60 projeto pedagógico para aprender a ensinar e avaliar aprender.pdf · projeto 2008 pedagógico...

3
2008 Projeto Pedagógico 60 Em entrevista, o doutor em educação, escritor e pro- fessor de pós-graduação da Universidade Federal da Bahia, Cipriano Carlos Luckesi alerta sobre o método de avaliar utilizado hoje em dia pelos educadores e escolas. Para o professor, que já escreveu cerca de 12 livros e di- versos artigos referentes à temática da educação, a avali- ação praticada nas escolas não tem surtido um efeito sau- dável na construção pedagógica dos estudantes. Confira a entrevista: Qual o principal objetivo da avaliação na maioria das escolas regulares? Ela de fato cumpre seus objetivos? Cipriano Luckesi - Na maioria das escolas regulares, de fato, não se pratica avaliação, mas o exame. Avaliação e exame são atos completamente diferentes. O exame é classificatório - coloca o estudante em um nível específi- co de uma escala, e seletivo - a partir da posição na qual o estudante é classificado, ou seja, aprovado ou reprova- do; Antidemocrático, pois se há seletividade, não pode ser democrático, porque a aprendizagem seria para pou- Para aprender a ensinar e avaliar Nerivaldo Góes cos; Autoritário, porque quem decide é so- mente a autoridade e sempre do seu ponto de vista. A avaliação, por outro lado, é diagnóstica - Investiga o nível de desem- penho do educando e seus impasses; In- clusiva, pois reorienta o estudante, a par- tir do diagnóstico realizado, sempre o in- cluindo na aprendizagem satisfatória; De- mocrática, porque é inclusiva, e deseja que todos aprendam, não somente uns poucos; Dialógica, pois há diálogo no processo avaliativo, e nem sempre a autoridade tem razão. Dessa forma, tendo presente essas características dos dois modos de agir, verificamos que o que, genericamente, vem ocorrendo em nossas escolas é exame e não avaliação. Por isso, não cumpre a função de efetivamente avaliar. Quais seriam as diferenças/ligações bá- sicas entre os termos verificação, mensuração e avaliação? Cipriano Luckesi - O termo verificação, na sua compreensão mais precisa, tem a ver com mensuração. A mensuração é base tanto para o ato de examinar quanto para o ato de avaliar. É preciso identificar, des- crever, portanto, mensurar, a sua capaci- dade de agir. E a mensuração de sua apren- dizagem, usualmente, é realizada através de testes ou de outros recursos de investi- gação do desempenho. Por analogia, po- deríamos dizer que um teste de 20 ques- tões equivale a uma régua de vinte centí- metros. Cada questão corresponde a um centímetro. Cada questão certa é um acerto e cada ques- tão errada é um erro. Analogicamente, poderíamos dizer, um centímetro a mais ou um centímetro a menos. Assim se dá a mensuração da aprendizagem escolar. A avalia- ção, por sua vez, é uma atribuição de qualidade positiva ou negativa àquilo que foi mensurado, na medida mes- ma da mensuração. Quanto mais a medida mostrar o re- sultado próximo do objetivo preestabelecido, tanto maior será a sua qualidade, e quanto mais distante do resulta- do esperado, menor será sua qualidade. Frente à meta de obter os melhores resultados, o estudante é obrigado, ne- cessariamente, à reorientação e reconstrução da apren- dizagem. O exame, por seu turno, a partir da mensuração, classifica o estudante, ou seja, aprendeu, ótimo; não aprendeu, reprovado. O que se pratica na escola de ensi- no médio, hoje, por exemplo, é exame. E não há como compará-lo com a verificação. Na medida em que esta é a base material para proceder a classificação no ato de exa- minar e a qualificação do desempenho no ato de avaliar.

Upload: trinhnga

Post on 08-Nov-2018

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

2008ProjetoPedagógico

6 0

Em entrevista, o doutor em educação, escritor e pro-fessor de pós-graduação da Universidade Federal daBahia, Cipriano Carlos Luckesi alerta sobre o método deavaliar utilizado hoje em dia pelos educadores e escolas.Para o professor, que já escreveu cerca de 12 livros e di-versos artigos referentes à temática da educação, a avali-ação praticada nas escolas não tem surtido um efeito sau-dável na construção pedagógica dos estudantes. Confiraa entrevista:

Qual o principal objetivo da avaliação na maioria dasescolas regulares? Ela de fato cumpre seus objetivos?

Cipriano Luckesi - Na maioria das escolas regulares,de fato, não se pratica avaliação, mas o exame. Avaliaçãoe exame são atos completamente diferentes. O exame éclassificatório - coloca o estudante em um nível específi-co de uma escala, e seletivo - a partir da posição na qualo estudante é classificado, ou seja, aprovado ou reprova-do; Antidemocrático, pois se há seletividade, não podeser democrático, porque a aprendizagem seria para pou-

Para aprender a ensinar e avaliarNerivaldo Góes

cos; Autoritário, porque quem decide é so-mente a autoridade e sempre do seu pontode vista. A avaliação, por outro lado, édiagnóstica - Investiga o nível de desem-penho do educando e seus impasses; In-clusiva, pois reorienta o estudante, a par-tir do diagnóstico realizado, sempre o in-cluindo na aprendizagem satisfatória; De-mocrática, porque é inclusiva, e deseja quetodos aprendam, não somente uns poucos;Dialógica, pois há diálogo no processoavaliativo, e nem sempre a autoridade temrazão. Dessa forma, tendo presente essascaracterísticas dos dois modos de agir,verificamos que o que, genericamente, vemocorrendo em nossas escolas é exame e nãoavaliação. Por isso, não cumpre a funçãode efetivamente avaliar.

Quais seriam as diferenças/ligações bá-sicas entre os termos verificação,mensuração e avaliação?

Cipriano Luckesi - O termo verificação,na sua compreensão mais precisa, tem aver com mensuração. A mensuração é basetanto para o ato de examinar quanto parao ato de avaliar. É preciso identificar, des-crever, portanto, mensurar, a sua capaci-dade de agir. E a mensuração de sua apren-dizagem, usualmente, é realizada atravésde testes ou de outros recursos de investi-gação do desempenho. Por analogia, po-deríamos dizer que um teste de 20 ques-tões equivale a uma régua de vinte centí-metros. Cada questão corresponde a um

centímetro. Cada questão certa é um acerto e cada ques-tão errada é um erro. Analogicamente, poderíamos dizer,um centímetro a mais ou um centímetro a menos. Assimse dá a mensuração da aprendizagem escolar. A avalia-ção, por sua vez, é uma atribuição de qualidade positivaou negativa àquilo que foi mensurado, na medida mes-ma da mensuração. Quanto mais a medida mostrar o re-sultado próximo do objetivo preestabelecido, tanto maiorserá a sua qualidade, e quanto mais distante do resulta-do esperado, menor será sua qualidade. Frente à meta deobter os melhores resultados, o estudante é obrigado, ne-cessariamente, à reorientação e reconstrução da apren-dizagem. O exame, por seu turno, a partir da mensuração,classifica o estudante, ou seja, aprendeu, ótimo; nãoaprendeu, reprovado. O que se pratica na escola de ensi-no médio, hoje, por exemplo, é exame. E não há comocompará-lo com a verificação. Na medida em que esta é abase material para proceder a classificação no ato de exa-minar e a qualificação do desempenho no ato de avaliar.

2008 ProjetoPedagógico

6 1

O que são notas e conceitos e como a escola tem utili-zado tal sistema?

Cipriano Luckesi - Notas ou conceitos têm por objeti-vo registrar os resultados da aprendizagem do educan-do. Por isso, somente expressam o testemunho do educa-dor ou da educadora, de que aquele estudante aprendeuem sua disciplina o que tinha necessidade de aprender.As escolas, os estudantes, seus pais e as autoridades edu-cacionais, usualmente, confundem nota ou conceito comavaliação. Avaliação da aprendizagem é o ato de diag-nosticar o desempenho do estudante, tendo em vistaauxiliá-lo a chegar ao nível mínimo necessário de apren-dizagem. A nota ou conceito é a forma de registrarem documentos cartoriais da escola a quali-dade final do desempenho do educan-do, que sempre deveria ser satisfatória,caso a aprendizagem seja efetivamen-te construída pelos atos pedagógicosde ensinar. Aprendizagem satisfatórianão significa, em si, aprovação. Porém,em si, significa aprendizagemsatisfatória. O que, evidentemente, con-duz a uma aprovação. Assim, a apro-vação não é o ponto de partida, massim o ponto de chegada. Uma aprendi-zagem satisfatória conduz a uma apro-vação e a mesma depende do investi-mento na qualidade do ensino centradano sucesso do estudante.

Muito se comenta do sentimento de culpa as-sociado às práticas avaliativas nas escolas. A associaçãoseria correta?

Cipriano Luckesi - A meu ver, a avaliação que se pra-tica na escola não tem um sentimento de culpa, mas simcompreendo que os exames praticados na escola têm aver com a idéia de que, sendo castigado, um estudante sededica mais aos estudos. Essa ideologia não pertencesomente à escola, mas sim ao modelo de sociedade judai-co-católica dentro da qual vivemos. Em nossa tradiçãoocidental o castigo, ou a ameaça do castigo, tem sido umrecurso muito utilizado em todas as instâncias sociais,tendo em vista submeter o outro aos próprios interesses.Os presidentes nos países denominados democráticosmuitas vezes ameaçam setores sociais com punições.Educadores, por sua vez, têm usado os exames para ge-rar medo em seus estudantes na esperança de que, sobesse recurso, eles estudem mais. Criamos situações pormeio das quais os estudantes terão que se manifestar fra-cos em suas aprendizagens, por isso merecendo o casti-go da reprovação. Acredito que em nosso entendimentocomum da prática educativa o castigo, ou a sua ameaça,educa o que não é verdade.

No seu entender, a avaliação deve ser o instrumento deidentificação de novos rumos. Como isso pode ser alcan-çado na sala de aula?

Cipriano Luckesi - Simples e de dois modos. O pri-meiro refere-se ao planejamento do ensino. Este tem por

objetivo tornar explícitos os nossos desejos de que os es-tudantes aprendam o que vamos ensinar. Planejar não éescrever um documento como usualmente tem ocorridoem nossas escolas. É clarear desejos sobre os resultadosque queremos como conseqüência de nossa ação. O do-cumento escrito para ser entregue às autoridades peda-gógicas de uma instituição contém o relato de decisõessobre o que iremos fazer. Isso é fundamental, na medidaem que delineia o que pretendemos obter. O segundo ele-mento é o investimento na realização do que foi planeja-do, ou seja, o investimento na obtenção dos resultadosdesejados. É assim que agimos sempre. Se desejo fazer

uma viagem para o exterior, tenho que planejá-la e,vagarosamente, de forma detalhada e sucessi-

va, realizar todos os passos necessáriospara poder viajar. Estes seriam: decidir aviagem, estabelecer os lugares onde de-sejo ir, a permanência em cada local, oscustos, viabilizar passagens e hotéis,passaporte, fazer economias para ter odinheiro necessário e suficiente para aviagem. A viagem é construída. Aaprendizagem é a mesma coisa: sem efe-tiva construção, não existe. Certa vez,vi um relato de que uma professora que,no primeiro dia de aula do ano letivo,disse o seguinte: "Hoje, tive 33 estudan-

tes na sala de aula. Certamente, no finaldo ano, dezesseis deles serão reprovados".

Com esse desejo, os seus estudantes não aprende-rão, na medida em que está explícito que ela não vai in-vestir para que efetivamente eles aprendam. Sem plane-jamento, portanto, não há aprendizagem adequada. Damesma forma, o simples planejamento sem investimentona sua construção não irá conduzir aos resultados dese-jados.

Alguns teóricos acreditam que os currículos das esco-las de ensino médio têm sido propostos para atender àmassificação do ensino. Como superar esta realidade?

Cipriano Luckesi - A distorção não está no currículo,mas na concepção pedagógica assumida pelos educado-res. A educação foi instituída para "formar o educando eo cidadão" e não para cumprir o currículo. Contudo, oseducadores centram sua atenção no currículo e esque-cem o educando. O currículo é um dos recursos necessá-rios a ser utilizado pelo educador para que o educandoaprenda e, por aprender, se desenvolva como sujeito ecomo cidadão. Cumprir o currículo não cumpre a finali-dade da educação. Ao contrário, distorce a sua finalida-de. O currículo é necessário, mas a serviço da formaçãodo educando. O que massifica não é o currículo em si,mas sim o seu privilegiamento por sobre o educando,que é o centro da atenção do ato educativo. Nós educado-res necessitamos de colocar nossa atenção no educandoe nos servirmos do currículo como recurso mediador daaprendizagem e do desenvolvimento. Não o contrário,com o educando a serviço do currículo. Se assim agir-

2008ProjetoPedagógico

6 2

mos, do ponto de vista pedagógico, a massificação desa-parece, na medida em que será o indivíduo o foco de nos-sa ação educativa.

Atualmente, alguns educadores acreditam que o idealé a individualização da avaliação, como é trabalhado pelaEscola da Ponte em Portugal. Como o senhor analisa essapossibilidade?

Cipriano Luckesi - Seria ótimo se pudéssemos prati-car a avaliação dos estudantes de forma individualiza-da e dialogada. Conheço muito pouco da divulgada Es-cola da Ponte. Mas parece que a prática da avaliação noseu currículo se dá de forma individualizada. Cada estu-dante quando sente que já aprendeu determinado con-teúdo procura seu professor e se submete a uma avalia-ção. Se sua aprendizagem se manifesta satisfatória pas-sa para outro tópico. Caso se apresente insatisfatória éajudado para atingir o nível da "satisfatoriedade". Esseseria um ideal. Mas não temos essa possibilidade em nos-sas escolas com estas turmas numerosamente grandes.Nesse contexto, afirmo que a avaliação poderá ser plena-mente e bem praticada mesmo com grande número deestudantes por turma. Isso dependerá de bons e adequa-dos instrumentos de coleta de dados sobre o desempe-nho dos educandos. Se nossos instrumentos forem pla-nejados e elaborados com certos requisitos metodológicosda ciência, coletarão verdadeiramente os dados da apren-dizagem dos educandos. Isso garantirá, por sua vez, umjuízo qualitativo correto sobre a aprendizagem doseducandos e sua reorientação, caso seja necessário. Te-nho abordado largamente em meus artigos essas ques-tões relativas aos instrumentos adequados para práticada avaliação. Com instrumentos adequados e cientifica-mente elaborados, a avaliação poderá ser praticada comqualidade independente do número de estudantes.

O seu livro "Equívocos Teóricos na Prática Educativa",de 1982, é bastante crítico quanto à escola, o ensino, aaprendizagem escolar e a avaliação. O que mudou em seusconceitos de lá pra cá?

Cipriano Luckesi - Acredito que o que está expostoainda é válido como visão analítica e crítica. Ele contémum estudo de época. Porém, hoje, pessoalmente, paraalém da crítica, tenho insistido na construção de umaprática pedagógica satisfatória no cotidiano escolar. Acrítica é necessária, mas ela tem uma magnitude limi-tada diante da necessidade de encontrar e praticar umaeducação de qualidade. Assim sendo, em meus escri-tos já abordei bastante a avaliação de forma crítica.Ultimamente tenho olhado mais para o aspecto cons-trutivo. Contudo, não deixei o aspecto crítico, na medi-da em que o considero ponto de partida para a constru-ção do novo. Essa é a função do diagnóstico, porém umdiagnóstico deve ser seguido de uma busca de solução,sob pena dele perder-se na pura crítica. Aquele livro ésignificativo ainda do ponto de vista de seus conteúdose abordagens. Mas, hoje, dedico-me à construção denovas possibilidades para a prática educativa e para aavaliação da aprendizagem.

Como os resultados das avaliações podem servir aoprogresso daqueles que compõem o sistema educativo:educando, educador e escola?

Cipriano Luckesi - A função da avaliação da apren-dizagem é oferecer a todos os envolvidos no processopedagógico a possibilidade de conhecer as amplitudes eos limites da aprendizagem do educando. Isso interessaao educando, ao educador e à unidade de ensino. A ins-tituição diante de dados bem coletados deverá tomar po-sição para que sua escola efetivamente cumpra os objeti-vos que estão propostos em seus regimentos e apresenta-dos à sociedade. As escolas anunciam à sociedade queelas ensinam para que os estudantes aprendam. Isso deveser cumprido e, para tal, as instituições têm que investirem condições e pessoal para o ensino. Os professoresdevem ter interesse nos resultados da avaliação, pois elaindicará onde deverão intervir para que o seu trabalhoproduza os resultados esperados e que seja bem-sucedi-do. É estranho trabalhar para se obter insucesso. Isso éinsanidade. Por último, os resultados da aprendizagemdos educandos interessam aos próprios educandos. Elessão fundamentais para que os mesmos tomem consciên-cia de como se encontram e, fazendo uma parceria comos educadores, possam dar passos à frente, também nabusca dos melhores resultados. Deste modo, os resulta-dos da avaliação interessam a todos na escola, tendo emvista o seu sucesso. Os exames escolares muitíssimasvezes, são utilizados para expressar que o fracasso esco-lar representa uma escola boa. Diz-se: "Aquela escola éboa porque aperta os estudantes". Ledo engano. Uma es-cola é de boa qualidade porque os estudantes efetiva-mente aprendem.

Avaliar conteúdos e avaliar aprendizagem: o que oseducadores devem ter em mente quanto a estes conceitospara que possam avançar em suas metodologias?

Cipriano Luckesi - Praticar os conteúdos no seio daescola importa em ensiná-los da melhor forma possível.Isso conseqüentemente significa que os estudantes osaprendem também da melhor forma possível. Avaliar osconteúdos é uma ação comprometida com a seleção deconteúdos a serem ensinados. Porém, avaliar a aprendi-zagem dos conteúdos é uma tarefa que cabe ao educadorno cotidiano escolar. Para tanto necessita em primeirolugar de ter claro o projeto pedagógico a ser desenvolvi-do, praticado e realizado com os estudantes. Tendo emvista sua aprendizagem e seu desenvolvimento. Em se-gundo lugar necessita praticar a avaliação efetivamentena função de avaliar, sem confundi-la com a função deexaminar. Isso exige cuidados científicos na elaboração euso dos instrumentos e coleta de dados sobre o desempe-nho do educando, bem como cuidados na interpretaçãodialógica dos dados obtidos. O que interessa ao educadoré obter o melhor resultado possível. O ato de avaliar subsi-dia isso. Esse é um modo saudável de servir-se dos recur-sos da avaliação da aprendizagem na escola.

Fonte: Folha Dirigida - RJ