4annasobre identidade e trocas culturais na "espanha" medieval

11
27 Plêthos, 2, 1, 2012 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 Sobre identidade e trocas culturais na "Espanha" medieval Anna Carla Monteiro de Castro Universidade Federal Fluminense Resumo: Pretende-se discutir o tema de uma “Espanha” medieval como palco da convivência harmônica entre as três religiões monoteístas que ali coexistiram (cristãos, muçulmanos e judeus) e que seria devido a essa convivência que a identidade do homem medieval moderno teria se forjado. Entre outras coisas, pretendemos mostrar que essa alegada origem medieval de uma identidade espanhola seria na verdade uma construção do século XX que tende a enfatizar trocas culturais como evidência dessa suposta harmonia e aceitação das minorias religiosas, quando na verdade são processos distintos onde troca cultural não equivale a igualdade social. Palavras-chave: Identidade; "Espanha"; Baixa Idade Média. On identity and cultural exchanges in the Medieval "Spain" Abstract: This article aims to discuss the theme of medieval Spain as a place where the three monotheistic religions (catholic, islamic and jewish) would coexist in an harmonious atmosphere and that it would be due to this coexistence that the identity of the modern spanish man would be forged. Among other things, we intend to point out that this alleged medieval origin of spanish identity is in fact a twentieth century construction that tends to focus on cultural exchange as a evidence of harmony and acceptance of religious minorities, when in fact those are distinct process and that cultural exchanges does not equal social equality. Keywords: Identity; "Spain"; Late Middle Ages.

Upload: iran-de-melo

Post on 16-Aug-2015

6 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Pretende-se discutir o tema de uma “Espanha” medieval como palco daconvivência harmônica entre as três religiões monoteístas que ali coexistiram (cristãos,muçulmanos e judeus) e que seria devido a essa convivência que a identidade do homemmedieval moderno teria se forjado. Entre outras coisas, pretendemos mostrar que essaalegada origem medieval de uma identidade espanhola seria na verdade uma construção doséculo XX que tende a enfatizar trocas culturais como evidência dessa suposta harmonia eaceitação das minorias religiosas, quando na verdade são processos distintos onde trocacultural não equivale a igualdade social.

TRANSCRIPT

27 Plthos, 2, 1, 2012 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 Sobre identidade e trocas culturais na "Espanha" medieval Anna Carla Monteiro de Castro Universidade Federal Fluminense Resumo:Pretende-sediscutirotemadeumaEspanhamedievalcomopalcoda convivnciaharmnicaentreastrsreligiesmonotestasquealicoexistiram(cristos, muulmanosejudeus)equeseriadevidoaessaconvivnciaqueaidentidadedohomem medievalmodernoteriaseforjado.Entreoutrascoisas,pretendemosmostrarqueessa alegada origem medieval de uma identidade espanhola seria na verdade uma construo do sculo XX que tende a enfatizar trocas culturais como evidncia dessa suposta harmonia e aceitaodasminoriasreligiosas,quandonaverdadesoprocessosdistintosondetroca cultural no equivale a igualdade social.Palavras-chave: Identidade; "Espanha"; Baixa Idade Mdia. On identity and cultural exchanges in the Medieval "Spain" Abstract:Thisarticleaimstodiscussthethemeof medievalSpainasaplacewherethe three monotheistic religions (catholic, islamic and jewish) would coexist in an harmonious atmosphereandthatitwouldbeduetothiscoexistencethattheidentityof themodern spanish man would be forged. Among other things, we intend to point out that this alleged medieval origin ofspanish identity is in fact a twentieth century construction that tends to focusonculturalexchangeasaevidenceof harmonyandacceptanceof religious minorities,wheninfactthosearedistinctprocessandthatculturalexchangesdoesnot equal social equality.Keywords: Identity; "Spain"; Late Middle Ages. 28 Plthos, 2, 1, 2012 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 Judiossonumamaneradehomesquecomoquiernoncreenlafedenuestro seorJesucristo,perolosgrandesseoresdeloscristianossimpresufrieronqueviviesenentreellos(ALFONSOX,1807:Part.VII,Tt.XXIV,LeyII,670).Apassagemcitada abreotituloreferenteaosjudeusnasSietePartidas,obramonumentalcoligidaduranteo reinadodeAlfonsoX(1252-1284),reideLeoeCastela,quereneumasriedeleis pensadas para valerem para todo o reino1, mas que ter outras caractersticas, para alm do seucarterlegislativo,aotrazermanifestaemsuaspginasanecessidadedecaracterizare delimitarpapiselugaressociaisdentrodoreino,porexemplo,oqueerafrutodeum interessedoreiemseafirmarcomocentrodaquelasociedadeedefinidordetaislugares sociais.Assim,ottuloreferenteaosjudeusnessaobraprecisacomearnecessariamente peladefiniodequemsoestes:nissonohnadademuitodivergentedorestanteda obra.Oquedignodenotaofatodeacaracterizaosedarapartirdeumamarcada diferenciao dos judeus com relao ao restante da sociedade: so apresentados como uma manera de homes. Processo semelhante verificado ainda nos ttulos referentes aos mouros- maneradegentes(ibid.,675)eaosheregesmaneradegenteloca(ibid.,681).Em todos os casos, a humanidade destes grupos reconhecida, ento estamos longe de poder falarnumprocessodedesumanizao;aomesmotempo,aspassagenstodassituamesses grupos como uma maneira distinta de ser, que difere daquilo que se pensa como o ideal ou enquanto norma, que seria o cristo. No caso dos judeus o ttulo referido segue definindo queessamanerade homestemsuapermannciaapenaspermitida,toleradapelossenhores cristos.Logodeincio,portanto,oquadroquenosapresentadodefinejolugarque essasociedadereservaparaessesgrupos:sendopartedelasevivendodentroderegras estabelecidasporela,dificilmentepoderamosfalarnessascategoriascomoexcludas;o mais adequado seria pensar numa categoria que fica num meio caminho entre a incluso e a excluso, que a categoria de marginalizados. Poroutro ladosabe-se que, no raras vezes na Idade Mdia na Pennsula Ibrica, teremos judeus e muulmanos ocupando posies de destaque no reino, sendo alguns contemplados com doaes dignas da alta nobreza crist, como se observaria durante o repartimiento de terras dado em Sevilha alguns anos aps sua conquistapeloscristos,quandoumgrupodeoficiaisjudeusdacortedeAlfonsoXvai receber no apenas casas, mas parcelas considerveis de terra, na zona rural sevilhana. 1 Apesar do projeto, a resistncia de diversos setores contra essa tentativa de controle por parte do rei impedi-rsuaimplementaonaquelemomento.Sem1348,jnoreinadodeAlfonsoXI,quedefatohavera implementao das Siete Partidas atravs do Ordenamiento de Alcal de Henares. 29 Plthos, 2, 1, 2012 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 Em vista destas questes, o problema que se coloca aqui como pensar a situao dosjudeusnessecontexto,seemtermosdeumaconvivnciaharmnicaoudeuma intolernciaabsoluta(ouainda,nenhumadasduasabordagens,masummeiotermo). lcitofalaremumaEspanhadastrsculturas,ondeseforjaaessnciadoespanhol contemporneoeondeastrsconfissesreligiosaspresentesnaPennsulaIbrica conviveriamemclimadeharmonia?Seno,oinversodissoentoquesedevebuscar, uma Espanha persecutria, como outros tantos autores caracterizariam, sobretudo a partir dasegundametadedosculoXX,apsasGuerrasMundiais?Paraefeitosdotemada mesa, me concentrarei, nesta exposio, principalmente na primeira questo, isto , de uma reflexosobreanaturezadesseconvvioecontatoentreospovosalipresentes,esetal convviocaracterizariaumsupostoclimadeharmonia.Essaperguntaessencialpara pensaraquestodeidentidadeetrocasculturaisnessecontextoporqueaprpria concepodeumaconvivnciaharmnica,deumaEspanhadastrsreligiessurgede umapreocupaoporbuscarcompreenderaidentidadedohomemespanhol.Assim,me pareceoportunoabordar,primeiramente,comoatemticadasrelaesentrecristos, judeus e muulmanos tem sido abordada pela historiografia. Podemosaludiraduasabordagensmaisexpressivas.Umaquebuscaenfatizarum clima de tolerncia e convivncia absoluta na Pennsula Ibrica ao longo da Idade Mdia e outra quecostumasereferiraoperodocomomomentodagnesedeumasociedade persecutria,nolimitando,nesteltimocaso,aabordagemPennsulaIbrica,mas abrangendo a Europa como um todo. Daremos mais destaque primeira corrente, porque de suas construes que decorre grande parte das questes que se pretende discutir aqui. Deacordo comaabordagemqueprimapelaidiadetolernciaeconvivncia, aIdadeMdia ibricaseriaoretratodeumasociedadetolerante,umaEspanhadastrsreligies:por maisanacrnicoqueotermoEspanhaseja,paraessemomento,essasformulaes historiogrficas acabam lanando sobre esse mosaico de reinos cristos e muulmanos que aPennsulaIbricanessemomentoumaconcepoquelhescompletamenteexterna. Trata-se de vertente que teve grande peso entrehispanistas do sculo XX, principalmente aquelesque,duranteaditadurafranquista,vobuscarsequestionarsobreaprpria essnciadaidentidadedohomemespanhol(RIBAGORDAESTEBAN,2001),aopasso que a vertente que prima pelo carter persecutrio vai ter grande fora entre a dita escola deIsrael(NIRENBERG,1996,3-9),masquetambmsofrergrandeinflunciada renovao historiogrfica da segunda metade do sculo XX e a preocupao com a histria 30 Plthos, 2, 1, 2012 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 degruposatentonegligenciadosporumahistoriografiaqueprimavaporgrandes personagens polticas. Acorrentequeinsistenaquestodatolernciadevemuitodesuasreflexesao caminhoabertopelaformulaodeAmricoCastro,naobraEspaa en su historia de1948, ondeoautoranalisaaconvivnciadostrsgruposconfessionaispresentesnaPennsula Ibrica e que conferiria a singularidade e identidade do espanhol contemporneo. Segundo oautor,aessnciadeumaidentidadeespanholaseforjajustamentenessecontextoda PennsulaIbricaondesedariaumaconvivncianicaentreostrsgruposreligiososaqui citados,realidadequeimpeformasdesociabilidadeinexistentesforadaliequefariada regio,portanto,retratonicodeumaconvivnciaharmnica.(CASTRO,1956apud GARCA DE CORTZAR, 2004, 32). A formulao de Castro torna ainda mais acirrados osdebates,jbastanteantigos,sobreaorigemdeumaidentidadeespanhola,sobretudoa partirdacontestaodesuapropostaporSanchezAlbornoz,queafirmaqueoque caracterizaaidentidadedoespanholnoseriafrutodessaconvivnciadasreligies,mas caractersticas gerais presentes muito antes que essa convivncia se desse.importanteressaltarqueocontextonoqualtantoCastroquantoSanchez Albornoz esto escrevendo especfico e explica em grande parte a preocupao de ambos osautores:osdoisseroexiladosduranteaditadurafranquistaeosdoisestobuscando compreenderaidentidadedohomemespanhol,emboracadaumacreditandoqueesta essncia estivesse em momentos distintos. O problema da identidade, ou do ser de Espaa, jpreocupavatodaumageraoanteriordeintelectuaisquebuscavamcompreenderque homemeraoespanholeoquefundamentavasuaidentidade,masessatergrandefora durante os anos ps-guerra civil, com o governo de Franco. Para Castro a explicao estava nopassadomedieval,numasupostaconvivnciaharmnicaentreastrsculturas,que gerariaajcitadaformadesociabilidadeespecficadaPennsulaIbricaequeseria inexistenteemoutroslugares:serianessecontextodeconvivnciaentreostrsgrupose das trocas culturais ali realizadas que se forjaria o homem espanhol. Sanchez Albornoz, por suavez,discordavaprofundamentedeCastrosobreainflunciadessaconvivnciapara explicaraidentidadedohomemespanhol,acreditandoquetraosessenciaisdamesma estariampresentesjdesdeosvisigodos,mudandomuitopoucoaolongodossculos:a essnciaespanholajestariadadamuitoanteriormenteaocontextodoqualseocupa Castro, e deveria muito pouco essa convivncia.31 Plthos, 2, 1, 2012 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 Nonoslevaralugaralgumdiscutiressaorigemdohomemespanhol,nem tampoucoesseoobjetivoaoqualnospropomos.Ofatoqueambososautorestero grande influncia nas produes posteriores e que a formulao de Castro, juntamente com anoodeconvivncia,terumpesoenormeentrehistoriadoresquebuscaropensara relao entre cristos, judeus e muulmanos na Pennsula Ibrica durante a Idade Mdia e que tambm enxergaro nela um clima de absoluta harmonia entre os grupos ali presentes.O grande problema, como evidente, que com preocupaes muito tpicas de seu tempo, como vrios outros intelectuais daquele momento, Castro estava projetando sobre o passadomedievalsuainquietaoebuscaporalgoquesequersepensavanaquele momento.Noquenotenhasedadoaconvivnciaentreosgruposequeastrocas culturaisresultantesdessecontatonosejamdignasdenota.Oproblemaquetanto Castroquantooshistoriadoresqueseguiramnalinhadaconvivnciaharmnica acabaramnoseocupandodeoutrosaspectosdaquelarealidade.Geralmentecostumam enfatizarcasospontuaisdefigurasdedestaquedessasminoriasreligiosascomoevidncia de um clima harmnico e de aceitao, onde era possvel que se equiparassem a cristos; ou entoacabamenfatizandoemsuasabordagensatrocaculturalentreestesgruposcomo evidenciadeumclimadeconvivnciaeharmonia.esta,alis,umadascrticasque SanchezAlbornozlanariasobreaobradeCastro:queaobuscarmostrarumasimbiose cultural,oautorestariaignorandooqueexistedeconflitivonocontatoentreostrs grupos.Como tratar ento do problema colocado, isto , das trocas culturais e das relaes travadasentreestesgrupos?ThomasGlickabordaaquestodeformabastanteclara, chamandoaatenoparadoisequvocosbastantecomunsentrehistoriadoresquese debruam sobre as trocas culturais no medievo ibrico: 1Acrenadequeconflitotnicoetrocasculturaisso fenmenos mutuamente excludentes; 2 Identificar aculturao com assimilao. De acordo com o primeiro ponto, Glick ressalta que ao pensar que conflito e trocas seexcluemmutuamente,oshistoriadoresqueinsistemnocarterconflitivodasrelaes entreculturasacabariamtendoqueousubestimarovalorpositivodastrocasculturaisou ento a buscar pequenos intervalos de calma no meio das relaes conflitivas para explicar 32 Plthos, 2, 1, 2012 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 queasmesmassedessem.Comrelaoaosegundoponto,queaquinosinteressamais, Glickinsistequeosfenmenossodistintos,sendoumculturaleoutrosocial,equeno existe qualquer implicao direta entre estes. Assim, insisteo autor, a reduo da distncia culturalnoimplicaumadiminuionadistnciasocial(GLICK,1993,218).Ummaior interesse por certos aspectos da cultura do outro grupo ou uma maior troca culturalnada temavercomumamaioraceitaodooutrocomoumigualouquesuaparticipao naquela sociedade, enquanto grupo, se dar nos mesmos termos que aquela vivenciada por quemestivessedeacordocomanorma,ouseja,oscristos.Ouainda,setomarmos emprestadaatipologiadasrelaescomooutro2 propostaporTzvetanTodorov, poderamospensarqueummaiorinteresseouconhecimentopelaculturadooutrono implicaumamaiorestimaoumudanadeposturaadotadaparacomeste(TODOROV, 1993, 183-198). Ou seja, a existncia de uma escola de tradutores em Toledo, ou o fato de Alfonso X contar com um grupo de intelectuais das trs religies em sua corte, produzindo obrasdecunhodiverso,emborativessemimportnciaconsidervelnoquesereferea trocasculturaiseproduointelectual,noimplicamnecessariamenteemigualdadesocial ouquehouvessequalquersentimentodeumaidentidadecomum entreestesmembrosda sociedade.Adiminuiodedistnciasculturais,daqualesteumexemplo,nonosdiz muito acerca da relao de poder e das formas de controle jurdico-institucionais que atuam demaneiradiferenciadasobreastrsconfissesreligiosaspresentesnoreino.Nonos informamnadasobreumanoodecomunidadepartilhadapelostrsgrupos,como muitos costumam querer alegar.J falamos da questo da troca cultural enfatizada pelo grupo que insiste no carter harmnico da convivncia e no clima de tolerncia. Falta o outro vis mais comum em sua abordagem,queadousodeexemplospontuaisdemembrosdasminoriastnico-religiosasquedesfrutamdeposioprivilegiadacomoexemplodessatolernciae convivncia. Sabemos que h presena de judeus ilustres na corte, atuando como oficiais do rei,comodiplomatas,almoxarifes,mdicos,cobradoresdeimpostosequeacabamsendo contempladoscomprivilgiosedoaesdiversas,comparveissqueumnobrecristo receberia, como no caso do repartimento de terras de Sevilha, quando cerca de 27 judeus dorei,comoeramchamados,receberiamdoaesdiretasdeAlfonsoX,algumasde 2 O autor pensa trs eixos possveis, um relativo ao juzo de valor que se faz do outro, um segundo referente postura que se adota com relao a este e um terceiro, relativo ao conhecimento que se tem do outro nveis axiolgico, praxiolgico e epistmico, respectivamente e que no possuem implicaes necessrias entre si.33 Plthos, 2, 1, 2012 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 montaconsidervel,numavilachamadaPaterna Harab,posteriormentePaterna de los judos (ROMERO-CAMACHO,1983,346).Essetipodeexemplocostumasercitadocomo evidncia de igualdade entre cristos, judeus e muulmanos. Na verdade so casos pontuais, quandoamaioriadosjudeusdoreinonodisporiadessasmesmaspossibilidades.No deixadeserumainformaoimportante,umavezquenosforaapensarqueoutros fatoresatuamnaposiosocialnaquelasociedade,almdaconfissoreligiosa,servindo comoumalertaparapensarmosqueasdivergnciassociaisnosoencontradasapenas entreosgruposreligiosos,masdentrodestesprpriosgrupostambm.Estaltima observaopareceumtantobviaparaquesejamencionada,masnecessria,umavez que parece haver uma certa tendncia a ignorar essas diferenas sociais no interior das ditas minoriastnico-religiosasnahoradepensarsuainseroemsociedadesmajoritariamente crists.Tende-seaabordaraquestodainserodosjudeus,assim,emtermosdeum grupohomogneo,prevalecendogeneralizaes,sejaemtermosdeumaconvivnciae tolerncia total, enfatizando privilgios que na verdade se limitam a uma elite restrita como exemplodeumaigualdadeentregrupos,sejaemtermosdeperseguioeintolerncia absoluta, no levando em conta que, embora a religio seja um fator de grande importncia nassociedadesmedievais,elanoanicacomponentedasrelaessociais,eoutros fatoresdeveroserlevadosemconta,comostatussocial,relaespessoais,poder econmico, etc. De qualquer forma, para a grande maioria da populao que no faz parte deumaeliteprivilegiada,nemquedesfrutadaproximidadedacorteparapoderse beneficiar desses laos pessoais, a religio seria um dos fatores que mais influenciariam na sua insero social. No caso desse mesmo repartimento de Sevilha, aqueles judeus que no fazem parte do seleto grupo dos judeus do rei, vo ser alocados numa judiaria que seria separadadorestantedacidadeporumamuralha;posteriormente,atravsdecompras, aluguel,etc,vamosencontrarjudeusvivendoforadessesmuros,masofatoque,para aquele que no gozasse de certostatus ou detivesse algum cargo de importncia, a religio era o fator primeiro na hora de definir seu lugar naquela sociedade.Voltemos ao trecho das Siete Partidas com o qual comeamos o presente artigo: a presenadosjudeusentreoscristosditacomopermitida,tolerada.Numargumento desenvolvidoporAgostinhodeHiponaequefarpartedaretricacristacercada presena dos judeus em seus reinos, esta tolerncia se daria apenas porque sua presena era necessriaenquantopovotestemunhadeumaverdadecrist.Umapresenaquenoera desejvel,portanto,mastolerada,equesituaeste, comooutrosgrupos,numasituaode 34 Plthos, 2, 1, 2012 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 marginalizao.Marginalizao porque a condio destes de inferioridade jurdica e tem implicaes sociais, como apontado por Gonzalez Jimenez (1997, 73-74). Isso fica bastante claronasSietePartidas:asrestriesquantoaotipodeofciosquepodemocupar,a limitao no acesso a certos espaos, as restries em suas relaes com cristos, tudo isso indica que sua condio jurdica e social inferior a dos cristos.Probe-se que cristos e judeus comam e bebam juntos, probe-se que os banhos pblicos sejam usados ao mesmo tempoou,ainda,quecristosrecebammedicamentodejudeus:proibiestodasque deixam implcitoummedode contaminao,sejaummedomais abstrato,decontgiode umaalegadaimpurezadosjudeus,sejaummedoconcretodeenvenenamentoporum grupo que, acreditava-se, queria destruir por dentro aquela sociedade. Probe-se que judeus possuamcargosqueoscoloquememposiosuperioraoscristos.Essasrestries mencionadasaquiremetemcaracterizaodemarginalizaoporBronislawGeremek, queentendeotermocomoumanoparticipaodeprivilgiosmateriaisesociais,na divisodotrabalhoenadistribuiodospapissociais,nasnormasenoethossocial dominantes na sociedade global (GEREMEK, 2004, 190 apud GONALVES, 2010, 28). Aindaassim,aindanasSietePartidas,humasriedemedidastidascomo protetoras ou alguns direitos que so reconhecidos aos judeus nesses textos. Poderiam ser lidos como sinnimos de tolerncia, aquela tolerncia positiva mencionada no incio do texto? Afinal, algumas passagens reconhecem direito de culto, reservam um direito a preservar os sbados, data religiosa dos judeus durante a qual seria proibido que fossem levados a juzo, reconhecem mesmo a sinagoga como lugar onde se louva o nome de Deus e que, portanto, deviaserrespeitada!TendoaconcordarcomRayeGonzalezJimnezquenoesseo caso:deacordocomRay,taispolticasdeproteodeminoriaseramapenasumaparte pequenadasiniciativasreaisenoevidenciavamtolerncia (emsuaacepomaiscomum), devendoservistasmaiscomoumamedidadesegurananumasociedadenaquala violncia teria um papel fundamental e certos grupos estariam mais sujeitos mesma (RAY, 2008, 75); j Gonzlez Jimnez afirma que uma tentativa de garantir uma coexistncia o menostraumticapossvelentrecristoseminoriasreligiosas,naqualsepermiteuma observnciadareligio,masqueissosednumplanojurdicoesocialdeinferioridade (GONZALEZ JIMENEZ, 1997, 73-74). *** O quadro apresentado anteriormente mostra que o contexto da insero social dos 35 Plthos, 2, 1, 2012 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 judeusnaPennsulaIbricaeramaiscomplexoqueaquelequeabuscapeloser de Espaa dosherdeirosdeAmricoCastroacabaramnoslegando,equeoambientepacficoda convivncia, carregado com valor positivo quando usado nessa vertente, acaba deixando de ladoalgumasquestesimportantesdarealidadesocialibrica.SanchezAlbornoztinha razoemcriticarqueCastroacabavadeixandodeladooqueexistedeconflitivonesses contatos,masnopodemostambmenfatizaroconflitotosomente.Navivnciae contato cotidiano, sobretudo nas cidades, onde a circulao dos indivduos faz com que se cruzem em diversos espaos e precisem, de fato, conviver (ou coexistir, caso se queira fugir daconotaoqueotermoconvivnciaassumiunahistoriografiamedievalibrica), provavelmenteocontatonoseriapermeadootempotododetenso,emborafosseo tempo todo regulado por restries diversas. Contudo, situaes de desequilbrio poderiam fazercomqueviessemtonaconflitosonde,ento,imediatamentesaltaadiferenciao dosindivduosemfunodesuareligio.Umasituaoquepodeviraserumestopim, como uma crise econmica, por exemplo, faz com que representaes negativas do outro, que circulam o tempo todo, mas que no teriam fora normalmente nas relaes cotidianas possam, nesse momento, adquirir fora.3 AEspanhadastrsculturasedaconvivnciadeAmricoCastronosinforma maissobreummomentoespecificodecertoshistoriadoresdosculoXXquesobreuma identidadecomumqueestivessesendocunhadadefato.Tendoaconcordarcoma importnciaquehavernaPennsulaIbricadaconvivnciaentreastrsculturas,desde que no se pese unicamente essa convivncia em termos de contatos harmnicos, nem que se minimize as diferenciaes sociais e jurdicas existentes entre os grupos nesse contexto. Sendofeitaessacolocao,aindaqueeuacheproblemtico,portanto,essabuscapelo germedoespanhol,tendoaacharaabordagemdeCastro,aoconsideraraimportncia do contato e das trocas entre os trs grupos na Pennsula, bastante pertinente, guardadas as devidas propores. 3 Naverdadeaprpriacoroacontribuirianacirculaodecertasrepresentaesnegativasdosjudeus,num esforo que teria de definir a identidade de sdito que , por excelncia o cristo. Como a afirmao da iden-tidade se d sobretudo em contraposio ao outro, no raras vezes nos deparamos comdocumentos de ori-gemrealcirculandoimagensnegativasdessesoutros,comoveremosnasCantigasdeSantaMaria,pore-xemplo. curioso que, portanto, a prpria coroa, que tinha interesse em gerir as relaes e mant-las dentro de certa ordem, acabaria por contribuir na circulao de representaes negativas que, embora no tivessem tanto peso nas relaes cotidianas, poderiam atuar ganhar plena fora em contextos de perturbaes sociais. 36 Plthos, 2, 1, 2012 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 Bibliografia ALFONSOX(1807).LasSietePartidasdelReyDonAlfonsoelSbio.3t.Madrid:Real Academia de Historia; Imprenta Real.BAER, Yitzhak (1981). Historia de los judios en la Espaa Cristiana. Vol. 1. Madrid: Altalena. CANAVAGGIO,Jean(1994)(ed.).Historiadelaliteraturaespaola.LaEdadMedia,t.1. Barcelona: Editorial Ariel.CASTRO,Amrico(1983).Espaa en su historia: cristianos, moros y judios.Barcelona:Editorial Crtica. DUBY,Georges(1995).HistriaSocialeIdeologiasdasSociedades.InJacquesLeGoff; Pierre Nora (eds.). Histria: Novos Problemas. Rio de Janeiro, Francisco Alves. FELDMAN,SergioAlberto(2010).ExclusoemarginalidadenoreinodeCastela:O judeunasSietePartidasdeAfonsoX,Histria,28,1,589-620.Disponvelem: http://www.scielo.br/pdf/his/v28n1/21.pdf. Acesso em: 20 de novembro de 2010.FERNANDEZ,MnicaFarias(2001).Si tomas los dones que te da la sabidura del rey: a imagem de rei sbio de Afonso X: Castela, 1252-1284.TesedeDoutorado.Niteri:ProgramadePs-graduao em Histria. GARCIA DE CORTZAR, Jos Angel (2004).Sociedad y organizacin del espacio em la Espaa medieval. Granada: Editorial Univesidad de Granada. GLICK,ThomasF.(1993).Cristianos y musulmanes en la Espaa medieval (711-1250).Madrid: Alianza Editorial. GLICK,ThomasF.Thomas(1979).IslamicandChristianSpainintheEarlyMiddleAges: ComparativePerspectivesOnSocialAndCulturalFormation.Princeton:PrincetonUniversity Press. GONALVES,BeatrisdosSantos(2010).Os marginais e o rei: a construo de uma estratgica relao de poder em fins da idade mdia portuguesa. Tese de Doutorado. Niteri: Programa de Ps-graduao em Histria. 37 Plthos, 2, 1, 2012 www.historia.uff.br/revistaplethos ISSN: 2236-5028 GONZALEZJIMENEZ,Manuel(1999).Alfonso X el sabio: historia de un reinado1252-1284. Palencia: Editorial La Olmeda. GONZALEZJIMENEZ,Manuel(1997).AlfonsoXylasminoriasconfesionalesde mudjares e judos. In Miguel Rodriguez Llopis. Alfonso X: aportaciones de um rey castellano a la construccin de Europa. Murcia: Consejera de Cultura e Educacin.. NIRENBERG,David(1996).Communitiesof ViolencePersecutionof minoritiesintheMiddle Ages. Nova Jersey: Princeton. RAY,Jonathan(2008).TheSephardicfrontier:TheReconquistaandtheJewishCommunityin Medieval Iberia. Ithaca: Cornell University Press. RIBAGORDA ESTEBAN, lvaro (2001). La fractura de la historiografa espaola durante la postguerra franquista, Cuadernos de Historia Contempornea, 23, 373-383. ROMERO-CAMACHO, Isabel Montes (1987). Notas para el estdio de la juderia sevillana en la Baja Edad Media, En la Espaa Medieval, 10,251-277. RUCQUOI, Adeline (1995). Histria Medieval da Pennsula Ibrica. Lisboa: Estampa. TODOROV,Tzvetan(1993).A Conquista da Amrica: a questo do outro.SoPaulo:Martins Fontes. VALDEON BARUQUE, Julio (2003). Alfonso X el Sbio: la forja de la Espaa moderna. Madri: Temas de Hoy. VALDEON BARUQUE, Julio (2004). El mundo, ante el gran debate sobre la identidad de EspanaI.ElMundo,5370,22deagostode2004.EntrevistaconcedidaaAsuncion DomenecheArturoArnalte.Disponvelem:http://www.almendron.com/historia/entrevistas_historiadores.pdf [Acessoem25de outubro de 2010, s 01:41] ZUMTHOR, Paul (2009). Falando de Idade Mdia. So Paulo: Perspectiva.