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    Mestrando em Direito Penal pela Pontifcia Universidade Catlica (PUC-SP)

    Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura (EPM)

    Promotor de Justia do Estado de So Paulo

    Flavio Eduardo Turessi

    BREVES APONTAMENTOS SOBRE CRIME ORGANIZADO, DELAO PREMIADA E PROIBIO DA PROTEO PENAL INSUFICIENTE

    BRIEF NOTES ON ORGANIZED CRIME AND PLEA BARGAINING PROHIBITION OF CRIMINAL INSUFFICIENT PROTECTION

  • BREVES APONTAMENTOS SOBRE CRIME ORGANIZADO, DELAO PREMIADA E PROIBIO...

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    RESUMO

    Neste artigo, busca-se analisar o fenmeno da criminalidade organizada e os me-canismos legais previstos para seu enfrentamento, dentre eles, a delao premia-da, aqui identificada como mtodo especial de investigao criminal. Aprofunda-dos os conceitos, identifica-se nos direitos fundamentais uma dupla face: a proi-bio do arbtrio e a proibio da proteo penal insuficiente. Ao final, conclui o efetivo combate ao crime organizado como uma questo de poltica criminal.

    PALAVRAS-CHAVE

    Crime organizado. Mtodos especiais de investigao criminal. Delao pre-miada. Direitos fundamentais. Poltica criminal.

    ABSTRACT

    In this article we seek to analyze the phenomenon of organized crime and the legal procedures for coping, among them, plea bargaining, here identified as special method of criminal investigation. Depth concepts, identifies the fundamental rights a double face: the prohibition of agency and criminal prohibition of insufficient protection. The end, concludes the effective fight against crime as a matter of criminal policy.

    KEywORDS

    Organized crime. Special methods of criminal investigation. Plea bargaining. Fundamental rights. Criminal policy.

    SUMRIO

    Introduo. 1. Origem, conceito e natureza jurdica da delao premiada. 2. Crime organizado e proibio da proteo penal insuficiente. 3. O combate ao crime organizado como uma questo de poltica criminal. Concluso.

    INTRODUO

    A evoluo natural da sociedade moderna, marcada pelo incremento da tecno-logia a servio da informao, do avano e aprimoramento do processamento de da-dos, fez surgir, ao lado da criminalidade urbana dos grandes centros, novas formas de criminalidade e, nesse contexto, o fenmeno da chamada criminalidade organizada1.

    1. Eduardo Arajo da Silva anota que A origem da criminalidade organizada no de fcil identificao, em razo das variaes de comportamentos em diversos pases, as quais persistem at os dias atuais. No obstante essa dificuldade, a raiz histrica trao comum de algumas organizaes, em especial as Mfias italianas, a Yakuza japonesa e as Trades chinesas. Essas associaes tiveram incio no sculo XVI como movimentos de proteo contra arbitrariedades praticadas pelos poderosos e pelo Estado, em relao a pessoas que geralmente residiam em locais rurais, menos desenvolvidos e desamparados de assistncia dos servios pblicos. (Crime Organizado. 2 edio. So Paulo: Atlas, 2009. p. 3).

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    nesse cenrio que os rgos e instncias formais de controle estatal se depa-ram com novo e tormentoso desafio: manejar a legislao processual existente, nota-damente seus remotos e ultrapassados mtodos de investigao criminal, na busca v-lida da reconstituio de condutas ilcitas praticadas por tais organismos criminosos, peculiares e extremamente complexas, de forma clere e eficiente, respeitando-se os princpios constitucionais que regulam e regem a relao processual2.

    A dificuldade, evidncia, gigantesca. Na quixotesca luta contra a supres-so da prova, inmeras vezes os rgos de persecuo criminal, no manejo da legis-lao adjetiva, se deparam com liberdades individuais constitucionalmente protegi-das que so indevida e erroneamente empregadas como blindagem descoberta do ilcito penal. Para tanto, fortes no chamado princpio da relatividade, os operadores do direito restringem direitos e garantias individuais, uma vez que, como cedio, no existe liberdade pblica absoluta, sendo que, no ponto, a dificuldade prtica reside justamente em sopesar, no caso concreto, qual deve ser a exata medida dessa restrio na obteno lcita do elemento de prova desejado3.

    De toda a sorte, fora convir que o combate criminalidade organizada, vale dizer, sua forma de persecuo penal em solos extrajudicial e judicial, no pode percorrer o mesmo caminho trilhado para a descoberta de autoria e materialidade dos ilcitos penais cometidos pela chamada criminalidade comum. O combate criminalidade organizada merece uma leitura diferenciada.

    A relao umbilical existente entre a criminalidade organizada e a visvel desestruturao poltica, social e econmica da sociedade moderna reclama do or-denamento jurdico novos e eficientes mecanismos de atuao, vale dizer, novas tcnicas de investigao, sob pena de se assistir, num futuro prximo, falncia irreversvel do aparato preventivo-repressivo do estado.

    Nessa linha de inteleco, Fausto Martin de Sanctis obtempera que:

    As chamadas tcnicas especiais de investigao so consideradas indispens-veis para o enfrentamento da criminalidade organizada e esto em consonncia

    2. Debruando-se sobre a eficincia no combate ao crime organizado, em estudo intitulado O equilbrio na represso ao crime organizado, o Prof. Antnio Scarance Fernandes anota que No tocante ao crime organizado, o estudo da eficincia pode ser efetuado de maneira global, em face do conjunto das normas processuais que o regulam. Fixada a ideia de que no se compreende eficincia sem observncia das garantias constitucionais, essas normas sero eficientes se permitirem represso ao crime organizado com respeito ao ncleo essencial de garantias, por meio do qual se garantem a imparcialidade do juiz, a ampla defesa e o contraditrio. (Crime Organizado Aspectos Processuais. Coordenao Antnio Scarance Fernandes, Jos Raul Gavio de Almeida, Maurcio Zanide de Moraes. So Paulo: RT, 2009. p. 11).

    3. Com efeito, Alexandre de Moraes pontua que Os direitos humanos fundamentais, dentre eles os direitos e garantias individuais e coletivos consagrados no art. 5 da Constituio Federal, no podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prtica de atividades ilcitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou diminuio da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagrao ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito. Os direitos e garantias fundamentais con-sagrados pela Constituio Federal, portanto, no so ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princpio da relatividade ou convivncia das liberdades pblicas). (Direito Constitucional. 8 edio. So Paulo: Atlas, 2000. p. 58-59).

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    com as obrigaes assumidas pelo Brasil, no campo internacional, por meio da Conveno Contra o Trfico Ilcito de Entorpecentes e Substncias Psicotrpicas (Conveno de Viena de 1988, artigo 11, itens 1, 2 e 3), da Conveno das Naes Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Conveno da ONU de 2000, artigo 20) e da Conveno das Naes Unidas contra a Corrupo (Conveno da ONU contra a corrupo de Merida de 2003, artigo 50)4.

    Outrora desconhecidos e distantes, os denominados mtodos especiais de investigao criminal, tais como a ao controlada, a infiltrao de agentes, aces-so de dados e interceptaes ambientais, todos previstos na Lei n 9.034, de 3 de maro de 1995, passaram a ganhar corpo em autos de processos-crime e, na exata medida em que corretamente manejados, produziram frutos no combate criminalidade organizada, despertaram vozes contrrias sua aplicao. Com a delao premiada no foi diferente5.

    Rotulada por alguns como um verdadeiro mal necessrio, o instituto da de-lao premiada, com as venias de estilo, longe de se assentar em maquiada traio e de ser o reflexo da ineficincia do Estado no combate criminalidade organizada, em verdade, carece de maior ateno dos operadores do direito, em especial daqueles que se dedicam ao combate da criminalidade organizada, notadamente quando nos debru-amos sobre sua aplicabilidade prtica e alcance, desafios motivadores deste estudo.

    1. ORIGEM, CONCEITO E NATUREZA JURDICA DA DELAO PREMIADA

    Tendo como ala de mira a busca pela efetividade da relao processual, funda-se a delao premiada, em linhas gerais, na ideia do consenso, que, frise-se, ganhou corpo no mbito criminal com a previso, na esfera constitucional, dos Jui-zados Especiais Criminais (art. 98, inc. I, da Constituio da Repblica)6.

    4. Crime Organizado e Lavagem de Dinheiro: destinao de bens apreendidos, delao premiada e respon-sabilidade social. So Paulo: Saraiva, 2009. p. 10.

    5. Advogado criminalista e ex-presidente nacional da OAB, Jos Roberto Batochio, em artigo intitulado De-lao premiada deve ser evitada, defende ser Indisfarvel que so as prises cautelares sempre um pr--conceito, com o qual no se coaduna a ideia de um julgamento sereno, meticuloso e definido. Verdadeira amputao social segregam um mero suspeito -, com muita parcimnia e excepcionalmente devem ser realizadas pelo bisturi judicirio. O seu largo uso, sem critrios ou comedimento, traduz prtica conden-vel. Esse quadro torna-se ainda mais eloquente quando a priso ante tempus vem lastreada em barganhas testemunhais, to em voga nos dias que correm, e que se positivaram no nosso ordenamento jurdico sob a eufmica denominao de delao premiada. (www.conjur.com.br/2011-jun-20/delacao-premiada--aplicada-casos-extremos?. Acesso em 28/06/2011).

    6. Analisando os contornos da justia consensual criminal, o Prof. Antnio Scarance Fernandes obtempera que A lei 9.099/95 representou verdadeira revoluo no sistema brasileiro, libertando a justia para o consenso em matria penal, sendo, em virtude disso, aplaudida pela grande maioria dos estudiosos e dos operadores do direito. Insere o Brasil entre os pases que adotam o modelo consensual de justia criminal, no mesmo sentido do que vinha sendo estimulado pela doutrina. (Processo Penal Constitucional. 3 edi-o. So Paulo: RT, 2002.p. 206-207).

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    Destacando a natureza consensual do instituto, Marcelo Batlouni Mendroni explica que:

    Sua natureza decorre, entendemos, do chamado Princpio do Consenso, que, variante do Princpio da Legalidade, permite que as partes entrem em consenso a respeito do destino da situao jurdica do acusado que, por qual-quer razo, concorda com a imputao. No Brasil, pelo teor da legislao, esta aplicao do Princpio do Consenso pode atingir aquele que colaborou eficazmente com a administrao da justia7.

    Malgrado positivado em nosso ordenamento jurdico na dcada de 1990, com a promulgao da Lei dos Crimes Hediondos (art. 8, pargrafo nico), o insti-tuto da delao premiada no novo.

    Debruando-se sobre sua origem, Andr Estefam lembra que: No se trata, contudo, de novidade no Brasil, uma vez que desde as Ordenaes Filipinas, cuja parte criminal vigorou de 1603 a 1831, j se previa a delao premiada (p. ex., Ttu-lo CXVI Como se perdoar aos malfeitores, que derem outros priso)8.

    No cenrio internacional, Andrey Borges de Mendona e Paulo Roberto Gal-vo de Carvalho ilustram que:

    A delao premiada surgiu no combate das grandes organizaes criminosas ocorridas nos Estados Unidos, notadamente a Mfia e a Cosa Nostra. Era uma verdadeira transao penal firmada entre os Procuradores Federais e alguns envolvidos, que seriam beneficiados com a impunidade caso fornecessem informaes suficientes que pudessem levar desestruturao das referidas organizaes e priso de seus integrantes. Posteriormente foi utilizada com sucesso na Operao Mos Limpas, na Itlia, onde se conseguiu debelar grandes organizaes criminosas graas ao instituto da delao premiada9.

    Citando Jean Ziegler, Eduardo Arajo da Silva, ainda nessa quadra, revela que:

    Nos Estados Unidos da Amrica, os acordos entre acusao e acusado (plea bargaining) tambm esto incorporados na cultura jurdica, o que facilita a obteno de colaborao premiada. Essa sistemtica resultante da tradio calvinista, na qual confessar publicamente a culpa, praticar um ato de contri-o revelam uma atitude crist que deve ser valorizada pelo direito. Em tem-pos remotos, antes do incio do julgamento, o juiz indagava o acusado quanto a sua pretenso de declarar-se publicamente culpado, pedir perdo e aceitar livremente a punio de seu crime. Atualmente, a admisso de culpa no se destina satisfao da moral pblica, podendo resultar em eficaz estratgia do Ministrio Pblico para obter a condenao dos chefes do crime organizado. Aceitando a proposta do procurador para testemunhar em favor da acusa-o, o colaborador includo num witness profession program, no qual pode-r usufruir de uma nova identidade, alojamento, dinheiro e outra profisso10.

    7. Crime Organizado: aspectos gerais e mecanismos legais. 2 edio. So Paulo: Atlas, 2007. p.. 37.8. Direito Penal, 1: parte geral. 2 edio. So Paulo: Saraiva, 2012. p. 314.9. Lei de Drogas: Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006 comentada artigo por artigo. So Paulo: Mtodo,

    2008. p. 182-183.10. Op. Cit. p. 67.

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    Diversos so, na doutrina, os conceitos dados ao instituto.Para Edilson Mougenot Bonfim, o benefcio que se concede ao ru con-

    fesso, reduzindo-lhe ou at isentando-lhe de pena, quando denuncia um ou mais envolvidos na mesma prtica criminosa a que responde11.

    Dele no se afasta Adalberto Jos Q. T. de Camargo Aranha, quando afirma que a delao consiste na afirmativa feita por um acusado, ao ser interrogado em juzo ou ao ser ouvido na polcia e, pela qual, alm de confessar a autoria de um fato criminoso, igualmente atribui a um terceiro a participao como seu comparsa12.

    Assim que, ao lado da prpria Lei n 9.034/9513, variados so os diplomas legais que, em nosso ordenamento jurdico, prestigiam o instituto da delao premia-da. Nessa linha de inteleco, sua natureza jurdica varia de acordo com o texto legal.

    Na Lei dos Crimes Hediondos (Lei n 8.072/90, art. 8, pargrafo nico), na Lei dos Crimes contra a Ordem Tributria, Econmica e contra as Relaes de Con-sumo (Lei n 8.137/90, art. 16, pargrafo nico), no prprio Cdigo Penal (art. 159, 4) e, por fim, na Lei Antitxicos (Lei n 11.343/06, art. 41), a delao premiada tratada como causa de diminuio de pena.

    J na Lei de Proteo a Vtimas e Testemunhas (Lei n 9.807/99), as consequncias variam. Cuidando-se de ru primrio, vale dizer, no reincidente, que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigao e o processo criminal, seja identificando os demais agentes, localizando a vtima (com a sua integridade fsica preservada) ou recuperando (total ou parcialmente) o produto do ilcito, a delao assumir contornos de perdo judicial e consequente extino da punibilidade (art. 13). De outro vrtice, cuidando-se de acusado que seja reincidente, caso colabore nesses mesmos termos, a delao ter a natureza jurdica de causa de diminuio de pena (art. 14).

    Por fim, tratando-se de crimes de lavagem de dinheiro (Lei n 12.683/2012), o agente colaborador poder ser beneficiado com a reduo da pena e fixao do regime aberto ou semiaberto para desconto da reprimenda corporal, facultado ao juiz at mesmo deixar de aplica-la ou substitu-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, desde que, para tanto, ele tenha espontaneamente prestado esclarecimentos que conduzam apurao das infraes penais, identificao dos autores, coautores e partcipes, ou localizao dos bens, direitos ou valores objeto do crime (art. 1, 5).

    Essa diversidade de diplomas legais e, mais disso, essa amplitude de efeitos jurdicos, faz do instituto da delao premiada algo de difcil aplicao. O tratamen-to legal conferido delao premiada, verdadeiro mosaico legislativo, acaba por distorcer sua finalidade e, nesse vrtice, seus pontos positivos.

    O problema no reside, ontologicamente, nesse instituto, mas, ao revs, no tratamento legal a ele conferido pelo legislador ordinrio.

    11. Curso de Processo Penal. 7 edio. So Paulo: Saraiva, 2012. p. 409.12. Da Prova no Processo Penal. 7 edio. So Paulo: Saraiva, 2006. p. 132.13. Art. 6. Nos crimes praticados em organizao criminosa, a pena ser reduzida de um a 2/3 (dois teros),

    quando a colaborao espontnea do agente levar ao esclarecimento de infraes penais e sua autoria.

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    Urge, com o mximo respeito aos que pensam de forma contrria, sua mni-ma padronizao.

    O Projeto de Lei do Senado n 236, de 2012 Anteprojeto de Cdigo Penal , persegue essa padronizao, mas, ao nosso modesto sentir, de maneira equivocada.

    Sob a rubrica imputado colaborador, seu art. 10614 volta a distinguir o acusa-do primrio do reincidente e, nessa linha de inteleco, as consequncias jurdicas de sua colaborao.

    Ora, se a razo do instituto a descoberta do fato criminoso, vale dizer, sua au-toria e materialidade, notadamente de infraes penais cometidas por organismos cri-minosos, condicionando-se o benefcio voluntariedade e efetividade da colaborao, qual a razo para que seja estabelecida essa distino entre ru primrio e reincidente?

    Ademais, em que pese o louvvel esforo desenvolvido pelo Anteprojeto de Cdigo Penal no enfrentamento de to tormentoso tema, temos que se cuida de matria afeta ao processo penal, sendo descabida sua incurso na Parte Geral de Cdigo Penal.

    Destarte, se verdade que o instituto carece de amadurecimento em nosso ordenamento jurdico e, por vezes, duramente criticado por alguns, no se pode olvidar que, em verdade, muitas dessas crticas deveriam ser dirigidas falta de tcnica demonstrada pelo legislador ordinrio, que, despreocupado com uma viso sistmica, deixa de lado a coerncia, a unidade e a completude que todo ordena-mento jurdico deve conter.

    Com efeito, a destacada falta de tcnica legislativa no privilgio da dela-o premiada.

    Deixando de lado as ricas discusses doutrinrias que hostilizaram a defi-nio de crime organizado no Brasil, esgrimando-se posies que, pautadas na Lei n 9.034/95, negavam sua existncia, com posies que, slidas na Conveno de Palermo da ONU15, defendiam sua positivao, recentemente foi promulgada a Lei n 12.694, de 24 de julho de 2012, que, dentre outras providncias, dispe sobre o processo e o julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdio de crimes prati-cados por organizaes criminosas.

    Espelhado na experincia colombiana dos denominados juzes sem rosto, o novo texto legal merece aplausos e busca, em ltima anlise, a efetividade da re-

    14. Art. 106. O juiz, a requerimento das partes, conceder o perdo judicial e a consequente extino da pu-nibilidade, se o imputado for primrio, ou reduzir a pena de um a dois teros, ou aplicar somente pena restritiva de direitos ao acusado que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigao e o processo criminal, desde que dessa colaborao tenha resultado: I a total ou parcial identificao dos demais coautores ou partcipes da ao criminosa; II a localizao da vtima com a sua integridade fsica preservada; ou III a recuperao total ou parcial do produto do crime.

    15. O art. 2 da Conveno de Palermo da ONU, de 15 de novembro de 2000, aprovada pelo Decreto n 231, de 29 de maio de 2003, e promulgada pelo Decreto n 5.015, de 12 de maro de 2004, definiu organizao criminosa como grupo estruturado de trs ou mais pessoas, existentes h algum tempo e atuando concerta-damente com o propsito de cometer uma ou mais infraes graves ou enunciadas na presente Conveno, com a inteno de obter, direta ou indiretamente, um benefcio econmico ou outro benefcio material.

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    lao processual, notadamente quando confere ao juiz monocrtico a possibilidade de decidir pela formao de colegiado para a prtica de qualquer ato processual.

    Em seu art. 2, o novel legislador finalmente apresenta ao ordenamento jur-dico ptrio o conceito legal de organizao criminosa16.

    Dele se extrai, em sntese, que so requisitos da organizao criminosa: (i) associao de ao menos 3 (trs) agentes; (ii) que essa associao seja estruturalmente ordenada e caracterizada, ainda que informalmente, pela diviso de tarefas; (iii) que tenha por objetivo obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza; (iv) que se dedique prtica de crimes cuja pena mxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de carter transnacional.

    Cotejando-se a definio legal de organizao criminosa ora positivada com o conhecido crime de quadrilha ou bando, previsto no art. 288, caput, do Cdigo Penal17, facilmente perceberemos que, para a identificao daquela formatao, o texto legal reclama a associao de, ao menos, 3 (trs) pessoas, e, para este, mais de 4 (quatro). Diante desse novo quadro, com o devido respeito, o crime de quadrilha ou bando deveria ter recebido a devida adaptao. Vale dizer, no se pode admitir que, para o mais grave, o legislador exija a presena de um nmero menor de agen-tes do que para o menos grave.

    Mas a incongruncia no s essa.Como se sabe, recente alterao legislativa promoveu profundas e marcantes

    alteraes, na seara processual penal, no tocante priso e s medidas cautelares18.Nessa ordem de ideias, de acordo com a nova sistemtica apresentada, con-

    sentneo com a nova redao conferida ao art. 313 do Cdigo de Processo Penal19, somente ser admitida a decretao da priso preventiva nos crimes dolosos puni-dos com pena privativa de liberdade mxima superior a 4 (quatro) anos.

    Ora, cotejando-se o art. 2, da Lei n 12.694/2012, com a nova roupagem do art. 313, inc. I, do Cdigo de Processo Penal, fica a pergunta: pode ser decretada a priso preventiva de agente que, integrante de associao criminosa composta, ao todo, por trs agentes, pratique crime doloso, punido com recluso com pena priva-tiva de liberdade igual a 4 (quatro) anos?

    Nova incongruncia. A Lei n 12.694/2012, de forma expressa, considera grave a infrao penal punida com pena igual ou superior a 4 (quatro) anos, mas, de outro vrtice, a nova sistemtica conferida s disposies processuais que cuidam dos fundamentos e requisitos da priso preventiva nega a possibilidade de, nesses casos, ser decretada a priso preventiva.

    16. Art. 2. Para os efeitos desta Lei, considera-se organizao criminosa a associao, de 3 (trs) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela diviso de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prtica de crimes cuja pena mxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de carter transnacional.

    17. Art. 288. Associarem-se mais de trs pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes.18. Lei n 12.403, de 4 de maio de 2011.19. Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Cdigo, ser admitida a decretao da priso preventiva: I nos

    crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade mxima superior a 4 (quatro) anos.

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    Pergunta-se, finalmente: como combater a criminalidade organizada, de for-ma minimamente eficiente, manejando-se essas ferramentas legais?

    Mais uma vez, com as escusas pela odiosa repetio, faltam coerncia, uni-dade e completude, predicados necessrios para que se identifique, em um conjunto de leis, verdadeiro sistema, e no uma colcha de retalhos. A ineficincia, pois, no pode ser atribuda nica e to-somente aos mtodos especiais de investigao crimi-nal, ou, mais amide, delao premiada.

    O srio e comprometido enfrentamento da criminalidade organizada recla-ma, pois, uma nova leitura, vale dizer, uma leitura prpria e minimamente compro-metida com os interesse sociais20.

    Irretocvel, para sintetizar essas ponderaes, a oportuna lio de Antonio Carlos da Ponte:

    Atualmente, o combate a determinadas prticas criminosas, como o narcotr-fico; a criminalidade organizada; a lavagem de dinheiro; os crimes que aten-tam contra bens difusos e coletivos; os crimes eleitorais, dentre outros, exige uma nova leitura do Direito Penal que permite, por vezes, a flexibilizao de algumas garantias constitucionais em busca de um valor maior, representado pela Justia Social. Caso todos os direitos e garantias individuais previstos em nosso texto constitucional fossem considerados de forma absoluta, certamente no existiriam meios eficazes de combate s formas de criminalidade indica-das. Medidas excepcionais e, por vezes, necessrias, como a quebra de sigilo fiscal, telefnico e telemtico seriam consideradas prticas ilegais; o mesmo acontecendo com a infiltrao de agentes em organizaes criminosas; a de-lao premiada que resultasse em perdo judicial, etc.21

    2. CRIME ORGANIZADO E PROIBIO DA PROTEO PENAL INSUFICIENTE

    Debruando-se sobre a ideia de princpio, o jurista22 encontrar, ao longo da histria recente da Cincia do Direito, trs fases evolutivas distintas.

    20. Enfrentando os limites do ius puniendi em um Estado social, Santiago Mir Puig aponta que O Direito penal de um Estado social justifica-se como um sistema de proteo da sociedade. Os interesses sociais que por sua importncia merecem a proteo do Direito so denominados bens jurdicos. Diz-se, en-to, que o Direito penal s pode proteger bens jurdicos. A expresso bem jurdico utilizada, neste contexto, em seu sentido poltico-criminal de objeto que pode reclamar proteo jurdico-penal, em contraposio a seu sentido dogmtico, que se refere aos objetos que, de fato, protege o Direito penal vigente.(Direito Penal: fundamentos e teoria do delito. Trad. de Cludia Viana Garcia e Jos Carlos No-bre Porcincula Neto. So Paulo: RT, 2007. p. 95).

    21. Crimes Eleitorais. So Paulo: Saraiva, 2008. p. 164.22. Por questes terminolgicas, emprestaremos palavra jurista o mesmo sentido amplo a ela conferido

    por Genaro R. Carri, para quem o termo comprende no slo a los cultores de la dogmtica jurdica, sino tambin a los tericos del derecho poltico y a los filsofos del derecho. (Notas sobre Derecho y Lenguage. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1994. p. 91).

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    A primeira delas reconhece nos princpios jurdicos todo e qualquer assunto de importncia geral. Esse conceito, extremamente vago e no tcnico, deve ser abandonado.

    A segunda fase, de outro giro, conferindo contornos mais tcnicos ao concei-to sub examine, enxerga nos princpios jurdicos elementos estruturantes do sistema normativo. Introduz, portanto, a noo de sistema, que, de acordo com o bilogo Ludwing von Bertalanffy, um complexo de elementos em interao23.

    Desenvolvendo o conceito de sistema, Geraldo Ataliba, citado por Ricardo Marcondes Martins, assinala que:

    O carter orgnico das realidades componentes do mundo que nos cerca e o carter lgico do pensamento humano conduzem o homem a abordar as rea-lidades que pretende estudar, sob critrios unitrios, de alta utilidade cientfica e convenincia pedaggica, em tentativa do reconhecimento coerente e har-mnico da composio de diversos elementos em um todo unitrio, integrado em uma realidade maior. A esta composio de elementos, sob perspectiva unitria, denomina-se sistema24.

    E justamente nesse contexto que Celso Antnio Bandeira de Mello con-ceituou o princpio jurdico como mandamento nuclear de um sistema, chegando a afirmar que:

    violar um princpio muito mais grave que transgredir uma norma. A desateno ao princpio implica ofensa no apenas a um especfico mandamento obrigatrio, mas a todo o sistema de comandos. a mais grave forma de ilegalidade ou in-constitucionalidade, conforme o escalo do princpio violado, porque representa insurgncia contra todo o sistema, subverso de seus valores fundamentais, con-tumlia irremissvel a seu arcabouo lgico e corroso de sua estrutura mestra25.

    J na terceira fase e ltima fase dessa linha evolutiva, o conceito de princpio jurdico assume nova roupagem. Aqui, o gnero normas jurdicas subdividido em duas espcies: regras e princpios jurdicos.

    Nessa quadra, Robert Alexy ensina que:O ponto decisivo na distino entre regras e princpios que princpios so normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possvel den-tro das possibilidades jurdicas e fticas existentes. Princpios so, por con-seguinte, mandamentos de otimizao, que so caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfao no depende somente das possibilidades fticas, mas tambm das possibilidades jurdicas. O mbito das possibilidades jurdicas determinado pelos princpios e regras colidentes26.

    23. Teoria Geral dos Sistemas: fundamentos, desenvolvimento e aplicaes. Trad. de Francisco M. Guima-res. 3 edio. Petrpolis: Vozes, 2008. p. 58.

    24. Abuso de Direito e a Constitucionalizao do Direito Privado. So Paulo: Malheiros, 2010. p. 23.25. Curso de Direito Administrativo. 28 edio. So Paulo: Malheiros, 2011. p. 54.26. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. de Virglio Afonso da Silva. 2 edio. 2 tiragem. So Paulo:

    Malheiros, 2012. p. 90.

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    Ora, ao promover a distino entre regras e princpios, o jurista alemo iden-tifica, nessa mesma linha de inteleco, critrios distintos para a soluo de conflitos entre regras e colises entre princpios.

    De acordo com referido jurista,Um conflito entre regras somente pode ser solucionado se se introduz, em uma das regras, uma clusula de exceo que elimine o conflito, ou se pelo menos uma das regras for declarada invlida. (...). As colises entre princpios devem ser solucionadas de forma completamente diversa. Se dois princpios colidem o que ocorre, por exemplo, quando algo proibido de acordo com um princ-pio e, de acordo com outro, permitido , um dos princpios ter que ceder. Isso no significa, contudo, nem que o princpio cedente deva ser declarado invli-do, nem que nele dever ser introduzida uma clusula de exceo. Na verdade, o que ocorre que um dos princpios tem precedncia em face do outro sob determinadas condies. Sob outras condies a questo da precedncia pode ser resolvida de forma oposta. Isso o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princpios tm pesos diferentes e que os princpios com peso maior tm precedncia. Conflitos entre regras ocorrem na dimenso da validade, enquanto as colises entre princpios visto que s princpios vlidos podem colidir ocorrem, para alm dessa dimenso, na dimenso do peso27.

    Com efeito, no Captulo III de sua Teoria dos Direitos Fundamentais, Robert Alexy aponta a existncia de trs modelos distintos de regras e princpios: o modelo puro de princpios, o modelo puro de regras e o modelo hbrido de regras e princ-pios. E, concluindo pela insuficincia dos modelos puros, obtempera que:

    As disposies de direitos fundamentais podem e com isso se adentra o segundo nvel ser consideradas no somente como uma positivao e uma deciso a favor de princpios, mas tambm como a expresso de uma tentativa de estabelecer determinaes em face das exigncias de princpios contra-postos. Dessa forma, elas adquirem um carter duplo. De um lado, princpios so positivados por meio delas; mas, de outro lado, elas contm determina-es em face das exigncias de princpios contrapostos, na medida em que apresentam suportes fticos e clusulas de restrio diferenciados. Essas de-terminaes tm, contudo, um carter incompleto, j que por meio delas no so possveis decises independentes de sopesamento em todo e qualquer caso. Alm disso, as diferentes regulaes constitucionais tm um grau de determinao bastante diversificado. Basta comparar a regulao da liberdade artstica com a da inviolabilidade do domiclio28.

    Destarte, a distino feita pelo autor alemo entre regras e princpios assume especial importncia quando se prope srio e comprometido estudo dos direitos fundamentais, notadamente seu contorno restritivo.

    Essa construo doutrinria permite conferir aos direitos fundamentais va-lores relativos, passveis de ponderao, abandonando a ideia de valores absolutos que, por vezes, servem de base para a implantao de regimes totalitrios.

    27. Op. Cit. p. 92/94.28. Op. Cit. p. 139.

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    Nesse mesmo vrtice, enfrentando a tenso existente entre os direitos fun-damentais dos acusados criminais e a eficincia do poder punitivo do estado, Jos Paulo Baltazar Junior assim leciona:

    Os direitos, ainda que fundamentais, no so absolutos, sendo inerente vida em sociedade a necessidade de restries, limitaes ou intervenes, o que amplamente admitido, at mesmo pela necessidade de compatibilizar o exerccio dos direitos fundamentais com outros bens jurdicos protegidos pela Constituio, com o interesse da coletividade, ou com direitos fundamentais de terceiros, na busca da concordncia prtica, que tenciona fazer com que os di-reitos fundamentais em coliso cheguem ao ponto timo possvel de eficcia29.

    Dessa forma, usualmente empregados como limites atuao do poder puniti-vo do Estado, os direitos fundamentais, ao conterem uma dupla face, tambm devem representar imperativos de tutela. Compete ao prprio estado, pois, assumir postura proativa e, assim, assegurar, frente a ameaas de terceiros, inclusive particulares, inter-veno mxima para a efetividade das garantias individuais. Essa leitura constitucional do Direito Penal reclama, em um estado social e democrtico de direito, em ltima anlise, a necessidade de sua interveno para a salvaguarda de direitos fundamentais.

    No por outra razo que, apresentando fundadas crticas projeo do garantismo penal, Luciano Feldens bem observa que:

    Ferrajoli mais lembrado no Brasil por assumir uma concepo minimalista de Direito Penal, estruturada em torno de um Direito Penal eminentemente nuclear, cuja legitimidade apenas se perfaria na exclusiva proteo de bens ju-rdicos primrios. Convm notar, entretanto, que em sua teoria do garantismo Ferrajoli serve-se de uma concepo de direitos fundamentais. Precisamente de uma concepo unidirecional, onde os direitos fundamentais so dotados de uma eficcia meramente negativa (funcionando direitos oponveis contra o Estado), e tem-na como suficiente para sustentar sua concepo de garantismo penal. No particular, a teoria de Ferrajoli no padece de qualquer incoerncia interna. Apenas que ela retrata um modelo de Direito Penal que se estrutura base de uma determinada concepo de direitos fundamentais que se traduz em uma determinada verso de garantismo, a qual no parece corresponder multifuncionalidade que o constitucionalismo atual empresta aos direitos fundamentais. Da por que o discurso penal de Ferrajoli no se confunde com o garantismo. Ou pelo meno com ele no se confunde totalmente. Dizendo de outro modo: embora inequivocamente exista garantismo em Ferrajoli, o garantismo no se reduz compreenso que dele faz Ferrajoli30.

    Nesse mesmo trilho, confira-se Maria Luiza Schfer Streck:

    enquanto os penalistas ligados teoria garantista clssica liberal-iluminista se seguram no princpio da proibio do excesso (bermassverbot), os garantis-

    29. Crime Organizado e Proibio de Insuficincia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 35.30. Direitos Fundamentais e Direito Penal: a constituio penal. 2 edio. Porto Alegre: Livraria do Advo-

    gado, 2012. p. 55/56.

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    tas positivos sustentam que existe um espcie de lado B da proporcionali-dade para utilizar a terminologia tradicional -, que o princpio da proibio de proteo deficiente (Untermassverbot). Neste momento, no estamos mais tratando com o modelo clssico de proibio, mormente porque este conduz a funo tradicional dos direitos fundamentais: direitos unicamente de defesa. A nova fase assumida pelo estado democrtico de direito implicou novo pro-cesso de proteo dos direitos, agora inseridos em um contexto de complexi-dade social, surgido no decorrer do sculo 2031.

    Sem perder o nosso foco, identifica-se que justamente na relao proces-sual penal que a tenso existente entre a liberdade do cidado e o poder punitivo do Estado ganha maiores embates. justamente nela que lidamos com a coliso de princpios e com a necessidade da ponderao. nela, em sntese, que direitos individuais podem e devem ser restringidos para que se garanta a efetiva imple-mentao de outros bens e valores fundamentais igualmente previstos no texto constitucional32.

    nesse contexto que a colheita da prova no mbito da criminalidade organi-zada e, por corolrio, sua valorao, devem receber um olhar diferenciado daquele lanado para a anlise dos elementos de convico produzidos no mbito da crimi-nalidade comum.

    Os modelos no so os mesmos. Impe-se, aqui, a necessidade de um novo e atento olhar pessoa jurdica criminosa, seja ela de direito pblico ou de direito privado, interno ou externo e, nesse trilho, aos atos de preparao. Cuidando-se de criminalidade organizada, fora convir que no o Estado que se apresenta como transgressor e violador de preceitos fundamentais. Os centros de agresso, ao revs, so outros que, por vezes, tambm desenvolvem atividades lcitas, apresentando-se, prima facie, distantes de qualquer suspeita.

    Nessa toada, a leitura tradicional dos direitos fundamentais como exclusivos direitos de defesa se afasta da proibio da proteo penal insuficiente que identifi-ca, nesses mesmos direitos, um contedo jurdico-objetivo, vale dizer, direcionados sua concretizao.

    Mais uma vez, com muita didtica e clareza, Jos Paulo Baltazar Jnior es-clarece que:

    enquanto os direitos fundamentais como direitos de defesa contribuem para a manuteno do status quo, dos direitos fundamentais como direitos objetivos

    31. Direito Penal e Constituio: a face oculta da proteo dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 94.

    32. No ponto, Omar Gabriel Orsi anota que En un sentido genrico puede decirse que las normas pro-cesales, aunque tan leyes como las de fondo, ocupan incluso un rango superior, pues reglamentan la Constitucin Nacional de manera directa, en punto a cuidar la aplicacin de las diversas garantias que aqulla prev y de las cuales goza todo ciudadano sometido a proceso:en otras palavras, el derecho procesal no es un simple medio para aplicar el derecho de fondo, sino un fin en s mismo. (Sistema Penal y Crimen Organizado: estrategias de aprehensin y criminalizacin del conflito.Ciudad Autnoma de Buenos Aires: Del Puento, 2007. p. 129).

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    deriva um impulso de mudana, estando voltados ao futuro, enquanto aqueles esto voltados ao passado e tm funo conservadora33.

    No basta, pois, que se identifique nos direitos fundamentais apenas sua tra-dicional funo negativa de limitao do poder estatal face ao indivduo. Isso mui-to pouco quando se preciso combater, com seriedade, crime organizado. preciso mais. Devemos desvendar nos direitos fundamentais sua face oculta, vale dizer, deles retirar seu oculto vu revelador de uma face voltada proteo de bens jurdico-penais.

    3. O COMBATE AO CRIME ORGANIZADO COMO UMA qUESTO DE POLTICA CRIMINAL

    equivocado achar que o Direito Penal no tem ideologia. Persiste no equvo-co o intrprete que no enxerga, no Direito Penal, a existncia de variadas concepes polticas que, nesse sentido, variam de acordo com o modelo de estado adotado34.

    Com efeito, o Direito Penal pode encontrar diferentes concepes polticas como fundamento. Em um Estado totalitrio ter caractersticas intervencionistas. J em um estado democrtico, o Direito Penal assumir papel reconhecidamente garantista. A ttulo meramente exemplificativo, extrai-se do art. 3, do Cdigo Penal Sovitico de 1922, a expressa retroatividade da lei penal como forma de alcanar todos os atos antirrevolucionrios que, antes da sua vigncia, no estavam previstos como crime. Do mesmo modo, na China, a retroatividade da lei penal era vigente at o advento do atual Cdigo Penal, em vigor desde 1 de janeiro de 1980.

    Nas palavras de Georg Dahm e Friedrich Schaffstein, catedrticos da Univer-sidade de kiel:

    Quien reconoce a los indivduos (ms precisamente: su libertad o igualdad o bienestar) como valor supremo y nico decidir de distinto modo que quien junto y sobre stos, considera determinantes para el orden jurdico los valores supraindividuales. Dado que el Estado ha pretendido desde la Edad Media reclamar la exclusividade de la punicin de los criminales, el sentido y el contenido de la pena han sido necessariamente determinados pro el sentido y el contenido del Estado. Desde entonces, la historia del derecho penal refleja la historia de la idea del Estado35.

    Ocorre que, conforme j adiantado, o enfrentamento da criminalidade or-ganizada reclama uma nova leitura das relaes processuais e do prprio Direito

    33. Op. Cit. p. 51.34. Antonio Carlos da Ponte observa que O Direito Penal possui ideologia e esta deve servir um modelo de

    sociedade. A ideologia do Direito Penal, em um Estado Democrtico de Direito, no a mesma ideologia adotada em um Estado Autoritrio. Essa diferena conceitual e de fundamentos serve demonstrao de que a dogmtica penal no pode ser interpretada de forma neutra e descompromissada, como se estivesse acima dos fundamentos da sociedade. (Op. Cit. p. 145).

    35. Derecho Penal Liberal o Derecho Penal Autoritrio? Trad. de Leonardo G. Brond. 1 edio. Buenos Aires: Ediar, 2011. p. 61).

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    Penal. A construo jurdica dessa problemtica exige, outrossim, um olhar diferen-ciado sobre os tradicionais dogmas da autoria, coautoria e participao, dos atos preparatrios no punveis e dos limites da flexibilizao de garantias individuais.

    Exige, pois, a adoo de uma nova e reformulada poltica criminal, entendida aqui como uma atividade do estado que tem por objetivo identificar de que forma e em que medida o Direito Penal deve ser empregado no combate criminalidade organizada36.

    Como bem observa Guillermo J. Yacobucci:

    la nocin de crimen organizado es antes un produto de poltica criminal que uma necesidad de la teoria del delito o de la consideracin dogmtica. Esto quiere decir que la capacidade de rendimento del concepto es predominan-temente poltica antes que cientfica. Supone, pues una idea, elaborada con critrios de naturaliza comunicativa y simblica que sirven para brindar los fundamentos de una poltica de lucha con caracteres de excepcionalidad o emergencia37.

    Nessa linha, impende destacar que de nada adiantar uma nova poltica cri-minal, acompanhada de novos textos legais, se as tcnicas hermenuticas de inter-pretao dessa nova ordem jurdica forem as mesmas empregadas para o enfrenta-mento da criminalidade comum. A interpretao dessa legislao, luz da doutrina da proibio da proteo penal insuficiente, medida que se impe. tarefa que compete, pois, nossa jurisprudncia.

    Ademais, no se pode olvidar que, quando se fala em poltica criminal para o enfrentamento da criminalidade organizada, no se pode restringir o campo de atuao para aes meramente locais ou regionais. As aes praticadas por tais gru-pos no se restringem s fronteiras de seus municpios, estados e at mesmo pases. Poltica criminal localizada no poltica criminal.

    CONCLUSO

    Em um momento histrico em que a comunidade jurdica se debrua sobre o texto do Projeto de Lei do Senado n 236, de 2012 Anteprojeto de Cdigo Pe-nal , apontando seus acertos e desacertos, buscou-se analisar, ainda que de forma no aprofundada, algumas das dificuldades existentes no enfrentamento da crimi-nalidade organizada e, nessa seara, provocar a reflexo. Para tanto, identificou-se a delao premiada como mtodo especial de investigao criminal e, sem olvidar

    36. Paulo Csar Busato e Sandro Montes Huapaya assinalam que a Poltica Criminal pode ser entendida como uma atividade do Estado e, por outro lado, se lhe pode considerar como uma atividade cientfi-ca, que tem como objeto o estudo da postura poltica assumida pelo Estado em todas as fases de sua atividade relacionada com o crime. (Introduo ao Direito Penal: fundamentos para um sistema penal democrtico. 2 edio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 16).

    37. El Crimen Organizado: desafios y perspectivas en el marco de la globalizacin. Ciudad de Buenos Aires: baco de Rodolfo Depalma, 2005. p. 69.

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    das crticas que o instituto carrega, apontou-se para a necessidade de sua mnima padronizao para que, manejado com correo, possa produzir maiores e melho-res frutos nesse contexto.

    Nesse vrtice, reforou-se a ideia de que eventual ineficincia no combate criminalidade organizada no pode ser creditada nica e exclusivamente delao premiada. A dificuldade maior est na falta de coerncia, unidade e completude do nosso sistema jurdico-penal.

    O combate criminalidade organizada reclama, pois, uma nova postura de poltica criminal. O Direito Penal deve proporcionar proteo jurdica a bens e va-lores que so caros a um estado social e democrtico de direito e, evidncia, no se presta a sustentar oportunos discursos polticos de ocasio.

    Emerge, pois, quando se fala em crime organizado, a necessidade de uma nova leitura do Direito Penal, uma leitura que, tendo por fundamento o texto cons-titucional, passe pela necessidade de anteviso do risco, pela anlise mais detida da pessoa jurdica criminosa, e, nesse contexto, pelo fortalecimento das investigaes autnomas do Ministrio Pblico.

    Somente assim, com coerncia, caminharemos para a maior efetividade do Direito Penal como verdadeiro instrumento de poltica criminal.

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    Submetido: 29/11/2012Aceite: 5/12/2012