho produtivo

    moderno (SAVIANI, apud SEDUCRS, 2011, p. 14)

    Saviani um reconhecido intelectual brasileiro que divulga e defende os

    conceitos de trabalho como princpio educativo e politecnia em suas obras e

    palestras. Foi o criador de um grupo de estudos sobre Educao e Trabalho na

    Associao Nacional de Pesquisas em Educao (Anped) na dcada de 1980,

    o qual ainda existem trabalhos sendo publicados.

    A politecnia apresentada como o princpio organizador no s do ensino

    mdio regular, agora politcnico, mas do ensino profissionalizante tambm.

    Advoga-se, sobretudo que o ensino mdio politcnico,

    [...] embora no profissionalize, deve estarenraizado no mundo do trabalho e das relaessociais, de modo a promover formaocientficotecnolgica e scio-histrica a partir dossignificados derivados da cultura, tendo em vista a

    compreenso e a transformao da realidade. Doponto de vista da organizao curricular, apolitecnia supe novas formas de seleo eorganizao dos contedos a partir da prticasocial, contemplando o dilogo entre as reas deconhecimento; supe a primazia da qualidade darelao com o conhecimento pelo protagonismo doaluno sobre a quantidade de contedosapropriados de forma mecnica; supe a primaziado significado social do conhecimento sobre oscritrios formais inerentes lgica disciplinar

    (SEDUCRS, 2011, p. 14).Nesta parte do texto, depreende-se que a relao entre educao e

    mundo do trabalho via conhecimentos das novas tecnologias representadas no

    mundo da cultura entendida como sinnimo de educao politcnica e que a

    mesma pressupe tambm a atual concepo de organizao por reas do

    conhecimento, ou seja, todo este espectro de concepes de educao

    construdas ao longo do tempo apresentado como politecnia.

    Mais adiante, o documento far meno s concepes sobre currculo eseus pressupostos na organizao e tratamento dos contedos, a saber, a

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    relao entre parte e totalidade, a relao entre teoria e prtica, a

    interdisciplinaridade, a avaliao emancipatria e a pesquisa como princpios

    pedaggicos. Ao final, apresentada uma tabela onde est exposta a nova carga

    horria do curso de ensino mdio, onde foi acrescido um total de seiscentas

    horas aulas a serem distribudas nos trs anos do curso, bem como foi

    introduzida uma nova disciplina chamada seminrio integrado devendo esta ser

    um espao interdisciplinar. Anteriormente cada ano possua oitocentas horas,

    agora sero mil horas por ano. O currculo fica dividido em parte comum e parte

    diversificada cabendo a sua distribuio a uma discusso no mbito das escolas,

    respeitadas a legislao estadual e federal. No que se refere aos nossos

    propsitos cabe salientar, ademais, que consta nos anexos alguns mapas que

    mostram as regies produtivas do estado do RS e suas respectivas bases

    econmicas. Este anexo cumpre a funo de demonstrar as potencialidades

    econmicas do estado de forma a tornar a educao profissional de cada regio

    condizente com as caractersticas do mercado de cada regio. Este trecho,

    bastante criticado, foi retirado do documento em sua verso digital, mas consta

    em sua verso impressa distribuda nas escolas.

    Pressupostos para pensar a educao em Gramsci a partir do caderno 12

    Os cadernos do crcere comearam a ser escritos por Gramsci mediante

    autorizao dada pelo governo fascista italiano em 1929. O conjunto dos vinte e

    nove cadernos contm assuntos variados, no entanto, nos interessa

    especificamente o caderno 12, pois neste Gramsci aborda mais profundamente

    o tema da educao escolar. Passemos a discusso de seu contedo que ser

    apoiado em argumentos de comentadores do autor.No incio do caderno Gramsci questiona se os intelectuais so autnomos

    ou so produtos de seus contextos? Esta pergunta central e indica o vis ao

    qual o autor posiciona a temtica da educao. Um fator importante a ser

    destacado a amplitude que o tema recebe sob sua tica, significa dizer que no

    pensamento de Gramsci, no podemos dissociar um projeto de educao de um

    projeto de sociedade. Mario Manacorda, um dos mais respeitados especialistas

    no tema da educao em Gramsci defende,

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    [...] Gramsci tinha diante dele um modelo: o modeloda escola sovitica ou se quiserem doscaminhos experimentados pela escola sovitica,que ele tinha conhecido no momento de seuprimeiro ardor revolucionrio e que, justamenteenquanto ele descrevia essas notas, estavatentando um novo impulso na direo do assimchamado politecnicismo, isto , uma escola nicado trabalho [...] MANACORDA, 1990, p. 155)

    Partimos deste pressuposto para interpretarmos as contribuies de

    Gramsci ao campo da educao, nesta citao aparece tambm a ligao entre

    o autor e o conceito de politecnia o qual alude o documento que estamos

    analisando neste artigo, outrossim temos nesta fala de Manacorda um

    importante elemento, o horizonte da experincia sovitica como influncia para

    Gramsci. A escola que o terico italiano vislumbrava tinha como referncia um

    contexto de sociedade socialista. Outros estudiosos do tema concordam com

    essa posio, acreditando que

    [...] fica evidente a perspectiva revolucionriaassumida por Gramsci na elaborao da escolaunitria, ao retratar como deveria se reorganizar osistema educacional num momento em quecomeassem a se estabelecer novas relaesentre trabalho manual e trabalho intelectual.Entendemos, em breves palavras que este seriaum momento em que trabalhadores comeariam aorganizar livremente a produo dos meios desubsistncia de acordo com as necessidades dapopulao e no do mercado, assim como teriamvoz ativa nas decises acerca das solues dosproblemas sociais encaminhados pelos dirigentesde um novo Estado, o Estado operrio. (SOBRALet al., 2010, p. 92-93)

    Podemos considerar que esta perspectiva revolucionria fique evidenteem nossos dias, no entanto, quando Gramsci escreveu, na priso, o mesmo no

    poderia deixar clara esta posio. No iremos esgotar todas as ideias em torno

    das educao presentes no caderno, mas trazer alguns elementos que nos

    permitam avaliar a consistncia dos pressupostos tericos que embasaram o

    documento que orienta a reforma do ensino mdio no RS.

    Ainda sobre a questo inicial no caderno 12, Gramsci coloca que a

    posio dos intelectuais na sociedade est diretamente ligada as atividadeseconmicas e sobretudo que,

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    [...] puede observarse em general que en lacivilizacin moderna todas las atividades prcticasse han vuelto tan complejas y las cincias se hanentrelazado a tal punto con la vida, que toda

    actividad prctica tende a crear una escuela parasus proprios dirigentes y especialistas y porconsiguiente a crear un grupo de intelectualesespecialistas de grado ms elevado, que ensenemem estas escuelas [...] (GRAMSCI, 1984, p. 366)

    A relao entre atividades produtivas e educao escolar nas

    sociedades com elevado grau de desenvolvimento cientfico, cada vez mais

    ntima. Isso significa dizer que os intelectuais produzidos pelo sistema educativo

    esto comprometidos com determinadas atividades prticas. Esta questo, porsi s, no parece ser problemtica para Gramsci. A crtica que ele faz ao sistema

    educacional instaurado pela Reforma Gentile na Itlia localiza-se justamente no

    fato que havia uma diviso entre escola clssica e profissional (Ibid., p. 367). Ao

    paradigma vigente ele sugeria a Escola Unitria, modelo escolar onde haveria a

    unio do conhecimento humanstico ao saber prtico, pois segundo o autor a

    atual tendncia era de [...] abolir todo tipo de escuela desinteressada (no

    immediantamente interessada) y formativa o de dejar de ella slo un ejemplar

    reducido para uma pequena lite de seores e damas [...] (Ibid., p. 367). A

    soluo dever seguir esta linha,

    [...] escuela nica inicial de cultura general,humanista, formativa, que equilibre justamente eldesarrollo de las capacidades de trabajarmanualmente (tecnicamente, industrialmente) y eldesarrollo de las capacidades del trabajo intelectual[...] (Ibid., p.367)

    O saber humanstico, desinteressado que antes da reforma de Gentile era

    ensinado para todos foi diludo e canalizado para a educao das elites,

    enquanto que as classes populares passaram a receber uma educao

    instrumental, para as atividades prticas. Na viso do autor a nica soluo,

    considerando a complexidade cientifica dos tempos modernos era a unio dos

    saberes tericos e prticos em uma s formao escolar que fosse acessvel

    para todos.

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    Uma questo importante levantada por Gramsci que segundo ele cada

    vez mais os rgos deliberativos tendem a dividir suas tarefas em tarefas

    puramente deliberativas e em tarefas tcnico-culturais (Ibid., p. 367). A

    consequncia disso que a parte tcnica fica a cargo de intelectuais ligados a

    setores produtivos e que esto mais comprometidos com estes do que com a

    sociedade em si, e este modelo tem se generalizado para os setores pblicos.

    Nas linhas seguintes ele coloca que deve se alternar a formao dos tcnicos de

    questes polticas e funcionrios especializados que colegialmente integrem a

    atividade deliberante, pois o intelectual dirigente que integra somente as

    atividades jurdicos-formais est anacrnico (Ibid., p. 368). Para isto, Gramsci

    estava pensando em um grupo de intelectuais que trabalha integrado, cada um

    na sua rea contribuindo para um todo que se constri pela coletividade e

    complementaridade de suas ideias.

    Aps todas estas colocaes em torno da burocracia poltica, Gramsci

    passa a falar da Escola Unitria. Entendemos que esta no uma fala

    descolada da anterior, mas parece indicar que o autor no dissocia a formao

    da prtica dos intelectuais que iro atuar na sociedade.

    A Escola Unitria ou de formao humanista ou de cultura geral como ele

    coloca, deveria proponerse introducir en la actividad social a los jvenes

    despus de haberlos conducido a cierto grado de madurez y capacidad para la

    criacin intelectual e prctica y de autonomia en la orientacin y em la iniciativa

    [...] (ibid, p. 369). E para que esta escola opere necessrio que a mesma,

    [...] pueda asumir los gastos que hoy estn a cargode las familias para el mantenimiento de losescolares, o sea que transforma el balance del

    Ministerio de educacin nacional de arriba a abajo,extendindolo en forma inaudita y complicandolo[...] (Ibid., p.369)

    O projeto de escola que Gramsci nos apresenta, portanto, representa um

    novo paradigma de sociedade. A educao cumpre um papel central nas

    preocupaes de Gramsci, o que visvel neste caderno em especial e nas cartas

    enviadas a seus familiares enquanto estava no crcere. No iremos tratar destas

    cartas neste artigo, pois nossa anlise tornar-se-ia muito extensa o que

    contrape os limites deste trabalho.

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    Quanto a relao entre sua concepo em torno do papel dos intelectuais

    na sociedade e a educao escolar trazemos a contribuio de outro

    comentador.

    De estas consideraciones resulta claro que elobjetivo de la escuela unitaria es crear um nuevoestrato de intelectuales, elevando las massas a lacultura para hacerles adquirir uma concepcinsuperior de la vida, en contra de las tendencias quese proponem mantenera los simples, a loshumildes, em su filosofa primitiva; por consiguientela escuela unitaria es .(BETTI, 1981, p.86)

    A Escola Unitria possui um carter revolucionrio no sentido de favorecer

    uma mudana nas estruturas que sustentam as divises sociais na sociedade

    capitalista. Os intelectuais e suas funes sociais so descritas por Gramsci no

    incio do caderno para depois serem feitas suas consideraes acerca da

    educao, em nosso ver, por motivos bvios. Os intelectuais que esto sendo

    produzidos pela escola dualista vigente em sua poca so orientados pelos

    princpios das atividades prticas do sistema capitalista, gerando uma

    racionalidade que privilegia os membros das classes mais favorecidas. Estes

    intelectuais atuam em diversos campos, inclusive o poltico, tornando as ideias

    que circulam em seu meio as ideias hegemnicas. Para que as classes

    populares quebrem esta lgica necessrio que tambm produzam os seus

    intelectuais com capacidades tcnicas e diretivas. Dessa forma ser possvel

    uma verdadeira mudana social.

    Pensando os encontros e desencontros em torno do referencial terico

    gramsciano utilizado pela reforma do ensino mdio no RS

    A primeira citao apresentada na reviso do documento orientador da

    reestruturao curricular elaborado pela Seducrs faz meno ao conceito de

    politecnia como um aprofundamento da articulao das reas do conhecimento.

    A educao interdisciplinar promovida pela concepo de reas do

    conhecimento no possu relao com politecnia em sua gnese. ExplicaNosella (2007) que o termo politecnia e sua popularizao se deram a partir da

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    utilizao por parte de Lenin do suposto modelo nas escolas da Unio das

    Repblicas Socialistas Soviticas (URSS). L o lder socialista preferiu a

    utilizao deste no lugar de educao tecnolgica, o que explica a difuso desta

    terminologia. Todavia, Nosella chama a ateno para o cuidado que se deve ter

    em no confundir a educao de influncia marxiana com a educao do

    socialismo real. Acreditamos que o documento faz uma confuso em torno das

    concepes marxianas, gramscianas e soviticas de educao, fazendo parecer

    que so uma coisa s.

    O documento tambm faz uma crtica ao que alega uma histrica

    dualidade no sistema educacional brasileiro, que diferente de uma dualidade

    legalmente instituda como no caso da Itlia, apresenta-se como uma dualidade

    socialmente imposta, que acaba direcionando as elites para o ensino

    desinteressado e as classes populares para o ensino tcnico e instrumental. O

    que parece estar subjacente a esta concepo no documento a ideia que a

    sociedade e suas caractersticas econmicas e polticas no possui nenhuma

    relao com a realidade que se apresenta e que cabe somente a escola resolver

    o problema. Uma leitura atenta do caderno 12 faz supor exatamente o contrrio,

    a escola reflete os problemas sociais e mudar somente a escola no resolve, na

    verdade Gramsci possua um projeto mais global.

    O documento faz uso do referencial gramsciano ao fazer a defesa do

    trabalho como princpio educativo, no entanto, o faz de forma acrtica do sistema

    econmico. Parece haver a defesa de uma educao que conforma os futuros

    trabalhadores as caracterstica do mercado de trabalho, numa perspectiva mais

    toyotista do que marxista de educao.

    Contudo, o uso de um referencial oriundo das cincias humanas para

    embasar argumentos que justificam polticas pblicas uma novidade no campoda educao, a Seducrs inovou ao fazer esta utilizao. Apoiamos este tipo de

    iniciativa, todavia deve haver muito cuidado ao se apropriar de referenciais

    tericos de forma a no criar uma ideia equivocada em torno das concepes

    dos autores selecionados. No caso do documento aqui analisado, a utilizao do

    referencial terico se fez de forma a-histrica, pois os conceitos foram

    transportados para a atualidade sem se considerar o contexto de sua criao e

    a relao do mesmo com as ideias mais gerais do autor destacado. Por fim,destacamos que o maior equvoco do documento foi o de negligenciar o potencial

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    revolucionrio das ideias de Gramsci no campo da educao simplificando os

    seus conceitos meros instrumentos de alterao curricular.

    Referncias

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    GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Crcere.Mxico, Ed. Era. 1984.

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    RIO GRANDE DO SUL, SECRETARIA ESTADUAL DA EDUCAO. PropostaPedaggica Para o Ensino Mdio Politcnico e Educao Profissional Integradaao Ensino Mdio20112014.

    SOBRAL et. al. Escola unitria e princpio educativo em Gramsci: Ensaios decompreenso a luz do caderno 12. Revista filosofia e educao.Vol 2, n 1abr/set, 2010