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Histórico Os "hippies" (no singular, hippie) eram parte do que se convencionou chamar movimento de contracultura dos anos 1960 tendo relativa queda de popularidade nos anos 1970 nos EUA, embora o movimento tenha tido muita força em países como o Brasil somente a partir da década de 70. O movimento foi encerrado no Brasil no final da década de 80, início dos anos 90 e, por força do governo militar da época que desaprovava a conduta dos adeptos deste movimento, não aturando mais sua interferencia em questões políticas, além de provocações verbais aos cidadãos que não eram a favor. Uma das frases ideomáticas associada a este movimento foi a célebre máxima "Paz e Amor" (em inglês "Peace and Love") que precedeu á expressão "Ban the Bomb" , a qual criticava o uso de armas nucleares. As questões ambientais, a prática de nudismo, e a emancipação sexual eram ideias respeitadas recorrentemente por estas comunidades. Adotavam um modo de vida comunitário, tendendo a uma espécie de socialismo-anarquista ou estilo de vida nômade e à vida em comunhão com a natureza, negavam o nacionalismo e a Guerra do Vietname, bem como todas as guerras, abraçavam aspectos de religiões como o budismo, hinduismo, e/ou as religiões das culturas nativas norte-americanas e estavam em desacordo com valores tradicionais da classe média americana e das economias capitalistas e totalitárias. Eles enxergavam o patriarcalismo, o militarismo, o poder governamental, as corporações industriais, a massificação, o capitalismo, o

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autoritarismo e os valores sociais tradicionais como parte de uma "instituição" única, e que não tinha legitimidade. O termo derivou da palavra em inglês hipster, que designava as pessoas nos EUA que se envolviam com a cultura negra, e.x.: Harry The Hipster Gibson. Em 6 de setembro de 1965, o termo hippie foi utilizado pela primeira vez, em um jornal de São Francisco, um artigo do jornalista Michael Smith. A eclosão do movimento se deu em consequencia do surgimento da chamada Geração Beat, os beatniks, uma leva de escritores e artistas que, primeiramente, assumiram os comportamentos copiados pelos hippies. Com a palavra "beat", John Lennon, transformado em um dos principais porta-vozes pop do movimento hippie, criou o nome da sua banda - The Beatles. Tanto o termo beatnik como o termo hippie assumiam sentido pejorativo para a grande massa norte-americana.

Estilo e comportamento

O símbolo da paz foi desenvolvido na Inglaterra como logo para uma campanha pelo

desarmamento nuclear, e foi adotado pelos hippies americanos que eram contra a guerra nos anos

60.

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Nos anos 60, muitos jovens passaram a contestar a sociedade e a pôr em causa os valores tradicionais e o poder militar e econômico. Esses movimentos de contestação iniciaram-se nos EUA, impulsinados por músicos e artistas em geral. Os hippies defendiam o amor livre e a não-violência. O lema "Paz e Amor" sintetiza bem a postura política dos hippies, que constituíram um movimento por direitos civis, igualdade e anti-militarismo nos moldes da luta de Gandhi e Martin Luther King, embora não tão organizadamente, mantendo uma postura mais anárquica do que anarquista propriamente, neste sentido. Como grupo, os hippies tendem a viver em comunidades coletivistas ou de forma nômade, vivendo e produzindo independentemente dos mercados formais, usam cabelos e barbas mais compridos do que era considerado "elegante" na época do seu surgimento. Muita gente não associada à contracultura considerava os cabelos compridos uma ofensa, em parte por causa da atitude iconoclasta dos hippies, às vezes por acharem "anti-higiênicos" ou os considerarem "coisa de mulher". Foi quando a peça musical Hair saiu do circuito chamado off-Broadway para um grande teatro da Broadway em 1968, que a contracultura hippie já estava se diversificando e saindo dos centros urbanos tradicionais. Os Hippies não pararam de fazer protestos contra a Guerra do Vietname, cujo propósito era acabar com a guerra. A massa dos hippies eram soldados que voltaram depois de ter contato com os Indianos e a cultura oriental que, a partir desse contato, se inspiraram na religião e no jeito de viver para protestarem. Seu principal símbolo era a Figura circular com 3 intervalos iguais.

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As gírias hippies surgiram no Brasil principalmente nos anos 70 e se tornaram tendência entre os jovens e atualmente são usadas com menos freqüencia, mas muitas nunca deixaram de ser usadas por jovens e "coroas" (que é uma gíria hippie).

Barra - Dificuldade Bicho - Amigo Bicho Grilo - Hippie Biônico - Político nomeado pelo governo Bode – Confusão ou ressaca Burguês – Pessoa ligada na moda, em marcas; classe alta Caô - conversa fiada; mentira Cara – pessoa; quantidade; porção Coroa - pessoa não-jovem (mais de 50 anos) Corta essa! - desiste, muda (exclamação) Dar o cano - quebrar compromissos Dar um giro - sair, passear Eu tô que tô - Eu estou muito bem Falou - Tchau, Até Mais Falou e disse - afirmou com propriedade Fazer a cabeça - mudar a cabeça de alguém Goiaba - Bobo Jóia - Tudo bem Massa - Legal Meu - pessoa, cara Parada - Negócio Patota - Galera Paz e amor - Tranquilo, tudo bem (!) (?) Pô - Exclamação de contrariedade

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Podes crer - Acredite Psicodélico - Estranho Sacar - entender Véio - amigo Velha e velho - pai e mãe

Outras características associadas aos hippies

Roupas velhas e naturalmente rasgadas, para ir em oposição ao consumismo, ou então roupas com cores berrantes para fazer apologia a psicodelia, além de diversos outros estilos incomuns (tais como calças jeans surradas, camisas tingidas, roupas de inspiração indiana).

Predileção por certos estilos de música, como rock psicodélico Rolling Stones, The Beatles, Grateful Dead, Jefferson Airplane, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Led Zeppelin , Creedence, The Doors, Pink Floyd, Steppenwolf, Bob Dylan, Raul Seixas, Neil Young, Mutantes, Zé Ramalho, Secos e Molhados, os tropicalistas (Caetano, Gil, etc), Novos Baianos, A Barca do Sol, soft rock como Sonny & Cher, Hard Rock como The Who, e em alguns casos até o grunge como Nirvana. Também apreciavam o Goa Trance, isto, quando hippies viajantes, buscadores espirituais e um sem-número de pessoas ligadas a manifestações de contracultura, munidos de conhecimento técnico de produção de música electrónica e de um puro desejo de curtir e experimentar, desenvolveram, de forma intuitiva, um novo estilo sonoro. Um dos principais fundadores deste movimento foi Goa Gil.

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Às vezes tocar músicas nas casas de amigos ou em festas ao ar livre como na famosa "Human Be-In" de San Francisco, ou no Festival de Woodstock em 1969. Atualmente, há o chamado Burning Man Festival.

Amor livre e sem distinções. Ideais anarquistas de comunidades igualitárias e total

liberdade não violenta. Rejeição à produtos de beleza, giletes de barbear,

shampoos ou outros instrumentos artificiais. Vida em comunidades onde todos os ditames do

capitalismo são deixados de lado. Por exemplo, todos os moradores exercem uma função dentro da comunidade, as decisões são tomadas em conjunto, normalmente é praticada a agricultura de subsistência e o comércio entre os moradores é realizado através da troca. Existem comunidades hippies espalhadas no mundo inteiro; vivem para a subsistência.

O incenso e meditação são parte integrante da cultura hippie pelo seu caráter simbólico e quase religioso;

Alguns faziam uso de drogas como marijuana (maconha), haxixe, e alucinógenos como o LSD e psilocibina (alcalóide extraído de um cogumelo), visando a "liberação da mente", seguindo as idéias dos beats e de Timothy Leary, um psicólogo proponente dos benefícios terapêuticos e espirituais do LSD. Porém muitos consideravam o cigarro feito de tabaco como prejudicial à saúde. O uso da maconha era exaltado também por sua natureza iconoclasta e ilícita, mais do que por seus efeitos psico-farmacêuticos;

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Culto pelo prazer livre, seja ele físico, sexual ou intelectual. Repúdio à ganância e à falsidade. Quanto à participação política, mostravam algum

interesse, mas nunca de maneira tradicional. Eram adeptos do pacifismo e, contrários à guerra do Vietnã, participaram de algumas manifestações anti-guerra dos anos 60, não todas, como se acredita. Nos EUA, pregaram o "poder para o povo". Muitos não se envolvem em qualquer tipo de manifestação política por privilegiarem muito mais o bem estar da alma e do indivíduo, mas assumem uma postura tendente à esquerda, geralmente elevando ideais anarquistas ou socialistas. São contra qualquer tipo de autoritarismo e preocupados com as questões sociais como a discriminação racial, sexual, etc.

Fome intelectual insaciável. Raramente são adeptos à muitas inovações tecnologicas, preferindo uma vida distante de prazeres materiais.

Misticismo.

Legado

Hippies relaxando no festival de Woodstock, um marco do movimento hippie

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Por volta de 1970, muito do estilo hippie se tornou parte da cultura principal, disseminando a sua essência por todas as áreas das sociedades atuais. A liberdade sexual, a não-discriminação das minorias, o ambientalismo e o misticismo atual são, em larga medida, produto da contestação hippie. No entanto, a grande imprensa perdeu seu interesse na subcultura hippie como tal, apesar de muitos hippies terem continuado a manter uma profunda ligação com a mesma. Como os hippies tenderam a evitar publicidade após a era do Verão do Amor e de Woodstock, surgiu um mito popular de que o movimento hippie não mais existia. De fato, ele continuou a existir em comunidades mundo afora, como andarilhos que acompanhavam suas bandas preferidas, ou às vezes nos interstícios da economia global. Ainda hoje, muitos se encontram em festivais e encontros para celebrar a vida e o amor, como no Peace Fest e nas reuniões da família arco-íris. No Brasil temos algumas comunidades Hippes espalhadas por praias e comunidades alternativas. Neste contexto, destacam-se a cidade mineira de São Tomé das Letras, o vilarejo Trindade em Parati, RJ, Pirenópolis em Goias, Trancoso na Bahia, etc. No cenario musical, destacam-se o cantor Raul Seixas (que provavelmente veio a ser o maior cantor hippie da historia nacional) e a banda Mutantes, que fizeram grande sucesso nos anos 60 e 70 e tem milhares de fãs ainda hoje. Na cena musical contemporânea, destaca-se o cantor Ventania, baseado em São Tomé das Letras, MG. Ventania tem em seu repertório inumeras obras, que falam desde o livre pensar ao desapego material, cultuando a natureza e os ideais Hippes.(*)fonte wikipedia.org

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Prefácio

A idéia é passar ao leitor, a imagem interna de um movimento que

embora a princípio não tivesse grandes ambições, já que no Brasil

surgiu a partir dos reflexos e moldes do movimento americano pós

Vietnã, se notabilizou por sua postura alternativa, sendo responsável

por uma revolução silenciosa em plena ditadura militar, mas que

influenciou o comportamento de toda uma geração o que se refletiu em

gerações futuras até os dias de hoje. Sempre à frente do seu tempo,

trouxeram a tona discussões referentes a drogas, liberação sexual,

liberdade de expressão, música e meio ambiente, além da quebra de

correntes enraizadas e preconceituosas com relação a credo, raça e

orientação sexual.

Desmistificando a idéia de andarilhos drogados, sujos e parasitas que

conceituam essa expressão até hoje, tentamos mostrar aqui, uma

forma mais livre de lutar contra a opressão, sem se deixar corromper

pela mídia e o falso moralismo de uma época cinza de nossa história,

trazendo novo sentido ao jeito hippie de ser.

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Nota do autor

Não há nestes escritos a pretensão de trazer a tona neste momento,

discussões ideológicas, políticas ou teológicas, tampouco servir como

base de pesquisas com relação a datas, regime ou desaparecidos. A

intenção é descortinar uma época que embora vivêssemos sob a batuta

de um governo militar, de normas e padrões rígidos, pouca influência

exerceu sobre aquelas pessoas e que na verdade só queriam mostrar

que a liberdade não está diretamente ligada a locais circunscritos ou a

exposições deliberadas, ela é latente e inerente a cada um de nós

independente de seu posicionamento.

As passagens aqui narradas são fatos verídicos, já a filosofia, depende

mais da ótica de cada um. Alguns fatos, pela própria dinâmica da

narrativa e valendo-me de minha licença como autor, apresentam-se

mais ou menos incisivos de acordo com exigência de cada situação e os

nomes dos envolvidos estão propositalmente preservados, afinal

estamos falando de pessoas reais, embora a essência permaneça

intacta.

Insidiosa a vida fez com que vivêssemos tempos remotos em nosso país,

porém de forma paradoxal e até incoerente nos deixou recordações e

marcas de tempos em que a grande maioria gostaria de esquecer, mas

nós não.

Du Valle

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Ambiente

1977, periferia de Belém, vila de Icoaraci, época de explosão da

disco music: Donna Summer, Tina Charles, Santa Esmeralda e

outros. Num paradoxo paralelo os “dinossauros” pareciam não se

incomodar e faziam suas guitarras rangerem fortes e viscerais,

arrebanhando os inconformados com a musicalidade pop, marcada

e “burguesa” que se instalava nos bares e discoteques. Led, Purple,

Sabbath, Rush davam o tom metálico a vida da moçada que não

agüentava mais o Patrick Hernandez e seu “born to be a live”.

Dias de repressão militar, vivíamos o crepúsculo de uma ditadura

que nunca deveria ter se instalado, os “Chicos” e “Caetanos” já

começavam a voltar, junto com os “Fernandos”. Alguns “Sarneys”

sabe-se lá Deus porque, nem precisaram ir, aliás o José, por uma

daquelas coisas inexplicáveis da política brasileira, depois da

frustrada “diretas já” e a morte “repentina” de Tancredo no dia de

sua posse, assumiu o poder tornando-se o primeiro presidente civil

pós ditadura e continua lá até hoje, mas, essa é outra história que

ainda esta sendo contada.

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Nossa liberdade, mesmo que tardia, veio capitaneada por festivais

de rock nos cinemas da cidade. O cine Palácio, do grupo Severiano

Ribeiro, tradicionalíssimo reduto da burguesia paraense,

aproveitando a euforia crescente vinda da periferia, mas que se

espalhou como um vírus dentro do seio de famílias influentes na

cidade através de seus filhos, já um tanto americanizados, rendeu-

se ao fato de que o Rock era uma realidade e resolveu incorporar

em sua programação uma sequência de filmes e shows que haviam

mudado a mentalidade e o comportamento dos jovens americanos

durante a guerra do Vietnã no final dos anos 60 e que de certa

forma refletiam a inquietude dos nossos jovens no momento

político que se desdobrava naquele Brasil dos militares. Enquanto

alguns mais esclarecidos politicamente, entregavam-se de corpo e

alma as lutas de classes, incorporando os ideais bolcheviques e

cheguevarianos, lutando em passeatas promovidas pelos

movimentos de esquerda, outra vertente via na fórmula americana

de uma década atrás uma oportunidade de lutar, transgredindo as

regras e impondo de forma alternativa e veemente sua liberdade

para uma aceitação obrigatória pelas autoridades, as quais já

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tinham distúrbios demais pra se preocupar e não se importariam

muito com aqueles cabeludos baderneiros “apolitizados”.

O festival de Woodstock, um marco da rebeldia americana,

influenciou toda uma geração brasileira que passou a descobrir as

cores, a música, a liberdade e as drogas. Bandas surgiam no

cenário nacional dando ênfase a esta nova visão de mundo. O

“Hair” ditou as regras, ou a ausência delas, tornando-se item

obrigatório para se dizer convictamente “sou livre”. O amor

inocente, a irresponsabilidade, os baixos índices de violência

urbana, a amizade inconteste, a cumplicidade na contravenção, a

propagação das reuniões dos “malucos”, os discos de vinil

importados que faziam sucesso nos “bailes de Rock”,

caracterizavam um novo movimento enquanto o “guru” Raul

bradava uma utópica sociedade alternativa.

A velha Praça da República abrigava sempre os tipos mais diversos

e esquisitos, os policiais não sabiam bem o que fazer, então, só

olhavam a distância, talvez achassem que era ousadia demais em

plena repressão uma “cara” de tipos exóticos, vestidos com roupas

hiper coloridas com bolsas feitas de calça Jeans, e umas “minas”

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lindas de cabelos enormes e cacheados que não faziam nada a não

ser sentar no gramado, tocar violão a noite inteira dançando e

pulando ao som de Joe Cocker, Janis, Hendrix, Pink e outros, sem

interferir na “normalidade aparente das coisas”. De vez em quando

a guarda montada chegava perto, só pra checar aquele cheirinho

de mato queimado ou aquelas garrafinhas que circulavam de mão

em mão, mas nunca de forma violenta, às vezes um “baculejo”, um

flagra, uma noite em “cana”, mas nada que uma vaquinha dos mais

abastados não resolvesse no dia seguinte.

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O Hair.

O cinema Palácio exibiu, contrariando a toda uma sociedade rígida

e burguesa, uma sequência memorável de filmes e shows que

durou uma semana: Rock é Rock Mesmo, O Último Concerto de

Rock, Woodstock, Tommy, The Wall etc. parecíamos estar vivendo

uma nova era realmente, a nossa era de aquário começava ali.

Naquelas tardes, durante a semana, entravamos no cinema na

primeira seção, que servia para assistirmos o filme, mas só saíamos

na última onde transformávamos o cine em um verdadeiro festival

de estripulias, alto consumo de álcool e alguns mais exaltados

acendiam seus “baseados” ali mesmo, subíamos no palco do

cinema, pulávamos uns sobre os outros, enlouquecíamos com

Alvin Lee, aquele guitarrista “branquelo”, os seguranças a princípio

reagiram com rigor, mas depois não conseguiram controlar aquela

horda de tatuados que até então se escondiam esgueirando-se

pelos becos sombrios da cidade, mas que agora podiam mostrar a

cara, transgredindo acordos silenciosos de serenidade e mostrando

ao mundo uma nova filosofia de vida fundamentada na comunhão,

cumplicidade e não violência. Beijos, abraços, afetos explícitos

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então faziam parte daquela alegria contagiante dos adolescentes,

que visualmente assustavam, afinal, no lugar das orelhas desnudas,

ostentavam plumagens coloridas, os colares eram de dentes ou

utensílios variados que iam desde simples adornos e crucifixos até

cadeados e caveiras de animais mortos. Tudo pra mostrar uma

diferença, marcar um território e agredir uma burguesia

supostamente conivente com a atual situação política do país.

Quando entravamos nos coletivos, as pessoas se afastavam,

murmuravam, alguns xingavam e chegavam a agredir fisicamente

pelo simples fato de não sermos iguais. Preconceito aflorado, mas,

de certa forma gratificante: estávamos conseguindo nosso

objetivo, afinal, chocavamos sem desferir uma única palavra.

“Em nossas jornadas internas, aprendemos que as pessoas são

diferentes umas das outras, que o mundo das pessoas, não é o

mesmo das coisas, nem o mesmo dos bichos, tampouco da outra

pessoa. Aprendemos a viver num mesmo espaço físico e na mesma

fração de tempo, mas, somos de mundos diferentes, viemos de

mundos diferentes e nosso subconsciente sabia disso, tentamos nos

adaptar a essa esfera para que pudéssemos caminhar juntos,

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porém as notas dissonantes do eu profundo aflorava nos

momentos mais inusitados, aqueles momentos que agíamos por

impulso ou movidos por um sentimento forte que embriagava a

lucidez.

Embora achássemos que existam inúmeras espécies de humanos,

sabíamos desde aquela época, o que se confirmou ao longo dos

anos, que o mundo era regido por três categorias principais de

pessoas: os práticos, os sutis e os normais.

Os práticos ou realistas, são resolutos, objetivos, buscam e

normalmente conseguem o que querem, são grandes chefes de

estado, altos generais, políticos de toda ordem, empresários de

renome, não desviam o foco de sua escalada, isso às vezes os

tornam frios e solitários na multidão, mas são importantes, pois,

normalmente determinam os rumos de nossas vidas cotidianas.

Já por outro lado os sutis, são sonhadores, acreditam no sublime,

confidenciam com a oportunidade a maneira de melhor usá-la, têm

a capacidade de isolarem-se na multidão por escolha própria. Sabe

aquele cara que no meio de uma reunião importante com o chefe

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do departamento, desconcentrou-se porque percebeu a chuva lá

fora? Ou a luta da lagartixa pra pegar o inseto na parede? Sabe

aquele cara que chega atrasado todo dia por que faz o caminho

mais longo, mas passa pela praia? Ou é capaz de esquecer o

aniversário do seu amor, mas chega numa terça-feira qualquer, à

tarde com um ramo de flores na mão, que notadamente foram

roubadas da vizinha? Mas que ela não se importa porque ele toca

uma linda canção feita para aquele momento? Pois é, esse é um

cara sutil.

Já os normais, bem os normais são os que elegem os práticos seus

representantes, lutam nas guerras que eles promovem, buscam

melhorar de vida dentro do sistema por eles criado, não se

rebelam, mas criticam e aplaudem os sutis. Esses são paradoxos

dos milhares de espécimes de humanos e seus mundos

particulares”.

Quando o filme “Hair” apareceu no circuito, foi o ápice da

afirmação desse movimento, afinal, ali estava tudo o que

pregávamos contado de forma pura e sublime, sem violência com

muita musicalidade, protestos ocultos em meio à amizade, o amor

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incondicional, a comunhão de negros e brancos o sepultamento

definitivo de todo tipo de preconceito, algo que jamais

imaginaríamos que pudesse ser transportado para as telas, mas

que Milos Forman, como que se lesse nossas mentes conseguiu

mostrar.

Foi um marco divisor em nosso caminho, só se falava em George

Berger e sua trupe, a cidade, não parecia mais tão interessante, os

bailes continuavam acontecendo, cada vez mais frequentes, os pais

dos outros já eram mais tolerantes, todo fim de semana se fazia

reunião na casa de alguém. Alguns deles foram bem folclóricos

quando, por exemplo, na danceteria Shock dance Club (hoje no

local, ironicamente, funciona o templo maior de uma igreja

protestante) nos vestíamos a caráter, cada um com uma alegoria

que remetesse a um ídolo da época. Eu resolvi me caracterizar de

Alice Cooper, com aquele sangue escorrendo pela boca, outro com

um cadeado e uma enorme corrente no pescoço e outro ainda com

um alfinete de bebê enfiado no nariz. Quando entramos no ônibus,

todos se assustaram e a parte de traz ficou vazia, pior pra eles,

pudemos viajar tranquilamente sentados. Ao chegar ao local, ainda

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na parte externa, uma senhora me abraçou e disse “a paz do

Senhor irmão, ele não vai deixar que tomem conta do seu corpo”,

tive medo que ela se apossasse do meu corpo, foi difícil ela me

largar, ficou com a blusa suja de batom e ainda apagou o sangue

da minha boca. Em outra ocasião um amigo já “rodado”, um dos

mais velhos do grupo, deu um baile em sua casa pra comemorar o

aniversário de seu pai, preparou um bolo com folhas de maconha e

um coquetel com vários produtos alucinógenos que comprara na

farmácia e serviu pro velho, só pra observar sua reação durante a

noite, não deu certo, o velho apagou no primeiro gole e fomos

expulsos. Não satisfeito convocou todos a continuar a festa em

uma casa próxima que pertencia à família, onde na parte da frente

funcionava uma quitanda, não preciso dizer que antes de

passarmos para a parte de traz da casa, demos uma baixa

significativa nas frutas que encontramos pelo caminho, depois

fomos finalmente para os fundos, ao que consigo me lembrar rolou

muita cachaça com limão e chás esquisitos, lá pelas tantas o

anfitrião resolveu acordar todo mundo com um ritual macabro

onde o som de fundo era a “missa negra”, com Ozzy & cia, no auge

da execução aconteceu uma “parada sinistra”, faltou energia na

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casa, e sabe-se lá porque o som continuou tocando, todo mundo

“vazou”, me lembro que tinha um maluco que dormia no alto de

uma caixa d’água, coisa que ele também não explica como

conseguiu subir e tampouco como desceu com tanta rapidez.

Lembro-me de meses antes ter ido a um “baile” em um clube na

BR, junto com a turma de amigos punks, dos quais eu fazia parte,

mas quando chegamos lá, pela primeira vez, tive sensação de

estarmos maltrapilhos, com aquelas roupas improvisadas e que

agora me parecia tão óbvio que na verdade era apenas falta de

recurso para me sentir realmente bem com minha nova situação. A

turma que estava do outro lado da piscina, não se importava

conosco, mas eu os observava com uma pontinha de inveja, os

caras tinham os cabelos longos macios e bem tratados, usavam

jeans e tatuagens perfeitas os adereços e ornamentos eram de

qualidade superior, tomavam cerveja, tinham carros e motos, além

de garotas com uma cútis de modelo fotográfico. Depois de ficar ali

parado horas observando, alguém me bateu às costas e

surpreendentemente perguntou se eu não queria “chegar”, ora,

era um “figura” que conheci na casa de minha tia quando criança,

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muito amigo de um primo “muito louco” que antes éramos muito

chegados, mas que a vida se encarregou de nos separar, logo

depois descobri que no meio daquele pessoal estava meu primo e

que ainda melhor, ele parecia liderar aquela moçada linda. Pra

mim foi o suficiente pra então me descobrir diferente, passei a

entender que para ser alternativo, não precisava ser rasgado, sujo

ou mal cheiroso, encontrei novas e eternas paixões, musica de boa

qualidade, acordes e histórias de ídolos que até então para mim

eram desconhecidas. A partir daí comecei a questionar os antigos

amigos, seus atos, seus modos de ver a vida, a violência das letras

e o atraso sonoro que aquela música me remetia.

O relacionamento com os antigos companheiros ficou difícil, eu já

não conseguia mais flutuar entre realidades tão diferente, pra

desespero de minha mãe e de sua irmã, eu e o primo estávamos

juntos de novo e agora era sério, tínhamos algumas idéias em

comum e muita, muita juventude pela frente.

A primeira conquista amorosa, meu debú no meio da turma foi

uma japonesinha linda, que era mais alta que eu e isso se tornou

um problema, a segunda era muito “experiente” e me assustou um

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pouco, mas aprendi bastante com ela e depois as coisas ficaram

mais fáceis eu me tornei seu escudeiro, cúmplice e parceiro em

várias empreitadas, às vezes “pintava” um conflito de idéias, mas a

cumplicidade falava mais alto, era uma boa relação e parecia

duradoura. Ganhei um respeito que não tinha entre a turma

antiga, já me tratavam de forma diferente. Com ajuda e toque dos

novos amigos, já exibia roupas coloridas, bolsas com símbolos

consistentes e de valores agregados ao pensamento, a fluência de

idéias e palavras me credenciaram a protagonista, sem premeditar

nada me envolvi por algum tempo com uma das garotas mais

cobiçadas entre os antigos amigos, a irmã de um deles, morena

linda, com uma formação em piano clássico, um sonho, coisa que

na minha antiga condição não me atreveria a sonhar, muito

centrada e decidida, não me pareceu ser a hora de assumir um

compromisso sério e com minha auto-estima elevadíssima, podia

me dar ao luxo de escolher entre ficar e levar isso a sério ou

continuar a desbravar esse mundo novo que se apresentava.

Eu particularmente tinha meu próprio modo de ver essa coisa de

vida e morte, então não poderia me permitir desistir de viver

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aquele turbilhão de acontecimentos, mas isso certamente

aconteceria se eu ficasse e me enquadrasse àquilo que eu chamava

de morte urbana, que se caracterizava por concessões diárias,

valores corrompidos e atos repetitivos. Esse pensamento vale até

hoje e espero que sempre possa manter essa lucidez.

“Morrer não se resume a desligar um fio. Morrer não é

simplesmente o ato de fechar os olhos e desligar-se do corpo físico.

Morrer é um processo contínuo iniciado a partir da concepção.

Morrer é não mudar de idéia, não trocar o discurso, não assimilar

conhecimentos, é evitar as próprias contradições. Morrer é virar

escravo do hábito, é repetir o mesmo trajeto todos os dias e fazer

as mesmas compras, é não trocar de marca, não arriscar vestir

uma cor nova, não falar com estranhos. Morrer é não virar a mesa

quando está infeliz no trabalho, é não arriscar o duvidoso pelo

certo para realizar um sonho, é não se permitir errar e uma vez na

vida fugir dos conselhos sensatos. Morre todo dia quem não viaja,

não lê, não houve boa música, não toma um pileque em

comemoração, não acha graça de si mesmo. Morrer é passar o dia

lamentando-se de não ter feito, queixando-se do que não

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funcionou, reclamando da chuva, da má sorte, desistindo de

projetos que nem começou, não perguntando o que desconhece e

deixando de passar adiante o que aprendeu”.

Um amigo uma vez me disse que “A vida não é medida pela

quantidade de vezes que respiramos, mas pelos momentos que nos

tiram a respiração.”

Eu entendo que a jornada da vida não é para se chegar ao túmulo

em segurança em um corpo bem preservado, mas sim para se

escorregar para dentro meio de lado, totalmente gasto, berrando:

“PUTA MERDA, QUE VIAGEM!”

Devemos viver simplesmente, amar generosamente, importar-se

profundamente e falar gentilmente, do resto à natureza se

encarrega.

Eu sabia que deveria evitar a morte em doses suaves, trazendo

comigo sempre a consciência de que morrer é muito fácil, viver é

que é complicado, manter-se vivo requer um esforço muito maior

do que simplesmente respirar. Eu espelhava em meus ancestrais o

exemplo de muitos que morreram de pé, sem sentirem o privilégio

de terem vivido.

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Sair da casa dos pais era meio como que uma auto-afirmação

necessária para o que pregávamos, era como se o complemento de

tudo fosse não depender mais da família. O primo tinha mania de

batizar todo novo integrante da turma, sempre com alusão a um

ídolo ou a uma banda, tínhamos o Dilan, o Sabbah, o Zappa, o

Bohan, Queem, eu me tornei o Lee, por causa do Geddy Lee,

vocalista do Rush. Certo dia ele chegou com uma idéia inovadora, e

nos convenceu da possibilidade de fundarmos nossa própria

comunidade, longe dali, a idéia foi ganhando corpo à medida que

íamos nos indispondo com nossos pais, que queriam que

terminássemos os estudos, servíssemos o exército, enfim que nos

enquadrássemos nos padrões sociais como fizeram os filhos de

seus amigos.

Estávamos iniciando a década de 80, eu tinha conseguido um

trabalho em uma empresa de fiação, consegui comprar minha

primeira bicicleta e uma invejável coleção do Yes, minha banda

favorita, quando veio a piração total. Sem nunca termos nos

afastado de fato resolvemos que colocaríamos em prática o plano

para a criação da tal comunidade alternativa, alguns já

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trabalhavam também, o que facilitou as coisas, afinal, o

investimento inicial estava garantido com nossas indenizações,

nada fora planejado para ser assim, mas, como diz minha mãe -

saiu melhor do que encomenda - largamos nossos empregos,

reunimos uns vinte “malucos”, entre homens e mulheres e

resolvemos “arribar”. A idéia era irmos para um terreno a muito

abandonado na estrada de Maracanã, próximo a Mocoóca

nordeste do Estado. O primo e alguns mais descolados foram na

frente, a mim foi confiada uma missão muito importante, tinha

que resolver duas questões: receber minha indenização trabalhista

e seqüestrar uma nissei, namorada dele, que além de ser filha de

japoneses tradicionais, saia de um relacionamento com alguém do

meio. Não era um seqüestro “valendo”, é que tudo já estava

combinado. Recebi a minha grana e na madrugada combinada pro

“seqüestro” passei na casa dela joguei uma pedrinha na janela e

recebi de volta uma mochila grande e pesada, coloquei na garupa

da “bike” e “rasguei”. No dia seguinte no horário combinado, sem

que ninguém soubesse, aliás, ninguém sabia de nada mesmo, nem

os meus pais, nem os de ninguém, esse era o trato, nós iríamos

desaparecer simplesmente, lá estava a louca com carrinhos

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abarrotados de compras bem “compatíveis” pra quem iria pro

meio do nada, xampu, creme facial, maços de Marlboro, leite,

biscoitos, pilhas, etc. dois carrinhos de mantimentos. Ela disse em

casa que iria passar o dia na casa de uma amiga, mas na verdade

sumiu sem deixar vestígios.

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O Terreno

A Gelar, empresa falida de sorvetes, abandonou uma imensa faixa

de terra encravada na estrada de Maracanã, próximo a vila

Mocoóca, fato que de alguma forma após uma viagem a região

meu primo ficou sabendo, também soube que alguns colonos já

começavam a ocupar o terreno e teriam destinado a quem se

dispusesse a cultivar a terra, uma área bem generosa, algo além de

nossas expectativas, essa notícia veio no momento certo casar com

nossa aspiração em edificarmos uma comunidade nos moldes

hippie, com uma forte tendência ao comunismo oculto em nossos

anseios.

Não tardou e todos os envolvidos no projeto, repaginaram suas

atividades, adiaram ou suspenderam compromissos, demitiram-se

de seus “trampos”, trancaram a faculdade e resolveram encarar

uma empreitada difícil mais sedutora.

Dias depois dos primeiros contatos, começaram a chegar ao

terreno os mais “chegados”, seguidos de outros que não sabiam

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direito do que se tratava e outros ainda que apenas ouviram ecos

do que poderia vir a ser esse projeto. Aos poucos iam armando

suas barracas e se estabelecendo em espaços circulares como

caravanas de deserto, onde o frio e a noite reunia todos em volta

de uma fogueira. A princípio cantávamos e festejávamos o fato de

estarmos ali e a constante chegada de novos moradores oriundos

de vários lugares, embora demonstrassem ter objetivos bem

diferentes.

Quando cheguei, já haviam desmatado uma boa área, onde estava

o acampamento, algumas barracas de camping e uma tapera

improvisada, tipo a casa grande onde ficavam os que não tinham

barracas, ou não estavam em casais. Fui recebido com festa, já que

na bagagem além de muito mantimento, trazia a namorada do

primo, esperada com muita ansiedade, foi um dia bem especial,

eu, o herói do dia, dei motivo pra uma festa que entrou pela

madrugada, mas isso não era algo inusitado, todo dia

encontrávamos um motivo pra comemorar, pelo menos durante os

primeiros trinta dias enquanto tínhamos energia e fartura.

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Mas nem tudo pode ser eternamente festa, a ficha caiu quando os

mantimentos e o dinheiro começaram faltar, alguns, menos

comprometidos com a idéia foram logo embora, parecíamos um

tanto quanto perdidos, já que não sabíamos nada de plantio, não

entendíamos nada de terra, aliás, a terra era seca demais e só

havia plantas nativas além das ervas daninhas. Durante o dia o

calor era insuportável e a noite, pela proximidade com o litoral, o

frio era intenso, a escassez de alimento era o fator que provocava

maiores desentendimentos, já que o desperdício dos primeiros

dias fora determinante para o agravamento da situação. Alguns

dos que acreditaram queriam fazer acontecer de fato, mas o

primo, idealizador do projeto, flutuava sem demonstrar a força de

liderança que todos atribuíam a ele. Insatisfeitos, as agressões

verbais foram ficando mais acirradas, não tínhamos dinheiro

nenhum. Uma espingarda de caça, de valor muito alto havia sido

comprada, alguns entendiam que o dinheiro deveria ter sido usado

para a aquisição de utensílios de lavoura e mantimentos, mas tudo

que se conseguiu caçar foi uma aranha e um pássaro, que acabou

sendo motivo de nova discussão, já que a questão ecológica era

uma predominância entre nós. Pink Floyd, o cachorrinho que foi

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adotado, era o único feliz ali, não entendia o tamanho da roubada

que havia se metido. Lembro-me que os grupos se separaram,

alguns tentaram algum recurso, mas já era tarde pra recomeçar, a

expectativa que se criou sobre a capacidade de liderança do primo

não se confirmou. A ele era imputada a responsabilidade sobre as

ocorrências, como se ninguém mais tivesse a capacidade de

discernir suas próprias escolhas. Era mais simples não pensar e

repassar responsabilidades. A garota, apesar de imatura, possuía

boa formação e já apresentava sinais de esgotamento, parecia

mesmo que o deslumbre pelo “brinquedo novo” havia acabado e

que de alguma forma todos teriam que redirecionar suas vidas.

Uma noite caminhamos alguns quilômetros iluminados pela lua,

até chegarmos a uma festa de caboclos, onde fomos muito bem

recebidos, o primo tinha ficado no acampamento, nos divertimos

muito, dançamos e bebemos com os colonos e voltamos quase de

manhã, arrumei minha mochila e algum tempo depois de ter saído

de casa voltei a Belém.

Fiquei sabendo que todos debandaram dias depois, as feridas

foram tão profundas que até hoje não cicatrizaram, alguns não se

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falaram mais, o primo passou a morar em Belém com a garota e o

cãozinho. Ela depois voltou pra casa dos pais, casou urgentemente

com um ex-namorado, mudou radicalmente seu modo de vida e

não quis mais contato com nenhum de nós.

Os discursos eram eloqüentes, mas inconsistentes, essa é a grande

verdade. Eu tirei de tudo aquilo lições importantíssimas, eu

aprendi que costumamos carregar por toda nossa vida o reflexo de

um ato impensado.

“Se tivermos consciência do mal feito, conviveremos para sempre

com a tendência de hiper-valorização do que aconteceu, por mais

que as conseqüências não tenham sido tão devastadoras,

pensamos várias vezes em retornar ao ponto que desencadeou o

fato, para então abrandá-lo ou contorná-lo. Na real, o que nós

gostaríamos mesmo é que nossa memória fosse dotada da tecla

“DEL” e simplesmente pudéssemos excluir o erro para que

armazenássemos apenas as boas recordações. Não gostaríamos de

viver com esse peso, mas também não deveríamos morrer com ele,

qual a solução então? “A pedra depois de atirada não retorna à

mão”, logo, devíamos atenuar o efeito da atitude, procurando a

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parte atingida, retratando-nos, por mais que isso tenha acontecido

há muito tempo, nossa consciência não perdoa, mas, a humildade

de reconhecer e passar adiante nosso arrependimento diminui

sobremaneira o fardo de nossas costas, não elimina o ato, nem o

desfaz, porém nos deixa em condições de levantar a cabeça e

enfrentar nosso carma com argumentações que se não são as

ideais, pois ideal é não errar, pelo menos abriremos um leque de

compromissos a assumir e assim caminharemos em um terreno

menos pedregoso. Não adianta esconder-se e tentar eximir-se das

responsabilidades, o passado sempre vem”.

Mas o vírus da liberdade não seria extirpado, permanecia latente a

espera de uma nova oportunidade, que não tardaria a chegar, já

que sem emprego e sem perspectiva nenhuma, aos 19 anos, algum

caminho deveria ser vislumbrado.

Voltamos à rotina dos velhos bailes, novos grupos se formaram.

Em Icoaraci, a vontade de fazer algo diferente, uniu pessoas que

vinham dissidentes de vários movimentos, o rock começava a

ganhar corpo de fato, a explosão do heavy metal em Belém, com a

banda Stress, funcionou como uma alavanca para o surgimento de

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novos grupos, daí junto com uma moçada a fim de fazer música

nos reunimos para iniciar algo meio desajeitado que parecia

música, eu, transava algumas letras e os contatos, mas o som era

muito ruim, depois virou o “The Podres” que teve uma única e

frustrada apresentação no campo do Paissandu, quando abriu,

junto com outras bandas, o show de lançamento do primeiro disco

de Stress. O show foi um fiasco total, já que a banda só tinha uma

música ensaiada e outra mais ou menos, isso levou o público a

vaiar e a irritar o vocalista que já se preparara para o

acontecimento previamente, levando frutas podres e ovos para

atirar na platéia, o que foi um grande erro, já que o revide foi

imediato e voraz, vidros, pedras e tudo mais que se encontrava ao

alcance das mãos foram atiradas de volta, se não fosse à

intervenção de um vizinho, então cabo da polícia militar,

poderíamos ter sido linchados na saída do estádio.

Mas nem tudo foi em vão, já que anos depois esse embrião

tornou-se o “Insolência Pública”, a banda de punk rock, de maior

prestígio em Belém chegando a freqüentar durante algum tempo o

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segundo lugar nas paradas de sucesso de uma rádio local

especializada, com o hit “Beirute Está Morta”.

A amizade continuava, mais o racha da trupe foi inevitável, pois o

som sem qualidade sonora, sem um arranjo decente e acordes

interessantes me levaram de volta ao velho metal e ao progressivo

que sempre foi minha paixão. O relacionamento piorou quando me

envolvi com a namorada de um dos integrantes da banda, uma

moreninha de lábios carnudos e sensuais, mas que me trouxe

algumas inimizades.

Resolvi me mandar de novo, dessa vez, sozinho.

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O Atalaia

Fazendo um bico de vendedor de suportes para plantas, conheci o

“Raso”, figura bem mais velha, mas do mesmo modo sem juízo

algum, saiamos para vender nas casas, ganhávamos até uma grana

razoável. Um dia pela manhã, ele me disse, eufórico, ter conhecido

umas “gatas” lindas que estavam chegando do Araguaia e não

tinham para onde ir, perguntei de onde ele as conhecia, porém, na

verdade ele acabara de conhecê-las no pátio do terminal

rodoviário e prometido arranjar um local pra que elas ficassem.

Chamou um amigo que possuía um taxi e que se interessou pelas

meninas, logo depois o taxista disse que tinha uma casa

desocupada no Telegrafo, bairro da periferia de Belém, e que

pertencia a um parente, colocando a disposição para que

levássemos as meninas para lá, então rumamos para a rodoviária

para conhecermos finalmente as garotas. Ao chegarmos lá,

realmente três delas eram bem bonitas, já a quarta era irmã de

uma delas, bem, ficamos sabendo num rápido bate-papo que elas

haviam fugido de casa em Conceição do Araguaia, cidade do sul do

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Pará, e que pretendiam arranjar emprego na cidade, logo todos se

arranjaram, cada um com uma delas e tínhamos que arranjar outro

amigo para a quarta garota, o que não foi possivel. Levamos as

garotas para a tal casa do parente do taxista. A casa, se é que se

pode chamar assim, ficava numa área alagada, sobre estivas, não

tinha banheiro, nem fogão, nem camas, era uma casa muito

engraçada não tinha nada... pra se ter uma idéia, não se podia

pular ou dançar, porque as paredes pareciam que iam ceder a

qualquer momento, as portas eram presas com tramelas e as

janelas eram descartáveis, mas, não tínhamos dinheiro para ir a

um lugar melhor, e elas não tinham pra onde ir.

A noite foi longa, eu não tinha compromisso algum, fizemos uma

rápida “vaquinha”, compramos algumas quentinhas, as garotas

estavam famintas, algumas garrafas de rum, arranjamos um toca-

fitas e fizemos uma grande orgia que varou a madrugada. Durante

a festa trocamos de garotas, beijamos todo mundo, a feia ficou

linda, porém, uma delas, a morena mais “gata” que eu já havia

conhecido, me chamou a atenção pelo seu comportamento

refinado, gosto diferenciado e por não se envolver com outra

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pessoa, a não ser com o colega taxista, não demonstrou falso

pudor, apenas não parecia estar à vontade com a situação

estabelecida, sempre com gestos leves e palavras bem articuladas,

não parecia pertencer ao mesmo mundo das demais, virou na

verdade objeto de cobiça e os primeiros atritos surgiram

justamente por causa disso, quando pela manhã, o amigo Raso

tentou seduzi-la, houve um desentendimento entre os amigos, e o

taxista disse que deveríamos desocupar o imóvel, já que a garota

iria com ele, o que ela não concordou, gerando mais desconforto.

As meninas ficaram na casa, e nós saímos para tentar arranjar

outro local.

Passado um dia inteiro não conseguimos nada e fomos pra nossas

casas, retornando ao “muquifo” somente no dia seguinte, onde

não as encontramos mais.

Ainda fiquei cerca de mais um mês nesse trabalho, até o dono da

empresa ter sido preso por estelionato. Fiquei de novo

desempregado e sem dinheiro. Em casa o clima que já não era dos

mais amigáveis, tornou-se insuportável para os padrões

adolescentes, precisava arranjar outro jeito de me “virar”, foi

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quando reencontrei um velho amigo da Paraíba que precisava de

alguém pra tomar conta de uma casa que ele construíra na praia e

não dispunha de tempo pra ir dar manutenção, pronto, fechou, era

a deixa que eu precisava.

Dias depois, estava eu de “malas” prontas para ir ao litoral, depois

dos desentendimentos costumeiros em casa e de não conseguir

convencer minha então namorada (ex do cara da banda) a me

acompanhar, resolvi que iria sozinho, fizemos um bota-fora na

rodoviária, nos despedimos com juras de amor eternas,

prometemos que nos esperaríamos, tomamos algumas cervejas e

nos separamos. Sentei-me na calçada, próximo de uns hippies que

estavam jogados por lá, pra esperar à hora do ônibus quando achei

que estava tendo uma visão, lá estava à morena do taxista

distribuindo papelotes pros malucos da calçada, fiz um esforço e

lembrei seu nome, chamava-se Edna, eu a chamei, ela me

reconheceu e solícita me ofereceu um ”bagulho”, perguntei como

ela tinha se envolvido naquela onda, ela disse que morava na casa

de uma “madame” próximo a rodoviária e que o companheiro da

mulher traficava, mas que ela era apenas o “avião”, não fazia uso e

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enfim tentou me dar mil explicações que eu nem me importava,

depois perguntou pra onde eu ia, contei-lhe o que estava

acontecendo e que estava indo pro Atalaia, praia do litoral, porque

um amigo paraibano, dono de uma tapera e que raramente ia lá,

me pediu pra ficar o tempo que quisesse pra evitar invasões e tal.

Bem, pra minha surpresa, Edna disse que não estava bem com

esses patrões, que corria riscos e gostaria de mudar de ares, logo,

com tamanha onda de sorte, estendi o convite a ela, que de

imediato aceitou dizendo que iria buscar suas “coisas” e me

encontraria na rodoviária em trinta minutos.

Já não estava mais solitário, e contrariando todas as previsões,

estava muito bem acompanhado, parecia que dali em diante as

coisas iam de alguma forma fluir com mais facilidade, já que

concordávamos com quase tudo, exceto pelo fato de que quando

ela chegou à rodoviária trazia nas mãos duas sacolas enormes

contendo além de seus pertences, jóias e utensílios variados que ia

desde radio toca-fitas ao secador de cabelos. Quando perguntei

sobre a “muamba” ela disse que era um acerto de contas e que

eles ainda ficavam lhe devendo por serviços prestados, a princípio

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me preocupei com a “limpa” que ela deu no ap da patroa, mas

depois que o ônibus chegou, relaxei e deixei rolar. Viajamos

durante a madrugada, quatro horas de viagem, eu acho,

namoramos e dormimos, até os primeiros raios de sol entrarem

pelas janelas, não sabíamos nada sobre o lugar que estávamos

indo, muito menos como se chegava lá, alguém no ônibus nos

orientou a descer num determinado trevo, antes da cidade de

Salinas, e de lá tentarmos uma carona pra chegar ao local, pois,

não havia linha de coletivo para lá, se não conseguíssemos,

teríamos que caminhar oito quilômetros até a praia, também

perguntavam o que faríamos lá, por que o local era ermo, no

máximo encontraríamos alguns pescadores que viviam nas

proximidades. Pra mim tudo era uma grande novidade, apesar de

ter morado durante meses muito perto do litoral, na “onda” do

terreno, nunca vira o mar e a “mina” também não, já que vinha de

uma região central do Brasil.

Descemos no tal trevo e nem esperamos por carona, o dia

começava a nascer, a temperatura era agradável, o cheiro

diferente, o vento frio e constante, começamos a caminhar. Logo

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nos dois primeiros quilômetros, tudo bem, depois aquela mochila

parecia pesar como um cofre e as sacolas que a outra trazia

pareciam pianos de cauda que teimávamos em arrastar.

Na metade do caminho, encontramos uma ponte, um rio de água

escura e doce que serpenteava por entre as pedras, parecia uma

recompensa por termos chegados até ali, vários cajueiros

carregados e coqueiros baixinhos, ao alcance das mãos. Descemos

e nos banhamos naquelas águas geladas, não havia uma alma por

perto, aos pouquinhos ela foi tirando a roupa até ficar

completamente desnuda, aí eu pude ver realmente o valor daquele

bilhete premiado. Tinha a pele sedosa, morena jambo, sem

marcas, silueta perfeita, seios fartos e firmes, cabelos negros

azulados escorridos pelas costas e muita, muita sensualidade,

esquecemos que ainda caminharíamos mais uns quatro

quilômetros, e ficamos lá, brincando durante horas, saciando um

desejo a muito reprimido, mas que agora teria seu momento, nada

importava, nos entregamos àquele instante como náufragos

famintos, deslizamos no suor do corpo até estancar aquela

devassidão, foi demais, até a hora que percebermos o sol

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queimando a pino, queimando pra valer, era hora de levantar

acampamento e partirmos pra mais uma jornada desgastante, mas

que deveria parecer mais leve depois de tudo.

Na verdade tudo era muito romântico até voltarmos pra estrada

num sol de quase meio dia, com um peso enorme pra carregar, os

cajus que levávamos eram a única fonte de alimento, parecia que

não chegaríamos nunca ao nosso destino.

Depois de algum tempo enfim, sentimos uma brisa leve e

refrescante no ar, um barulho diferente, parecia de torcida no

campo de futebol, logo depois da subida, já podíamos ver o mar, as

dunas branquinhas e muita água, era maravilhoso, larguei tudo no

chão e saí correndo, me joguei de encontro às águas, mas logo

estranhei o ardume nos olhos e o sal, para mim muito estranha

essa sensação, nunca havia sentido algo parecido, para ela

certamente não era diferente, deslumbramento e medo por

tamanha grandeza. Em volta um deserto interminável de vento e

areia alva como a neve, não sabia por onde começar, em que

direção seguir, não havia sequer uma casa ou uma pessoa a quem

pudéssemos nos dirigir, não tínhamos água para beber e a

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temperatura era muito elevada, olhando pra direita só um grande

nada, mas pra esquerda avistei um velho farol sobre uma formação

rochosa, que naturalmente deveria ter alguém ali perto pra

acendê-lo e pronto, decidimos o lado e rumamos pra lá.

A Comunidade

Aquele era um Brasil onde a violência urbana não atingia números

elevados, os bandidos mais famosos transformavam-se em lendas

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por sua ousadia, dava tempo de contar histórias, já que não havia

internet, nem celular e as noticias não se espalhavam com tanta

voracidade, tudo isso contribuía para que pudéssemos nos

deslocar de um lugar para o outro, cruzar o país e até chegar ao

exterior, sempre contando com a ajuda de terceiros, pegando

carona nas estradas, arranjando hospedagem com certa freqüência

e até com prazer.

Quando atravessamos o local onde estava o velho farol, nos

deparamos com uma pequena vila, na parte da enseada ficava as

casinhas dos pescadores, uma pequena venda e vários barquinhos

espalhados sobre a areia, entre as casinhas haviam caminhos

improvisados que cortavam ou eram cortados por dunas que nos

levavam a outra vila encravada nas falésias, bastante integrada a

primeira, mas com diferenças culturais muito acentuadas, já que ali

estavam os “malucos” ex-nômades, hippies, ex-ativistas

estabelecidos, com suas mulheres e filhos, vindos de todas as

partes do Brasil e também de outros países, viviam basicamente do

que produziam, artesanatos que refletiam muito da região, porém

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com traços e esmero tamanho, que influenciam tudo o que é

produzido até hoje.

Depois de nos recuperarmos do impacto daquela visão

cinematográfica, que mais parecia um quadro pintado que minha

mãe tinha na parede da cozinha e que eu tanto queria penetrar um

dia, tivemos que voltar a realidade e tentar achar a tal casinha que

o amigo paraibano nos cedera, nossa única referência era um

pescador chamado Jorge, que não tivemos nenhum problema em

encontrar, já que além de líder dos pescadores era também o dono

da única venda do local. Apresentamo-nos, fomos muito bem

recebidos, ele chamou um de seus vários filhos pequenos para que

nos pudesse conduzir até a casinha, agradecemos e seguimos o

guri, cinco minutos por um caminho de areia e voilá.

A casinha, não era tão casinha assim, era toda de madeira e palha,

mas tinha um certo charme, não era pequena, lá estava uma área

interna grande com piso apenas em barro batido, um fogão grande

de lenha, vários armadores, uma escada rústica que nos conduzia a

um segundo andar onde havia um quarto bem aconchegante com

uma cama de casal e uma janela ampla de onde podíamos avistar a

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praia e toda a movimentação dos pescadores. Instalamo-nos,

agora teríamos que nos integrar ao meio e descolar um jeito de

sobreviver, porque a grana era curta e os mantimentos não

durariam muito tempo e como “cachorro mordido de cobra tem

medo de lingüiça”, não gostaria de viver as mesmas privações da

época do “terreno”. Mas, todas as providências ficariam só para o

dia seguinte, é que estávamos exaustos e literalmente hibernamos

após um prato de sopa de camarão mandado pelo amigo Jorge.

Aos poucos, fomos nos adaptando a nova realidade, Edna era uma

mulher fascinante, a casa, antes muito simples, rapidamente foi

ganhando um toque de requinte, aliás como tudo que ela tocava,

ela era enigmática, gostava de música clássica, falava espanhol e

inglês, tinha o bom gosto que lhe era peculiar, natural, não fazia

tipo, eu entendia que se existia uma coisa difícil de ser ensinada e

que, talvez por isso, estivesse cada vez mais rara, essa seria a

elegância do comportamento, um dom particular que ia muito

além do uso correto dos talheres e que bem mais abrangente do

que dizer um simples obrigado diante de uma gentileza, era a

elegância que a acompanhava da primeira hora da manhã até a

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hora de dormir e que se manifestava nas situações mais prosaicas,

quando não havia festa alguma nem testemunhas para caras e

bocas por perto, era uma elegância desobrigada, que só é possível

detectar naquelas pessoas que elogiam mais do que criticam, nas

pessoas que escutam mais do que falam e quando falam, passam

longe das maldades ampliadas no boca a boca, é possível detectá-

la nas pessoas que não usam um tom superior de voz, nas pessoas

que evitam assuntos constrangedores porque não sentem prazer

em humilhar os outros, é possível detectá-la em pessoas pontuais.

Elegância é uma característica de quem demonstra interesse por

assuntos que desconhece, é quem cumpre o que promete, que não

fica espaçoso demais, não muda seu estilo apenas para se adaptar

ao de outro. Ela era assim, parecia vir de uma família abastada,

mas era elegante ao ponto de nunca falar de dinheiro em bate-

papos informais, retribuir carinho e solidariedade, ela sabia que

sobrenome, jóias, e nariz empinado não substituíam a elegância do

gesto, afinal, não há livro que ensine alguém a ter uma visão

generosa do mundo, a estar nele de uma forma não arrogante,

pode-se até tentar capturar esta delicadeza natural através da

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observação, mas tentar imitá-la é improdutivo e a educação pode

enferrujar por falta de uso.

A venda do Jorge era o ponto de encontro todo fim de tarde, os

pescadores chegavam em suas canoas, desembarcavam todo o

pescado na praia, retiravam os peixes maiores e mais valiosos para

serem vendidos na cidade e distribuíam o restante entre todos os

que se dispusessem a ir buscar, então toda a “malucada” ia ao

encontro deles e garantia o “rango” do dia seguinte, depois

reuniam-se na venda pra tomar um trago, ouvir um único disco dos

Beattles numa vitrola a pilha e jogar conversa fora. Tinha gente de

todo lado, os sotaques mais variados, cearenses, mineiros,

catarinenses, gaúchos, argentinos e chilenos, muitas crianças, uns

maiores, outros bebês, mulatos e lourinhos, mulheres bonitas e

bronzeadas, caboclas e índias misturadas a pescadores e

aventureiros, uma integração sem preconceitos onde todos

cuidavam de suas vidas e se ajudavam na medida do possível,

entre eles haviam pessoas de formação superior, como uma

professora e um médico, também um ex-bancário e uma

enfermeira. Um ex-político, Pablo, banido da vida pública pela sua

ligação com o PC, assumia uma postura de liderança entre os

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“estrangeiros” e tentava de alguma forma dar uma cara organizada

as atividades coletivas, como por exemplo, a produção de

artesanato que saía para ser levada à Belém era catalogada e a

renda dividida entre todos os demais, o mesmo acontecia com

algum tipo de mantimento trazido de fora da aldeia, no mais, os

“batalhos” eram individuais. Rapidamente nos tornamos parte de

tudo aquilo.

Cristina, uma figura que não parecia bem casada, uma noite

apareceu em casa com um hematoma no braço e pediu pra ficar,

chovia muito, Edna acabara de passar um café, e ela trazia uma

garrafa de cajuína, uma especiaria alcoólica produzida lá mesmo,

tomamos o café com torradas e então ela nos contou que seu

companheiro estava muito drogado passando a agredi-la sem

motivo aparente, disse também que essa não era a primeira vez e

que gostaria de ir embora para sua terra, Curitiba. No momento

tudo o que podíamos fazer era acolhê-la e reconfortá-la até que o

dia seguinte tratasse de esclarecer as coisas, a noite foi bem

divertida, depois que tomamos a cajuína, saí em baixo de um

temporal e fui bater na casa do Jorge em busca de limão pra

fazermos caipirinha, a venda ainda estava aberta e o marido de

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Cristina estava lá falando um monte, quando me viu, partiu pra

cima de mim, achei que ia me agredir, mas me abraçou chorando,

e pediu que eu a devolvesse a ele, tentei explicar que não sabia o

que acontecia, mas ele disse que iria comigo buscá-la, porque ela

era seu amor e não fazia sentido viver sem ela e outro monte de

coisas. Peguei os limões, e o levei junto até nossa casa. Ao

chegarmos, ela se surpreendeu, pegou um arpão que estava na

parede e disse que não o queria perto, e que ele fosse embora ou

ela o mataria, o clima ficou tenso, depois de acirrada discussão,

tivemos que intervir, Edna com sua tranqüilidade costumeira,

argumentou sobre os problemas que poderia acarretar para ambos

uma atitude impensada, ele, por sua vez chorou muito e resolveu ir

embora voltando tudo à normalidade.

Na manhã seguinte quando ia sair pra catar conchas, esse trabalho

nos dava algum dinheiro, porque repassávamos aos artesãos e

passávamos assim a ter nosso quinhão na produção, encontrei o

maluco jogado no meio do caminho, tentei acordá-lo, mas ele não

se mexia, estava com o rosto mergulhado em uma poça d’água,

virei o seu corpo, tentei reanimá-lo, mas em vão, já não respondia,

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corri até a vila, chamei o Jorge e os outros, logo, constataram que

estava morto.

Muita comoção e problemas foram agregados aquele fato, a

tranqüilidade do local fora quebrada, policiais da cidade circulavam

entre nós investigando, perguntando e coagindo de certa forma a

todos que não estavam acostumados com aquela situação, depois

de constatado a aparente morte súbita do amigo, eles foram

embora. O corpo foi velado na casa onde moravam e depois

enviado numa caminhonete para a cidade onde aconteceu o

sepultamento.

Passado esse episódio, Cristina ficou muito íntima de nossa casa,

entrava e saia quando queria, passou a me ensinar os segredos das

confecções artesanais, com facilidade aprendi lidar com as contas

do mar, metais, linhas, madeira, corda e tudo o que mais se

produzia no local, em pouco tempo me tornei um produtor e

artesão muito criativo, algumas das peças que eu criava serviram

de moldes para os outros e vice-versa, a interação tomou corpo e

eu me senti bem posicionado entre eles. Edna, que realmente

destoava entre todas as mulheres daquele vilarejo dado sua

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destreza e requinte, tornou-se uma parceira e tanto, tudo que eu

produzia ela conseguia vender.

A praia do Atalaia, nessa época, era um local isolado e não fazia

parte do roteiro turístico freqüente, mas nos finais de semana,

feriados e férias, uma certa quantidade de pessoas se deslocavam

para lá em caravanas e piqueniques, daí então surgia a

oportunidade de vender nossos produtos diretamente ao público,

o que nos dava um retorno financeiro muito bom comparado ao

que as lojas da capital pagavam no atacado. Nessa época eu

passava a noite produzindo peças com muito esmero e qualidade e

pela manhã ela colocava aquele biquininho amarelo, uma canga

colorida e saía pra vender na praia, uma bela combinação de

fashion com alternativo e o resultado eram várias peças vendidas.

Passados oito meses de muita paz e tranqüilidade, parecia que

tinha descoberto enfim o lugar que viveria pro resto da minha vida,

tinha uma mulher belíssima, o mínimo de conforto, companheiros

leais, parceiros de fé, comida farta, remédios produzidos a partir

de ervas e frutos do mar, uma culinária invejável até para os

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grandes hotéis da capital, enfim, para mim não faltava mais nada,

mas, para ela sim, ela queria um bebê.

Numa nublada manhã de inverno, com o sol tímido, praia

desaguada, quilômetros de muito nada, estávamos caminhando

pela praia quando deparamos com um caminhão, tipo baú,

estacionado no meio daquela imensidão, em volta havia, cadeiras,

guarda-sol, uma pequena caixa térmica e um casal, que parecia

estar em férias ou em lua-de-mel, chegamos perto pra

cumprimentá-los e oferecer-lhes algumas peças, a placa do

caminhão era de Goiânia, dissemos “olá”, o motorista levantou e

de forma muito amável nos convidou pra “chegar”, tirou do

reservatório uma garrafa de cerveja e conversamos durante horas,

disse sobre os acontecimentos de Brasília, da derrocada eminente

do militares, perguntou sobre nossas vidas e costumes, me senti

como um nativo sendo pesquisado, as meninas em outro lado

conversaram sobre variedades, disseram que eram recém casados

e que esperavam o primeiro filho e assim foi até a última garrafa.

Estavam hospedados ali mesmo, passariam a noite e depois

seguiriam para Anápolis, onde residiam, dentro do caminhão

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contavam com uma motocicleta que usaria para ir a cidade

comprar mantimentos, bebidas etc. e que se estivéssemos

interessados poderíamos voltar e passar a noite com eles, já que

viajariam no dia seguinte.

O fato da garota do caminhoneiro estar grávida reiniciou uma

discussão de dias atrás quando ela me disse que estava com suas

regras atrasadas e que seria bom termos um filho, o que eu não

concordava, achando que aquele local tão isolado não era um bom

lugar para os pequenos, ela mostrava as outras crianças felizes

como exemplo e eu, meio sem argumento, disse que não queria

ficar preso a essa situação e que ainda era muito jovem pra isso e

etc. enfim, o clima não ficou muito bom a partir daí e justamente

nesse momento fomos nos deparar com uma grávida feliz. Quando

chegamos em casa, já tínhamos bebido o bastante pra falar

palavras não medidas e desferir aquelas que dilaceram, até

chegarmos a nos agredir com empurrões e unhas afiadas, resolvi

sair, fui até o Jorge, tomei uma cajuína sozinho até que não me

sentisse mas em condições de argumentar sobre nada, voltei pra

casa muito tarde, ela fingia que dormia e eu fingi que acreditava, a

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chuva entre relâmpagos, caiu forte como nunca, a noite esfriou

muito, ela passou a perna por cima de mim, e sem dizer uma única

palavra tivemos uma noite arrebatadora, daquelas que as vestes

são retiradas de qualquer maneira em detrimento aos seus botões,

apesar do frio intenso que fazia lá fora, aquela cama parecia arder

com movimentos bruscos e insanos, e assim foi até a exaustão.

Dia seguinte, sol intenso, horizonte aberto e límpido, fiquei

olhando um pouco pela janela o movimento dos pescadores,

aquele gosto de ressaca na boca e as costas marcadas pelas

unhadas da noite anterior, mas uma sensação boa de uma noite

prazerosa dava um certo tom de contentamento, eram dez ou

onze horas, desci as escadas e não a encontrei em casa, o café

estava pronto e até o pão torrado coberto à mesa, tomei o café e

saí. Cheguei até a venda do Jorge, que foi logo falando – dona Edna

passou cedinho, ela foi viajar? – não entendi muito bem a

pergunta, mas depois Jorge me disse que ela havia passado com

umas sacolas nas mãos, voltei em casa e só encontrei algumas

peças de roupas dela que estavam estendidas no varal, até o

secador de cabelos que ela nunca usara, por falta de energia

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elétrica, também havia desaparecido, saí correndo e perguntando

a todos se a tinham visto, e a resposta era sempre a mesma: “saiu

cedinho em direção a praia com umas sacolas”, segui o que achei

que eram suas pegadas e cheguei até o caminhão do goiano, que já

havia partido. Nunca mais a vi, contrastando com sua sutileza e

elegância, saiu da minha vida com a mesma impetuosidade que

entrou, me deixou marcas muito profundas nas costas e no

coração, tudo o que restou foi uma doce lembrança e um pão

requentado sobre a mesa.

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A Vida Continua

“O tempo é o melhor remédio”, esta página foi virada, perdi minha

parceira na vida e nos negócios, mas pelo menos nos negócios

encontrei em Cristina uma nova parceria bem dinâmica, já que

nesse caso os dois produziam e assim tínhamos chance de sair e

viajar juntos com bastante material, ficamos muito unidos depois

do que aconteceu, devo reconhecer que ela não era detentora de

uma beleza tão estonteante, mas tinha outros atributos que a

tornavam muito interessante, cabelos longos, negros e cacheados,

seu tipo físico era bem latino, pernas grossas e bem torneadas, um

pouco mais velha, talvez 25 ou 26, perspicaz, inteligente e muito

cheia de vida, passamos a nos deslocar com muita freqüência por

cidadezinhas próximas, vendendo em praças e em rodoviárias, era

outro tipo de comércio que até então eu ainda não experimentara,

sempre decidida e segura eu a seguia e nunca me dava mal,

dormíamos bem, nos relacionávamos muito bem com as pessoas,

seu carisma fazia com que todos fossem bastante receptivos, as

viagens eram curtas, três a cinco dias, depois voltávamos para a

praia, com um bom dinheiro, fazíamos nossas compras juntos e

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ficávamos sem fazer nada durante uma semana, produzíamos

durante outra semana, até seguirmos para estrada outra vez, esse

método era utilizado pela maioria dos casais da aldeia, depois do

retorno sempre entravamos num período de comemoração, a vida

era realmente uma grande festa.

Passados mais uns meses o verão já se instalava forte, era hora de

produzir em grande escala para entregar nas lojas e vender direto

nas praias, para isso precisávamos fazer dinheiro e investir pesado

em material mais sofisticado, tipo pérolas e marfins, não

conseguimos guardar o suficiente para essa empreitada, afinal

após o verão queríamos alçar vôos mais altos, conhecer novos

lugares, culturas diferentes, gostaríamos de sair do estado ou até

do país, daí pintou um lance interessante, conhecemos em Salinas

um figurão que nos deu uma carona de volta, ele nos perguntou

sobre o local que morávamos e outros detalhes, disse que se

quiséssemos vender nossa casa que ele compraria, pois, sempre

quis ter uma casa naquele local, bem, eu não podia vender a casa

que não era minha, mas ela sim, já que poderia vir morar comigo.

Procuramos o doutor e lá fechamos negócio, era uma grana alta

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pra época, algo que significava mais ou menos o preço de uma

motocicleta nova, dinheiro suficiente pra fazermos um belo

investimento e depois viajarmos.

Cristina passou a morar comigo, e aquele jogo de sedução a

distância não durou muito tempo, nos envolvemos de fato e lá

estávamos de novo meio casados e tocando a vida, nossa relação

era bem madura e aberta, sem ciúmes ou cobranças, baseava-se

em carinho, admiração e lealdade, uma fórmula perfeita, só

fazíamos planos para o futuro recente, nada de devaneios ou

solidez, nada era definitivo, isso muito me agradava, trabalhamos

durante o veraneio, juntamos um bom capital e decidimos que

iríamos embora, a caminho do nordeste, esse era o caminho

natural da maioria dos que haviam partido, comunicamos nossa

decisão a toda a moçada da vila, foi bem legal, fizeram um grande

bota-fora, com tudo que tínhamos direito, muito peixe assado,

violão e aguardente, abraços, beijos, risos e lágrimas, foi a

apoteose de um ciclo maravilhoso onde naquele momento caia o

pano para então descortinarmos outros Brasis.

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A Viagem

A situação do país era de instabilidade econômica, inflação em

torno de 30% ao mês, pelo menos é o que ouvíamos falar, os

universitários eram agredidos nas praças, lideres desapareciam em

meio às passeatas e reapareciam tempos depois meio desligados,

tudo isso nós só ouvíamos falar, não parecia que vivíamos a mesma

realidade, coisas estranhas aconteceram na era da ditadura,

quando a censura tirava do ar comerciais inocentes, mas permitia a

difusão de grupos como “Secos e Molhados” constituído de

homens travestidos, de voz feminina, mas de recado forte e muita

sensualidade. Drogas e rock, não parecia fazer parte de sua

planilha de desinfecção, o problema era político, tinham que

mostrar poder sobre as classes emergentes para que fossem

respeitados, a força bruta era usada indiscriminadamente, o poder

bélico impunha-se nas ruas com pompa e autoridade, mas os

“hippies” eram tolerados, parecia que os "milicos” não entendiam

bem o que acontecia, talvez, os vissem como pessoas a margem da

sociedade ou despojos dela, quando na verdade ali estavam os

únicos livres dentre tantos seguimentos, os únicos que usavam

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sem restrições seu direito de ir e vir sem serem importunados,

além de não pagarem impostos, não servirem o exército e ainda

cruzarem o país sem gastos, já que na maioria dos lugares eram

bem recebidos ou apenas ignorados. Nossa segurança de certa

forma era preservada, porque enquanto os militares guardavam as

ruas temendo um levante popular ao mesmo tempo inibiam os

pequenos furtos e os atos de hostilidade de vândalos, podíamos

trabalhar livremente nas praças e até éramos convidados a

compartilhar a mesa de pessoas influentes que gostavam de nossa

arte e nosso repertório, havia certa discriminação por parte dos

setores mais tradicionais, é verdade, pareciam nos admirar, só que

á distancia, não permitiam que suas filhas se aproximassem, o vírus

da insurgência poderia contagiá-las, mas notávamos que nossos

artesanatos estavam “na crista da onda” ornamentando com

plumagem suas orelhas e com sementes seus colos e pulsos.

Saindo de Salinas em direção a Capanema, cidade próxima,

pegamos uma carona em uma caminhonete da prefeitura, até a

rodoviária, levávamos pouco dinheiro, mas pelo menos três

mochilas abarrotadas do melhor que conseguimos produzir, ao

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chegarmos à cidade, fizemos uma pequena incursão entre as

pessoas que esperavam para embarcar, sem muito sucesso, mas

conseguimos “descolar” o do almoço e fizemos um contato

importante, era um carreteiro que seguiria para Viseu, uma cidade

mas ao nordeste, fronteira com o Estado do Maranhão, no final da

tarde partimos.

A viagem transcorreu sem problemas, o caminhoneiro se

interessava pelo que fazíamos, perguntava bastante, sempre ao

som de guaranhas e músicas sertanejas até chegarmos ao nosso

destino.

Viseu, nos pareceu uma cidade sem atrativos, mas do outro lado

estava a praia de Carutapera, já no estado vizinho, atravessamos

em um barquinho motorizado e nos deliciamos com um lindo

visual do qual já nos acostumávamos, parecíamos estar em casa de

novo, andamos por alguns quilômetros, a noite já caia, nos

deparamos com um grupo de mochileiros que se reuniam em volta

de uma fogueira onde assavam alguma coisa, sempre com violão e

muito reagge, notamos que todos eram negros e não pareciam

estar dispostos a convidar a que nos juntássemos a eles, ficamos

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um pouco mas adiante, montamos nossa barraca e procuramos

entre os enlatados algo para comer, estávamos um pouco

cansados, resolvemos dormir, logo que fechamos o zíper, alguém

perguntou do lado de fora se nos éramos melhores que eles,

abrimos uma fresta, pra conversar, quando uma garota do meio

deles que estava aparentemente embriagada, jogou um pedaço de

madeira em brasa pra dentro da barraca, saímos imediatamente,

as chamas queimaram parte do piso, ficamos assustados, eles riam

nos chamando de falsos burgueses e outras coisas sem sentido,

não entendíamos muito bem o motivo daquela agressão gratuita,

já que quando chegamos, nós os cumprimentamos e não

obtivemos resposta alguma, Cristina tentou argumentar e foi de

imediato rechaçada com palavrões e palavras de ordem, pareciam

uma seita de fanáticos, resolvemos desmontar a barraca e

procurar outro lugar pra ficar, no momento em que arrumávamos

os pertences, eles nos cercaram e com correntes começaram a

bater nas mochilas até o ponto que uma delas rasgou revelando

seu conteúdo, foi terrível, eles se surpreenderam com o que

carregávamos, um deles tentou interferir, mas foi a maioria, uns

sete ou oito, que partiram pra cima das nossas coisas danificando e

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saqueando o que puderam, pra depois desaparecerem como se

jamais estivessem estado lá, exceto por um deles que permaneceu

no local e tentou nos ajudar recolhendo o pouco que sobrou,

pensamos em retornar ao Atalaia, mas o negro que tentou nos

ajudar, que apresentou-se como Pretinho, disse que não nos

preocupássemos, porque ele tinha parentes em S. Luiz e poderia

nos ajudar, disse que havia conhecido aquelas pessoas em Belém a

algumas semanas e que não tinha idéia do que eram capazes de

fazer. As coisas ficaram difíceis, todo o trabalho de meses se

perdera naquela noite insólita, mas tínhamos que continuar, então

seguimos para São Luiz.

Sem comida, sem mercadoria e sem dinheiro, ficamos em frente

de uma igreja antiga no centro da cidade, oferecendo o pouco do

que nos restava, nosso amigo desapareceu com promessa que

voltaria com alguma ajuda, acontecia na pracinha algum tipo de

festejo de um santo ou coisa parecida, ficamos postados em local

estratégico, tínhamos pouco material, mas dava pra confeccionar

alguma coisa, vendemos uns brincos, algumas pulseiras de linha,

nada de valor elevado mas que já ajudava na alimentação, me

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lembro de uma cena humilhante quando Cristina aproximou-se de

uma mesa na calçada para oferecer uns trabalhos, a mulher

imediatamente levantou-se segurando os filhos pelas mãos e

virou-lhe às costas enquanto o marido falou algo ríspido e cuspiu

em seu rosto, foi muito constrangedor, esses fatos eram muito

raros mas aconteciam, e naquela região parecia mais enraizada a

postura aristocrata dos “coronéis”.

A não ser pelo fato do amigo Pretinho, reaparecer no dia seguinte

com algum dinheiro e um rolo novinho de metal, nossa passagem

por ali seria digna de esquecimento. Decidimos continuar, ele, o

Pretinho, nos deu umas dicas de um lugar onde esteve, chamava-

se Canoa Quebrada, descrevia como um verdadeiro paraíso para

quem gostava de viver livremente, produzir e expandir, ele dizia

que o lugar estava repleto de grupos vindos de toda América e até

africanos e asiáticos, dizia que pra quem tinha talento em

reproduzir peças como as nossas era na verdade uma universidade

de aprendizado e troca, perguntamos se ele iria nos acompanhar,

ele disse que não, visto que encontraria alguns amigos no Pará, na

ilha de Algodoal, porquanto lá ainda havia muito o que conhecer,

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também começou a descrever a ilha, mesmo sem conhecer, o que

nos fez balançar entre seguir ou voltar pra terrinha, mas o objetivo

era Fortaleza e com a dica de Canoa, deveríamos arriscar.

De volta à estrada, conseguimos uma carona com um cara de Picos

no Piauí, depois outros em pequenos trechos e um ônibus até

Fortaleza, não me lembro muito da cidade, só ficamos próximo a

rodoviária, até que encontramos o Solano, amigo da Cristina desde

Curitiba, um reencontro muito festejado, mas que parecia

programado, não falei nada, confesso que fiquei enciumado e de

cara já não gostei do figura, mas ele tinha um jeep e

“coincidentemente” ia pra Canoa, então, com tantos “atributos”

tive que me render e partimos para o litoral, sem esquecer que

antes passamos num outro bairro onde pegamos o Arthur e a

Guta, dois irmãos, filhos de um militar influente que resolveram

aderir ao movimento e estavam caindo fora. Sabe aquelas figuras

que não tem nada haver com aquele momento? Mas que tem a

maior boa vontade em saber como tudo funciona? Pois é, assim

eram os dois irmãos, ele 17 e ela 21, pareciam ter sido criados a

base de leite de cabra, de pele tão alva e modos tão refinados, que

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nitidamente não deveriam estar ali, ele mais atirado falava o

tempo inteiro, disse que tinham largado os estudos, ele o colegial e

ela a faculdade e que não voltariam mais pra casa onde eram

reprimidos em suas vontades sem o mínimo respeito, com o

agravante que ele deveria se apresentar ao exercito nos próximos

meses e tal, ela, o tempo todo calada, parecia tensa, tinha os olhos

verdes fixos na paisagem, não parecia muito interessada na

conversa, seu pensamento divagava distante daquela estrada.

Adiante um posto de gasolina e uma rápida parada. Todos

desceram, menos Guta, que permanecia inerte, arrisquei

perguntar-lhe se gostaria de comer algo, ela balançou a cabeça

positivamente, mas não disse o que gostaria de comer, não falei

mais nada, desci e me juntei aos outros, pedimos sanduíches e

suco, não se passou nem dez minutos, quando retornamos ao

carro, eu trazia um sanduíche para ela que pra nossa surpresa já

não se encontrava mais lá, procuramos pelas imediações sem

sucesso, nos separamos, não tinha muito pra onde ir, ou entrara

no posto, ou seguira a pé, ou embrenhara-se no mato ou alguém a

levara, o garoto assustado disse que talvez ela tenha se encontrado

com um tal Dado, seu ex-namorado que a seguia o tempo inteiro,

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um barra pesada que traficava nas ruas de Fortaleza, não sabíamos

muito bem o que fazer, como comunicaríamos o desaparecimento

de alguém que já havia desaparecido, como explicaríamos sua fuga

se estava fugindo com a gente. Artur disse que seguiria em frente,

que não era a primeira vez que ela fazia isso, e que na ultima

morou com o tal Dado durante três meses, bem, ele parecia

convicto do estava rolando, tão convicto que nos convenceu e

resolvemos continuar sem ela.

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Canoa

Durante a viagem encontramos várias pessoas com mochilas nas

costas indo na mesma direção, mas contrariando o que tínhamos

conhecido até então, Solano postado no volante tendo a seu lado

Cristina, não parecia se incomodar com os apelos de carona que

eram solicitados a margem da estrada, falava bobagens, tipo, “joga

a corda que te puxo” ou “vou te mandar um reboque” e para

minha desilusão, Cristina se divertia com aquele monte de

abobrinhas, parecia ter esquecido o que a bem pouco tempo

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acontecera em S. Luiz, ou todo o “batalho” que foi pra chegarmos

até ali, não a reconhecia mais, como alguém podia mudar sua

postura de forma tão radical em tão pouco tempo? Depois de mais

algum tempo chegamos finalmente.

Era deslumbrante o cenário que se apresentava aos nossos olhos,

eu fiquei extasiado com a beleza do lugar, praia linda, areia fina

colorida, muita gente acampada, outros em barracas de palha,

parecia um pré-acampamento do Woodstock, por algum tempo

não pude conter minha admiração, os outros ao contrário,

pareciam já conhecer o lugar e simplesmente chegaram, Cristina,

que eu tinha certeza, nunca estivera lá, fez de contas que era só

mais um lugar e acompanhava Solano todo o tempo, o garoto

Artur, me dava nos nervos, eu não conseguia conversar com ele e

tampouco fazer com que ele se calasse, ficamos numa barraca,

tipo restaurante onde estavam servindo comida natural, os caras

que trabalhavam lá eram bem exóticos, usavam uma espécie de

túnica laranja, tinham a cabeça raspada e um rabinho de cavalo no

meio, tocavam e cantavam umas musiquinhas enquanto outros

davam pulinhos engraçados, depois fiquei sabendo que se tratava

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de um grupo ligado a uma religião da índia e tal, foi bem legal o

contato com eles, eram cheios de frases de efeito e filosofias

inteligentes, Cristina flutuava por todos os cantos e parecia me

evitar, sabia que eu tinha muito a falar e que certamente

discutiríamos, até que em dado momento o “Fulano” deu um

tempo e eu a chamei, perguntei o que estava rolando, ela disse

que ele era um velho amigo e que ela estava tentando agradá-lo,

perguntei o porque de sua mudança de atitude, ela disse que na

verdade sempre foi essa pessoa e que Atalaia e tudo mais fora uma

fase e que já não fazia mais sentido, disse que se comunicou com

seus pais no Paraná e que receberia dinheiro para ficar uns dias e

depois voltaria pra casa, disse também que eu não me

preocupasse, pois a grana daria pra segurar minha “onda” o tempo

que ela ficasse lá e até me arranjaria “algum” pra que eu

retornasse. Foi muito ruim ouvir tudo isso, eu me senti usado e

descartado, ela pertencia na verdade a uma classe social abastada,

a mesma burguesia que tanto nós criticávamos e combatíamos. A

situação em que eu a conheci seria apenas circunstancial, ela

apenas tirava “uma”, assim como o garoto Arthur estava tentando

fazer, não tivemos um papo definitivo, mas já não tínhamos mais

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intimidade alguma, éramos apenas velhos conhecidos, ela arranjou

um lugar na casa de amigos da Guta, onde eu poderia ficar, junto

com o moleque, o cara que nos atendeu, de quem não lembro

mais o nome, disse pra ficarmos tranqüilos que a Guta estava na

casa de uma figura amiga, junto com o tal Dado e que só estava

com ele porque era viciada em ácido lisérgico e ele era o único

canal, daí o motivo daquele relacionamento tempestuoso.

À noite tudo era um grande “barato”, as rodas de amigos se

espalhavam diversificando aquele lugar mágico, rolava de tudo,

loucos drogados, loucos embriagados e loucos de cara, rock do

bom, reggae, MPB e Hare Krishinas, um grande festival de

liberdade e cultura, não havia nenhum tipo de repressão,

estávamos em uma zona livre dos tentáculos reacionários e

pudicos que regulavam o sistema, todos viviam em uma comunhão

relativa, mais harmoniosa, durante os dias que fiquei por lá, não

ouvi falar de um simples distúrbio, tudo transcorreu na mais

absoluta tranquilidade.

Ha três dias não via Cristina, cheguei a pensar que não estava mais

lá, mas naquela tarde na casa onde estava hospedado, sem custo

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algum, ela chegou e me procurou, disse que chegara de Fortaleza e

que seus pais lhe haviam mandado dinheiro e que agora podíamos

retomar nossa vida de outra forma, perguntei-lhe sobre seu amigo

Solano, ela disse que não tinha nada haver e que ele já tinha se

mandado, mas que agora poderíamos ir viver num lugar melhor, já

que seus pais a receberiam de volta, disse também que falou a eles

sobre mim e que gostariam de me conhecer. Tudo pra mim

pareceu muito repentino, percebi que o lance com Solano tinha

“babado” e que ela se sentia meio perdida, bem, pensei com meus

botões, estou longe de casa, sem dinheiro e sem perspectiva de

voltar, logo teria que me segurar até conseguir comprar algum

material e voltar pra estrada, e foi o que eu fiz, relevei os

acontecimentos e ficamos muito bem instalados em uma pousada

por alguns dias, ela fazia planos pra que fossemos morar em

Curitiba, mas eu já não conseguia mais confiar no que ouvia, pedi

que me arranjasse algum dinheiro, para que fosse á Fortaleza

comprar algum material de trabalho, ela disse que não precisava

mais e que tomaríamos um ônibus direto para sua casa,

argumentei que não gostaria de ficar em sua dependência e que

gostaria de levantar minha própria “grana” até pagar seu

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empréstimo, ela aceitou minha argumentação e liberou um valor

razoável para que eu voltasse a produzir, passamos uma noite

muito legal, mas já não era igual, eu sentia uma mulher diferente,

não melhor ou pior, apenas diferente, não existia mais aquela

vontade de ficar horas jogado na cama se curtindo como antes.

No dia seguinte tomamos café na vila, um beijinho rápido, tomei

um ônibus e viajei para Fortaleza. Ao chegar a cidade fui dar umas

voltas pela belíssima orla da capital, uma rapaziada “descolada”

circulava pelo calçadão muito bem policiado, era um cenário

repressivo que eu não estava acostumado, cheguei até a lojinha

comprei uma boa quantidade de material, metais, miçangas,

sementes, palha e linha, mas na volta à rodoviária fiquei quase

uma hora circulando em frente aos guichês minha conveniência

me remetia a comprar a passagem de volta para Canoa, mas minha

consciência gritava diferente, no final quando me toquei, mais ou

menos como Edna fizera comigo, desapareci, e voltei à Belém.

Meus cabelos estavam crescidos, quase no meio das costas, minha

experiência era minha carta de referência para seguir a qualquer

lugar, não gostaria de voltar ao circuito turma, bailinho, idealismo,

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radicalismo etc. essas coisas não faziam mais parte do meu modo

de pensar, já trazia uma bagagem considerável de relacionamentos

e estrada que me credenciavam a fazer escolhas consistentes e ao

mesmo tempo não via mais relevância em determinados

posicionamentos, não me dispunha mais a discutir assuntos

batidos que nada acrescentavam ao meu conhecimento, os

carinhas, pareciam ter parado no esquema do rock e mantinham

suas mente fechadas sem se darem contas que o novo sempre vem

e que o leque de possibilidades é imenso, as bifurcações sempre

iriam aparecer, mas nós teríamos que ter o discernimento

necessário na hora de fazer nossas escolhas, visto que nessa fase

que estávamos atravessando elas poderiam ir de um simples

experimento a seqüelas para toda uma vida, mas apesar de pensar

dessa forma, também não conseguia me ver de volta a casa dos

meus pais, ficaria sempre aquele sabor amargo do fracasso e um

gosto estimulante de quero mais, portanto, naquele momento eu

estava diante de minha bifurcação, o ônibus se aproximava de

Belém, e eu teria que resolver o que fazer, minha família não tinha

noticias minhas a pelo menos seis meses, o ultimo telefonema foi

quando fui a Castanhal, cidade a 60 quilômetros de Belém,

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entregar algum material em uma lojinha, me lembro do alívio de

minha mãe ao saber que estava bem, contei-lhe que estava meio

casado e que tinha uma casa, um trabalho, ela ficou contente,

mandei beijos e abraços a todos e disse tchau, desde aí não falei

mais com ninguém, e agora estava voltando, sem mulher, sem casa

e sem emprego, não podia ser desse jeito.

Chegando ao terminal não sabia muito bem o que fazer, parecia

um estrangeiro em minha própria terra, procurei a casa de uma ex-

namorada, aquela ex do cara da banda, com quem troquei juras de

amor antes de tudo isso começar, cheguei até sua casa em uma

rua próxima, não lembrava muito bem onde ficava a casa, pedi

algumas informações e cheguei até lá, bati na porta, uma senhora

veio atender, era sua mãe, pedi para falar com a garota, mas a

senhora disse em um tom pouco amigável que ela havia saído com

seu noivo, pedi desculpas, disse que voltaria outro dia e me

mandei, meu primeiro cartucho estava queimado, bem agora me

restava procurar o meu primo, fui até o terminal de novo e liguei,

Falei com meu velho primo, figura apesar de excêntrica tinha

sempre uma carta na manga e só precisava de outra alma livre

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para decolar. Encontramos-nos e traçamos uma ida à ilha de

algodoal. Essa dica foi legal, me lembrei do maluco do Maranhão e

resolvi que era pra lá que eu ia. Lembro-me que segui depois de

alguns dias. Rapidinho uma ligada pra mamãe, beijos e choros e lá

fui eu de ônibus para Marudá, cidade litorânea no nordeste do

estado de onde se tinha acesso a ilha.

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ALGODOAL

1982, o governo militar agonizava, uma grande quantidade de

jovens alheios aos movimentos políticos, amantes do bom e velho

rock’in roll, promoviam um verdadeiro êxodo para longe dos

centros urbanos, a velha filosofia de “paz e amor”, mas do que

nunca era desfraldada entre as muitas cabecinhas frescas que se

aventuravam em sair de casa, sem se contentar com uma vida

quadrada e urbana, uma “comichão” de conhecer, desbravar,

experimentar tomava conta de toda uma nova geração, que se

importava mais com o companheiro do que com as condições

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impostas para viver essa amizade, que não media esforços para se

deslocar e encontrar distante alguém que antes era tão próximo e

não mantinha contato algum, a filosofia de cuidado e amor a

outros estranhos que passavam em alguns encontros a serem

amigos eternos, íntimos como a aquela tatuagem que escondiam

dos pais, cúmplices e testemunhas de uma década que sempre

será lembrada por ter proporcionado mudanças profundas na

política de um país e no comportamento das gerações futuras,

uma geração que trazia a sensualidade aflorada em cada gesto ou

movimento, uma geração que veio se formando na fumaça de uma

ditadura e desfrutou de seu desmantelo, mas sobre tudo, uma

geração de idéias e caráter forte, de cultura alicerçada por uma

relação interpessoal sensível e marcante, por uma interação

apaixonante com a natureza o que viria a refletir seu

posicionamento audaz sua cumplicidade e sua parcialidade

inconteste até hoje em seus descendentes.

Quando me dispus a ir em mais essa aventura, estava um tanto

desolado e sem perspectiva, só sabia que meu primo se

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encontrava na ilha já a algum tempo e que outras pessoas também

buscaram esse recanto.

Marudá, a cidade que dava acesso a ilha, era uma cidade bem

estruturada, já contava com um bom hotel e o fluxo de veículos

estacionado na orla da praia já denotava que ali estava um dos

destinos favoritos dos turistas, imaginei que a ilha também

guardava alguma estrutura, visto que ficava há 20 minutos de

travessia em barcos de passageiros, qual nada, já de cara, no

barquinho só estavam além do piloto e eu, mais duas pessoas,

perguntei o motivo de tão poucas pessoas atravessarem, o moço

me disse que é por que do outro lado, só havia uma vila e os

turistas não gostavam muito de ir principalmente porque diziam

que lá era um lugar cheio hippies e desocupados, não oferecendo

conforto e boa alimentação. Bem, as referências para mim eram as

melhores possíveis, já que naquela época, onde havia preconceito

da burguesia, significava território livre, comecei a gostar do lugar,

o barqueiro, que era morador da vila e não concordava com o

pensavam sobre sua ilha, dizia que os caras que moram lá, eram

muito gente boa e que se davam muito bem com os nativos, só

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eram um pouco barulhentos, mas não se ouvia falar de brigas,

roubos ou depredação, ao contrário, eles ajudavam a cuidar da

lagoa...interrompi sua fala e perguntei de que lagoa estava falando,

ele disse que se tratava de uma lagoa encantada, onde morava

uma princesa de vestes brancas que de vez em quando aparecia

para os pescadores e geralmente botava os invasores pra correr,

mas que parecia ter se dado bem com seus novos vizinhos. Disse

que a última vez que foi avistada tinha a forma de uma “boiúna”,

cobra de grandes dimensões, mas que apenas aparecia para ter

certeza que tudo estava bem, contou vários outros casos de

desaparecimentos e encantamentos que aguçaram minha

curiosidade, fazendo crescer a ansiedade em participar um pouco

daquele conto de fadas.

Sabe aqueles quadros vendidos em toda parte, onde aparece uma

enseada, barquinhos espalhados sobre as pedras, vila típica de

pescadores e aquele sol enorme no fundo dando uma sensação de

pequenez a tudo mais que existe no mundo? Pronto! Essa é a

descrição perfeita do que eu vi só que era de verdade, havia vida,

movimento e comércio, não existia energia elétrica, pousadas nem

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restaurantes, o transporte era o mais natural possivel, sem acesso

facilitado, tinham a dádiva de não contar sequer com um carro ou

moto, tudo era conduzido através de burricos e charretes, o

grande encontro dos habitantes, que não eram muitos, se dava em

um grande barracão onde rolava roda de “Carimbó”, dança

sensual, típica da região, e cachaça servida em pequenas “cuias”,

espécie de vasilha extraída de uma árvore muito comum por lá,

que dava um charme todo natural ao evento, digo isso porque

quando aportamos, era um fim de tarde embriagante e não vi

outra alternativa que não fosse passar a noite junto com os

nativos festejando sei lá o que, mas com o mesmo entusiasmo

como se soubesse.

Nessa noite conheci um “maluco de pedra” que chegara em um

barco antes e já estava entrosado em meio a todos, parecia já ser

veterano por ali, sabia o nome de todo mundo e a recíproca era a

mesma, gozava de um certo prestígio, pagava bebida e carregava

umas baquetas enfiadas na mochila, o que me chamou atenção,

começamos a conversar e chegamos a conclusão que éramos parte

de um mesmo grupo e que os amigos em comum eram muitos e

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que vários deles se encontravam acampados no lago, disse que

estava preocupado porque lhe disseram que devido o alto

consumo de “erva” na ilha, haviam infiltrado entre os nativos um

policial federal e que por isso não tinha ido pro acampamento,

perguntei-lhe qual ligação isso teria com o fato dele estar

preocupado, ele sorriu e sacou de dentro da mochila uma lata de

leite cheia de maconha que teria ido buscar em Mocoóca, pra

abastecer nativos e simpatizantes. Depois de tomarmos várias

cuínhas achamos coragem para enfrentarmos uma longa

caminhada no frio da madrugada, disse que se quisesse ir, aquela

era a hora boa pra chegar até a lagoa, já que a maré estava baixa e

o “canal” permitia a passagem a pé, aproveitamos o porre e a lua e

saímos. Depois de caminharmos um pouco, chegamos a um

igarapé que cortava a praia em direção as dunas, ou era ao

contrário, não era tão raso assim, não dava pé e tivemos que nadar

uns cinco metros numa correnteza relativa, aparentemente esse

esforço não seria grande coisa se não estivéssemos naquele estado

deplorável, riamos muito sem noção do perigo que corríamos,

molhamos tudo o que carregávamos, e quase congelamos. Meu

amigo, muito louco, resolveu enterrar em uma duna a lata de leite

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que conduzia, para resgatá-la no dia seguinte, ainda tínhamos uma

garrafinha de aguardente pra rebater o frio, as roupas molhadas

eram a pior parte, então nos livramos delas, ficamos totalmente

pelados, jogamos as mochilas nas costa e seguimos em frente,

cantando e bebericando. Não se tinha bem a noção do tempo,

mas deveríamos estar no meio da madrugada, três ou quatro

horas, quando avistamos ao longe uma fogueira ardendo, música e

muita algazarra, nos aproximamos e começamos a gritar, de

repente, fomos avistados e eles vieram ao nosso encontro, foi o

máximo, eu conhecia quase todos, as figuras mais selecionadas

que se podia supor, não lembramos de vestir nossas roupas e isso

não pareceu estranho, as meninas que conhecíamos de outras

“paradas” não se importaram com nossa falta de trajes, gritavam

eufóricas, “Só faltava o senhor” me abraçavam e pulavam, a

recepção não poderia ter sido melhor, pegamos nossas calças

colocamos junto á fogueira, uma panela de chá aquecia ao fogo, as

meninas resolveram que queriam cair na água, foi a senha pra que

todo mundo tirasse a roupa, jogando-as para cima e correndo em

direção a maré até cair nas espumas prateadas daquela noite de

lua, foi mágico. O sol já dava sinais que despertava, quando

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vestidos, fomos em direção ao acampamento que ficava a poucos

metros, logo atrás das dunas.

O entendimento de que a vida não deve ser medida pela distância

e sim pelo tempo, não fazia sentido nessa fase da vida, tínhamos

disposição e muito, muito tempo, éramos jovens, bonitos,

saudáveis, sem preocupações com AIDS e coisas do tipo, só os pais

de todos nós poderiam falar do revesso da moeda, na verdade eles

muito possivelmente foram os mais atingidos, mas o mundo era o

limite e tudo mais já não era tão relevante, a idéia já havia sido

plantada e encontrava-se impregnada desde muito cedo, a

inconformidade na leitura de mundo era aparente, não era

interessante o modelo atual, mais não nos chamava atenção o

segundo modelo, na verdade sabíamos da existência de um

terceiro modelo, muito complicado de explicar e passar para o

papel, mas que funcionava.

Subimos a duna, não era muito alta, logo comecei ter a visão

completa do acampamento, havia uma casa bem montada de

palha, com os apetrechos básicos de sobrevivência, tipo, fogão de

lenha, mesa e bancos bem rústicos, mas muito fortes, um

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compartimento fechado, onde pareciam estar hospedados alguns

casais, e parte de trás livre e aberta com a cozinha e a mesa de

jantar feita com varas e amarrada com enviras, em volta da casa

um mar de barracas de camping, outras improvisadas com lonas e

galhos, era uma visão bem diferente, era meio hippie, meio cigano

e muito místico, cada um procurava uma forma de chegar perto de

algum tipo de divindade, orações, comidas e chás exóticos, uma

erva que crescia nas dunas que chamavam “sete sangrias”, diziam

os pescadores, que o nome se dava por conta de que o chá tomado

por sete dias seguidos em jejum, purificava o sangue. Caminhamos

por entre as barracas até chegar á casa, um velho pescador, dono

da propriedade, era o único de pé, parecia recolher ou remendar

uma rede de pesca, quando nos viu, levantou cumprimentou a

todos, uns pelo nome, me disse que ficasse a vontade, e foi saindo.

Ficamos sentados no lado de fora enquanto uma das meninas

botava água no fogo para um café, aos poucos alguns iam se

levantando, alguns conhecidos, que faziam festa até acordar todo

mundo, eu me lembro de um figura meio alucinado que veio direto

no meu amigo baterista e perguntou pela “parada”, ele disse que

estava seguro escondido na duna e que depois do café iria buscar,

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meu primo acordou, me viu, me deu um abraço rápido e se

afastou, achei estranha aquela atitude vindo de alguém que a

poucos dias planejava estar ali. A maioria já eram “figuras

carimbadas” e tinha certeza que a estadia seria muito prazerosa.

Já todos estavam despertos, muita alegria e descontração davam o

tom daquele encontro, só me intrigava o fato do primo estar

isolado sempre acompanhado de uma lourinha linda, mas que

sempre falavam baixinho, quase murmurando, seus momentos de

descontração e brincadeiras eram raros. A garota fazia parte de um

grupo que eu não conhecia onde se encontrava outra lourinha, que

pela semelhança física deveriam ser irmãs, tinham traços nórdicos

e gestos delicados, quase calculados, eu notava que tinham algum

tipo de formação diferente da maioria o que refletia em suas

posturas, no grupo também estavam um professor de inglês, outro

casal, que pareciam ser irmãos e um cara esquisitão, que mais

parecia um lutador de vale tudo. Naquele momento o “maluco”

voltou a perguntar pela “parada”, daí o amigo resolveu levá-lo até

o ponto em que tinha guardado a lata, imediatamente uns quatro

ou cinco levantaram-se se mostrando altamente “solidários” a

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enfrentar a caminhada e lá se foram em direção a praia, enquanto

isso fiquei conhecendo uns “malucos” mais velhos, que já

moravam ali a bastante tempo e surpreendentemente um deles, o

baiano, dividia a cama com uma amiga de muitas histórias, era

tudo o que eu queria, agora sim estava me sentindo bem em casa,

através dela fui apresentado aos outros mais antigos, tinha um

mineiro que também estava junto com outra amiga nossa e o meu

amigo maranhense “pretinho”que já havia me dado uma força em

São Luiz e que de certa forma era o responsável por despertar meu

interesse em conhecer aquele lugar. Contei mais ou menos umas

vinte e cinco pessoas, dos quais eu conhecia a maioria, perguntei a

alguém sobre o estranho comportamento do primo, o que me

responderam que se devia ao fato de que ele estaria envolvido a

uma seita oriental e que o mal-estar verifica-se justamente no fato

dele tentar implantar entre os demais seus novos hábitos

comportamentais e alimentares que passavam por horários para

orações seguindo todo um ritual para que os alimentos

vegetarianos fossem servidos, isso inclusive, serviu de estopim

para uma discussão culminando com agressão física por um dos

rapazes do grupo deles, provocando um racha mais significativo

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entre eles. A alimentação era farta, alguns não estavam dispostos a

abrir mão de seus comodismos da cidade e traziam coisas não tão

básicas para aquela época como, xampus, cremes, leite

condensado, biscoitos, etc. isso também era motivo pra que

pequenos grupos se formassem gerando alguns atritos ideológicos,

mas tudo era superado no decorrer do dia, já que havia tarefa pra

todo mundo, uns cozinhavam, outros iam às compras, colhiam

frutos, ajudavam a despescar os currais, buscavam água na

cacimba, coletavam e cortavam a lenha para o fogão e pra fogueira

que religiosamente era acesa na praia toda noite, mas também

cantavam e tocavam violão sem parar além de tomar banho na

lagoa de água doce que havia atrás das dunas maiores, alias a

lagoa da “princesa” como era chamada por guardar segredos e

especulações infinitas era um capítulo a parte. Subíamos a duna

mais alta de todas, tinha que ser desta forma para que

pudéssemos valorizar o encanto que se desdobrava aos nossos

olhos, do alto da duna a visão era de uma lagoa negra com grande

volume de água doce encravada ali no meio daquela aridez, muito

limpa e gelada, onde se podia ficar o dia todo se deliciando em

suas águas e descansando em pequenas “tocas” tipo cabaninha de

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baixo dos arbustos de ajirú (fruta típica da região), era tudo que

alguém podia sonhar, enquanto o mundo borbulhava efervescendo

nas praças e vias urbanas, nós estávamos literalmente a alguns

passos do paraíso. À lagoa era atribuído todo bem estar e energia

magnética que rodeava aquele lugar, contos diversos sobre

presença de entidades encantadas e protetoras faziam parte do dia

a dia dos nativos e pescadores, naturalmente, a ela eram prestadas

reverências, não fazíamos barulho excessivo, nem era permitida a

pesca, na verdade as curiosidades são tantas e tão impressionantes

que dado a fartura do material poderíamos escrever outro livro

sobre ela.

Já se fazia fim de tarde tipo quatro horas quando me reuni a um

grupo e fomos organizar a fogueira, de repente alguém se lembrou

do grupo que saiu de manhã junto com meu amigo baterista em

direção a praia, poderia ter acontecido alguma coisa já que eles

nem voltaram para o almoço, resolvemos ir ao encontro deles, eu

me lembrava mais ou menos onde ele tinha escondido a latinha,

então os conduzi. Depois de andarmos uns vinte minutos, tivemos

uma visão muito engraçada, meu amigo e o grupo que o

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acompanhara estava sujo de areia da cabeça aos pés, de olhos

arregalados e uma fisionomia de quem acabara de fugir de um

campo de concentração, as dunas em volta e as outras mais

distantes, pareciam que haviam sido bombardeadas, havia buracos

de todos os tamanhos e profundidades, um deles estava todo

enfiado num buraco esbravejando, as palavras eram

desnecessárias pra imaginar o que teria acontecido, o “doido”

perdeu o rumo de onde enterrara a lata e a cara de fissura das

figuras era algo pra nunca mais esquecer, sabe, pareciam aquelas

pessoas presas num porão por anos e que de repente conseguiram

sair, mas morrendo de fome caçavam uma migalha qualquer numa

loja de ferragens. Esse fato tornou-se folclórico e o amigo nunca foi

perdoado por isso.

O cenário de fim de tarde daquele lugar era algo indescritível, de

olhos fixos no horizonte esperávamos o momento que o sol

gigante tocaria o mar, o firmamento exibia uma caprichosa

aquarela dourada onde nós permanecíamos calados, não havia

nada a ser dito ante aquele estarrecedor espetáculo da natureza,

apenas contemplávamos e registrávamos mentalmente aqueles

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momentos, éramos testemunhas oculares de uma das mais belas

manifestações do poder do universo.

A fogueira estava pronta pra ser acesa, aos poucos os amigos iam

chegando, alguns traziam alguma comida, peixe para assar,

chazinho de sete sangrias, cobertores e o inseparável violão, assim

as noites transcorriam como um sonho. Aos poucos íamos nos

conhecendo de verdade, haviam amigos antigos, amigos recentes,

irmãos, nativos e pescadores, uma harmonia que só era quebrada

quando o idealismo radical de alguns contestadores e seus

discursos inflamados interrompiam ou interferiam no andamento

natural da coisas, mas nada que não se pudesse controlar ou que

no dia seguinte já não tivesse importância alguma, os casais se

formavam e se separavam, entre nós estavam as figuras mais

diversas, tínhamos os que “curtiam” rock pesado, os progressistas,

os sem noção musical, os universitários fugidos e como em toda

boa republica, os “loucos de pedra” e os “loucos de cara”, os

veteranos e os marinheiros de primeira, uma maluca que invadia

nossas barracas durante a noite, sem nem querer saber quem

estava lá, ela só queria uma boa transa e no dia seguinte agia como

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se nada tivesse acontecido, evitava falar no assunto, até que a

noite voltasse e então ela se transfigurava, o sereno parecia

exercer um fascínio sobre ela, poderia ser a lua, sei lá, o fato é que

a mulher virava uma predadora e acho que a metade dos homens

do acampamento foram suas vítimas, tínhamos uma química boa,

ela era muito louca e eu sem juízo, então era perfeito, devo admitir

que ela sabia o que estava fazendo. Mas nem tudo era desfrute, ali

mesmo, em meio essa avalanche de fatos novos e relacionamentos

confusos, conheci uma linda garota, era a mais suave criatura que

até então já havia conhecido, passávamos horas conversando,

filosofando, conspirando a favor dos cosmos e coisas do tipo,

desenvolvemos um relacionamento baseado em um sentimento

mútuo e reciprocamente platônico, precisávamos estar juntos,

sentíamos falta um do outro, trocávamos beijinhos inocentes, sem

apelo sexual, parecíamos duas crianças descobrindo um

sentimento novo, no acampamento também estavam duas de suas

irmãs, uma delas assumia uma postura de mãezona, era

carismática, muito ligada nos acontecimentos, cuidava da boa

alimentação, era meio que protetora, a outra, mais velha, já

assumia uma postura mais independente, namorava um vocalista

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de uma banda de rock, esse relacionamento gerou o primeiro fruto

daquela geração e uma linda bebezinha que como não poderia

deixar de ser, chamou-se Brisa, materializando para sempre aquele

momento. Tornou-se real.

Aquela garota de inocência explicita e quase sedutora, exercia

sobre mim um fascínio como se uma rosa serenada e intocada me

fosse oferecida, mas eu, profano demais, não me sentia a vontade

para tocá-la, então me atinha a rodeios filosóficos que fizessem

com que aqueles momentos se prolongassem sem que o encanto

fosse quebrado, sem que a aspereza das minhas memórias se

revelasse e sobressaísse ao que me parecia uma música

incoerente, mas que ao mesmo tempo dava outro sentido à

palavra relacionamento. Varávamos a noite deliciando-nos com

verbos tão pouco conjugados, riamos de nós mesmos,

esquecíamos de comer e dormir, tudo isso em troca de uma

companhia revigorante e beijinhos assexuados. Ela devia ter 17, eu

acho, mas falava com docilidade e segurança de uma veterana,

muita coisa em comum nos ligava, o Hair, a Janis, a natureza em si

e outros milhares de pequenos pontos que poderiam mais tarde se

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transformar em um grande amor ou numa eterna amizade. Essas

coisas, no meio daquela avalanche de acontecimentos e calmaria

passavam despercebidas por alguns e até se dissipavam

rapidamente perdendo seu teor mais abrasivo que com a

convivência, ao contrário do que se pensava, não se fortalecia

transformando sentimentos antes avassaladores em relações mal

resolvidas e cumplicidades platônicas que adormeciam ao longo

daquele convívio, mas que latentes poderiam ressurgir em

qualquer esquina da vida, pelo menos essa era a impressão que

ficava.

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(+) Essa garota viria a falecer anos depois no parto de sua filha,

que sobreviveu, fato que fez com que velhos amigos se

reencontrassem, após muitos anos.

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Não contávamos com uma liderança definida, era algo como cada

um faz o que bem entender, contanto que não infringissem as

regras básicas de convivência e não depredassem ou conspirassem

contra a natureza, no mais era proibido proibir e todos iam se

adaptando ou se mandando conforme sua vontade, na verdade

não existia uma razão específica ou generalizada pra estarmos ali,

quando falávamos entre nós sobre o assunto as divergências se

faziam aparentes, era mais ou menos como ao sabor do vento ou

pra onde a “maré me levar”, idealismo mesmo, quase nada, a

maioria só queria mesmo um lugar tranqüilo pra escutar seu som e

fumar seu baseado. Essa falta de interesse pela vida ou pelo porvir

me deixava inquieto, eu não conseguia tratar de assuntos mais

relevante sem que alguém viesse com uma “gracinha” ou um

discurso inflamado onde só as velhas teorias batidas eram motivos

pra subirem a um “palanque”, faziam e diziam coisas que para mim

era “balela” de quem tentava demonstrar um pseudo

conhecimento do mundo e sua engrenagem, mas que na verdade

nunca se libertara das amarras da “burguesia”, tampouco deram a

cara pro mundo bater se limitando ao mundinho urbano que os

protegia.

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A religiosidade ganhava conotação superlativa, o fanatismo entre

alguns era o que mais me incomodava, eles bradavam frases de

efeito dando suas próprias interpretações ou repetindo

interpretações tendenciosas de outros, fazendo com que eu me

preocupasse com os que ouviam e não tinham um preparo legal

para divisar entre seus pontos de vista e aquelas informações

destorcidas, principalmente no que dizia respeito ao

posicionamento daquelas pessoas com relação às leis que regem o

universo e sua aplicação. Lembrava de que naquele momento

mundo afora, verdadeiras facções digladiavam-se apoiadas em

fundamentos torpes e em argumentos pueris quanto ao

entendimento e posterior aplicação dessas leis naturais.

Quando analisava esta questão com maior abrangência,

desarmado e de coração aberto, verificava o quanto são inúteis e

sem sentido os argumentos das “Igrejas” no sentido de assegurar

seu contingente de adeptos induzindo-os a entender de forma

equivocada as leis, baseando-se em suas interpretações pessoais

ou empresariais de acordo com o determinismo e interesse dos

grupos, preterindo desta forma o todo.

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As leis divinas ou naturais são ecumênicas de fácil entendimento,

de simples aplicação, viáveis para qualquer ser humano incluindo o

silvícola quem nunca teve acesso às escrituras “sagradas”, não

prescindindo assim de alfabetização ou imposições doutrinárias

para que pudesse vivê-las em seu dia a dia, sua plenitude.

As interpretações dúbias são as grandes geradoras de conceitos

pré-concebidos, contribuindo sobremaneira com o radicalismo e o

infortúnio dos atos impensados, gerando atitudes exageradas,

proliferando o desentendimento e irradiando energia negativa na

atmosfera. Essa atitude, algumas vezes impensada, mais na

maioria proposital, torna-se a ponta de uma corrente longa,

expansiva e duradoura que tem seu objetivo final contemplado

com a discórdia, o conflito, o desamor, o egoísmo e o isolamento,

levando o adepto a um estado de consciência profundamente

desarmonizado, gerando problemas psíquicos imensuráveis.

Não existe verdade absoluta neste mundo em que vivemos, do

contrário seriamos conhecedores de todos os desígnios, logo, não

precisaríamos estar aqui, a sua verdade hoje, pode não passar de

lembrança amanhã, porém seus atos e palavras solidificam em

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quem te segue, mesmo que você desdiga tudo o que afirmou,

sempre alguém não estará lá para ouvir, tornando-se assim mais

um elo da corrente.

Questões menores devem ser abrandadas, arestas devem ser

aparadas, para que possamos conviver com as diferentes

convicções, isso nada mais é do que um conceito de tolerância,

onde o que se entende como intocável e sagrado não

necessariamente significa lei universal, podendo ter um peso

neutro para o outro indivíduo, sem que ele seja exatamente um

malfeitor, um herege ou demônio.

Se a massa humana que tanto tempo desperdiça com estudos

aprofundados em matérias as quais ainda não está preparada para

entender, desviasse seus esforços para o bem comum, não

teríamos que assistir nosso povo em confrontos mortais, onde o

simples motivo é a forma de aplicação de uma lei que todos

conhecem.

As próprias interpretações equivocadas criaram as religiões base

que já se fracionaram em outras que deram origem a outras e que

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darão a outras e assim para sempre. Os cristãos são hoje um

amontoado de seguimentos, de onde os católicos são uma

dissidência que geraram os protestantes que geraram um sem

números de novas ordens e que gerarão outras mais, contribuindo

para que a desordem aumente e criem-se maiores obstáculos ao

entendimento real.

Não havia mais argumentação racional pra entrar nesse tipo de

discussão com figuras tão radicais e com verdades tão variadas se a

única verdade que hoje neste mundo temos condições de saber, é

que não sabemos de nada. Enfim eu não podia ou não devia me

aprofundar nesse tipo de confronto que não levaria a lugar

nenhum, havia outros encantos e recantos a serem explorados.

Em uma de minhas incursões pelo coração da ilha encontrei uma

velha torre de comunicação longa e fina, era o ponto mais alto da

orla, a escalada era perigosa, o vento forte fazia com que ela

balançasse muito, eu morria de medo de altura, mas não me

contive a vontade de subir e lá fui eu, sem olhar pra baixo, degrau

por degrau cheguei até o seu cume, me deparei com um farol que

acendia e apagava mesmo durante o dia, lá de cima a visão era

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muito louca, parecia voar e até por instantes esquecia o perigo da

altura, as dunas pareciam montes de açúcar ao vento ou uma

maresia estranha com elementos nunca navegados, o mar era algo

indescritível, tão gigantesco, só não diria que era infinito, por que

beijava o céu em algum ponto muito distante, era pura poesia,

uma viagem sem precedentes, aquele som do Kansas no meu

ouvido se confundia com o zumbido do vento que com uma força

anormal, às vezes deixava a visão embaçada, aliás, a visão era

tudo, as gaivotas aos montes bamboleavam em volta do sol

avermelhado, divertiam-se em rasantes ousados, as ondas da

preamar se engrandeciam como mãos gigantes coletando detritos

espalhados na enseada, “hold on” dava a trilha para aquele

momento no velho walk man emprestado de um amigo, quando a

torre balançava, eu aterrissava de novo em meu pânico de altura,

sentindo a tarde se esvair, de alguma forma precisava descer

embora com frio que corria pela coluna e muita insegurança

cheguei a baixo, mas as imagens daquele dia nunca mais saíram da

minha memória.

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Depois que desci, encontrei meu amigo Motohead, dividimos os

fones a saímos pela praia, onde o vento rasteiro produzia uma

cortina de areia fina muito densa que fazia com que não

enxergássemos nossas pernas, era uma “onda” muito legal,

quando nos sentávamos de costas para o vento desaparecíamos

em meio aquele “nevoeiro”, brincávamos como crianças e nada

parecia ser mais importante do que aquela interação, assim,

caminhamos até chegar a casa.

Era sempre assim, dia após dia a rotina gratificante da mudança

em um lugar onde a natureza se encarregava de renovar a

paisagem que nunca acordava do jeito que dormia. Logo ali

pertinho, depois das dunas mais altas estava a lagoa, um lugar

encantado, onde nos reuníamos e sem nenhuma cerimônia,

meninos e meninas largavam suas roupas pelo caminho e

atiravam-se naquelas águas geladas e escuras como vieram ao

mundo, nada era mais natural, brincávamos aos grupos sem

nenhuma manifestação de desconforto ou falsos pudores, só quem

viveu poderia descrever cenas como de alguém totalmente sem

roupas tocando violão, cercado de uma platéia mista também sem

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roupas sentado a beira de um lugar daqueles, tendo o sol por

testemunha.

Passaram-se alguns meses, e como a inquietude é algo inerente ao

homem, o tempo fez com que alguns começassem a sentir

necessidade de voltar ao mundo real, por vários motivos, uns

precisavam retomar seus estudos, outros seus trabalhos e outros

simplesmente não suportaram o fato de terem que “batalhar” sem

que alguém os servisse, esse na verdade, era o maior dos

aprendizados, não depender da cidade ou de terceiros para

sobreviver, aprender pescar e cozinhar era uma matéria nova

daquela “faculdade” que éramos obrigados a passar com méritos

ou então deveríamos desistir e reconhecer nossa condição de

“produto irremediavelmente urbano”, a maioria se rendeu e

debandou. No final, já éramos pouco mais de dez teimosos

idealistas que insistiam em não abandonar o barco que a muito já

fazia água.

Entre os que ficaram me lembro bem do primo, das “holandesas” e

de um professor de inglês, doce e amável, meio perdidão e que

adorava tocar Beattles no violão, parecia muito apaixonado por

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uma das lourinhas, que por sua vez era perseguida por um cara

que nada tinha haver com nada daquilo ali, mas que insistia em

ficar às voltas, fiscalizando e dando pitacos infelizes, ele era o

típico boyzinho da cidade, com o corpo bem malhado e vestes

apertadinhas, mas que ela temia e se entregava submissa. O amigo

professor, falava em tomar aquela garota pra si, mas esbarrava na

condição de submissão dela e no tamanho do sujeito, assim sendo,

um triangulo improvável se formou, já que enquanto ele dormia os

amantes se encontravam nas cabaninhas de ajirú em meio às

dunas. O primo permanecia compenetrado em seu mais novo

personagem sempre seguido da outra irmã, os ritos estavam

tolerados e a alimentação de vez em quando também, a harmonia

era mantida, embora aparente. Depois que a maioria já se

mandara a normalidade na vida daqueles nativos começava voltar,

certamente pra eles aquele choque de informações era muito

grande, muito provavelmente não conseguiriam nem lembrar os

nomes daqueles “invasores”, mas certamente pensariam duas

vezes quando pretendessem sair de lá, afinal, tiveram uma

pequena amostra dos conflitos que os esperavam fora de seu

mundo encantado, porém, a reciprocidade nos era muito mais

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valiosa, deixamos muitas mazelas da cidade pra que eles

entendessem e digerissem, algumas importantes para que eles

pudessem repensar sua ingenuidade já violada, em troca

levaríamos na bagagem uma gama muito valiosa de exemplos de

companheirismo, hospitalidade, humildade e sentimentos puros

que não eram predominantes em nossos corações.

Seu Lúcio o “Pé-de-Bola”, pescador das antigas, um dos velhos

moradores da ilha, irmão ou primo do dono do barraco onde

estávamos instalados, era o primeiro a acordar, batia em nossa

barraca e nos rebocava bem cedinho para irmos à praia despescar

os currais. Os currais eram pequenos cercados que prendiam os

peixes na maré alta, facilitando sua captura quando a maré

baixava, era um trabalho árduo e cansativo, mas um grande

barato, pegávamos os peixes vivos e colocávamos em um cesto de

vime que ficava bem pesado, depois íamos até a areia onde ele

retirava os maiores e vendáveis para depois liberar o resto para o

consumo. Logo em nossas primeiras incursões aos currais, sem

nenhuma prática, contávamos com sua inesgotável paciência,

perdíamos alguns peixes, mas sempre demonstrávamos boa

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vontade em aprender, tanto que depois já sabíamos o “caminho

das pedras” e o ofício fora dominado com maestria, chegamos ao

ponto de um dia, quando seu Lúcio adoeceu, irmos sozinhos e

darmos conta do recado. Em outras ocasiões ele nos acordava no

meio da noite, e dependendo de nosso estado etílico, nós o

acompanhávamos na pesca de arrasto que basicamente consistia

em segurar a rede em duas extremidades e arrastá-la durante

algum tempo até que se sentisse dificuldade em fazê-lo por causa

do peso, daí puxava-se em direção a areia para despescá-la, Seu

Lúcio, apesar de seu defeito físico, era um exímio nadador e

sempre ia do lado mais profundo da rede, depois na praia, era só

festa com aquele monte de peixinhos saltando e o sol dando boas

vindas a mais um dia que nos brindava ao nascer radiante.

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A Volta

As atividades foram escasseando à medida que o grupo ia se

desfazendo, a despeito da chegada de alguns novos “moradores”,

muito empolgados que chegaram até nós por causa do “ouvi

dizer”. As lendas sobre aquele lugar e sua população de renegados

ultrapassaram os limites por nós imaginados, havia muita magia e

folclore nos relatos dos que partiram. Os novatos esperavam

encontrar ali algo que já não existia mais, fato que logo foi

percebido por eles, mas como tinham toda a motivação de quem

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acabara de aportar no paraíso, tentariam recomeçar da sua

maneira, só que para nós o encanto estava desfeito e só nos

restava arrumar as mochilas e deixar que o sonho fosse vivido por

outros sonhadores.

Ainda permanecemos mais uma semana ou duas, convivendo com

alguns novatos, esse período de transição foi importante porque

conseguimos passar um pouco da filosofia do lugar com relação à

manutenção e o modo de conviver com os nativos sem ofendê-los,

além de passar algumas tarefas básicas diárias que precisavam ser

cumpridas, fiquei sabendo que dentre essas pessoas que ficaram,

ocorreram duas mortes, uma foi do meu amigo maranhense

pretinho, que foi assassinado em uma das vindas a Belém por

vândalos, por ironia em frente ao teatro da “Paz” e o outro, um

dos amigos novos que chegou quando já saíamos que pulou do

barco em movimento sem motivo aparente e desapareceu nas

águas.

Resolvi que iria embora, arrumei minha mochila e já me

encaminhava para o porto quando o amigo professor de inglês de

mãos dadas com sua lourinha e mochila nas costas disseram que

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também iam, mas que fariam ainda um longo caminho por

Fortalezinha até Mocoóca, já que não queriam cruzar com o

desafeto malhadão que teria ido à vila, na verdade era fuga, mas

uma fuga romântica que eu tinha que testemunhar, então,

deixamos o primo, a outra lourinha e mais uns quatro para trás e

saímos os três para o outro lado da ilha em uma caminhada que

duraria pelo menos mais um dia.

Aquele gosto de frustração e melancolia novamente me envolvia,

eu pensava comigo mesmo até quando tentaria achar meu el

dourado? Será que esse lugar existia? E o sucesso, seria melhor?

Será que estaria em voltar e me submeter ao sistema? Pensava nos

amigos que foram embora por causa de seus compromissos

inadiáveis, iriam ser pessoas “normais” e certamente mais tarde

usufruiriam de sua escolha, mas alguns seriam escolhidos e de

alguma forma violentados em seus desejos e anseios.

Se imaginarmos que a felicidade é semelhante a uma ilha

fantástica de prazeres constantes e paz permanente, um lugar

onde não há preocupação, nem a dor, no qual os sorrisos brilham

nos lábios, e a beleza envolve de festa as criaturas. Essa felicidade

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feita de fantasias parecia ser a nossa busca. Planejamos a vida,

objetivando encontrar esse reino encantado, onde, por fim,

descansássemos da rotina, da aflição e desfrutássemos da

harmonia desse espaço. Passaram-se os anos, e somamos

frustrações, amontoamos desencantos, sem a esperada conquista.

Lentamente, nos entregávamos ao desânimo, e sentíamos que

estávamos discriminados no mundo, quando em fim assistimos as

propagandas apresentadas pela mídia, nas quais desfilavam os

jovens, belos e “sarados”, desperdiçando saúde, robustez, corpos

venusianos e apolíneos, usando bebidas e grifes famosas,

brincando em iates de luxo, ou exibindo-se no esporte da moda,

invejáveis, triunfantes... Acreditávamos imediatamente que isso

seria a felicidade e que eles seriam felizes. Não tínhamos idéia do

quanto custaria, em sacrifício e dor, alcançar o topo da fama e que

é ainda pior tentar permanecer lá. Sob quase todos aqueles

sorrisos, que são estudados, estão à face do medo, as marcas da

exploração até o arrependimento, alguns envenenariam a alma pra

chegarem aonde pretendem, antes de serem conhecidos e

disputados, muitos se entregariam a drogas, que lhes consumiriam

a juventude, igual ocorreu com as multidões de outros, que os

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antecederam e desapareceram. Esquecidos e enfermos, aqueles

que foram pessoas-objeto, amargariam hoje sua condição de

miséria que lhes acolheu ou foram atirados lá.

E a tal felicidade? Ah! Essa, porém, é conquista íntima.

Todos os que se encontram nesse jogo, nascidos em berços de ouro

ou de palha, homenageados ou desprezados, belos ou feios, são

feitos do mesmo “barro” frágil da carne, e experimentam, de uma

ou de outra forma, os vícios, decepções, doenças e desconforto.

Ninguém, nesse mundo, vive em regime especial. O que parece

viver, não excede a imagem, é ilusão. Se desejarmos ser felizes,

devemos viver cada momento de forma integral, reunindo as cotas

de alegria, de esperança, de sonho, de talento, num painel pleno,

as ocorrências de dor servem de experiências para as de saúde e de

paz. A felicidade não se resume a coisas: é um estado interno, uma

emoção, devemos dar vivas aos acidentes de percurso, que

denominamos como percalços, devemos seguir na direção das

metas, e veremos quantas concessões de felicidade pela frente, nos

aguardam.

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Quando chegarmos ao topo do monte, relaxaremos e

constataremos que o grande barato foi o sucesso da escalada,

pisamos pedregulhos que feriram nossos pés, mas também flores

miúdas e relva, que teimaram em nascer ali colocando beleza no

chão e descobrimos que, para que possamos ser felizes, basta

saber identificar, nas coisas e no sucesso da marcha, o enigma

contido na necessidade de evoluir.

No meio da jornada, calados, famintos e cansados, avistamos uma

pequena vila ladeada por um barranco muito alto e uma enseada

cativante, era Fortalezinha, um lugarejo com pouquíssimas pessoas

onde teríamos que achar um lugar para dormir, era um momento

de reflexão, na mente pouca praticidade e muita filosofia.

Nosso imediatismo cada vez mais presente em cada ato, em cada

gesto, deixa evidente nossa ansiedade em chegar a algum lugar

que na verdade não sabíamos qual é, o caminho que tomávamos

todos os dias acabavam sempre no mesmo ponto, por mais que

tomássemos outro rumo, usássemos atalhos, no máximo

conseguíamos chegar mais rápido ao velho ponto de partida.

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O Barco nós não poderíamos perder, mas as bagagens nem sempre

eram tão importantes, podíamos deixar algumas contas pra

acertar depois, mas a vida não podia esperar, ela tinha que ser

vivida. Será que fizemos a escolha certa ao dobrar a esquerda, ou

era na direita que estava o que procurávamos? Mas o que era

mesmo que procurávamos? Já não lembrávamos mais, portanto

podíamos até encontrar deste outro lado mesmo.

A verdade é que caminhamos, caminhamos sem saber aonde ir

com a exata impressão que tínhamos de chegar, que coisa mais

confusa, precisávamos nos dar um tempo para refletir sobre a

importância de caminhar, talvez tivéssemos que desacelerar e

provavelmente aportar, para então respirar e aí observar que a

paisagem que passa correndo, é tão mais bela quando

contemplada, que as pessoas apressadas que cruzaram nosso

caminho e se foram, tinham uma história pra contar e muito a

ensinar, só precisavam de um espectador atento para que

pudessem se expressar e sentirem-se ouvidas.

Nesse momento entendíamos que podíamos nos lambuzar na terra

e aproveitar a criança que não fomos e que hoje se reeditava nas

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crianças que encontramos, também entendíamos que as

oportunidades que se apresentavam não deveriam ser ignoradas,

eram efêmeras e levavam apenas a fração do tempo que se

extinguia, que o papel depois de amassado nunca mais seria o

mesmo, as marcas permaneceriam por mais que se tentasse

consertar. Sabíamos que teríamos de pedir desculpas por atos que

praticamos e por ações que nos omitimos, pois só assim

desfrutaríamos da vantagem de pedir perdão e descobriríamos

onde estavam os erros enfim e embora continuássemos sem saber

para onde caminhávamos, teríamos a absoluta certeza sobre o

lugar aonde não gostaríamos de ir.

Depois de alguns contatos, conhecemos um maluco que parecia

mais um ermitão, cabelos enormes e colados em tabletes com

evidente aversão a banho, mas que nos acolheu e até nos ofereceu

uma caldeirada de arraia que podia não ser da maior assepsia, mas

estava uma delícia, tivemos uma noite estranha, é que o amigo

ermitão declamava poemas o tempo todo e tocava o violão ao

contrário, não conseguíamos dormir com aquela figura

zumbizando pela casa até a hora que o cansaço nos dominou e

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enfim repousamos por algumas horas. Aquele curto espaço de

tempo foi suficiente para acordarmos com o sol entrando pela

janela e verificarmos nossos pertences espalhados pela casa,

descrevendo um caminho até lá fora. Havíamos sido roubados, o

maluco desapareceu com o violão e algumas peças de roupa, o

resto ele se encarregou de espalhar pela praia. Saímos ao seu

encalço, não era difícil segui-lo, as marcas de suas pegadas

desordenadas estavam impressas na areia batida, ele se dirigia

para Mocoóca, justamente o nosso caminho, juntamos tudo e

partimos. Depois de algum tempo de caminhada encontramos

outra figura estranhíssima, que nos gritou de cima de um coqueiro

oferecendo água de coco verde, minha amiga lourinha aceitou, ele

desceu do coqueiro como uma agilidade impressionante e em

segundos estava ajoelhado aos seus pés oferecendo-lhe galante,

um côco já aberto, o gesto e as palavras não combinava com a

aparência do sujeito, ele tinha o aspecto de um “Jeca tatu”, um

Mazzaropi da praia. Ainda se refazendo do susto ela, linda,

agradeceu a gentileza, ele parecia embriagado por sua beleza, nos

ignorou totalmente e disse que ela poderia pedir o que quisesse

que ele traria, ela, já em tom de brincadeira disse que gostaria de

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reaver seu violão que havia desaparecido, ele enfiou a mão em um

saco de sarrapilha e puxou um par de sandálias femininas dizendo

que um maluco com um violão as trocara por um baseado e que

não devia estar longe, mas que se ela quisesse ele traria pra ela a

“viola” de volta, ela agradeceu e saímos apressadamente atrás do

ermitão. Pouco mais de um quilometro dali, avistamos o “doido”

jogado na beira de um canal, parecia dormir com um chapéu de

palha enfiado no rosto, ao seu lado uma garrafa de aguardente e o

violão quase dentro d’agua, não tivemos trabalho algum, apenas

juntamos o violão e seguimos em frente.

Quando chegamos a Mocoóca, já era de tardinha o sol se exibia

exuberante, dourando as pequenas embarcações a remo que

faziam a travessia de pouco mais de dez minutos, chegamos à

outra margem e pronto, já estávamos de volta a “civilização”, não

tínhamos dinheiro, mas nos acompanhava um violão e uma garota

linda de cabelos louros que se destacava aonde chegávamos, logo,

se aproximou um “figura” de bigodão, parecia o Billy de “Easy

Rider”, convidando a todos nós para comer e beber cerveja, ele era

cabeludo, branco e bem forte, aparentava uns quarenta anos,

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estava acompanhado de uma mulher madura, tipo, 38, talvez, mas

muito bonita de pele bem tratada, cabelos louros que não

pareciam naturais e sotaque diferente, logo nos entrosamos, foi

muito legal, o cara tinha uma caminhonete, tipo pick-up, pagou

comida e muita cerveja, dizia que precisava ver gente jovem e

descolada, se dizia um amante voraz e notadamente tentava

conduzir a conversa para uma noitada grupal, o que a mulher que

o acompanhava era também entusiasta, nossa amiga, talvez por

ingenuidade, não percebia as segundas intenções do casal e o

amigo professor, já caia pelas tabelas jogado no fundo do boteco

agarrado ao seu violão, depois das apresentações mais

aprofundadas, a mina do cara chamava Lena, ele dizia que eram

casados, mas notadamente não era um casamento convencional,

tanto que em dado momento ela, mas velha que eu, tomou a

iniciativa e me segurando pela mão, deixou o Billy só com minha

amiga na mesa, saiu me arrastando em direção a praia, eu pouco

podia fazer, afinal, a Lena era uma gatona e me atraia muito

aquelas coxas grossas e bem torneadas, além do que, minha amiga

não parecia oferecer resistência em ficar com o Billy.

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Saímos em direção à arrebentação, eram mais ou menos umas

cinco da tarde, sem muita conversa ou sem conversa nenhuma,

nos envolvemos com uma fúria de náufragos, a mulher era muito

louca e inconseqüente, soltava gemidos alucinados sem se

importar com o que eventualmente alguém pudesse pensar, as

pedras viraram colchões tão confortáveis que os hematomas

passaram despercebidos, eu curti muito aquela maluca, embora

me preocupasse com o que o maridão estaria pensando, depois

entramos na água e continuamos o que começamos nas pedras, foi

ótimo. Passadas algumas horas, nos “tocamos” que tínhamos de

voltar e meu sensor de “aranha” me dizia que podíamos ter

problemas, mas como eu não era o “Aranha”, estava enganado, o

Billy, já com o violão na mão cantava e gargalhava, parecendo

muito feliz, o professor continuava “bodado” e essa história ficou

assim, ninguém nunca perguntou o que aconteceu, só sei que

minha amiga guardava com muito cuidado o endereço de um

apartamento em Nazaré, onde moravam o Billy e a Lena. A noite

caiu, festejamos até muito tarde e não me lembro onde dormimos.

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No dia seguinte, embora com dores na coluna e os joelhos

esfolados, estava refeito e pronto para seguir, Billy já estava em

uma mesa tomando um café, me chamou, ofereceu um caneca e

disse que voltaria para Belém naquele momento e que se

quiséssemos nos daria uma carona, imediatamente chamei os dois

e aceitamos a carona, porém ainda não queríamos ir pra casa,

decidimos então que pararíamos em outro lugar qualquer para

aproveitar um pouco mais aqueles momentos finais, lembrei de

alguns parentes em uma cidade do interior, sugeri que fossemos

até lá, os amigos aceitaram e assim foi.

Antes de sairmos Billy disse que daria uma festa em seu

apartamento, para comemorar o seu aniversário e que se nós

estivéssemos em Belém, estaríamos convidados, ainda ficamos

conversando um pouco, Lena permanecia em sua postura de

mulher casada, mal me dirigia à palavra, parecia que nada tinha

acontecido entre nós, então entramos na caminhonete e partimos.

A cidade de Igarapé-açu era o nosso destino não ficava distante

dali e o amigo teria de passar por dentro dela para chegar à Belém.

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Chegamos à cidade, nos despedimos dos amigos, Billy distribuiu

sorrisos, Lena me entregou um papel com seu telefone, apertou

minha mão e se foram.

Dirigimo-nos a uma velha casa que ficava às margens da estrada no

centro da cidade, era a casa que pertencera aos meus avós

maternos e onde eu praticamente fui criado correndo por aqueles

quintais. A casa, muito grande, já não tinha mais aquele charme e

imponência, típica das famílias tradicionais da região, não sabia

quem estava morando no local, mas mesmo assim batemos à porta

de entrada, uma garota muito bonita, tipo 17 anos, vestidinho de

florzinhas, típica moradora do interior, mas muito vivaz e

comunicativa, olhou para nós, dois cabeludos viajados com

aparência de ressaca e mochila às costas e uma lourinha que mais

parecia uma figura recortada de contos da caronchina, com alguma

surpresa, mas sem susto se dirigiu até a porta, não esperando que

falássemos nada foi logo dizendo que o Paulo não se encontrava,

mas que podíamos esperar se quiséssemos, eu, perguntei quem

era o Paulo e ela perguntou se não era com ele que queríamos

falar, eu expliquei a situação, contei um pouco de mim, falei sobre

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minha mãe, meus avós e sobre aquela casa, ela pulou no meu

pescoço e num abraço apertado se apresentou como minha prima,

dizendo que já havia ouvido muito falar sobre seus primos hippies

e que sempre quis nos conhecer, muito empolgada disse que

poderíamos nos acomodar até que o Paulo chegasse e resolvesse

aonde ficaríamos. Logo já nos sentíamos em casa, ela nos conduziu

pelo longo corredor que tantas vezes eu corri quando criança, nos

levou até a cozinha onde o tempo não alterou nem os móveis, a

mesa de refeições ainda estava lá, enorme, de madeira rústica,

tipo “santa ceia”, nos trouxe toalhas bem branquinhas com cheiro

de naftalina, e suco de maracujá, no fogão havia algo cozinhando

com um cheiro muito bom.

Passado o impacto inicial, voltei a perguntar quem era o Paulo, ela

respondeu que também éramos primos, que ele morava sozinho

naquela casa e que ela só estava ali dando uma força. Na real a

garota era filha de uma prima de minha mãe e o Paulo era seu tio,

portanto meu primo em segundo grau, ela morava com o resto da

família em uma casa em frente, mas sempre ia até lá fazer limpeza

na casa e cozinhar. O papo estava muito bom, meu amigo estava

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no banho quando chegou meu primo Paulo, quando eu o vi logo

me lembrei dele, usava um turbante branco e muitos patuás no

pescoço, veio logo em minha direção, lembrava meu nome e

pareceu ficar bem feliz com nossa chegada, apresentei-lhe minha

amiga, ele pegou a mão dela e começou a interpretar seus traços,

falar de sua vida e seus anseios, ela puxou a mão impressionada

confirmando o que ele dizia, logo depois, meu amigo saiu do

banheiro só de toalha, meu primo disse que aquele sim era um

colírio para os seus olhos, muitos risos se seguiram, Paulo parecia

estar encantado pelo amigo professor, pediu pra minha priminha

preparar um dos quartos onde ficaríamos hospedados, ele estava

bem agitado com alguns preparativos para algo que aconteceria a

noite, nós não entendíamos muito bem aquele entre e sai de

pessoas deixando mantimentos, ele parecia ser algum tipo de guru,

bruxo ou um pai de santo muito requisitado, falou para que a

prima nos servisse uma refeição, pedindo desculpas disse que mais

tarde conversaríamos e foi saindo para os fundos da casa com

aquelas pessoas que haviam chegado.

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Embora fizesse muito tempo que não visitava aquela cidade, me

prontifiquei a apresentá-la aos amigos, me sentia meio peixinho

dentro de um aquário dado a curiosidade explicita das pessoas nas

ruas, minha prima, me apresentava a todos seus amigos como se

fossemos uma atração circense, não era de propósito, mas às vezes

nos deixava constrangidos com tanta atenção, rapidamente nos

tornamos conhecidos e alguns ex-coleguinhas de infância me

reconheciam e faziam mil perguntas, faziam questão de nos levar a

todos os lugares, praças, bares, festinhas, enfim onde houvesse

uma aglomeração e pudéssemos ser mostrados como algo

inusitado e exótico, minha prima viu alguns trabalhos que eu fazia

e mostrou muito interesse, disse que em seu quintal talvez tivesse

material que me interessasse, fiquei curioso quando ela me falou

de algumas aves de criação com plumagens coloridas e marcamos

para o dia seguinte essa incursão. Em meio às apresentações,

conheci ou reconheci o filho do prefeito, que era muito amigo das

pessoas que nos rodeavam e convidou-nos para uma festa que

aconteceria em uma sede social da cidade no final de semana

próximo, era uma festa elitizada, onde com certeza não nos

sentiríamos bem, mas ele não aceitou o não como resposta, disse

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que nos mandaria apanhar em casa as dez horas, parecia muito

interessado em se aproximar.

Já de volta, notamos uma concentração de pessoas à frente da

casa e outro tanto dentro, tambores eram tocados e um clima

regado a incenso e aguardente se instalara na velha residência.

Logo de cara, no corredor, o primo Paulo vestido com uma túnica

de cetim turquesa, muito vistosa cheio de colares e contas,

passeava entre eles como em revista e escolhia quem entraria em

um dos cômodos da casa onde apenas uma cortina de rendas

muito alva o separava da entrada, ele não parecia ser a mesma

pessoa que nos recebera quando de nossa chegada, tinha a voz

grave e autoritária, as pessoas queriam tocá-lo, ele se dirigiu até

nós e nos gesticulou para que entrássemos, um tanto confuso, sem

entender bem o que acontecia, entrei e fui seguido pelos amigos.

Já na parte interna do salão o clima era bem místico, havia umas

cadeiras ao redor descrevendo um círculo, ao centro, no chão, uns

desenhos tipo exotéricos e no fundo uma espécie de oratório com

muitas imagens de entidades diversas, o cheiro era forte e o

ambiente fumarento, depois que os “escolhidos” já estavam

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dentro do recinto, ele entrou como um pop star e sentou-se em

uma cadeira maior próximo ao oratório, entoou cânticos, disse

algumas palavras inaudíveis e começou a atender as pessoas, em

dado momento uma delas se atirou ao chão e como se tivesse em

crise epilética se debateu até cansar sem que ninguém se

manifestasse, depois se levantou e saiu como se nada tivesse

acontecido. Quando chegou minha vez ele apenas me abraçou e

disse pra que eu tivesse calma, que as coisas iriam acontecer ao

seu tempo, disse que a minha volta havia muita luz e que o grande

amor da minha vida ainda não havia se apresentado, já ao

professor ele falou de problemas sérios no trabalho e de conflitos

religiosos, disse que ele era filho de uma entidade poderosa e que

precisava trabalhar esse lado ou teria muito do que se arrepender,

isso, aliás, mexeu muito com a cabeça dele desde aquele dia, pra

minha amiga lourinha ele disse que o caso dela era o mais

complicado por causa de problemas relacionados à família e

herança dos seus pais, ele via disputas judiciais e muita perda,

disse pra procurar depois seu amigo Paulo, que era ele mesmo,

para que ele pudesse fazer seu mapa astral o que poderia

determinar seus passos seguintes. Não preciso dizer que deixamos

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o salão muito impressionados, até por que ele acabara de

conhecer aquelas pessoas.

Horas mais tarde quando todos foram embora e a calmaria voltou

a casa, Paulo, depois de um banho, chegou à cozinha, se desculpou

pelo tumultuo, mas disse que toda quarta feira era assim mesmo,

que devia isso a seus guias e orixás, depois trouxe um baralho

diferente, pediu para que minha amiga o dividisse, depois

distribuiu as cartas geometricamente, olhou por algum tempo,

depois pediu permissão a ela pra falar em nossa presença, em que

ela concordou, então começou a dizer coisas sobre sua vida, sua

infância, seus irmãos inclusive sobre a outra irmã que ficou com o

primo, falou de outros problemas envolvendo um homem

possessivo e violento e alertou o professor sobre um eventual

encontro, ele falou de dinheiro e disputas envolvendo outros

familiares, perdas e envolvimento de um irmão mais velho com

uma possivel traição por parte de sua companheira, até que ela

pediu que ele parasse de falar, levantou-se da mesa e trancou-se

no quarto. Paulo ficou um pouco apreensivo com a situação, disse

que não pode evitar, em seguida, meu amigo pediu que ele tirasse

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as cartas para ele também, mas o primo disse que não o faria

naquele momento por que precisava conhecê-lo melhor, já que

parecia muito cético e certamente no futuro teria problemas com

relação a definições religiosas, levantou-se pegou um café, serviu

nossas canecas e se retirou.

Aquele primo Paulo era muito estranho, num momento parecia

apenas um gay saltitante que se deliciava em falar abobrinhas, em

outro o cara falava sobre as pessoas com uma autoridade que

arrepiava, sacava muito sobre ritos e descaminhos, dissertava

sobre o destino, livre arbítrio e coisas do espírito, o papo com ele

era sempre muito interessante, ele era uma mistura de curandeiro,

parteiro e pajé, realmente uma figura rara.

No dia seguinte, minha priminha chegou cedinho perguntando por

mim, eu havia comentado que o furo do meu brinco estava

obstruído, então ela já chegou toda paramentada, munida de

agulha e gelo para desobstruí-lo, me tomou pela mão e fomos para

o quintal, foi um pouco dolorido, mas eficaz. O quintal era uma

doce recordação, até as máquinas enferrujadas do velho engenho

ainda estavam lá, muitas árvores frondosas, o pé de abricó e o

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canavial nos fundos completavam o cenário, ao lado da casa

estavam as aves, patos, galinhas, um papagaio e muitas galinhas

d’angola, a plumagem delas é que me chamou mais a atenção, vi

ali a possibilidade de ganhar algum dinheiro, peguei meus alicates

e algum material que ainda tinha disponível, improvisei uma

bancada em baixo do abacateiro e teci algumas peças, o efeito da

plumagens em preto e branco e muito desenhada daquela aves era

impressionante, possibilitava exercitar com muita liberdade a

criatividade, logo o primeiro conjunto ficou pronto e como não

poderia ser diferente eu o presenteei a ela, foi a senha para se

iniciar um jogo de palavras e sedução, ao contrário do que suas

roupas de garota do interior diziam, sua perspicácia era incomum,

falava com segurança e irreverência. Eu disse que precisava vê-la o

que ela respondeu: - “Abra os olhos” – uma resposta

surpreendente que me aguçou o interesse, mas como sempre

estávamos cercados por outras pessoas, teve um até que quase

depenou uma das aves só pra me agradar, ficava difícil levar

qualquer tipo de papo ou até interpretar com exatidão o que

significava alguns gestos e a atenção desprendida que lhe era

natural.

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Na noite reservada para irmos a tal festa do filho do prefeito, meu

amigo professor e a lourinha, não se mostraram muito

interessados e resolveram sair para outro lugar, eu havia me

comprometido com a prima, mas me deparei com uma

preocupação inusitada, o que vestir? Paulo trouxe umas roupas

mais sóbrias para eu experimentar, achei que poderia dar certo,

embora eu me sentisse aprisionado, fiz a barba, usei cremes e

xampu, ele me ajudava nos retoques finais, roupas passadas a

ferro, perfume e gomalina nos cabelos, quase não me reconheci

em frente ao espelho, definitivamente não era eu. Quando já me

preparava para sair do quarto, ouvi um burburinho na sala e fui ver

o que rolava, tive uma surpresa ainda maior, minha prima num

vestido vermelho, longo com brilhos, maquiagem perfeita e um

perfume embriagante, seus cabelos negros e longos estavam

armados de uma forma a deixá-la mais madura e insinuante, o

carro chegaria em alguns minutos para nos buscar, meu primo saiu

para um compromisso e ficamos pela primeira vez realmente a sós,

não falamos muito, parecia que o impacto dela ao me ver vestido

daquele jeito fora maior que o meu, então ela disse – o que

fizeram com você? E desarrumou o meu cabelo untado de gel, no

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mesmo instante eu puxei o laço que envolvia seu colo, deixando o

vestido solto, apenas jogado sobre seu corpo, ela começou a

desabotoar minha camisa, nesse momento uma buzina insistia em

tocar do lado de fora da casa, achamos que poderia ser o carro da

prefeitura, mas o ignoramos solenemente, até porque o cabelo

dela já estava totalmente desarmado assim como nossos receios

em nos envolver, quando vestido caiu definitivamente,

entendemos que não podíamos mais voltar, já estávamos

realmente em meio a um turbilhão de emoções reprimidas e que

naquele instante se soltaria, ela era realmente linda, aquela noite

eu nunca mais esqueceria, a buzina cessou e sem arrependimento

algum, nós não fomos ao baile.

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Evidentemente todos souberam o que houve, nós, meio que

embriagados pelo momento, sem perceber, tratamos de deixar

pistas espalhadas por toda a casa, tanto que passamos a noite

trancados no quarto e os outros dormiram em redes do lado de

fora para não incomodar, pareciam até conspirar ao nosso favor.

Na manhã seguinte, eu acordei primeiro, ela estava jogada sem

roupas, aliás, não sabia nem onde elas tinham ido parar, suas

costas macias eram um convite para não sair mais dali, mas a vida

já acontecia e na cozinha o tilintar das xícaras denunciava o

avançado das horas, levantei e envolvido com uma toalha me

apresentei a todos, os olhares se entrelaçavam com sorrisinhos

sínicos, o primo Paulo, revelando sua cumplicidade, disse a mãe

dela, que já havia estado lá a sua procura, que dormira na casa de

uma amiga, logo depois ela meio envergonhada saiu do quarto, era

impressionante como eu não conseguia ver mais a garota do

interior, parecia um anjo desperto com aquela maquiagem borrada

e os cabelos esvoaçantes, cruzou o salão, passou perto de mim e

me deu um cheiro no pescoço, como quem dizia – É isso mesmo o

que vocês estão pensando, e aí? Ninguém disse nada e ela entrou

para o banho, o primo numa euforia só, disse que se ele fosse eu

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entraria em baixo daquele chuveiro também, aí eu senti que

realmente estava tudo liberado, joguei a toalha na cara dele e já

entrei pelado no banho, foi muito engraçado, ela ria e perguntava

se eu havia perdido o juízo.

Alguns dias se passaram, nossos encontros tornaram-se

frequentes, íamos para todos os cantos juntos, fazíamos coisas

juntos, embrenhávamos na mata em busca de igarapés, ela me

ensinou a pescaria com varinhas de bambu, eu a ensinei a tecer

redes de pesca e artesanatos, tudo era belo e novo, estávamos

realmente em uma sincronia perfeita, porém, ela demonstrava não

se importar que sua mãe soubesse do nosso relacionamento, o que

já me trazia alguma preocupação, não gostaria de me enraizar de

novo e isso apressou minha decisão em retornar, meus amigos não

se opuseram, até porque não faria sentido ficarem hospedados na

casa do Paulo sem mim, já se iam dez dias.

Procurei por ela, seu semblante, talvez pelo tom sério que eu

empreendera a conversa, mudou como se esperasse o que tinha a

dizer, me justifiquei, ou pelo menos tentei me justificar, falei sobre

o tempo que estava longe de casa, usei a saudade de meus pais e

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outros argumentos sem muita consistência, ela baixou a cabeça e

disse que era tudo muito bom e não poderia durar para sempre,

virou as costas e saiu com o choro contido.

No dia seguinte, recebi das mãos do Paulo um caderninho cheio de

anotações e poesias que ela pediu que ele me entregasse e

naturalmente se afastou, mudou seu comportamento, passou a

não ir mais a casa com tanta freqüência e quando ia, só falava

comigo sobre genéricos e frivolidades, tanto que no dia em que

decidimos ir ela não sabia de nada, pedi para que ela fosse avisada,

mas ela não apareceu para se despedir, seguimos para a estrada,

eu gostaria de vê-la outra vez, ainda mais depois de ter lido aquele

livrinho onde ela fazia uma espécie de diário da nossa presença e

falava coisas a meu respeito que me inflava o ego além de

demonstrar uma dedicação incondicional, tipo, “se você quiser eu

serei sua” ou “sou capaz de largar tudo para te acompanhar”, cara

isso era muito louco! Então eu não podia de forma alguma dispor

da vida dela, por que pra ela eu era um conto, mas minha

realidade passava longe dos devaneios daquela cabecinha linda.

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Eu conseguira algum dinheiro com as peças de plumagens o que

poderia servir para pagar nossas passagens, saímos em direção ao

terminal de ônibus, com as mochilas nas costas, quando já

dobrávamos a esquina ouvi sua voz me chamando, me voltei e a vi

correndo em minha direção, larguei a mochila no chão, nos

abraçamos, ela soluçava, me beijava muito, não houve nenhuma

conversa ou frases de despedida apenas um beijo molhado que

selou aquela relação para sempre.

(+) O primo Paulo morreu meses depois, vitima de complicações

infecciosas.

Retomamos nosso caminho, o professor e a lourinha, não pareciam

bem, o relacionamento deles era frio e distante, antes de

chegarmos ao terminal ela fez sinal a uma caminhonete que parou,

o cara disse que iria para Castanhal, fez questão que ela sentasse

ao seu lado na frente e lá fomos nós de novo.

O sentimento de retorno, era outra vez acre, travoso, dificultava a

respiração, o cara que dirigia, falava um monte, mas não dizia

nada, o professor permanecia calado, eu contemplava a paisagem

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que corria, nada era interessante nem fazia sentido, deveria me

blindar de toda minha bagagem adquirida, teria de servir para se

utilizada naquele momento de vazio, a voz da razão me chamava a

refletir e falava comigo em tom firme e autoritário, baixava aquela

ansiedade e eu apenas a ouvia dizer -“Vá Tranquilamente por entre

o barulho e a pressa e lembre-se da paz que pode haver no silêncio.

Tanto quanto possível, sem distinção, esteja de bem com todas as

pessoas. Fale a sua verdade, calma e claramente; e escute os

outros, mesmo os estúpidos e ignorantes; também eles têm a sua

história. Evite pessoas barulhentas e agressivas. Elas são tormento

para o espírito. Se você se comparar a outros, pode tornar-se

vaidoso e amargo; porque sempre haverá pessoas superiores e

inferiores a você. Desfrute suas conquistas assim como seus planos.

Mantenha-se interessado em sua própria trajetória, mesmo que

humilde; é o trunfo que realmente se possui no jogo de incertezas

dos tempos. Exercite a cautela; porque o mundo é cheio de

artifícios, mas não deixe que isso o torne cego à virtude que existe;

muitas pessoas lutam por altos ideais; e por toda a parte a vida é

cheia de heroísmo. Seja você mesmo em qualquer circunstância.

Principalmente não finja afeição, nem seja cínico sobre o amor;

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porque em face de toda aridez e desencantamento ele é perene

como a grama. Aceite gentilmente o conselho dos anos,

renunciando com benevolência às coisas da inocência. Cultive a

força do espírito para proteger-se num infortúnio inesperado, mas

não se desgaste com temores imaginários. Muitos medos nascem

da fadiga e da solidão. Acima de uma benéfica disciplina, seja

bondoso consigo mesmo. Você é filho do Universo, não menos que

as árvores e as estrelas, você tem o direito de estar aqui e quer seja

claro ou não para você, sem dúvida o Universo se desenrola como

deveria. Portanto, esteja em paz com Deus, qualquer que seja sua

forma de concebê-lo, e, sejam quais forem sua lida e suas

aspirações, na barulhenta confusão da vida, mantenha-se em paz

com sua alma. Com todos os enganos, penas e sonhos desfeitos,

este é ainda um mundo maravilhoso. “Esteja atento”.

Muitas coisas passavam por minha mente, a depressão eminente

não era boa companheira, me sentia melhor quando usava minha

reserva interna que acabava por me devolver o chão, deveria

sempre em qualquer situação tentar fazer a diferença, puxar

responsabilidades e pessoas à tona, me lembrei da historia da

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estrela do mar que mostrava como você pode fazer a diferença na

vida.

Um escritor que morava em uma tranqüila praia, junto de uma

colônia de pescadores. Todas as manhãs ele caminhava à beira do

mar para se inspirar, e à tarde ficava em casa escrevendo. Certo

dia, caminhando na praia, ele viu um vulto que parecia dançar. Ao

chegar perto, ele reparou que se tratava de um jovem que recolhia

estrelas-do-mar da areia para, uma por uma, jogá-las novamente

de volta ao oceano - Por que está fazendo isso? - perguntou o

escritor - Você não vê! - explicou o jovem - A maré está baixa e o

sol está brilhando. Elas irão secar e morrer se ficarem aqui na

areia. O escritor espantou-se - Meu jovem, existem milhares de

quilômetros de praias por este mundo afora, e centenas de

milhares de estrelas-do-mar espalhadas pela praia. Que diferença

faz? Você joga umas poucas de volta ao oceano. A maioria vai

perecer de qualquer forma. O jovem pegou mais uma estrela na

praia, jogou de volta ao oceano e olhou para o escritor e disse -

Para essa aqui eu fiz a diferença... Naquela noite o escritor não

conseguiu escrever, sequer dormir. Pela manhã, voltou à praia,

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procurou o jovem, uniu-se a ele e, juntos, começaram a jogar

estrelas-do-mar de volta ao oceano.

Não tardou e chegamos a Castanhal, dali em diante estávamos

muito próximos de casa. O sentimento de perda era comum.

Resolvemos não ir para a rodoviária, aproveitaríamos os últimos

momentos caminhando pela estrada. Numa carona rápida um

caminhoneiro nos deixou em Santa Izabel, cidade seguinte.

Agradecemos e seguimos a pé, chegamos a uma ponte na estrada,

onde acontecia um conflito entre policiais e moradores da área, de

repente alguém lá de baixo apontou uma espingarda para nós e

disparou, escutamos o estalo na barra de ferro que ladeava a

ponte, saímos correndo até a exaustão, nos escondemos na beira

da estrada e ficamos observando as viaturas passando sempre

lotadas, os tiros não cessaram e durante horas permanecemos

agachados entre os arbustos. Quando sentimos uma certa calmaria

resolvemos sair, tentávamos em vão conseguir carona, mas

ninguém parava, principalmente porque estávamos em três. Tive a

idéia de me esconder, junto com o professor e deixar nossa amiga

na beira da estrada. Não deu outra, o primeiro carro que passou

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parou, o cara abriu a porta da frente de onde saiu um sujeito que

rapidamente abriu a porta de trás, nós corremos e entramos

também, ele não reclamou, mas ficou apreensivo, como a “mina”

já estava dentro, a situação foi contornada, mas aí o susto foi

nosso, o cara tinha uma “flauta” acesa que deixava o ambiente

irrespirável, ria muito e acelerava o velho Chevette, fazendo zig-zag

na estrada, não nos sentimos bem e pedimos para descer na

entrada do “Mosqueiro”, distrito de Belém, mais um tempinho

depois, com a mesma tática conseguimos uma caminhonete e

assim rumamos para a última parada de volta a casa.

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(*) O amigo professor de inglês, depois de perambular por várias

seitas, tornou-se seguidor de uma igreja protestante e

posteriormente pastor, até os dias de hoje.

(*) Minha amiga holandesa, só voltei a encontrar em uma outra

festa no AP do Billy, sei que viveu um tempo com seu antigo

namorado “malhadão”com quem teve muitos problemas incluindo

espancamentos, depois se isolou em uma propriedade da família

onde vive até hoje.

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O Recomeço

Eu não gostaria de me render as evidencias. O país em 1982 dava

sinais de mudança, embora ainda não fossem plenas, mas os

militares já demonstravam muito desgaste e não segurariam mais

por muito tempo o poder. As ruas nunca foram tão policiadas,

principalmente por causa das ações dos estudantes e o

crescimento das reivindicações da sociedade civil, até os hippies,

antes ignorados, sofriam com a truculência militar que invadia as

ruas.

Eu provavelmente não me enquadraria mais no esquema de

trabalho, salário, poluição e família. Nada disso fazia parte da

essência em que eu estava envolto, não conseguiria mais ter

aquela leitura cotidiana das pessoas da forma com que elas me

apresentavam, as cores eram relativas, apresentavam matizes, a

melodia era dissonante, o ar rarefeito e as palavras não

justificavam seus significados. Minha blindagem natural me traria

com certeza ainda muitos dissabores e conflitos. O diálogo se

tornava complexo à medida que alguém falava de coisas que só

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conhecia de ouvir dizer e tecia suas teses e argumentações

filosóficas baseadas nessas informações.

Sobre meus pais, eu até poderia relevar suas posições, já que eram

de formação humilde e lhes faltava à instrução necessária para

discernir sobre aquele comportamento exigido pela sociedade e o

momento que nós vivíamos, mas e os outros? Eu não poderia

simplesmente me abster de opinar ou do contrário concordaria

com todo um contexto sistemático.

Quando cheguei a casa, depois de tanto tempo, com os cabelos no

meio das costas, brincos na orelha, tatuagens nos braços, magro e

queimado de sol, não tinha idéia de qual seria a reação das

pessoas, mas minha mãe e irmãs simplesmente ignoraram tudo

isso, elas fizeram de contas que eu voltava do exílio como todo

mundo, depois de muitos abraços e beijos vieram às perguntas,

que eram tantas que talvez agora com esse livro eu consiga

responder a boa parte delas. Faltava o meu pai que estava no

trabalho e já havia sido avisado por telefone de minha chegada. O

encontro a noite foi frio, mas civilizado, ele não fez muitas

perguntas, só queria saber se eu estava bem e o que faria agora.

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Disse que se eu quisesse me arranjaria uma colocação na empresa

em que trabalhava, eu disse que pensaria no assunto e voltaríamos

a falar.

Agora com minha liberdade tolhida, procurava ficar o maior tempo

possível em casa, parecia querer voltar a entender o mundo que

borbulhava em acontecimentos. Um dia encontrei um velho amigo

que fazia parte da banda punk que idealizamos. Padecia dos

mesmos males da idade, incompreensão e falta de liberdade,

contei-lhe um pouco da minha história, ele, empolgado disse que

toparia fazer uma saída dessas e perguntou se eu ainda mantinha

algum contato com aquelas pessoas. A única pessoa que lembrei

foi do meu amigo paraibano e de sua casa do Atalaia, mas que não

sabia nem se ainda existia. Meu amigo punk me pediu pra agilizar

essa “parada”, disse que tinha algum dinheiro e gostaria de se

mandar por uns tempos. Essas coisas sempre mexiam comigo.

Depois de alguns dias consegui falar com meu amigo paraibano

que disse que eu poderia ir, mas que dessa vez não por muito

tempo, porque a casa seria vendida em breve. Eu disse em casa

que faria uma viagem rápida e que quando voltasse retomaria os

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estudos e arranjaria trabalho, houve uma rápida comoção, mas

nada podia ser feito e lá fomos nós de novo para estrada.

Na minha cabeça não havia prazo pra retornar, se não dessem

certo as coisas por lá, dessa vez tentaria sair do país, sabia de

alguns que chegaram à França. O amigo punk na verdade era só

um pretexto para sair outra vez. Ele era só empolgação, queria

chegar à praia sempre de carona, o que já não era mais tão fácil.

Pegamos a primeira em uma velha carreta que nos “jogou”

próximo a saída da cidade, depois ficamos horas em um posto de

combustíveis sem conseguir nada de positivo, os caminhoneiros

não confiavam em nós, meu amigo não era exatamente nenhum

galã, aliás, pra falar a verdade, seu aspecto era bem sombrio, alto,

magrão, com uma cor meio desbotada, parecia o Tropeço da

família Adams, era uma companhia improvável, mas engraçada. Na

viagem de ida me lembro que chegamos a Capanema, cidade no

nordeste do Pará, num fim de tarde, perguntamos pra que lado

ficava Salinas e saímos andando em sua direção. Lá pelas tantas, já

tínhamos caminhado umas duas horas, apareceu um tratorzinho

que saíra sei lá de onde, parou do nosso lado e perguntou se

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gostaríamos de subir, o cara tinha uma garrafa de caipirinha pela

metade e duas intactas, ficamos a bordo do tratorzinho durante

horas, cantando, contando histórias e se embebedando. O cara do

trator disse que entraria na próxima a direita, e do jeito que

apareceu, sumiu na noite nos deixando no meio do nada.

Encontramos uma casa antiga onde uns caras jogavam dominó,

perguntamos como faríamos pra chegar a nosso destino, alguém

do meio disse que teria um pau-de-arara que passava seis da

manhã e que se quisesse esperar era só se jogar lá mesmo num

barraco ao lado.

Acordamos com alguém dizendo que o caminhão estava lá fora

recolhendo os colonos, saímos e todos olharam para nós e riam, é

que tínhamos cocô de pombos por todo o corpo e penas nos

cabelos, além de não termos dinheiro pra pagar a passagem. Falei

com o dono do caminhão, ele disse que se déssemos uma força no

carregamento poderia nos levar. Passamos a viagem toda

carregando sacos de farinha, descarregando bananas e cabritos até

chegarmos ao famoso trevo que já me era tão familiar. Saímos

andando, foram 8 quilômetros a pé que me pareceram tão

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próximos. Estava ansioso para chegar, o punk reclamava o tempo

todo, mas eu o ignorava, na verdade não sabia nem porque eu o

havia trazido.

Quando chegamos à praia, as lembranças daquele lugar, seu

aroma, e seu clima me caíram com um peso muito acima de

minhas forças, eram muitas recordações, tantas que reabriram

velhas feridas. Saímos em direção a casa do Jorge meu velho

amigo, tudo estava muito mudado, as casas dos amigos não

existiam mais, já tinham dado lugar a outras bem projetadas e de

fino acabamento, a própria casa do Jorge estava a venda assim

como do amigo paraibano. Chegamos à venda do Jorge que nos

recebeu com alegria e foi logo contando as novidades, para ele

eram boas novidades, afinal conseguiria um belo preço por sua

propriedade e iria embora para a cidade.

No inverso da mão estávamos nós, tentando achar algum sentido

em estar ali. Não se passou nem uma semana e o amigo punk

começou a dizer que queria voltar pra casa, que era um “rato”

urbano e que não viveria de natureza pro resto da vida. A figura

começava me dar nos nervos, não fazia suas tarefas, dormia o

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tempo todo, não buscava lenha, não sabia cozinhar, lavar, enfim,

não contribuía para nada, eu me sentia explorado, parecia que

estava casado com uma mulher preguiçosa, onde só o maridão

trabalhava com o agravante que não havia atrativo algum que

recompensasse aquele sacrifício. Um dia, já de “saco cheio”,

discutimos por causa de suas reclamações e eu o expulsei de casa,

tranquei a porta o deixando na rua. No outro dia encontrei com ele

na venda passando mal, com febre e dores no corpo, me senti

culpado por tê-lo feito dormir ao relento, ele não estava

acostumado. O lugar já não fazia sentido algum mesmo, então

levei-o até a estrada, peguei um taxi de um amigo até a cidade,

arranjei uma carona na caçamba de um caminhão e o despachei

para Belém.

Agora de fato estava encerrada minha aventura, da forma mais

melancólica e inesperada, não sentia mais forças pra continuar

insistindo, voltei afinal à casa dos meus pais, cortei os cabelos com

lágrimas nos olhos, abandonei meus brincos e adornos e aceitei o

emprego que ele me oferecera. Sentia que um ciclo de liberdade e

imagens coloridas se fechava diante dos meus olhos, teria que me

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readaptar aos preceitos impostos pelo sistema. Sistema esse que

se quer era sólido, já que os rumores sobre a retirada dos militares

eram cada dia mais consistentes e a queda parecia uma questão de

pouco tempo. O Brasil parecia começar a sair do preto e branco

que o assombrou durante tanto tempo e eu por outro lado,

passava a ver a vida em tons de cinza.

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E hoje?

Bem, hoje ano de 2010, preste a fazer cinquenta anos, tenho um

casamento sólido, quase bodas de prata, filhos lindos e uma vida

irregular financeiramente, o que não deixa de ser um atrativo. Me

impulsiona a continuar produtivo. O Brasil vive bons tempos, o

governo civil hoje é de esquerda, ou quase, a economia vai muito

bem, e a liberdade é uma conquista realizada. Não sei se bem

aproveitada. Às vezes vejo nossa liberdade como a história do

cachorrinho que corre atrás da roda do carro e quando o carro

para, ele não sabe o que faz com a roda, no mais tudo mais ou

menos. Aos meus filhos só posso legar história, por que o vírus da

liberdade, hoje, deve ser contido em virtude dos índices de

violência que a “liberdade” nos trouxe. Se bem que os meninos

não querem mais se mandar para aventuras, os tempos são outros

e talvez saiam de baixo de minhas asas, somente para a segurança

de vôos mais altos.

Os amigos: quase não os vejo, ou estão envolvidos em suas

individualidades, ou não conseguiram chegar até aqui. Ainda

encontro o meu velho primo, hoje um artesão de prata e ouro

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renomado e admirado por seu trabalho, cinco filhos e

relacionamentos instáveis. Na companhia de um bom vinho,

conseguimos analisar, digerir e rir dos momentos mágicos que a

vida nos deu por concessão.

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Visão Filosófica

As lições aprendidas ao longo desses anos me municiaram com

uma quantidade imensurável de argumentações e recursos. Eu

poderia usá-los ao longo dos anos como meus trunfos em

momentos em que se fizessem necessários, sem ferir, mas sem

precisar me submeter ou tornar-me servil. Lembrei de uma

definição muito interessante sobre o mar e sua majestade que me

foi passada por um velho guru quando estive em canoa. Ele dizia:

“O mar é tão forte e majestoso porque teve a humildade de

colocar-se alguns centímetros abaixo de todos os rios. Recebendo

assim, toda a água que é produzida por eles. Sabendo receber,

tornou-se grande. Se quisesse ser o primeiro, centímetros acima de

todos os rios, não seria mar, mas sim uma ilha. Toda sua água iria

para os outros e estaria isolado. A perda faz parte. Precisamos

aprender a perder, a cair e a errar. Se aprendermos a perder, a cair

e errar, ninguém mais nos controlará. Porque o máximo que

poderá acontecer para nós, é cairmos, errarmos e perdermos. Isso

significa que saberemos que depois vem o levantar, acertar e

vencer. Bem aventurado aquele que já consegue receber com a

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mesma naturalidade o ganho e a perda, o acerto e o erro, o triunfo

e a queda, a vida e a morte”.

Essa é uma definição filosófica que certamente pode nos

acompanhar por toda a vida sem que tenhamos exatamente que

nos submetermos a estereótipos e enquadramento doutrinários.

Nossa auto-estima não pode nunca se deixar abalar, porque essa é

porta de entrada para interferência alheia e o autoflagelo.

Se um dia alguém fizer com que se quebre a visão bonita que você

tem de si, com muita paciência e amor reconstrua-a. Assim como o

artesão recupera a sua peça mais valiosa que caiu no chão, sem

duvidar de que aquela é a tarefa mais importante, você é a sua

criação mais valiosa. Não olhe para trás. Não olhe para os lados.

Olhe somente para dentro, para bem dentro de você e faça dali o

seu lugar de descanso, conforto e recomposição. Crie este universo

agradável para si e seja feliz. O mundo agradecerá o seu trabalho.

Daqui pra frente estaria sem meus escudeiros, mas teria que

manter a firmeza dos ensinamentos enriquecedores, por que nesse

momento pensamos que novos tempos batem a nossa porta,

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pensamos que o passado não tem mais relevância, pensamos que

os dragões já não existem mais e que as princesas desencantaram.

Pensamos que a távola ruiu e os cavaleiros sucumbiram, pensamos

que o tempo passou e que nada mais pode ser feito, que os portões

foram lacrados e a chaves perdidas e que a era de aventuras e

lutas épicas ficou para trás.

É um prazer estarmos enganados, somos centelhas divinas, espécie

em evolução, os dragões apenas disfarçaram-se, mas as chaminés

os denunciam, não os deixam invisíveis, os cavaleiros estão em

máquinas possantes, os cavalinhos são de Maramello, as princesas

ainda mais encantadoras, agora mais insidiosas, perdem-se na

multidão e escondem-se de si mesmas.

Nossa capacidade não pode ser medida, não há limites que não

possamos transpor, podemos conseguir tudo o que quisermos, o

obstáculo é um descuidado olhar desviando do objetivo. Talvez não

consigamos mudar o rumo dos ventos, mas podemos ajustar a

posição das velas.

Nada se perde para sempre, porque o sempre é eterno e mantém a

sua ponte. Nosso padrão de medida, vai mudando conforme a

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idade avança, o que antes mediamos em quilômetros, hoje

medimos em tempo. Como poderemos dizer que chegamos lá, se

quando chegarmos ele já virou aqui. Lá é utópico e inatingível, mas

não imutável, como o amanhã.

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Anderson Valle O autor

Brasília 2001

Anderson Valle O autor

Belém 1980