53114369 resenha da era dos extremos

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    Talvez o maior mrito do livro A era dos extremos de

    Hobsbawm seja transmitir uma forte impresso do tamanho da catstrofe

    humana que foi o sculo XX. Catstrofe em relao s mortandades

    gigantescas, sem equiparao possvel com qualquer perodo histrico

    anterior. Catstrofe em relao desvalorizao do indivduo, ao qual,

    durante longos momentos do sculo, foram negados todos os direitos

    humanos e civis, que haviam sido arduamente conquistados durante o

    longo sculo precedente: 1789 -1914.Alis, a impresso de catstrofe forte justamente porque o

    perodo histrico anterior se marcara em todas as mentes como o sculo

    que colocara a idia do progresso como inevitabilidade, no s em

    termos materiais, mas tambm em relao ao avano das liberdades,

    apesar das monarquias e das foras conservadoras, que resistiam

    tenazmente desde a Revoluo Francesa. Hobsbawm incita colocao de uma pergunta, que seu livro

    no consegue responder: como foi possvel chegar a isso? Como foi

    possvel descer tanto na escala da civilizao, apesar de uma vitria to

    gigantesca para as foras progressistas como a Revoluo Russa de

    1917? Hobsbawm no pretendia mesmo responder a tudo. Mas incitar o

    leitor a se fazer perguntas dolorosas j um mrito inestimvel. Asdeficincias do livro esto mais no enfoque adotado na abordagem de

    alguns temas importantes.O ano de 1917, explica Hobsbawm, pretendia ser o incio da

    revoluo mundial. E, desse modo, foi visto por milhes de pessoas,

    mesmo em pases longnquos. Apesar disso, Hobsbawm acha que o

    mundo no estava maduro para uma revoluo proletria naquele

    momento. possvel que seja uma suposio vlida; e no fcil provar

    o contrrio. Mas cabe perguntar: ser que algum dia haver umarevoluo que atinja imediatamente os principais pases do mundo?

    Talvez o problema a resolver no seja por que a Revoluo de 1917 no

    se espalhou imediatamente pelo mundo, mas antes por que a chama da

    revoluo proletria pde ser to rapidamente submergida por uma vaga

    reacionria mundial. Vaga que Hobsbawm mostra detalhadamente ser

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    mais ampla que os movimentos baseados explicitamente no modelo

    italiano ou alemo de fascismo. Em todo o caso, verificou-se concretamente que os

    bolcheviques ficaram isolados e encurralados numa revoluo nacional,

    cuja preocupao passou a ser logo a simples sobrevivncia. Fat o

    consumado. Mas o problema aqui que Hobsbawm faz uma ligao

    direta entre a sobrevivncia da Revoluo Russa e a sobrevivncia de

    uma unidade poltica abrangendo todo o antigo Imprio Russo. Essa

    ligao s teria sentido na perspectiva de uma "revoluo socialista num

    s pas", caso em que o tamanho do pas uma questo vital.

    Hobsbawm, porm, parece no acreditar na viabilidade da revoluo

    socialista s na Rssia.

    Ento seria o caso de fazer a distino necessria: revoluo

    mundial e sobrevivncia da unidade do Imprio ex-czarista eram coisas

    diferentes e mesmo contrrias. Alis, o governo bolchevique, em sua

    primeira fase, no pretendia impor -se sobre todo o ex -Imprio. Nessa

    fase que foram concedidas, sem conflito, as independncias da

    Finlndia, da Polnia e dos Estados Blticos, todos anteriormente

    provncias do Imprio Russo. Nenhum desses novos pases declarou-se

    socialista. Nem por isso, o governo bolchevique se achou na obrigao

    de impedir sua independncia. No perceber a contradio entre revoluo e imprio faz

    Hobsbwam valorizar a disciplina bolchevique de modo acrtico,

    misturando disciplina consciente e arregimentao cega, alm de atribuir

    aos bolcheviques, objetivos que estes no se davam antes de 1921.

    Manter o Imprio havia sido objetivo central do czar e da impotente

    burguesia russa (impotente em parte porque se submetia ao czar e por

    amor ao Imprio), no era objetivo dos revolucionrios. Sem perceber isso, no d para entender como foi possvel

    que, aps uma revoluo da importncia da de 1917, que despertou na

    humanidade as imensas esperanas descritas por Hobsbawm no captulo

    doze, tenha sido imediatamente seguida do mais profundo retrocesso

    poltico do sculo. Apenas a no-extenso da Revoluo Russa no

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    suficiente para explicar isso. A Revoluo Francesa terminou militarmente

    derrotada. Nem por isso deixou de exercer influncias libertrias que as

    prprias monarquias contra-revolucionrias tiveram que levar em conta

    para sobreviver.

    J no caso da Revoluo de 1917, ocorre o contrrio. Cerca

    de dez anos depois desce a mais negra noite de todos os tempos:

    "meia-noite do sculo", disse Victor Serge, sem que o partido que dirigira

    a Revoluo Russa tivesse perdido o poder. Alguma coisa de muito

    essencial deve ter deixado de funcionar, sob a mscara de uma falsa

    continuidade poltica. E deve ter sido uma reviravolta muito mais grave e

    profunda que o Thermidor da Revoluo Francesa. As conseqncias disso se fizeram sentir antes, durante e no

    fim da Segunda Guerra Mundial. Hobsbawn descreve os sofrimentos

    causados pela Guerra como mero resultado das prprias operaes

    militares. Mas nem tudo foi resultado inevitvel do simples uso do poder

    destrutivo disponvel na poca. Na Primeira Guerra Mundial no se havia

    visto ato to sanguinrio como o massacre de quatro mil prisioneiros

    poloneses, por ordem de Stalin, em 1940. A Paz de 1945 repetiu as

    barbaridades da Paz de Versalhes com aumento, apesar da participao

    da potncia socialista entre os vencedores de 1945.

    A maior parte dos deslocamentos de povos no fim da ltima

    guerra foi puro revanchismo, com carter explcito de limpeza tnica. Por

    incrvel que parea, no fim da Primeira Guerra Mundial foi possvel ver um

    presidente burgus: Woodrow Wilson, dos EUA ridicularizado por

    Lenin , pregar uma paz sem anexaes.

    No fim da Segunda Guerra Mundial, no houve voz contra o

    revanchismo. Treze milhes de alemes foram expulsos da Europa

    oriental e central, com o nico objetivo de aumentar o lebensraum eslavo.Foram expulsos simplesmente pelo fato de serem alemes. de Stalin a

    frase: "Um alemo s bom, morto". No disse um nazista. Assim, o que

    W. Wilson no havia conseguido em 1919 ser levado a srio como

    campeo da democracia da autodeterminao dos povos foi

    conseguido por Roosevelt e Truman sem muito esforo. Porque estes

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    tinham em frente, como termo de comparao, a URSS, no mais a

    Rssia revolucionria dos tempos de Wilson. Hobsbawm d uma grande importncia depresso dos anos

    30 como determinante dos rumos polticos da poca. A depresso teria

    tido um papel decisivo em fazer da democracia "uma planta frgil", em

    muitos pases. Isso at tem um fundo de verdade. Mas no possvel

    entender completamente a fragilidade da democracia no entreguerras

    sem lembrar o progressivo afastamento entre luta por liberdades

    democrticas e luta pelo socialismo, praticado pela III Internacional desde

    o comeo.

    Essa prtica depois teorizada para justificar o despotismo

    stalinista fez que o segmento importante do movimento operrio

    deixasse de ser um baluarte contra os movimentos restauracionistas da

    ordem social, gerados pelo capitalismo em crise. Antes de 1914, todo o

    movimento socialista fora tambm um movimento libertrio. Alm disso,

    para Hobsbawm, o impacto da depresso teria sid o a grande fora

    renovadora das idias econmicas da poca, porque a depresso teria

    desacreditado o pensamento econmico clssico, abrindo espao para as

    polticas de regulao do capitalismo posteriores. Especialmente em

    razo desse descrdito da ortodoxia econmica, no segundo ps-guerra,

    os "formuladores de decises", como diz Hobsbawm, passaram a ter

    preocupaes centrais: obter uma distribuio de renda mais igualitria

    do que a normalmente ensejada pelo capitalismo puro e evitar grandes

    nveis de desemprego.Hobsbawm se deixa levar muito facilmente pela crena na

    racionalidade dos "formuladores de decises" capitalistas. Ele chega a

    ponto de chamar de reforma do capitalismo" a adoo das polticas de

    pleno emprego e bem-estar social no segundo ps-guerra. Tal reforma definida por ele como "essencialmente uma espcie de casamento entre

    liberalismo econmico e democracia social". Um pouco de resguardo

    seria melhor.Em situaes de grande perigo social, os "formuladores de

    decises" instalados no poder tendem fortemente a dividir-se entre dois

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    tipos bsicos de sada, conforme suas inclinaes pessoais: partir para o

    enfrentamento com os movimentos reivindicatrios ou partir para

    concesses. Ora, no fim da Segunda Guerra Mundial, o perigo para o

    capitalismo era uma realidade assustadora.

    Diferentemente do que ocorrera na vez anterior, nenhum pas

    em guerra da Europa ocidental, exceto a Gr -Bretanha, conseguira

    manter de p o aparelho de Estado capitalista. Todos os demais pases

    beligerantes emergiram da Guerra com aparelhos de Estado

    improvisados, em que se misturavam instituies criadas pela resistncia

    antifascista e instituies de emergncia criadas pelos exrcitos de

    ocupao. Em vrias regies, houve zonas liberadas por partisans antes

    da chegada dos exrcitos regulares. Tentar impor solues capitalistas

    ortodoxas naquela parte da Europa, naquela poca, seria realmente

    demncia suicidria.

    Razo pela qual todos os economistas com a tarefa de se

    dirigir ao grande pblico viraram subitamente h umanistas sensveis. Para

    explicar suas mudanas de opinio, economistas antes conhecidos como

    empedernidos mastigadores de fatores de produo, passaram a falar

    nas tristes recordaes da Grande Depresso. Mas as tristes

    recordaes no explicavam tudo. Hobsbawn observa, pertinentemente, que os resultados da

    Segunda Guerra Mundial retiraram a extrema-direita do cenrio poltico

    por um bom tempo. No fim da Guerra, s os "formuladores de decises"

    dispostos a fazer concesses tinham voz e audincia. isso que mais

    explica por que foi to fcil fabricar um pacto aceitvel para trabalhadores

    e patres, ento alados categoria nova de parceiros sociais.

    Chamar essas concesses de "reformas do capitalismo"

    exagera seu alcance e objetivos. As polticas de bem-estar social e plenoemprego do segundo ps-guerra foram uma resposta adequada a uma

    situao poltica em que o sistema capitalista se encontrava

    extremamente fragilizado na Europa ocidental, ao passo que a oriental

    estava ocupada pela URSS.

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    menos tentar uma explicao que comeasse a abordar esse equvoco,

    partilhado pela direita e pela esquerda, quanto ao carter e, sobretudo,

    viabilidade do "socialismo real". Em certo ponto do livro, Hobsbawm parece reconhecer que o

    regime sovitico era invivel: "A tentativa de construir o socialismo

    produziu conquistas notveis no menos a capacidade de derrotar a

    Alemanha na Segunda Guerra Mundial , mas a um custo enorme e

    inteiramente intolervel, e daquilo que acabou se revelando uma

    economia sem sada."As "conquistas notveis", no caso, esto todas ligadas

    industrializao da URSS, que chegou a alar-se condio de segunda

    potncia industrial do mundo, partindo praticamente do zero no fim da

    Guerra Civil, em 1920. Entretanto, o fato de que essa industrializao

    terminou num beco sem sada recoloca o problema do valor do mtodo

    escolhido ou de algum equvoco fundamental que deve ter havido em

    suas origens; ou surgido em algum ponto de sua edificao. Para tentar uma primeira resposta, poder-se-ia inquirir se uma

    industrializao obtida a chicote pode ter vida longa. O senso comum j

    suficiente para suspeitar que o chicote no bom instrumento para

    desenvolver a criatividade. O chicote pde fazer a URSS alcanarmomentaneamente o Ocidente, mas no ultrapass-lo. A coero

    desmesurada j continha os germens da estagnao tecnolgica que

    levaria a URSS ao impasse mais tarde. Isso pode ser afirmado, mesmo

    que se queira aceitar o chicote como "motor" vlido para a construo de

    algum "socialismo" monstico de baixo consumo. De qualquer maneira,

    no caso da URSS real, interessa ressaltar que o resultado alcanado foi

    provisrio. Sua industrializao avanava inexoravelmente para um beco

    sem sada.No entanto, apesar de reconhecer que o resultado final da

    industrializao stalinista foi a "economia sem sada", Hobsbawm

    mantm-se apegado idia de que a URSS no teria outro caminho a

    seguir nos anos 20-30: "Qualquer poltica rpida de modernizao da

    URSS, nas circunstncias da poca, tinha que ser implacvel e, porque

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    imposta contra o grosso do povo, impondo -lhe srios sacrifcios,

    coercitiva em certa medida."A prpria frase "poltica (...) coercitiva em certa medida"

    deixa no ar uma questo: em que medida? Aquela medida de coero foi

    correta? Mais lgico, luz do que Hobsbawm sabe hoje, seria dizer que

    talvez alguma coero fosse inevitvel "nas circunstncias da poca",

    porm a coero stalinista provou ser incompatvel com uma

    industrializao inovadora e sustentvel a longo prazo. Ou, at mesmo,

    poderia continuar achando que, em 1929, no houvesse um caminho

    muito diferente disposio de Stalin, mas para ser coerente com sua

    prpria concluso final sobre a economia sovitica, Hobsbawm deveria

    tambm lembrar que o governo da URSS tinha que encontrar um meio de

    dispensar a coero "contra o grosso do povo", o mais cedo possvel, se

    quisesse manter a economia vivel. Sobra a impresso de que, a respeito da URSS, o arrazoado

    de Hobsbawm , em parte, emotivo. Isso transparece mais fortemente na

    convalidao implcita das palavras de Oskar Lange em seu leito de

    morte: "Havia uma alternativa para a corrida indiscriminada, brutal,

    basicamente no planejada, ao primeiro plano qinqenal?. Gostaria de

    dizer que havia, mas no posso." Hobsbawm parece no se dar conta que Oskar Lange, um

    defensor da economia planificada, morreu em 1965, ou seja, morreu a

    tempo de levar consigo suas convices intactas. Os que morreram ou

    vieram a morrer depois de 1991 no tm mais esse privilgio, a no ser

    que, de 1989 em diante, tenham passado a circular de olhos vendados. Alm do mais, j antes do desabamento da URSS, surgiram

    novas informaes sobre os anos 30, que O. Lange no chegou a

    conhecer. Informaes que Hobsbawm mostra ter, ao sugerirveladamente que, somente para o Segundo Plano Qinqenal (1933 -

    1937), poder-se-ia fazer uma estimativa de 16,7 milhes de mortos,

    vtimas da fome e da represso. Isso inferido da constatao do

    decrscimo da populao da URSS no perodo do plano; informao

    classificada como secreta em 1938. Quer dizer: Stalin proibiu a

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    divulgao das estatsticas demogrficas do Segundo Plano Qinqenal

    porque estas depunham contra sua "vitria econmica". As informaes que se tm hoje sobre os anos 30 so

    arrasadoras. Mesmo continuando a aceitar que a URSS no poderia

    dispensar a imposio de sacrifcios ao povo naquela poca, sobra base

    mais que suficiente para afirmar, em 1990, que aquela coero foi de

    eficcia imediata altamente duvidosa, alm de comprovadamente nefasta

    para o desenvolvimento futuro da URSS.

    Nessa questo da suposta necessidade histrica do

    stalinismo, talvez melhor seja deixar falar Moshe Lewin que, j em 1965 ,

    escreveu um artigo para a revista Soviet Studies, na qualonde, aps

    descrever detalhadamente a enorme perda de energia humana e de

    meios materiais gerada pelos zigue-zagues desastrosos de Stalin durante

    a coletivizao da agricultura, conclui: "Se certo que a industrializao

    devia acarretar mudanas profundas no campo, falso, a nosso ver,

    imaginar que tais mudanas s poderiam ser feitas atravs daquela

    coletivizao que a Rssia experimentou. Por que fazer do kolkhoz a

    nica forma de explorao coletiva, quando as estruturas aldes

    sugeriam outras solues? (...) Pretender que a liquidao da esquerda,

    adepta entusiasta da coletivizao e da poltica antikulak fosse uma pr -

    condio capital da industrializao futura e que essa liquidao devesse

    ser feita por um Stalin que, nessa poca (1928-1929), sequer refletira

    sobre o que seria uma poltica futura, significa sustentar uma teoria bem

    estranha. S possvel subscrev-la aceitando outra teoria igualmente

    bizarra, que consiste em apresentar Stalin como um "deus ex-machina",

    como o nico homem no Partido capaz de transformar a Rssia em pas

    industrial." Paralelamente a sua apreciao sobre a economia da URSS,

    Hobsbawm vai passando uma idia, igualmente afetada por seus

    sentimentos pessoais, sobre a legitimidade dos Estados erguidos em

    nome do "socialismo real". Os acontecimentos espetaculares do fim dos

    anos 80 e incio dos 90 na Europa oriental e na URSS do larga margem

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    a um questionamento da prpria legitimidade dos regimes instaurados

    nessa parte do mundo.A respeito da Europa oriental, Hobsbawm nota que as

    burocracias desses pases procuraram retirar-se do poder discretamente

    (exceto na Romnia) "porque tinham visivelmente perdido a justificativa

    que mantivera seus quadros comunistas no passado". A justificativa, no

    caso, era o "socialismo real", que s funcionava sob a tutela da URSS.

    Quando esta acabou, deu uma epidemia de amnsia na Europa oriental.

    De repente, seus governantes no se lembravam mais de como tinham

    ido parar ali. Para a URSS, a opinio de Hobsbawm diferente: "Ao

    contrrio de muitos estrangeiros, todos os russos sabiam bastante bem

    quanto sofrimento lhes coubera e ainda lhes cabia (em 1953). Contudo,

    em certo sentido, pelo simples fato de ser um governante forte e legtimo

    das terras russas e delas um modernizador, ele (Stalin) representava

    alguma coisa deles prprios." Depois de confundir sobrevivncia da revoluo com

    sobrevivncia do Imprio Russo, Hobsbawm s podia confundir

    conformismo do povo com legitimidade de Estado stal inista.A legitimidade do Estado sovitico nasceu e ficou ligada at o

    fim a seus laos com a Revoluo de Outubro. Esses laos deixaram de

    ter realidade efetiva j nos anos 20, porm todos os burocratas que

    liquidaram as esperanas de Outubro tinham consc incia de que a

    legitimidade de sua dominao dependia daqueles laos. Por isso,

    mantiveram a farsa do "socialismo" enquanto puderam. Quando no

    puderam mais, foi um salve-se quem puder.

    Diante de todos os acontecimentos dos anos 80 e 90, pode -se

    afirmar que a brutalidade aparentemente absurda de Stalin decorria, em

    parte, de sua legitimidade precria. S partindo dessa premissa se pode

    comear uma discusso sria sobre as hecatombes de Stalin, superando

    a mera lamentao humanitria, assim como o conformismo com a

    suposta inevitabilidade de um regime "implacvel" naquela poca e lugar.

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    Somente um regime de legitimidade precria pode desabar da

    noite para o dia sem que se manifestem foras sociais significativas em

    sua defesa. O grande argumento histrico p r-Stalin (lembrado por

    Hobsbawm) foi sua vitria sobre Hitler. De fato, foi a vitria sobre os

    nazistas que deu burocracia do Kremlin a autoridade que lhe permitiuprolongar seu regime at o fim dos anos 80. Entretanto, uma olhada mais

    detalhada nos grandes fatos histricos indispensvel, para quem no

    quer se contentar com panegricos. A agresso hitleriana mostrou, desde seu primeiro momento,

    uma face brutalmente racista e antieslava (no s anticomunista), que

    tornou impossvel qualquer movimento de simpatia em relao aos

    invasores por parte dos povos da Europa sovitica, exceto de alguns,

    no-eslavos, da rea do Cucaso. inegvel que o extremo

    reacionarismo do comando nazista foi um fator favorvel a Stalin; do

    mesmo modo que o extremo reacionarismo dos "brancos" na poca da

    Guerra Civil (1918-1920) fora um fator favorvel aos bolcheviques.

    O racismo antieslavo do comando nazista facilitou a

    aglutinao dos russos, ucranianos e bielo -russos em torno do nico

    Estado que parecia capaz de salv-los da aniquilao completa. Stalin

    mobilizou o povo fazendo apelo basicamente ao patriotismo. Os operrios

    escreviam sobre os tanques, antes de remet-los ao front: za rodinu (pela

    ptria). Se Stalin tivesse tentado mobilizar o povo pelo "socialismo" dos

    Planos Qinqenais, certamente ter-se-a desastrado.

    No por acaso, o nome oficial da Segunda Guerra Mundial na

    URSS era Grande Guerra Patritica. E assim a Guerra foi entendida pelo

    povo. Isso permite qualificar a legitimidade ganha pelo regime com a

    vitria sobre a agresso nazista. O regime legitimou -se como defesa

    eficaz dos povos eslavos contra agressores externos. Quer dizer: obteveum novo tipo de legitimidade, mais restrito. Nem antes, nem durante, nem

    depois da Guerra, o "socialismo" de Stalin foi sentido como aceitvel e

    legtimo pelos povos da URSS, eslavos ou no. O prprio Hobsbawm ressalta o apoliticismo extremo do povo

    nos pases do "socialismo real". Ora, o apoliticismo na URSS tinha um

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    significado especial. Era o nico pas do mundo que no podia ter um

    povo apoltico. Porque era o nico que tinha como meta oficial elevar o

    nvel de conscincia poltica da populao, para isso restringindo a

    propaganda religiosa e instituindo um certo marxismo como matria

    obrigatria em todos os nveis de ensino. Sob tal ordenamento da vidacultural, o profundo apoliticismo do povo sovitico valia como uma

    rejeio macia do regime. Ento, as concluses devem ser tiradas: o Estado sovitico

    conseguiu legitimar-se? Sim. Porm, em primeiro lugar, conseguiu-o

    somente depois da Segunda Guerra Mundial e no para todos os povos

    da URSS; em segundo lugar, essa legitimidade parcial e diferente da

    pretendida originalmente no dizia respeito ao "socialismo real". Diga-se de passagem, mesmo pretendendo que o apoliticis mo

    do povo sovitico no seria evidncia suficiente da legitimidade precria

    de seu Estado, as reaes nacionalistas que se seguiram ao

    desmoronamento do regime no deixariam margem a dvidas: ao

    primeiro abalo da capacidade repressiva do Estado sovitico (em

    particular a desarticulao da KGB, vitimada pela glasnost), a Unio

    entrou em rpida dissoluo, inclusive a unio interna da Rssia. No final do livro, Hobsbawm descreve a crise da prpria

    economia capitalista. Ao lado de muita informao importa nte, Hobsbawm

    tira algumas concluses temerrias. Como, por exemplo: "O triunfalismo

    neoliberal no sobreviveu aos reveses do incio dos anos 90". muito

    otimismo de Hosbsbawm achar que o neoliberalismo se encontre abalado

    em virtude dos sofrimentos que esteja causando humanidade a partir

    dos anos 80.Infelizmente, a histria no um sistema de reflexos sociais

    perseguindo o caminho do menor sofrimento. Se fosse assim, no seteria conseguido descer aos abismos de represso sanguinria atingidos

    durante o breve sculo XX. Sem dvida, absolutamente verdadeira a exposio do que

    Hobsbawm considera uma depresso econmica comparvel dos anos

    30, hoje se estendendo em graus diversos no mundo inteiro. Entretanto,

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    Hobsbawm subestima a capacidade de cinismo dos economistas com

    acesso ao poder e grande mdia. Para eles, o que est ocorrendo

    apenas um processo "inevitvel" de adaptao "globalizao

    econmica". O sofrimento dos seres humanos no parmetro de

    avaliao dos resultados das polticas decididas pelos clientes desseseconomistas. E vai continuar sendo assim, enquanto reaes sociais de

    grande envergadura no obriguem os "formuladores de decises" a

    reverem seus parmetros.Todas as ressalvas acima no impedem que o livro de

    Hobsbawm merea ser lido com ateno. Vale um bom curso de Histria.

    Mas mesmo os melhores cursos de Histria tm lies que devem ser

    recebidas "cum grano salis".