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5 O fluxus da vida Intuído em 1961 pelo lituano George Maciunas, o Fluxus aviou uma espécie de fórum artístico que fez ecoar novamente os sentimentos dadaístas. Reunindo participantes de diversos países, origens artísticas ou tendências culturais, torna-se difícil estabelecer as reais fronteiras de sua atuação. Foi um organismo fluido em muitos aspectos: um fluxo constante. O papel do grupo entre os teóricos das artes plásticas é enganosamente restrito ainda hoje; embora o Fluxus se expressasse através de eventos, publicações ou objetos, sua origem está nas experimentações musicais do norte-americano John Cage. Aliás, diga-se de passagem, esta foi a primeira vanguarda do século XX impulsionada por tal categoria artística. John Cage foi um grande criador que cedo se decidiu pelas investigações musicais. Porém, fundamental mesmo para o desenvolvimento de sua obra foi a opção pelos estudos de composição com Arnold Schönberg. Interessado na filosofia zen-budista, Cage freqüentemente usou o silêncio – os vazios – como elemento musical, os sons como entidades que perduram no tempo, além de buscar a noção do acaso na música. Na “peça para piano” Music of changes (1951), Cage faz com que as combinações tonais ocorram numa seqüência determinada por uma unidade pré-moldada. Um dos pioneiros dos happenings nos EUA, o artista, em sua “audição” intitulada 4’33’’ (1952), fez os performers sentarem silenciosamente frente aos instrumentos. Os sons do environment são “a música”: em Theatre piece (1960), músicos, dançarinos e mímicos atuam independentemente entre si em tarefas pré- selecionadas, sob o “comando” de 4’33’’, dissolvendo as fronteiras que separam música, sons ou fenômenos não-musicais. A interferência de outras instâncias da vida já vinham interessando o artista desde a década de 1940, nas “composições” reunidas sob o título Piano preparado. Como, por exemplo, em Amores (1943), quando diversos objetos foram colocados dentro do piano, alterando os sons de suas cordas.

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5 O fluxus da vida

Intuído em 1961 pelo lituano George Maciunas, o Fluxus aviou uma

espécie de fórum artístico que fez ecoar novamente os sentimentos

dadaístas. Reunindo participantes de diversos países, origens artísticas

ou tendências culturais, torna-se difícil estabelecer as reais fronteiras de

sua atuação. Foi um organismo fluido em muitos aspectos: um fluxo

constante. O papel do grupo entre os teóricos das artes plásticas é

enganosamente restrito ainda hoje; embora o Fluxus se expressasse

através de eventos, publicações ou objetos, sua origem está nas

experimentações musicais do norte-americano John Cage. Aliás, diga-se

de passagem, esta foi a primeira vanguarda do século XX impulsionada

por tal categoria artística.

John Cage foi um grande criador que cedo se decidiu pelas

investigações musicais. Porém, fundamental mesmo para o

desenvolvimento de sua obra foi a opção pelos estudos de composição

com Arnold Schönberg. Interessado na filosofia zen-budista, Cage

freqüentemente usou o silêncio – os vazios – como elemento musical, os

sons como entidades que perduram no tempo, além de buscar a noção do

acaso na música.

Na “peça para piano” Music of changes (1951), Cage faz com que as

combinações tonais ocorram numa seqüência determinada por uma

unidade pré-moldada. Um dos pioneiros dos happenings nos EUA, o

artista, em sua “audição” intitulada 4’33’’ (1952), fez os performers

sentarem silenciosamente frente aos instrumentos. Os sons do

environment são “a música”: em Theatre piece (1960), músicos,

dançarinos e mímicos atuam independentemente entre si em tarefas pré-

selecionadas, sob o “comando” de 4’33’’, dissolvendo as fronteiras que

separam música, sons ou fenômenos não-musicais. A interferência de

outras instâncias da vida já vinham interessando o artista desde a década

de 1940, nas “composições” reunidas sob o título Piano preparado. Como,

por exemplo, em Amores (1943), quando diversos objetos foram

colocados dentro do piano, alterando os sons de suas cordas.

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Cage foi professor de música no início da década de 1950 no Black

Mountain College, em North Caroline, onde preparou uma série de

episódios públicos de caráter performático. O músico deixou, na

instituição então dirigida por Joseph Albers, o registro de alguns proto-

happenings, inclusive de um primeiro efetivado na companhia do

coreógrafo avant-garde Merce Cunningham e do artista plástico Robert

Rauschenberg em 1952. A dupla aliou-se a Kaprow nos fins da década.

Por conta destas investidas públicas e da fusão “das várias artes”

promovida em seus eventos, Cage figura freqüentemente na gênese da

história dos happenings norte-americanos e simultaneamente na dos

europeus desde sua adesão ao grupo de George Maciunas.

Inevitavelmente, atravessamos os textos críticos admitindo que a

autonomia poética de Cage foi propiciada pelos comportamentos

extratemperamentais de Jackson Pollock. Decerto que o desembaraço

demonstrado pelo pintor deu margens às mais diversas intuições

artísticas. Imbuídos por uma ambiance amplamente permissiva, não nos é

estranho analisar o grau de liberdade conquistado por alguns artistas a

partir dos alcances espaciais das actions pollockianas. Encaradas

freqüentemente como “atos criativos de autodescoberta”, seus resultados

seriam antes “artefatos da experiência da energia do processo”. Cage

estava desperto para as linguagens poéticas em geral:

(...) a pintura tornou-se agora uma entidade que pertence à mesma ordem espacial a que pertencem nossos corpos; não é mais o veículo de um equivalente imaginário dessa ordem. O espaço pictórico perdeu seu “interior” e tornou-se “exterior”. O espectador não pode mais escapar para dentro do espaço pictórico a partir do espaço em que ele mesmo se encontra.1

Cage trouxe para o proscênio sua intimidade com o piano. O

instrumento, burguês por excelência, tornou-se, na segunda metade do

século XX uma recorrência nos happenings. Utilizado largamente por

Beuys e Paik, o piano teve suas funções alteradas em todos os sentidos.

Completamente emudecido, embrulhado em feltro, destruído, entupido de

1 CAGE, John citado em David Batchelor. Minimalismo. p. 20.

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coisas estranhas a sua natureza, serviu aos mais diversos protestos e

simbolismos.

Os modelos de pianos que hoje conhecemos foram desenvolvidos

no século XVIII e atravessaram soberbamente os grandes momentos

“eruditos” da Europa. Estava mais do que na hora de trazê-lo à realidade:

não é apenas por coincidência que, em 1928, Luis Buñuel e Salvador Dali

apresentaram em uma experiência surrealista – Um cão andaluz – dois

pianos de cauda dispostos lado a lado de cujas tampas abertas surgiam

asnos mortos. Os artistas já estavam atentos aos poderes simbólicos do

instrumento, principalmente os segmentos mais debochados das

vanguardas.

Já George Maciunas era um europeu naturalizado americano que

estudou arte, arquitetura, musicologia, além de efetuar pesquisas sobre

arte européia e siberiana e investigar a música eletrônica. Até onde foi

possível registrar, a sua maior atuação no cenário artístico das décadas

de 1960/70 consistiu na idéia do grupo Fluxus. Coordenador dos

bastidores, ainda na fase de Nova York foi proprietário de uma galeria que

se dedicava a incentivar as iniciativas vanguardistas. Em Wiesbaden,

trabalhou como artista gráfico para a força aérea americana, quando, de

certo modo, consolidou o grupo Fluxus na sua versão européia. Aliás,

esta parece ser a “nacionalidade metafísica” do grupo. Após o Festum,

Fluxorum, Fluxus de 1963, realizado com o auxílio de Beuys em

Düsseldorf, o grupo participou de ocorrências em nível mundial.

Poligeográfico em muitos sentidos, o Fluxus não conformou,

portanto, uma organização coesa nos moldes perfilados pela New York

School ou pela École de Paris. A princípio, diz-se freqüentemente que,

com tal naipe de artistas, “as mais diversas formas de arte foram

reunidas” orientando uma leitura simplista. Ora, o grupo teve como único

compromisso o descompromisso total, como dizia Maciunas: a diversão-

arte-Fluxus deveria ser apenas entretenimento e nada exigente, não

cobrou habilidades especiais ou incontáveis ensaios; tratou de coisas

insignificantes desprovidas de qualquer valor comercial ou institucional.

O sucesso de tais votos deveu-se muito à persistência, ao

desprendimento e ao alcance intelectual de seus participantes, assim

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como a uma intensa atuação internacional e à indeterminação radical do

grupo em relação às formas tradicionais de arte. O Fluxus resistiu

bravamente à clausura teórica – não atendeu às mínimas

correspondências da pintura, da escultura, do teatro, da literatura, ou da

música. Praticava-se “aleatoriamente” um pouco de tudo: contaminou-se

inteiramente, abortando para sempre toda e qualquer investida de

arquivamentos. Porém, o que manteve a sua energia durante os poucos

anos de sua atuação deveu-se sobretudo à maturidade poética de seus

componentes – enfim, fora a qualidade do conjunto o que facilitou a

realização dos desejos de Maciunas.

Ora, tal configuração extremamente maleável armazenava uma

imensa disponibilidade artística que pode acionar inúmeros eventos

apenas parcialmente planejados. A idéia era a seguinte: a formação

original de cada um dos seus participantes indicava o caminho básico a

seguir. Alguns objetos pré-escolhidos eram trazidos a público e arranjados

para uma exibição apenas semi-ensaiada – como na música, partiam de

uma partitura, de um roteiro de primeiras intenções. O conjunto de todas

essas “semi-predisposições” seria somente conhecido e avaliado durante

e após a apresentação.

De fato, não se poderia mesmo afirmar que Beuys teve algum dia a

neutralidade emocional exibida pelo grupo, ou que suas intenções teriam

grandes afinidades poéticas com as de Morris. Assim, preparados e

conscientes que eram das intenções estéticas conceituais que os

governavam e os reuniam sob a designação Fluxus, os artistas puseram

em prática uma boa quantidade de controversos happenings.

Porém, mesmo com tamanha liberdade (ou por isto mesmo), o

Fluxus permaneceu nos becos das curiosidades da História da Arte: uma

experiência isolada, diferenciada, apenas mais uma iniciativa

interessante. Mas, tal “falência” em estabelecer-se como “movimento” na

ótica das disciplinas oficiais foi exatamente o motivo do sucesso

enviesado de sua empreitada. Ora, semelhante ritual de acasalamento

criadores-público-instituição pertence às estruturas de inserção das

disposições artísticas que concorrem à categoria das “vanguardas”. Do

mesmo modo, o êxito desta “pós-vanguarda” pode ser averiguado pelo

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desenvolvimento das experiências individuais de seus participantes após

o encerramento de suas atividades.

Nam June Paik, Joseph Beuys, John Cage, Robert Morris, são, de

pronto, os nossos melhores exemplos, muito embora sejam talentos que

não precisaram do fim do grupo de Maciunas para obter amplo

reconhecimento mundial. Há até quem diga que a coisa funcionou

inversamente – o exíguo sucesso alcançado pelo Fluxus ainda “em vida”,

correu por conta justamente destas aptidões especiais que freqüentaram

suas fileiras: teriam sido estes artistas que forneceram uma “identidade”

ao grupo?

É bom registrar que, do mesmo modo que cada dadaísta travou uma

batalha solitária – veja-se o maior deles, Duchamp, que praticou o seu

próprio dadaísmo –, os artistas contemporâneos em geral ofertaram as

mais díspares poéticas. Cada um dos mais importantes para a atualidade

– Beuys, Warhol ou Morris – teve seu momento público como one-man

show. Porém, o individualismo há muito já não é assunto, mas o proveito

destilado de tal experiência é da alçada de todos os contemporâneos de

Pollock. Ora, tudo caminhava, ao fim e ao cabo, para um congraçamento

de metas políticas. Mais uma vez, Kaprow não deixou passar em branco a

contribuição de Pollock neste aspecto:

Mas essa forma nos oferece um prazer igualmente forte pelo fato

de participarmos de um delírio, um adormecimento das faculdades da razão, uma perda do “eu” no sentido ocidental do termo. Essa estranha combinação de extremo individualismo e perda do eu torna a obra especialmente potente, mas também indica uma referência psicológica provavelmente mais ampla.2

Iniciando discretamente suas atividades em Nova York, o grupo logo

passou a apresentar-se na Alemanha, obtendo um maior reconhecimento,

talvez devido à carência de manifestações artísticas realmente

condizentes ao momento ou à alternativa cultural que trazia para a

carregada atmosfera no segundo pós-guerra europeu. Afinal, era

necessário refletir intensamente sobre os últimos acontecimentos. Os

2 KAPROW, Allan. “O legado de Jackson Pollock”. In Art News, outubro de 1958. Tradução de Cecília Cotrim de Mello.

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EUA iriam também pensar sobre o assunto, sim, mas sob outros ângulos,

naturalmente.

Trauma por trauma, os EUA não iram esperar muito tempo para

iniciar o processo de elaboração cultural de suas façanhas no último

grande happening mortal. Seria possível dissociar as primeiras

realizações artísticas especialmente americanas da grande tragédia? As

respostas poéticas podem ser registradas da Pop a Minimal, da

Processual a Conceptual, da Urban a Land Art.

5.1 O mundo é dadaísta As vanguardas, seja como entidades físicas ou apenas como um

termo, há muito não exerciam efeitos consideráveis, e Maciunas estava

ciente das ascendências de sua criatura – o Fluxus lidava assumidamente

com algumas (ou muitas?) noções dadaístas. O grupo instalou-se desde

sempre, portanto, desfilando o estilo de uma retaguarda orgulhosa.

Semelhante retórica desdenhosa o auxiliou em sua apertada concorrência

com os performers dos EUA, mais exatamente com Kaprow, o mais

atuante artista extra-Fluxus, tratado mormente pelo bizarro aposto de “pai

dos happenings”. Mas, pensemos, por mais neodadaísta que fosse, o

Fluxus pouco ou nada tinha de retrógrado. Afinal, seus efeitos

estimularam sustos, raivas e desprezos como o dadá histórico, ou seja,

como uma “legítima” vanguarda.

Historicamente seria possível encontrar inúmeras conexões destas

novas frentes artísticas dos anos 60 com o antigo dadaísmo e mesmo

com outras tantas vanguardas históricas. Sabemos o tanto de irônico ou

sarcástico, de político ou ideológico que aquelas poéticas detinham.

Assim não é de se estranhar que o retorno das perguntas acerca do

“descompromisso com o real estabelecido”, com os “valores publicamente

reconhecíveis”, com as “alianças sociais endossáveis”, aviassem

novamente um teor moral equivalente ao evocado pelos ditos “espíritos

livres” do princípio do século XX.

Decerto que algumas polaridades lá atrás entronadas vão se

desfazer, algumas preocupações, como as que envolvem o kitsch, por

exemplo, não cumprem mais efeitos. Porém, outras tantas estâncias

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éticas continuarão cutucadas com vara curta. Não esqueçamos da origem

militar do termo, da verve combativa dos artistas do princípio do século

definindo um modo de pensar que “sai na frente”, que “abre caminhos”,

que “pensa por todos” – pela tribo.

Ora, examinando os acontecimentos artísticos do segundo pós-

guerra, confrontamo-nos com uma série de coincidências para tais

suposições mesmo que trabalhem, até porque, por divergências. Nos dois

lados do Atlântico, verifica-se uma redescoberta do dadá (e mesmo do

surrealismo), fundamental para o desenvolvimento de uma arte nacional

em um caso e para o revigoramento cultural em outro. Um dos poucos,

senão o único movimento artístico sobrevivente das vanguardas

históricas, o dadaísmo somente nos idos dos anos 60 logrou ter o seu

vigoroso componente antimodernista compreendido, ou melhor, realizado:

a sua mistura com o vulgo.

O berço ambíguo desta sensibilidade foi conferido pelas ansiedades

existenciais de Marcel Duchamp e Man Ray, que transitavam “insaciáveis”

pelos dois continentes. O Fluxus reuniu a sensibilidade dadá à dos

happenings americanos, de onde saíram seus idealizadores-mor. Até

nesta dupla cidadania o grupo pode reivindicar uma ascendência

dadaísta. O dadá e o surrealismo foram as únicas disposições

vanguardísticas com inserções pontuais na América. É sabido o quanto

destes humores tutelavam as expressões espaciais de Pollock, os ritmos

resignados de Jasper Johns ou a Junk Art de Rauschenberg.

Na impossibilidade de recorrermos a um diagnóstico conclusivo, um

relatório que rendesse esclarecimentos corretos das diferenças entre o

dadá nova-iorquino e o que restou daquela vanguarda na bagagem

cultural européia, arriscamos afirmar que o tanto que foi trazido à tona por

esta ocasião tratou apenas do essencial, da pièce de résistence de seus

assuntos, partilhada pelos dois lados do Atlântico de maneiras

diferenciadas: a indistinção entre a “alta arte” e a “arte de massa”. Ou seja

uma vontade de se lidar com o real, independentemente de sua realidade.

Seria possível procurar uma redução dessas diferenças nas vagas e

rápidas noções de um “realismo urbano” versus “realismo existencial”? E,

caso positivo, seria o bastante?

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Guardadas as devidas distâncias, o espírito dadá foi reintroduzido

nas duas culturas com humores contraditórios – e não podia ser diferente.

Na Europa, perseverou uma poética do absurdo, do nonsense – veja-se a

proeminência de Beckett e Ionesco: afinal, quando Auschwitz fará

sentido? Mórbido para a lógica européia, o homem volta como um

fantasma que não morreu. Claudicante na vida, dedica-se a repetir os

gestos básicos como se fosse possível entendê-los. Hugo Ball há muito

havia se referido ao fato de que tudo funciona bem, salvo as pessoas.

No lado “vencedor”, verificava-se, ainda que superficialmente, uma

alegria provocativa, dispensada, até segunda ordem, do peso do

Holocausto – e basta citar a Pop Art neste caso, que concorreu para a

larga ostentação de um tipo de arte que não apelou para considerações

patafísicas. Ora, estava-se falando, aqui e lá, sobre o triunfo da

insanidade. E a única reação possível teria de ser radical. Tratava-se de

movimentos situacionistas em todos os sentidos: deveriam volver as

condições sociais contra elas mesmas para desvelar suas verdadeiras

características.

Como o dadá, o Fluxus trabalhou com a estética da negação: do

mercado de arte, da noção do grande criador individual, do artista-herói

ou redentor, do objeto de arte como uma mercadoria reificada e das

fronteiras tradicionalmente definidas entre música, literatura e artes

visuais. Mas também aferiu uma negação de uma estética da negação

enfaticamente subjetiva, do sofrimento e da alienação existencialista dos

anos 50. Foi, finalmente, uma rejeição da ênfase no sentido profundo e da

interpretação erudita (...).3 Sartre, Camus e toda a turma existencialista

que os acompanhava não faziam parte de seus interesses. Mas, e a

polifonia artístico-existencial de Beuys? Ora, depurando-se a proposta,

chegaremos à conclusão de que a ordem era denegar, desconstruir para

reconstruir.

Por outro lado, o grupo apresentou muitos outros aspectos

afirmativos. Para ser breve, relatemos genericamente como feitos

comprobatórios de uma postura positiva os eventos intermídias, a

3 HUYSSEN , Andreas. Memórias do modernismo. p. 129.

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interação do público em contraste com o distanciamento pernóstico da

“alta cultura”, a clara interação arte-vida, o alto grau de realidade concreta

de seus eventos e objetos, a mundanidade, enfim. Contudo, em termos

de generosidade, não se pode reclamar dos artistas americanos também

neste sentido, guardadas as devidas diferenças. Afinal, veja-se a exibição

de excessiva humanidade e de expansividade espacial de Pollock, as

chamadas participativas de Kaprow, as imagens populares de Warhol, ou

mesmo as propostas pragmáticas da Minimal Art.

E, acima de tudo a grande proposta de ambos: a ampla participação

do público. Indo muito além das possibilidades ofertadas pelos produtos

da “alta cultura”, o Fluxus ofereceu a chance para se ver mais, ouvir mais,

e sentir muito. O público, solicitado a proceder como um grupo de livre-

pensadores tanto quanto os artistas, era instado a reconsiderar suas

próprias experiências de vida, a fazer um balanço existencial de sua

participação na construção de tudo que lhe diz respeito, conformando um

verdadeiro grupo topológico. Retomando os capítulos anteriores, estamos

de novo situados naquelas experiências acerca das operações contínuas

determinadas por um espaço topológico, que retomam os conceitos do

continuum. Kaprow também incluía as tais aventuras neo-existencialistas

adiantadas pela obra de Pollock:

Não se entra em um quadro de Pollock por nenhum lugar particular

(ou por cem lugares). Todo lugar é lugar, e entramos e saímos por onde pudermos. Essa descoberta levou a considerações segundo as quais sua arte dá a impressão de desdobrar-se eternamente – uma boa indicação de como Pollock ignorava os limites do campo retangular em favor de um continuum que seguia em todas as direções simultaneamente, para além das dimensões literais de qualquer obra. (...) Os quatro lados da obra são então uma bruta interrupção da atividade, que nossa imaginação faz seguir indefinidamente, como se recusasse o caráter artificial de um “fim”.

Assim, vejamos um exemplo que toca os dois pólos culturais com

que tratamos. Bob Morris circulou facilmente entre as várias definições de

arte dos EUA durante a década de 1960, assim como de alguns eventos-

Fluxus. Seu tipo de trabalho satisfazia as muitas disposições poéticas

então em curso: minimalismo, body art, happenings, inclusas aí as muitas

variáveis dessas posturas. Uma produção de 1961 que pode nos auxiliar

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de imediato é a Coluna, obra especialmente concebida para um evento-

Fluxus,4 que se resume numa caixa oca de compensado pintado, cujas

medidas são 243,80 x 60,9 x 60,9cm.

A performance consistia de uma caixa retangular que descia

verticalmente em um cenário montado numa galeria de Nova York em

meio a um episódio público reunindo outras expressões artísticas. A caixa

permanecia imóvel durante três minutos e meio e, em seguida, tombava

para o lado, demorando-se outro tanto de tempo na posição horizontal.

Considerando-se a inevitável percepção antropomórfica do objeto, a cena

com a Coluna converge para “uma espécie de abstração de figura e

performance, uma redução da dança a um movimento único, elementar,

destituído de gesto ou expressividade”.5

Qual a abrangência, que tipos de poéticas estão sendo convocadas

nesta realização? Vazia ou cheia, a caixa, assim como as obras de Tony

Smith, expõe considerações acerca de conteúdos morais. “De pé” ou

“deitada”, a obra leva-nos à memória dos monumentos ou túmulos, aos

persistentes assuntos acerca da existência humana. Para o artista,

“abstrato” ou “figurativo”, “objetivo” e “subjetivo”, “formal” e “informal”

seriam, de pronto, precárias definições bipolares, sem muito futuro pela

frente.

O objeto em si, um paralelepípedo, alinha-se aos primeiros

elementos minimalistas de Smith – Die e Black box –, e comporta-se

como tal: concorda com a estatura de um homem, e nada mais o define

senão como presença enfática – matéria muda, geométrica e opaca,

enfim. Para Morris, estas seriam formas simples que criam fortes

sensações de Gestalt.6 De resto, outros procedimentos ou leituras seriam

apreciações inócuas, de uma estética cubista retardatária.7 Por outro lado,

esta não é uma “escultura” estabelecida ad aeternum em um determinado

local – trata-se de um objeto que é inserido em meio a outros tantos

acontecimentos artísticos.

4 BATCHELOR, David. Minimalismo. p. 26. 5 Idem. 6 Idem. p. 23. 7 Idem.

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5.2 Paleologias A pré-história dos happenings na América, contam os historiadores,

repetindo as declarações dos próprios artistas, tem suas inspirações

imediatas nos movimentos expansivos da action painting de Jackson

Pollock, na Junk sculpture de Rauschenberg e na filosofia estética de

John Cage. E estes nas filiais americanas do dadaísmo, do surrealismo e

das collages cubistas. Portanto, a única coisa decididamente clara para

nós é a impossibilidade de fazer uma leitura linear destas heranças.

Qualquer outra tentativa, suspeito, resultaria ela mesma num exquise

dadaísta. Tentemos, então, executar a empreitada via Europa ou a partir

dos próprios eventos.

Mas, e quanto ao levantamento dos performers do Fluxus, dos

happenings na Europa? A retomada européia é um mergulho tão

profundo nos assuntos internos daquele continente que torna-se para nós,

contemporâneos, quase inescrutável, principalmente quando o performer

é Beuys ou Klein. Trata-se de uma verificação genética que vai ter que

percorrer muito chão caso não nos atenhamos às manifestações

puramente artísticas. E, mesmo assim, a história é densa. Alguns autores

recuam até mesmo à primeira apresentação do Ubu roi de Alfred Jarry,

em 1896, para ali reconhecer a origem teatral da explosão multimídia da

década de 1960, não sem antes passar por quase toda a vanguarda

histórica. Ubu roi resultou do desejo, bem-sucedido afinal, de um jovem

que pretendeu pôr em cena tudo o que fosse “linguagem visual”.

Assim, em resumo, um inventário dos hoje denominados

happenings, performances ou environments teria de resgatar

necessariamente as Noites Futuristas, italianas e/ou russas, entre os anos

1910-1913, as sessões pluripoéticas do Cabaret Voltaire, de Hugo Ball,

registradas em 1915-1916, os 15 anos de atividades dadaístas, as

iniciativas teatrais de Oskar Schlemmer na Bauhaus, para sermos breves.

As eventuais adesões das diversas áreas artísticas incluiriam os

franceses Cocteau, Satie e Apollinaire, os russos Mayakovsky, Nijinsky e

Diaghilev, dentre muitos outros artistas ligados à música, ao ballet, às

artes cênicas e à poesia em equações eventuais do tipo Mussorgsky +

Kandinsky = Quadros de uma exposição.

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O alemão Max Ernst comparece com um sistema plural renovador

do relacionamento entre as coisas, um verdadeiro desnorteamento para

as disposições, para as ordens das operações poéticas: surrealismo,

frottages e collages. E, como não poderia deixar de ser, até Marcel

Duchamp seria muitas vezes chamado a participar de tais arqueologias

com Rrose Sélavy ou R. Mutt, seus célebres alter egos, ou por conta de

seu longo silêncio.

O “objeto de arte” como tal há muito vinha sendo considerado algo

supérfluo e, sabemos, Duchamp fora o primeiro a instigar tais

pensamentos. O conceito de Arte tendia a tomar, cada vez mais, o lugar

do objeto em si. Assim, a pergunta por sua função e significado acaba por

tornar-se a própria obra. Estas condutas que então estavam, digamos

assim, sendo reformadas, prepararam o terreno para o advento da

Conceptual Art. O que se passava numa sessão ao vivo & a cores do

Fluxus – num happening ou numa performance –, embora visível, restava

como algo definitivamente intangível. Ou seja, justamente o inverso das

premissas da Minimal Art que crescia simultaneamente dentre outras

manifestações artísticas dos EUA.

Porém, o material de ambas destilavam um tema que

desinteressava ao toque. Sim, preparava-se o advento de uma era em

que, de um jeito ou de outro, tudo se voltaria para a materialidade das

coisas. Aqui, para as nossas argumentações, basta-nos dizer que a

matéria que está em jogo, é o homem e seus problemas terrenos. De fato,

para aqueles artistas, a matéria era o assunto, e o assunto era o homem.

Transitava-se, logicamente e, portanto, entre o fisiológico e a

escatológico.

Mas, vejamos, nada disso pode ser afirmado sem intrigas. A matéria

que estava em jogo era o homem e seus affairs terrenos versus os

antigos ideais humanísticos e seus derivados imatéricos. A matéria

humana e o modo de processá-la são os assuntos do momento – e não

sobre a alma & seus correlatos metafísicos. Ora, convenhamos, o

problema foi, é sempre, o (do) homem e (de) seus ideais, matéricos ou

não. Alguma vez não o foi? Quando deixará de sê-lo? Qual a diferença a

esta altura dos acontecimentos?

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As atitudes poéticas associadas ao Fluxus não poderiam, et pour

cause, ser em compradas, vendidas ou institucionalizadas – não se

tratava de posturas especificamentes européias – veja-se a força da

Conceptual Art. Além dos comandos de Duchamp, o também francês

Yves Klein havia se referido muito recentemente à impropriedade deste

ritual mercadológico – veja-se as obras intituladas Zonas de sensibilidade

imatérica (1959-1962). Nesses eventos, o artista vendia uma ocorrência

especial, porém o ato era puramente simbólico: o colecionador nada

levava para casa e o artista nada recebia pela obra – a “troca de bens”

conduzia antes um efeito cerimonial.

Ora, onde encontrar os ancestrais dessas atitudes? Decerto que

sabemos que não foi a Arte o que Duchamp agrediu, mas sim o abuso

indiscriminado de uma significação. Também atacou o tédio causado pela

repetição, pelo esvaziamento de todo o significado provocado por uma

espécie de tragédia hipócrita e pelo declínio da “obra de arte” que adquiria

cada vez mais o estatuto de mercadoria.

Não discutamos aqui os estreitos parentescos entre o dadaísmo e o

surrealismo, o tamanho de seus abraços culturais, mas é necessário

assumir as diferenças extra-artísticas que engendraram tais disposições.

Usadas como linguagem de fundo para assuntos de foro íntimo por gente

que tinha um passivo na Europa e que, muito embora, fez-se aparecer

mais do que o necessário para o alcance doméstico, tais poéticas

duelavam com os entusiastas das bem-sucedidas exibições públicas de

estimulantes autodescobertas. Obviamente que os conceitos de “público”

e “privado” entraram em convulsão para se reencontrarem no fim do túnel

– Conceptual Art. Empataram – EUA e Europa –, ao fim e ao cabo, em

suas manobras. Afinal, o dadá é romântico.

Tal entendimento que assenta a arte tradicional como “uma forma de

poder” expulsou sua energia para a área do espetáculo, necessariamente

em meio ao dia-a-dia mais banal dos homens comuns. O único “poder”

então alegável, após tantas perdas solenes, aventa uma capacidade

poética com força suficiente para enfrentar as práticas selvagens

potencializadas pelas exigências tecnológicas orientadas por duas

grandes guerras. Ora, decerto que o material a ser empregado então não

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poderia ser outro que não o fornecido pelos resíduos do cotidiano, pelo

próprio ambiente ou pelo corpo humano.

Por conseguinte, poderíamos afirmar que uma vontade de vida real,

de tocar as coisas do dia-a-dia, enfim de sentir-se vivo, era o que estava

prometendo fazer evaporar os produtos artísticos do fim do século XX. O

raciocínio é ambíguo. Se a matéria de trabalho é o homem, sua vida

terrena, e se seu corpo perceptivo, ainda que entendido como alma-

carne, a questão não estaria privilegiando, de novo, mais a sua

inteligência sobre o processo em jogo do que a sua participação física?

Um dos mais ferozes críticos das poéticas do segundo pós-guerra é

o americano Michael Fried. Seus alvos prediletos – a promiscuidade das

várias categorias de arte em relação à outra e à não-arte –,

decididamente (re)acenderam a discussão em 1967 quando da

publicação de seu texto mais famoso: Art and objecthood. Tudo aquilo

que não cumprisse as exigências modernizantes de “pureza e autonomia”

pertencia à área do teatro. Obviamente, o crítico estava plantando em

terreno infértil. Para ele, o teatro era apenas uma forma de degeneração

das artes. Além do mais, a Arte devia superar sua atual condição de

“objeto”, uma definição que expunha sua proximidade com as coisas

mundanas.

Com isto, Fried atacava o fazer artístico desde o ready-made e, por

tabela, as incontáveis averiguações por ele suscitadas. No entanto, não

sei se vale a pena levar adiante uma discussão que já àquela altura dos

acontecimentos parecia navegar contra a corrente. A citação de tal fato,

no entanto, é academicamente inevitável. Interessante para a nossa

causa, portanto, seria então anotar as transformações almejadas desde

Jarry, suponho. Ou seja, aquelas que levaram o teatro literário ao teatro

teatral.

5.3 Environments, performances, happenings O modo de operar no Fluxus, e mesmo nas demonstrações norte-

americanas, começou por seguir, grosso modo, o seguinte raciocínio:

idéias sobre espaços poderiam ser interpretadas no espaço atual, assim

como na bidimensão convencional da tela. O tempo poderia ser sugerido

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na duração de uma performance ou com uma ajuda de um monitor de

vídeo em feedback ou em câmara lenta, por exemplo. Os atributos

sensíveis da escultura, como a textura e a sua inserção no espaço, tornar-

se-iam muito mais tangíveis nas apresentações ao vivo, naturalmente.

Questões existenciais poderiam ser trazidas a público através de uma

revivência biográfica.

Os três termos – happening, environment, performance – ,

confundem-se até hoje. E não sem razão. De modo amplo, performance

diz respeito ao desempenho individual numa atuação pública; já os

happenings aplicam-se mormente aos casos dos espetáculos

espontâneos – tratam dos eventos-surpresa (ou quase), ou mesmo de

episódios artísticos (quase) improvisados.

Já o environment parece complementar as largas definições

anteriores, diz sobre as circunstâncias que envolvem um determinado

acontecimento, qualquer evento de caráter poético: environment é o

termo que “amarra” toda a ocorrência (happening) deflagrada por um

organismo performático ou não. É possível traduzi-lo de diversas

maneiras, dependendo dos propósitos: ambiance, aura, atmosfera, clima.

Além do mais, o seu alcance estabelece a dimensão do território, do

contexto, do domínio, do ecossistema, do reino de atuação de um

determinado epicentro artístico.

A Junk sculpture foi o descendente americano do termo e da poética

do assemblage cunhado por Dubuffet em 1953. Este novo modo de

“esculpir”, trouxe para a tridimensionalidade as collages simbolistas e

surrealistas. Mesmo dispostas na parede, a Junk Sculpture estendia-se

para o espaço real, volumosa e literal, confrontando o observador.

Chamberlain, Suvero, Rauschenberg e Louise Nevelson foram os grandes

entusiastas de tal prática. Bem-humoradas e irreverentes, estas

realizações vão assinalar o estilo novo-mundista de tratar o real.

Ao contrário de Dubuffet, que acumulava materiais baratos ainda

não domesticados, a percepção americana incorporou elementos triviais –

“materiais não-artísticos”: os artistas de Nova York buscaram os dejetos

urbanos. Decerto, não iniciaram tal empreendimento com qualquer

expectativa de sucesso comercial ou apoio institucional – ostentavam,

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faziam questão de demonstrar, aliás, um certo desdém (?) por tais

assuntos. Porém, a iniciativa ganhou respeito apesar da efemeridade dos

materiais empregados, acabando mesmo por apresentar-se vitoriosa pela

primeira vez no MoMA em 1961.

Environment são e podem ser também tratados como “assemblages

espontâneas”, com a energia visual e a fenotipia gestual da sensibilidade

expressionista abstrata. Seus espaços são atuais, preenchidos por

objetos e matérias reais. Os environments recolhem em seus precedentes

os Merzbauen de Kurt Schwiters – “environment escultural” –, o alcance

espacial das obras monumentais de Pollock e já existe quem considere

que até mesmo as pinturas tardias de Monet devam ser arroladas como

tal. Os objects assistés de Duchamp, os papiers collés de Picasso não

poderiam ficar de fora, naturalmente. Já os environments

contemporâneos, principalmente os norte-americanos, trouxeram os

ritmos da rua – do “microcosmos do mundo” –, lugar de excitação, de

realismo honesto e abstrato. Apresentam sinceramente todos os lados da

natureza humana: o sórdido e a degradação, jamais esquecendo de

compor uma derrisão satírica de sua origem social. Afinal, lidam com os

cacarecos-detritos que podem recuperar a poesia do dia-a-dia.

Body Art, apesar do termo surgir apenas algum tempo depois da

“fundação” do Fluxus, é o tipo de atitude que se pode, desde sempre,

listar obliquamente para algumas Aktionen de Beuys, por exemplo. No

geral, o conjunto de suas obras somado à pessoa-artista, se é que houve

divergências entre as duas noções, foi definido pelo próprio artista como

Lebende Skulptur (escultura viva). Ora, quais são as diferenças reais

entre estes termos, senão os modos de inserção e atuação dos corpos,

das vidas dos artistas nas ações públicas? Body art diz respeito às

performances concentradas nos corpos dos artistas, ou seja, por

extensão, dos seres humanos em geral. Em todo o caso é o processo do

seu fazer e a presença do artista o que importa e não o produto final –

estas artes são aprendizados e entendimentos.

Todas essas iniciativas, de um modo ou de outro, trabalham na

direção da reconstrução do pensamento eurocêntrico como modelo de

existência ou da fundação de uma arte de matizes especialmente

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americanos. Porém, todas serão, querendo ou não, maneiras de fazer

arte que visam às transformações sociais. O corpo e todas as incertezas

que dele advêm foram erradicados dos modos de conhecimento do

mundo. Mas foi justamente após o grande espetáculo sangrento dos anos

40 que o seu cadáver encontrou reanimação mais drástica, como o

importante contêiner sensitivo que já fora um dia. E este é um dos pontos

simultaneamente de convergência e divergência entre as artes produzidas

nos anos 60 nos dois continentes.

5.4 Heraclito, bataille e zen-budismo

A tática “artística” do Fluxus incluía um pouco de tudo: objetos

baratos ou caros, atitudes cênicas que iam do reino público ao da

intimidade doméstica. Contudo, o maior valor em exibição era o da

liberdade de ação poética. Mas, como proceder, se até o conceito de

liberdade era, é ainda, embaraçante, e se a liberdade artística tornara-se

igualmente um problema de comunicabilidade? Deslocando-se uma

declaração de Giulio Carlo Argan8 que, lamentavelmente, não estendeu

suas análises ao momento que tratamos, é possível definir assim a atitude

então recém-nascida:

Não é uma livre escolha; é a condição em que vem a se encontrar a

arte, que fora colocada como forma por toda uma tradição cultural, numa sociedade que desvaloriza a forma e já não reconhece a linguagem como o modo essencial da comunicação entre os homens. A arte já não mais pode ser discurso, relação. Não mais se enquadra numa estética, isto é, numa filosofia; o próprio conceito de poética (de poiéin, “fazer”), prevalecendo sobre o de teoria, indica que a única justificativa da arte é, agora, uma intencionalidade prática. Para além da linguagem, que sempre reflete uma concepção de mundo e implica a idéia de relação, não há senão a singularidade, a irrelatividade, a inexplicabilidade, mas também a incontestável realidade da existência.9

Com tamanha disponibilidade, o grupo restará para sempre à mercê

de vir catalogado encaixado entre o último movimento significativo do

modernismo e uma postura manancial do pós-modernismo. Ora, já foi

sugerido que o mais importante que se pode tirar do acontecimento

8 ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. p. 537-538. 9 Idem.

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Fluxus é o fato de não se saber exatamente do que se tratou. Por isto,

nada ou qualquer coisa que se escreva ou se pronuncie sobre aqueles

eventos remotos poderia satisfazer a coleção de referências retroativas ou

pós-ativas que tente aprisioná-los. É difícil encontrar um único caminho

passível de recolher os muitos atalhos tomados pelo grupo, por conta,

mesmo, de sua natureza: uma vitória de caráter vanguardista, já

dissemos.

Alguns escassos produtos restantes lembram ainda hoje as

ocorrências públicas e permitem visualizar, ao menos parcialmente, as

particularidades das ações do grupo. Porém, nada a que se tenha acesso

hoje poderia recuperar a energia dos eventos ao vivo. Infinitamente

menos coquete que o dadá, o Fluxus exige uma especial atenção para as

realizações de suas figuras excessivas – Paik, Beuys, Cage ou Morris.

Ainda assim, as formas de acontecer-no-mundo do grupo, mesmo para a

audiência que as presenciaram, jamais foram suficientemente nítidas.

Ora, as coisas sempre foram difíceis de definir: algumas “obras de arte”

do Fluxus sustentaram um substancial volume e nenhuma massa

significativa – veja-se, por exemplo, a Coluna de Morris.

Mas, o que ainda guardava, na Europa, naquela ocasião, algo

próximo de uma “forma definida”? Quando tudo o mais parecia

inapreensível por aquelas bandas, “deformado”, em todas as acepçôes da

palavra, nos EUA, que saíra fisicamente intacto do grande conflito,

coincidência ou não, a Minimal Art pôde concretizar seus elementos

“formais” claros, enfáticos. E mesmo seus happenings foram mais

“formalistas”, por assim dizer, que na Europa –, ao menos não eram tão

carregados de símbolos.

Os happenings do Fluxus eram permissivos, contavam

especialmente com a espontaneidade de não-atores, não-artistas,

consistindo em manifestações não-verbais por excelência, não-

seqüenciais, por definição, e multifacetadas por conseqüência e condição:

tratava-se de um fluxo contínuo envolvendo todas as existências no

mundo, matéricas ou não. Isto é, abarcava o que somos e o que não-

somos; o que não fomos e o que ainda podemos ser. Utilizando-se dos

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vários modos de se desviar a atenção, o comando central rezava o mundo

como fragmentação irreversível – este, sim, era a “forma” do “todo”.

Ora, a iniciativa não fora batizada de Fluxus à toa. O pensamento

que rege esta noção deriva de Heráclito de Éfeso. Para ele, o Todo é a

unidade de tensões opostas que administra todos os planos da realidade.

É uma constante transformação do mesmo, pois os contrários pertencem

a um só movimento perpétuo universal lógico e, portanto, só o Logos

pode distinguir a simultaneidade do múltiplo e a unidade fundamental

como harmonia oculta. Este eterno devir, a fugacidade dos momentos,

deve ser entendido e vivido como aquilo que é e nada mais. De fato, o

grupo mostrava um trabalho descompromissado – deixando que a

instabilidade e a efemeridade das coisas tomassem conta das sessões.

As coisas não se diferenciam – todas têm a mesma origem, destino e

valor – são iguais no turbilhão do Fluxus universal. Arte ou vida: são

contrárias ou idênticas? Tudo é tão somente um inexorável Fluxus

contínuo.

Ora, sendo assim, qual a “forma” da vida? Relembremos as

orientações de Bataille levadas adiante por Rosalind Krauss e Yve-Alain

Bois acerca do informe.10 Para o pensador, “informe” é termo pejorativo,

uma palavra destinada a classificar autoritariamente as coisas, exigindo

que tudo tenha “a sua forma”, que o universo seja Forma. Caso contrário,

as coisas assim não definíveis estão para sempre condenadas a uma

participação apenas gauche, marginal, no mundo: toscas, grosseiras,

rudes. Ou, pior, são matérias disformes – monstruosas, descomunais,

desmedidas. Tornar algo “formal” significa adequar-se à rotina, às

instituições oficiais, sem discussões. Ora, quem confere a “Forma” somos

nós, pois a vida em si é informe. Procurá-la no Fluxus é exercitar o

raciocínio o tempo todo. Desejá-la é participar do desejo de desinformar –

trocar a fôrma pela forma – desejar construí-la permanentemente.

O desejo de “antiforma”, tão procurada por Morris, fora inspirado nos

rituais pictóricos pollockianos nos quais a obra resulta de um processo

que envolve uma ação não-premeditada (respingar, derramar ou derrubar)

10 KRAUSS, Rosalind et BOIS, Yve-Alain . L’Informe.

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e um material não rígido (tinta fluída ou feltro maleável) como numa

performance. Tal tipo de trabalho não tem forma fixa, mas uma série de

instâncias. Para Morris, o objetivo era deslocar-se “para além dos

objetos”; nesse processo, o artista recapitulava algo dos eventos do

Fluxus baseados na execução de uma tarefa e da estética do acaso de

Cage. A mais conhecida realização de sua autoria data de 1967-68 – Sem

título (Emaranhado) – e tornou-se o emblema dessa postura.11 Também

Beuys não desejou outra coisa senão isto: como os homens, a cera, o mel

e o feltro são materiais que existem eternamente para a busca das

formas.

As coisas não acontecem tão isoladas como parecem numa primeira

visada. A filosofia zen-budista, adotada por alguns artistas da época,

defende a prática de uma contemplação desprovida do senso estático ou

passivo que caracteriza essa noção no Ocidente. Para tal orientação,

nada distingue as coisas individualmente: estas só existem em relação a

outras. Semelhante relativismo – no fundo, trata-se de um “vácuo” entre

as coisas –, diz que nada é real o suficiente para ser sistematizado. O

mundo é como é: uma não-consciência na qual os pensamentos não

deixam rastros. Sem dúvida, as áreas em branco dos desenhos de Beuys

e os longos silêncios das “músicas” de Cage prescrevem uma espécie de

valor zen-budista.

O zen-budismo proíbe o uso de sistemas transcedentais ou

exercícios espirituais. Não se aprende com a experiência ou a prática, e

sim por insights imediatos. Os adeptos são treinados para esvaziar a

mente de todas e quaisquer definições prévias. Não devem responder às

questões com palavras ou ações simbólicas – não representam, afinal:

não comentam os acontecimentos, apenas observam. As respostas

emanam de um nonsense – a mente deve responder aos impulsos com

algo instantâneo, sem pensar ou interpretar, e principalmente, sem

ajuizar. As imagens artísticas não devem representar – tudo é o que é. Na

seqüência deste entendimento, dispensamos o óbvio resgate do ponto de

vista dadaísta ou surrealista.

11 BATCHELOR , David. Minimalismo. p. 40.

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5.5 A matéria é a mensagem Environments, happenings, performances e seus correlatos visam,

assim, tratar o corpo humano como matéria de arte e, dentro disto, então,

podem subdividir-se em outras tantas nuances: o corpo em si mesmo

apresentado por um artista cujas sensações passam ao espectador, dono

que é de um outro corpo sensível e capaz, portanto, de avaliar os

acontecimentos sofridos pelo artista; ou o corpo perceptivo do espectador

chamado a participar de sensações espaciais – as futuras instalações –

preparadas num environment. A performance, talvez o mais primevo

desses empreendimentos, reúne os conceitos de ser humano, de arte, de

objeto e de artista. Já vimos a maioria dessas questões, mas, e o artista,

como fica nisto tudo? Vejamos, novamente, com Argan:12

O artista existe, e existe porque faz: não diz o que deve ou quer

fazer no e para o mundo, cabe ao mundo dar um sentido ao que faz. Em verdade, a única coisa que pode fazer é justamente, a existência: certo ou errado, supõe realizar na arte um tipo de existência “autêntica” negado à média social.

Após alguns anos de prática, as apresentações dos trabalhos

experimentais ao vivo tornaram-se translações de conceitos que

exageraram suas qualidades e intenções. O resultado destes avanços

freqüentemente beiraram abstrações que só faziam confundir mais e mais

as muitas definições. O artista do Fluxus era instado a criar uma

impressão overall – visual, auditiva, etc..., ou seja, promover assemblages

artístico–sensoriais, utilizando-se de objetos, narrativas, músicas, ballet,

poesias, o que fosse necessário para tornar sensível esta ou aquela

compreensão. Ou a confusão originária? Assim, o observador,

hiperestimulado, seria capaz de alcançar um insight particular sobre a

experiência demonstrada pelo performer. Abduzindo o público, “arte &

homem” poderiam ser avaliados simultaneamente por todos – quais as

suas funções no mundo? A fórmula pretende-se acessível: materializando

12 ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. p. 538.

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um “conceito” de arte assim como a prática dessas teorias, a obra poética

– a poiesis – estaria amplamente desvelada.

De maneira geral o que estava acontecendo, tanto na Europa quanto

nos EUA, talvez fosse uma efetiva reabilitação do corpo perceptivo – a

pergunta genérica pousava sobre os motivos que animavam

simultaneamente as posturas de um lado e de outro do Atlântico. E mais:

qual a diferença, a esta altura dos acontecimentos, entre os estímulos

políticos, existenciais ou artísticos? Figuras expoentes como Joseph

Beuys ou Nam Paik vão pôr à prova tais pseudofronteiras. Estas são

obras que foram concebidas na mesma ordem espaço-temporal de

nossas vidas, de nossos corpos. Decerto que o pensador que comandava

a intuição estética destes tempos era Merleau-Ponty. Suas considerações

críticas acerca das leituras correntes sobre a fruição da obra de arte

condicionada a visões pré-situadas estavam sendo demonstradas em

atos.

Embora iconoclastas, os artistas do Fluxus dissimulavam metas

infinitamente mais humanas que muitos outros produtos ditos

“humanistas”. O modus operandi do grupo exibiu uma estreita

proximidade poética com a Pop e com a Minimal, que, mal ou bem, se

afeiçoaram à vida terrena. Consistiam, afinal, em atos extremos de

autopiedade ou de autoconsciência? A já citada Coluna de Morris não

retém qualquer conteúdo – era apenas um dispositivo que solicitava mais

e mais para ver, sentir e pensar. A consciência de cada indivíduo

estrutura cada experiência diferentemente de qualquer outro.

O Fluxus e mesmo as inserções extraordinárias de Morris nos EUA

avançavam na direção do entendimento de que quanto menos

estruturada fosse a ocasião teatral, mais se assemelharia com a

desestruturação do dia-a-dia e maior seria o estímulo da faculdade de

(re)estruturação de cada indivíduo da platéia. Pela aridez estética, ao

contrário do mormente suposto, sempre teríamos muito para ver e sentir.

A esta altura dos acontecimentos, a Minimal corria atrás do mote “menos

é mais”, Beuys ordenava simultanemente o retorno aos mitos e símbolos

e as conexões entre os vários meios artísticos.

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Ora, ao privilegiar o entendimento das energias poéticas em

detrimento dos resultados estéticos – “produtos de arte” –, ou mesmo

deixando apenas uma meia dúzia de produtos “inestéticos” como

vestígios históricos, o que estava sendo enviado pelo Fluxus como

“mensagem” deve-se aos seus meios pervarsivos – a exibição do “meio”

de produção da vida, de seus “meios” operacionais. Assim procedendo,

nada disto consistia numa novidade se considerarmos que a teoria em

moda e suas aplicações dirigiam-se a um processo de retribalização. O

profeta era o canadense Marshall McLuhan: o meio é a mensagem.

5.6 EUA x URSS Politicamente mais fraco (ou independente?) que os dadás originais,

o Fluxus ganhou força, et pour cause, na década de maior euforia

sociopolítica dos EUA de Kennedy e da Alemanha pós-Adenauer. Os

happenings estavam in, vivia-se o alvoroço e a força moral de uma

autêntica rebelião. Não chegaram a contaminar amplamente o processo

cultural público, assim como o dadá original também não o fizera. Muito

embora o momento fosse propício: a Pop Art e a Minimal foram

excelentes nessa área. Luzes, sons, movimentos, atividades artísticas em

seqüências feéricas caracterizam o ritmo dos acontecimentos nova-

iorquinos. Deste lado do Atlântico, os eventos mostraram-se mais

burlescos, farsantes, circenses: preparam a hegemonia de uma cultura

vernácula, dos comics e dos graffiti das décadas seguintes.

Ou seja, os happenings, Pollock, Kaprow ou Fluxus consistiam, se

muito, numa anarquia cultural light aos olhos mormente pervertidos dos

governos envolvidos na temerosa Guerra Fria. De fato, por mais que nos

esforcemos, não logramos entrever grandes laços políticos com os

movimentos de “esquerda” da época, não obstante os patrulhamentos de

Maciunas, que desejava evitar a todo custo a infiltração da “alta cultura”

no seu front artístico. Para o eixo teuto-americano, os anos 50/60 só

foram “apolíticos”, “não-ideológicos”, hoje sabemos, para os olhos

ingênuos: ou seja, para a maioria da população. Os grandes produtores

das catástrofes do século XX, estavam agora “quietos”, cada qual em seu

canto, de “castigo”. Ora, isto era, ou não, uma ideologia – uma “cultura

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administrada”? Exemplo contrário encontramos na França bombardeada,

na mesma época, pelo existencialismo de Sartre ou na Inglaterra, com

sua então nascente Pop Art de essência política.

A comunhão democrática entre sensações e mídias promovida pelo

Fluxus foi confundida eventualmente com uma adesão aos princípios

socialistas que versavam, grosso modo, sobre temas “delicadíssimos”

como quebra de fronteiras ou diferenças de classes. Ora, apesar das

teorias, lembremos que os EUA alimentava a ilusão de uma existência

permeada por uma “igualdade de classes”, enquanto a Europa lutava

corpo-a-corpo, por assim dizer, com os avanços soviéticos por centímetro

de terreno sem, no entanto, qualquer intenção de épater les bourgeois.

Afinal, os burgueses, ao menos neste assunto, estavam do mesmo lado

do muro que a maioria dos artistas europeus, ainda que os motivos

fossem de outra ordem.

Além do mais, quem ainda se surpreendia com tais propostas? Suas

formas há muito tinham sido digeridas, e a Arte, legitimada pela máquina

cultural, pertencia, agora, à área administrativa governamental. Mais um

truque político? Certamente. Fato é que tanto a Alemanha quanto os EUA

mostraram uma recuperação domesticada do modernismo: como poderia

ser diferente na época do consumo cultural de massa e do vanguardismo

institucionalizado? Todo e qualquer “ataque” artístico deveria apresentar

um low-profil, uma postura inofensiva com aparência de uma rebelião

estética. Lucidez ou fraqueza política?

De fato, a brutalidade política instalada pós-Nagasaki não deixara

muito espaço para as intervenções estéticas. O que poderia distrair o

medo constante instalado pela ameaça full time de uma guerra nuclear –

ou seja, por uma destruição geral e definitiva? Sob a ameaça de uma

guerra nuclear, somos todos idênticos na mesma desventura – tudo é

equivalente e com igual valor. Estamos no mesmo barco – o fim que se

armava no horizonte seria um espetacular all-over. Contra este

pessimismo receitava-se, dentre outras iniciativas, um ânimo renovador,

prescrevendo a repetição, a serialidade e, enfim, as estratégias da Pop

que mostraram largamente que tudo merece a nossa atenção. È o tal do

aqui & agora.

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O que reside, então, como questão é se o Fluxus, assim como o

dadaísmo, que trabalhou com a dialética sensível do acaso e das

indeterminações – da incidência repentina do não-intencional –,

equiparou-se às outras tantas fontes de medo generalizado propiciada

pela tal potencial batalha final. Muito interessante mas não seria, sem

dúvida, uma leitura oblíqua visando justificar o motivo das parcas

presenças populares às apresentações inegavelmente generosas do

grupo.13 Ora, o medo do objeto, da aventura estética, é o medo de si

mesmo!

Mesmo a capa zen-budista incorporada por alguns de seus

integrantes não logrou mantê-los fora de tal tramóia política que,

pensando bem, se não os aliciava, desfrutava largamente de suas

inofensivas desordens poéticas, que conferiam uma conveniente

atmosfera democrática ao ambiente. Para aquelas estratégias políticas,

esses performers não passaram de curiosos naïfs, divertidos bobos da

corte.

5.7 Multi, inter, mix e mass midia A recusa dos novíssimos meios tecnológicos advindos do acelerado

hiperdesenvolvimento industrial convocado pela guerra pouco durara. Os

céleres avanços da área tiveram então de ser computados e tratados com

as devidas ironias e possibilidades, Nam Paik que o diga. Tratava-se,

afinal, de um purismo tolo, afinal: o triunfo das novas mídias estava

praticamente declarado àquela altura da existência. Ora, a rejeição fazia

parte de uma rigidez cultural e estúpida a tal ponto que imaginava-se

possível conter os crescimentos comunicacionais com posturas

antiquadas, privilegiando o contato físico entre aldeões. Não passava de

um incesto intelectual que gerava monstros em profusão, como num

exquise surrealista ou como um projeto genocida.

Multimídia não é, no entanto, o termo correto para as ampliações

promovidas pelo Fluxus. Um de seus integrantes cunhou o termo

“intermídia” para designar os tipos de arte que ocupavam as áreas até

13 HONNEF, Klaus. Arte do século XX. pp. 138-139.

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então “vazias” entre elas. O problema, então, não residia tão somente no

isolamento das artes, mas, sobretudo, no vácuo existente entre elas. A

“intermídia” procedia por subtrações e reduções.

E, atenção: nada disto era constante de qualquer programa próximo

às premissas inclusivas do Gesamtkunstwerk (obra de arte total), aos

moldes de Wagner ou mesmo da Bauhaus. O que movia a vontade do

grupo era a “reunião” e não a “dissolução” das artes em uma só definição

– movimento que a tornaria apenas mais uma tendência dentre outras

tantas do início do século. Tratava-se de um “mixmídia” que visava

provocar uma sinestesia, um conjunto de sensações voláteis e informes,

como tudo o mais na vida. Decerto que tais sinfonias artísticas

concordavam com os pensamentos de “vacuidade” zen-budista, com o

combate pelo “informal” promovido por Bataille e com o “Fluxus universal”

de Heráclito.

O artista mais afeiçoado às questôes tecnológicas ligado ao Fluxus é

o coreano Nam June Paik que circulou nos ambientes acadêmicos de

Stockhausen. Um dos primeiros participantes da aposta, o artista

consolidou fortes relações com John Cage, antes mesmo da

“oficialização" do grupo. Paik cedo apontou um, talvez, o maior problema

a ser enfrentado pelas gerações posteriores – a convivência

necessariamente pacífica com o crescente high-tech de um vigésimo fin-

de-siècle.

Resta claro que Paik jamais compartilhou do receio marxista de

Adorno sobre um possível controle remoto dos discernimentos políticos,

das facções mais conservadoras. Mas, ao contrário, o artista tinha como

meta algo bem próximo ao que McLuhan havia, de certo modo, proposto:

procurar entender a mídia, o seu poder, a explorar suas possibilidades

estéticas: conviver, afinal, com um fator inevitável. A crítica, se é que Paik

algum dia teve tal interesse, correu endereçada à sociedade de consumo,

sem jamais abandonar as possibilidades poéticas ou estéticas de seus

instrumentos: é a TV que formata o seu trabalho e não o que se passa na

tela.

Tratava-se, logo no início de suas participações-Fluxus, de

vídeoesculturas – empilhados, os aparelhos decidiam uma área

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tridimensional cuja superfície coberta por écrans aviam movimentos de

caráter cibernéticos – veja-se, por exemplo, as obras intituladas Moon is

the oldest TV e Zen for TV, ambas de 1963. Somente mais tarde – em

1965 – Paik aviará a integração dessas esculturas ao Video-Art

simultaneamente.

Porém, se vamos começar a falar em difusões imagéticas, em

mídias, massificadas ou explicitadas, deixemos que as obras de Beuys e

Warhol recitem por nós as suas fórmulas. Estes são os artistas que

ditarão a conduta ética necessária para o entendimento contemporâneo e,

por que não dizer, para a sobrevivência contemporânea.

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