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LITERATURA PORTUGUESA MEDIEVAL Prof. Augusto Sarmento-Pantoja [email protected] (91) 9164-2801 PARFOR - 1 Semestre de 2011 Bloco 3 - BARCARENA 2010 04 a 09 /07/2011

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Page 1: LITERATURA PORTUGUESA MEDIEVAL - TexSiTurAs Blog · primeiros que cantaram na língua portuguesa. Embora fosse clérigo e o chus honrado.., que ouve na Espanha, na frase do autor

LITERATURA

PORTUGUESA

MEDIEVAL

Prof. Augusto Sarmento-Pantoja

[email protected]

(91) 9164-2801

PARFOR - 1 Semestre de 2011 – Bloco 3 -

BARCARENA 2010

04 a 09 /07/2011

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PRODUÇÃO LITERÁRIA MEDIEVAL

Texto

1

PRAGA, Vaasco (de Sandin). “Quero-uos

eu, senhor, gran ben”. In: NUNES, José

Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lis-

boa, Clássica, 1970. p. 151.1

Quero-uos eu, senhor, gran ben

e non ei al de nós se non muito mal,

si Deus mi perdon, pero direi-uos ũa ren:

todo uo-l‟eu cuid‟a soffrer

se m‟end‟ a morte non tolher.

E creede que a min é

este mal, que me vós leuar

fazedes, de mha morte par,

pero, senhor, per bõa fé,

todo uo-l‟eu cuid‟a ssoffrer,

se m‟end a morte non tolher.

E, pois por ben, que uos eu sei

querer, me fazedes assi

uiuer, tan mal dia nos vj!

pero verdade uos direi:

todo vo-l‟eu cuid‟a sofrer,

se m‟end‟ a morte non tolher. (CA 12 e CB 76)

Texto

2

SOARES, Joan (Comesso). “Hũa donzela

quig‟ eu muy gran bem,”. In: NUNES,

José Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed.

Lisboa: Clássica, 1970. p. 152.2

Hũa donzela quig‟ eu muy gran bem,

meus amigos, assi Deus me perdom,

e ora iá este meu coraçom

anda perdudo e fóra de sem

por hũa dona, se me ualha Deus,

que depois uiron estes olhos meus,

que mh-a semelha muy mays d‟outra rem.

Porque a donzela nũca verey,

meus amigos, emquãt‟ eu já uiuer,

por esso quer‟eu muy grã ben querer

a esta dona, ẽ que uos faley,

que me semelh‟ a dõzela que uy:

e a dona seruirey des aquy

pola donzela que eu muyt‟ amey!

Porque da dona sõ eu sabedor,

meus amigos, assi ueja prazer,

que a donzela en seu parecer

semelha muyt‟, e por ẽd‟ ey sabor

de a seruir, pero que he meu mal:

1 Natural da Galiza, segundo Nunes, floresceu no primeiro quartel do

século XIII. Restam dele 25 cantigas de amor e 4 de amigo. 2 Nobre da família dos Valadares, deve ter florescido entre os anos de

1210 e 1230. Figura nos cancioneiros apenas com cantares de amor.

serui-la-ey e nõ seruirey al,

por a donzela que foy mha senhor. (CB 80 e CA

377).

Texto

3

TAVEIROOS, Pai Soarez de. “Como

morreu quen nunca bem”. In: NUNES, José

Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lis-

boa: Clássica, 1970. p. 15.3

Como morreu quen nunca ben

ouve da ren que mais amou

e quen viu quanto reçeou

d‟ela e foi morto por en,

Ay, mha senhor, assi moyr‟ eu!

Como morreu quen foy amar

quen lhe nunca quis ben fazer

e de que lhe fez Deus ueer

de que foy morto cõ pesar,

Ay, mha senhor, assi moyr‟ eu!

§

Com‟ome que ensandeçeu,

senhor, cõ gran pesar que uiu

e nõ foy ledo, nen dormiu

depois, mha senhor, e morreu,

Ay, mha senhor, assy moyr‟ eu!

Como morreu quen amou tal

dona que lhe nunca fez bem

e quen a um leuar a quen

a nõ ualia, nen a ual,

Ay, mha senhor, assy moir‟ eu! (CA 35 e CB 123)

Texto

4

OSOIR‟EANNES. “Cuidei eu de meu cora-

çon”. In: NUNES, José Joaquim.

Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássi-

ca, 1970. p. 154.4

Cuidei eu de meu coraçon

que me non podesse forçar

(poys me sacara de prison)

de ir comego hi tornar,

e forçou-m’ ora nou’ amor

e forçou-me noua senhor,

e cuydo ca me quer matar!

3 Pertence este trovador à nobre família dos Velhos, a qual mais tarde

devia ilustrar ainda outro seu descendente, fr. Gonçalo Velho, o desco-

bridor dos Açores; a sua atividade poética, que se manifestou em canta-res de amor e de amigo, devia ser colocada nos primeiros decênios do

século XIII, parecendo até ainda poetou no século II. (J. J. Nunes) 4 Pertencente, segundo parece à família dos Marinhos, e filho de Joam

Frojaz, fazia este trovador parte de colegiada de Santiago, na qualidade

de cônego. Do seu testamento, feito em 1236, sabe-se que havia estuda-

do em Paris. Dele só há versos de amor.

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E, poys m’ assy desenparar

hũa senhor foy, des enton

e[u] cuidei ben per ren que non

podesse mays outra cobrar,

mais forçaron-mh os olhos meus

e o bon parecer dos seus

e o seu preç’ e hũu cantar.

Que lh’ oí, hu a uj estar

en cabelos, dizend’ um son.

Mal-dia non morri enton,

ante que tal coyta leuar

qual leuo! que non uj mayor

nunca, ond’ estou a pauor

de mort[e] ou de lh’o mostrar. (CB 13 e CA 323)

Texto

5

SANCHEZ, D. Gil. “Tu, que ora uẽes de

Monte Mayor,”. In: NUNES, José

Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lis-

boa, Clássica, 1970. p. 15.5

Tu, que ora uẽes de Monte Mayor,

tu, que ora uẽes de Monte Mayor

digas-me mandado de mha senhor,

digas-me mandado de mha senhor,

ca, se eu seu mandado

non ujr, trist‟e coytado

serey, e gram pecado

fará, se me non ual,

ca en tal ora nado

foy que, mao pecado,

amo-a endoado [em vão]

e nunca end‟óuuj al.

Tu, que ora uiste os olhos seus,

tu, que ora uiste os olhos seus,

digas-me mandado d‟ela por Deus,

digas-me mandado d‟ela por Deus,

ca, se eu seu mandado

non uyr, trist‟e coytado

serey, e gram pecado

fará, se me non ual,

5 NUNES, José Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa, Clássi-

ca, 1970. p. 405: “GIL PEREZ CONDE. Floresceu este trovador na

primeira metade do século XIII e foi um dos que tomaram parte na conquista da Andaluzia, no reinado de Afonso X, em cuja corte esteve;

cultivou apenas a sátira, deixando-nos algumas cantigas de escárnio e de

mal-dizer. D. GIL SANCHEZ. Filho de Sancho I e de sua amante predilecta, a

formosa D. Maria Paez Ribeira, nasceu este trovador muito

provavelmente nos últimos anos do século XII, sendo assim um dos primeiros que cantaram na língua portuguesa. Embora fosse clérigo e o

chus honrado.., que ouve na Espanha, na frase do autor do II Livro de

Linhagens, teve por amante uma fidalga das mais ilustres do reino, D. Maria Garcês de Sonsa; é de crer que a esta dama, que vivia em

Montemor, seja dirigida a única poesia, por sinal bastante original na

forma, que dele nos resta. O Livro de Óbitos de Santa Cruz de Coimbra dá-o como falecido a 14 de Setembro de 1236.”

ca en tal ora nado

foy que, mao pecado,

amo-a endoado

e nunca end‟óuuy al. (CB 22)

Texto

6

CORPANCHO, Airas. “Desei‟ eu rnuit‟ a

ueer mha senhor,”. In: NUNES, José Joa-

quim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa:

Clássica, 1970. p. 154-5.6

Desei‟ eu rnuit‟ a ueer mha senhor,

e pero sei que, pois dant‟ela for,

non lh‟ ei a dizer ren

de com‟ oi‟ eu averia sabor

e lh‟ estaria ben.

Pola ueer moir‟ e pula seruir,

e pero sei que, pois m‟ant‟ela uir,

non lh‟ei a dizer ren

de com‟ oi‟ eu poderia guarir

e lh‟ estaria ben.

Se lh‟al disser, nõ me dirá de nõ,

mais da gran coita do meu coraçõ

nõ lh’ei a dizer rem

que lh’eu dirja en boa razon

e lh’ estaria ben.

Pero ei gran sabor de lhe falar,

quando a uejo, por lhe nõ pesar,

nõ lh’ei a dizer ren

de com’eu poderia led’ andar

e lh’ estaria ben. (CB 152 e CA 65)

Texto

7

VELHO, Pero. “Quand‟ora for a mha se-

nhor ueer,”. In: NUNES, José Joaquim.

Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássi-

ca, 1970. p. 155.

Quand’ora for a mha senhor ueer,

que me non quer leixar d’amor uiuer,

ay, Deus Senhor, se lh’ ousarei dizer:

Senhor fremosa, non poss’ eu guarir!

Eu, se ousar, direy, quando a uir:

Senhor fremosa, non poss’eu guarir.

Por quantas uezes m’ela fez chorar

con seus desejos [saudades dela], cuytan[do] d’andar,

quando a uir, direi-lhi, se ousar:

Senhor fremosa, nom poss’ eu guarir.

Eu, se ousar, direi, quando a uir:

Senhor fremosa, non poss’ eu guarir.

6 Trata-se de um jogral, segundo Michaëlis. Parece ter poetado antes

de D. Afonso III. Cantigas de amor e de amigo.

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Por quanta coyta por ela leuei

e quant’afam sofri e endurei,

quando a uir, se ousar, lhi direi:

Senhor fremosa, non poss’ eu guarir,

Eu, se ousar, direi, quando a uir:

Senhor fremosa, non poss’ eu guarir. (CB 113 e CA 393)

Texto

8

MONIZ, Airas. “Pois mi non ual d‟eu

muyt‟amar”. In: NUNES, José Joa-

quim. Crestomatia Arcaica. 7. ed.

Lisboa: Clássica, 1970. p. 156.

Pois mi non ual d‟eu muyt‟amar

a mha senhor, nen a seruir,

nem quam apost‟ eu sey negar

o amor que lh‟ey [e] a ‟ncobrir

a ela, que me faz perder,

[De modo] que mh-o non pode[n] entender,

lá eu chus [adv. = mais] no‟-na negarey,

vel saberam de quen tort‟ey. [torto = mal, inujustiça]

Da que á melhor semelhar

de quanta[s] no mund‟ome uir

e mays [mansa sabe falar]

das que home falar oyr,

non uo-la ey chus a dizer...

quenquer x‟ a pode entender;

lá chus seu nome non direy;

c‟ a feito [iá] mh a nomeey.

E quen ben quiser trastornar

per tod‟o o mundo e ferir

mui festinho xh-a pod‟achar,

ca, por uos home non mentir,

non á ela tal pareçer

con que ss‟assy poss‟ asconder [esconder]

por como a eu dessiney [indiquei],

acha-la-am, cousa que sey.

Os que me soyam coitar

foi-lhes mha senhor descobrir;

lá mh ora leixaram folgar,

ca lhis non podia guarir,

ca ben lhe‟-la fiz conhocer,

porque me non quis ben fazer,

e tenho que boa me uinguey,

pois l‟en concelh‟ aueriguey. (CCB 6 e CA 316)

Texto

9

FERNANDEZ, Monio (ou Nuno). “Pois me

fazedes, mha senhor”. In: NUNES, José

Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lis-

boa: Clássica, 1970. p. 157.

Pois me fazedes, mha senhor,

de quantas cousas no mund‟á

desejos perder e sabor,

se non de nós, de que eu lá

nunca desejos perderey,

nen al nunca deseiarey

no mundo, se non uós, senhor.

Ou mha morte, poix me uós ben,

senhor, non queredes fazer,

ca non á no mund‟ outra ren

por que eu já possa perder

a coyta que eu por nós ey,

se non por morrer, eu o sey,

ou por min fazerdes nós ben,

Ca me fazedes muyto mal,

des aquel dia ‟n que uos vj;

pero, senhor, rem non uos ual,

que nunca eu de nós parti

meu eoraçon, poys uos amey,

nen iá nunca o partirei

d‟amar uós, e farey meu mal.

E faç‟ o lá, pois Deus [o] quer,

qu‟eu sempr‟ ey lá a desejar,

tanto com‟eu uiuer poder,

mha mort‟ e nosso semelhar,

ca nunca tanto uiuerey

que desei‟al, nen sairey

por al de coita, poys Deus quer. (CB 18 e CA 328)

Texto

10

BONAVAL, Bernaldo de. “A dona que eu

am‟ e tenho por senhor”. In: NUNES, José

Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lis-

boa: Clássica, 1970. p. 157-158.

A dona que eu am‟ e tenho por senhor

amostrade-mh-a Deus, se nos eu prazer for,

senon dade-mh a morte!

A que tenh‟eu por lume d‟estes olhou meus

e por que choran sempr‟, amostrade-mh-a Deus,

senon dade-mh a morte!

Essa que uós fezestes melhor parecer

de quantas sei, ay Deus, fazede-mh-a ueer

senon dade-mh a morte!

Ai Deus, que mh-a fezestes mais ca min amar,

mostrade-mh-a hu possa con ela falar

senon dade-mh a morte! (CV 657)

Texto

11

SOARES, Martim. “Senhor fremosa, pois

me non queredes”. In: NUNES, José Joa-

quim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa:

Clássica, 1970. p. 158-9.

Senhor fremosa, pois me non queredes

creer a cuita „n que me ten amor,

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por meu mal é que tan ben pareçedes

o por meu mal uos filhei por senhor,

e por meu mal tan muito ben oy

dizer de uós, e por meu mal uos uy,

pois meu mal é quanto ben uós auedes.

E, pois uos uós da cuita nõ nẽbrades,

nem do affan [fadiga] que m‟amor faz prender,

por meu mal uiuo mais ca uos cuidades

o por meu mal me fezo Deus naçer

e por meu mal nõ morri u cuidei

como uos viss‟e por meu mal fiquei

uiuo, pois uós por meu mal ren nõ dados.

[E] d‟esta cuita ‟n que me uós tẽedes

em que oi‟ eu uiuo tan sen sabor

que farei eu, pois mh-a nós nõ creedes?

que farei eu, catiuo pecador?

que farei eu, uiuẽdo sẽepr‟ assi?

que farei eu, que mal dia naçi?

que farei eou, pois me uós nõ ualedes?

E, pois que Deus non quer que me ualhades

nem me queirades mia coita creer

que farei eu, por Deus que mh-o digades,

que farei eu, se logo non morrer?

que farei eu, se mais a viver ei?

que farei eu, que conselho non sei?

que farei eu, que vós desamparades?

(CB 131 e CA 46)

Texto

12

GIL, D. Vasco. “Se uos eu ousasse, se-

nhor,”. In: NUNES, José Joaquim.

Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássi-

ca, 1970. p. 159.7

Se uos eu ousasse, senhor,

no mal, que por nós ei, falar,

des que nos ui, a meu coidar,

pois fossedes en sabedor,

doer-uos-yades de mi.

E, porque nunca estes meus

olhos fazen se non chorar,

u nos non ueen, con pesar,

Se o soubessedes, por Deus,

doer-uos-yades de mi.

Mais non nos faço[o] eu saber

de quanto mal me fez amor

por nós, ca m’ ey de nós pauor,

ca, se uo’-l’ ousasse dizer,

doer-uos-yades de mi. (CA 148 e CB 257)

7 Foi este fidalgo (c. primeira metade do século XIII) um dos defenso-

res do destronado D. Sancho II. Cultivou os três gêneros.

Texto

13

PONTE, Pero da. “Senhor do corpo delga-

do”. In: NUNES, José Joaquim.

Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássi-

ca, 1970. p. 160.8

Senhor do corpo delgado,

en forte pont‟ eu fuy nado!

que nunca perdi cuydado

nem afan, des que uos ui.

En forte pont‟ eu fuy nado,

senhor, por uós e por mi!

Con est‟ afan tan longado

en forte pont‟ eu foy nado!

que uos amo sen meu grado

e faço a uós pesar y.

En forte pont‟ eu fuy nado,

senhor, por uós e por mi!

Ay eu, catjv‟e coytado,

en forte pont‟ eu fuy nado!

que semi sempr‟ endõado

ond‟ un ben nunca prendi.

En forte pont‟ eu fuy nado,

senhor, por uós o por mi! (CA 292 e CV 570)

Texto

14

RODRIGUEZ, Fernan. “Uedes, framosa,

mha senhor,”. In: NUNES, José Joaquim.

Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássi-

ca, 1970. p. 161.

Uedes, framosa, mha senhor,

segurament‟ o que farey:

en tanto com‟ eu uyuo for,

nunca uos mha coyta direy,

ca non m‟ auedes a creer,

macar [ainda que] me ueiades morrer.

Por que uos ei eu, mha senhor,

a dizer nada do meu mal?

pois d‟esto sõ[o] sabedor,

segurament‟, u nõ iaz al,

que non m‟ auedes a creer,

marcar me ueiades morrer?

Seruyr-uos-ey [eu], mha senhor,

quant‟ eu poder, mentre [enquanto] uiuer,

mays, poys de coyta sofredor

8 NUNES, José Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássi-

ca, 1970. p. 161: “PERO DA PONTE. É este um trovador que, pelas suas composições, ocupa lugar distinto entre os poetas do seu tempo.

Provàvelmente oriundo da Galiza, frequentou as cortes de Fernando III e

Afonso X na qualidade de segrel, onde figurou ao lado de outros nossos conhecidos, principalmente Afonso Eanes do Coton seu mestre e amigo.

Dos seus sirventeses conclui-se que floresceu na primeira metade do

século XIII. Nos Cancioneiros figura como autor de cantigas de escárnio, de amor e de amigo.”

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sõo, non uo‟-l‟ ey a dizer,

ca non m‟ auedes a creer,

macar me ueiades morrer.

Poys eu ẽtendo, m[h]a senhor,

quan pouco proueito me ten

de uos dizer quã grãd‟ amor

uos ej, nõ uos fala[rei] en,

ca non m‟ auedes a creer,

macar me veiades morrer. (CB 31 e CA 341)

Texto

15

PAEZ, Fernan. “Uedes, senhor, pero me

mal fazedes,”. In: NUNES, José Joaquim.

Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássi-

ca, 1970. p. 161-2.9

Uedes, senhor, pero me mal fazedes,

mentr‟ eu uiuer, iá uós sẽpre seredes,

senhor fremosa,

de mj poderosa.

Pero me mal fazedes cada dia,

mentr‟ eu uiuer, seredes todavia,

senhor fremosa,

de mj poderosa

For como quer que uós de mi façades,

mentr‟ eu uiuer, nós quer‟ eu que seiades,

senhor fermosa,

de mj poderosa. (CB 51 e CA 361)

Texto

16

TENOIRO, Men Rodriguez. “Senhor

fremosa, poys m‟ aqui,”. In: NUNES, José

Joaquim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lis-

boa: Clássica, 1970. p. 162.10

Senhor fremosa, poys m‟ aqui,

hu uos ueio, tanto mal uen,

dizede-mo [uós] hua ren,

por Deus: e que será de mi,

quando m‟ eu ora, mha senhor

fremosa, du uós sodes, for?

E, poys m‟ ora tal coyta dá

o uoss‟ amor, hu uos ueer

posso, queria já saber

eu de nós: de mi que será,

quando m‟ eu ora, mha senhor

fremosa, du vos sodes, for? (CA 449 e CV 8)

9 Poeta pré-afonsino da primeira metade do século XIII, segundo J. J.

Nunes. 10 Segundo Michaëlis, este trovador poetou a partir de 1245, na corte

de D. Fernando e do rei Sábio.

Texto

17

GARCIA, D. Fernan. “Se Deus me leixe de

nós ben auer,”. In: NUNES, José Joaquim.

Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássi-

ca, 1970. p. 162-3.11

Se Deus me leixe de nós ben auer,

senhor fremosa, nunca ui prazer

des quando m‟eu de uós parti.

E fez-mh e voss‟amor tan muito mal

que nunca ui prazer de min, nem d‟al,

des quando m‟eu de uós parti.

Ouu‟eu tal coita no meu coraçon

que nunca ui prazer, se ora non,

des quando m‟eu de nos parti.

Texto

18

NUNEZ, Joan (Camanês). “Rogaria eu mha

senhor”. In: NUNES, José Joaquim.

Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa: Clássi-

ca, 1970. p. 162-3.12

Rogaria eu mha senhor

por Deus que mj fezesse ben,

mais ei d‟ela tan gram pauor

que lhi non ouso falar ren,

con medo de se m‟assanhar

e mj non querer pois falar.

Diria-lh‟eu de coraçon

como me faz perder o sem

o seu bom parecer, mais non

ous‟e tod‟aquest‟a mö auen [acontece]

com medo de se mi assanhar

e mj non querer pois falar.

Pois me Deus tal uentura deu

que m’en tamanha coita tem

amor, iá sempr’eu serei seu,

mais non a rogarei por en,

com medo de se m‟assanhar

e mj non querer pois falar. (CA 113 e CB 221)

Texto

19

D. SANCHO I. “Ay eu coitada! — Como

vivo”. In: TAVARES, José Pereira (sel.).

Antologia de textos medievais. 2. ed. Lisbo-

a: Sá da Costa, 1961. p. 8-9.13

Ay eu coitada! — Como vivo

en gran cuidado por meu amigo

11 Pertencia à família dos Sousões, tendo florescido no tempo do rei

Afonso III. Dezesseis cantigas de amor e duas de escárnio. 12 Oriundo da Galiza, foi este trovador talvez contemporâneo do rei-

sábio (Nunes). 13 O poema foi, segundo D. Carolina, inspirado pela ribeirinha.

Page 7: LITERATURA PORTUGUESA MEDIEVAL - TexSiTurAs Blog · primeiros que cantaram na língua portuguesa. Embora fosse clérigo e o chus honrado.., que ouve na Espanha, na frase do autor

que ei alongado. Muito me tarda

o meu amigo na Guarda!

Ay eu coitada! Como vivo

en gran desejo por meu amigo

que tarda e não vejo! — Muito me tarda

o meu amigo na Guarda!

Texto

20

SANCHEZ, D. Gil. “Tu, que ora vẽes de

Monte-mayor,”. In: TAVARES, José Perei-

ra (sel.). Antologia de textos medievais. 2.

ed. Lisboa: Sá da Costa, 1961. p. 8-9.14

[8] Tu, que ora vẽes de Monte-mayor,

Tu, que ora vêes de Monte-mayor,

digas-me mandado de mia senhor;

digas-me mandado de mia senhor.

ca se eu seu mandado

non vir‟, trist‟ e coitado

serei; e gran pecado

fará, se me non val.

Ca en tal ora nado

foi que mao-pecado!

amo-a endõado [em vão],

e nunca end‟ òuvi al!

[9] Tu, que ora viste os olhos seus,

Tu, que ora viste os olhos seus,

digas-me mandado d‟ela, por Deus;

digas-me mandado d‟ela, por Deus,

ca se eu seu mandado

non vir‟, trist‟ e coitado

serei; e gran pecado

fará, se me non val.

Ca en tal ora nado

foi que mao-pecado!

amo-a endõado,

e nunca end‟ òuvi al! (CBN 22)

Texto

21

D. AFONSO. “Bem ssabia eu, mha se-

nhor,”. In: TAVARES, José Pereira (sel.).

Antologia de textos medievais. 2. ed. Lisbo-

a: Sá da Costa, 1961. p. 11-12.

Ben ssabia eu, mha senhor,

que, poys m‟ eu de vós partisse,

que nunca veeria sabor

de rem, poys vos eu non visse,

porque vós ssodes a melhor

dona de que nunc(a) oysse [ouvisse]

homem falar,

14 Esta cantiga tem refrão de oito versos — Inserta no C. A.,

Apêndice, n.º 332.— Este D. Gil Sanches era filho de D. Sancho I e da

Ribeirinha. É a única poesia que dele se conhece, e julga D. Carolina Michaëlis que deve ter sido escrita em 1213, ano do cerco de Montemor.

ca o vosso bõ(o) ssemelhar

par nunca lh‟ omem pod‟ achar.

§ E, poys que o Deus assy quis,

que eu ssõ (o) tam alongado

de vós, muy bem seede ffis [certa]

que nunca eu ssen cuydado

eu viverey, ca já Paris

d‟ amor non foy tarn coitado

[e] nem Tristam;

nunca soffreron tal affam,

nen am quantos som, nen se(e)ram.

Que ffarey eu, poys que non vir

o muy bon parecer vosso?

ca o mal que vos foy ferir

aquel‟ é meu e non vosso,

e por ende per rem partir

de vos muyt‟ amar non posso

nen [o] farey

ante ben sey ca morrerey,

se non ey vós que sempr‟ amey. (CV 468)

Texto

22

NUNES, José Joaquim. Crestomatia

Arcaica. 3. ed. Lisboa: Clássica, 1943.

479p.

[269] San Cremenço do Mar,

se mi del non uingar,

non dormirey.

San Cremenço senhor,

se uingada non for,

non dormirey.

[Se mi del non uingar,

do fals‟e desleal,

non dormirey].

Se uingada non for

do fals‟e traedor,

non dormirey. (Torneol, CV 806)

Texto

23

NUNES, José Joaquim. Crestomatia

Arcaica. 3. ed. Lisboa: Clássica, 1943.

479p.

[269] Estaua-m’em San Clemenço,

hu fôra fazer oraçon,

e disse-mh o mandadeyro

que mi prougue de coraçon:

«agora uerrá ‟qui uoss‟amigo».

Estava-m‟en San Clemenço,

hu fora candeas queimar,

e disse-mh o mandadeyro:

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dremosa de bon semelhar,

agora uerrá ‟qui uoss‟ amigo.

Estava-m‟en San Clemenço,

hu fora oreçon fazer,

e diese-mh o mandadeyro:

«fremosa de hon parecer,

agora uerrá ‟qui uoss‟ amigo».

E disse-mh o mandadeyro:

fremosa de bon semelhar»,

por que uyu que mi prazia,

ar começou-me a falar:

«agora uerrá ‟qui uoss‟ amigo».

E disse.mh o mandadeyro:

«fremosa de bon parecer»

por que uyu que mi prazia,

ar começou-me a dizer:

«agora uerrá ‟qui uoss‟ amigo».

E disse-mh o mandadeyro

que mi prougue de coraçon;

por que nyu que mi prazia,

ar disse-m‟ outra uez enton:

«agora uerrá ‟qui uoss‟ amigo». (Torneol, CV 808)

Texto

24

TAVARES, José Pereira (sel.). Antologia

de textos medievais; selecção, introdução e

notas pelo prof. José Pereira Tavares. 2. ed.

Lisboa: Sá da Costa, 1961. 323p.

[46] Vi eu, mia madr‟, andar

as barcas eno mar:

e moiro-me d‟amor.

Foi eu, madre, veer

as barcas eno ler:

e moiro-me d‟amor.

As barcas [e]no mar

e foi-las aguardar:

e moiro-me d‟amor.

As barcas eno ler

e foi-las atender:

e moiro-me d‟amor.

[47] E foi-las aguardar

e non o pud‟achar:

e moiro-me d‟amor.

E foi-las atender

e non pudi veer:

e moiro-me d‟amor.

E non o achei,

[o] que por meu mal vi:

e moiro-me d‟amor.

[E non o achei lá,

o que vi por meu mal:

e moiro-me d‟amor.] (CV 246)

Texto

25

BRAGA, Marques (org.). Cancioneiro da

Ajuda. Lisboa: Sá da Costa, 1945. v. 1,

337p.

CA 70

[138] Ir-vus queredes, mia senhor,

e fiqu‟ end‟ eu con gran pesar,

que nunca soube ren amar,

ergo vós, dês quando vos vi.

E pois que vus ides d‟aqui,

senhor fremosa ¿que farei?

[139] E que farei eu, pois non vir‟

o vosso mui bon parecer?

Non poderei eu mais viver,

se me Deus contra vos non val.

Mais ar dizede-me vos al:

senhor fremosa ¿que farei?

E rogu‟ eu a Nostro Senhor

que, se vós vus fordes d‟aquen,

que me dê mia morte por én,

ca muito me será mester.

E se mi-a el dar non quiser:

senhor fremosa ¿que farei?

Pois mi-assi força voss‟amor

e non ouso vusco guarir,

des quando me de vos partir‟,

eu que non sei al ben querer,

querria-me de vos saber:

senhor fremosa ¿que farei?

Texto

26

BRAGA, Marques (org.). Cancioneiro da

Ajuda. Lisboa: Sá da Costa, 1945. v. 1,

337p.

CA 74

[145] Que prol vus á vós, mia senhor,

de me tan muito mal fazer?

pois eu nom sei al ben querer

no mundo, nen ei d‟al sabor,

Dizede-me ¿que prol vus á ?

[146] E que prol vus á, de fazer,

tan muito mal a quen voss‟é?

Non vus á prol, per bõa fé,

e, mia senhor, se eu morrer‟,

Dizede-me ¿que prol vus á?

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Que prol vus á de eu estar

sempre por vos en grand‟afan?

e est‟é mui grande, de pran,

e pois mi-o voss‟amor matar,

dizede-me ¿que prol vus á?

E vos, lume dos olhos meus,

oïr-vus-edes maldizer

por min, se eu por vos morrer‟.

e, senhor, por l‟amor de Deus,

dizede-me ¿que prol vus á?

Texto

27

BRAGA, Marques (org.). Cancioneiro da

Ajuda. Lisboa: Sá da Costa, 1945. v. 1,

337p.

CA 75

[147] Quer‟ eu a Deus rogar de coraçon,

com‟ ome que é cuitado d‟ amor,

que el me leixe veer mia senhor

mui ced‟; e se m‟ el non quiser‟ oïr,

logo lh‟ eu querrei outra ren pedir:

que me non leixe mais eno mundo viver!

[148] E se m‟ el á de fazer algun ben,

oïr-mi-á „questo que lh‟ eu rogarei,

e mostrar-mi-á quanto ben no mund‟ ei.

E se mi-o el non quiser‟ amostrar,

logo lh‟ eu outra ren querrei rogar:

que me non leixe mais eno mundo viver!

E se m‟ el amostrar‟ a mia senhor,

que am‟ eu mais ca o meu coraçon,

vedes, o que lhe rogarei enton:

que me dê seu ben, que m‟ é mui mester;

e rogá-lh‟-ei que, se o non fezer‟,

que me non leixe mais eno mundo viver!

E rogá‟-lh‟-ei, se me ben á fazer,

que el me leixe viver en logar

u a veja e lhe possa falar,

por quanta coita me por ela deu;

se non, vedes que lhe rogarei eu:

que me non leixe mais eno mundo viver!

Texto

28

BRAGA, Marques (org.). Cancioneiro da

Ajuda. Lisboa: Sá da Costa, 1945. v. 1,

337p.

CA 76

[149] Quando mi-agora for‟ e mi alongar‟

de vos, senhor, e non poder‟ veer

esse vosso fremoso parecer,

quero-vus ora por Deus preguntar:

Senhor fremosa ¿que farei enton?

Dized‟ ¡ay coita do meu coraçon!

E dizede-me: en que vus fiz pesar,

por que mi-assi mandades ir morrer?

Ca me mandades ir alhur viver!

E pois m‟ eu for‟ e me sen vos achar‟,

Senhor fremosa ¿que farei enton?

Dized‟ ¡ay coita do meu coraçon!

E non sei eu como possa morar

u non vir‟ vos, que me fez Deus querer

ben, por meu mal; por én quero saber:

e quando vus non vir‟, nen vus falar‟,

Senhor fremosa ¿que farei enton?

Dized‟ ¡ay coita do meu coraçon!

Texto

29

BRAGA, Marques (org.). Cancioneiro da

Ajuda. Lisboa: Sá da Costa, 1945. v. 1,

337p.

CA 77

[150] Que ben que m’ eu sei encobrir

con mia coita e con meu mal,

ca mi-o nunca pod‟ ome oïr.

Mais que pouco que mi-a min val!

Ca non quer‟ eu ben tal senhor

que se tenha por devedor

algũa vez de mi-o gracir.

[151] Pero faça como quiser‟,

ca sempre a eu servirei,

e quando a negar poder‟,

todavia negá-la-ei;

ca eu ¿por quê ei a dizer

o por que m‟ ajan de saber

quan gran sandece comecei,

E de que me non á quitar

nulha cousa, se morte non?

pois Deus, que mi-a fez muit‟ amar,

non quer, nen o meu coraçon.

Mais a Deus rogarei por én

que me dê cedo d‟ ela ben,

ou morte, se m‟ est‟ á durar.

E ben dev‟ eu ant‟ a querer

mia morte ca viver assi,

pois me non quer Amor valer,

e a que eu sempre servi

me desama mais d‟ outra ren.

Pero fui ome de mal-sen

porque, d‟ u ela é, saí!

Texto BRAGA, Marques (org.). Cancioneiro da

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30

Ajuda. Lisboa: Sá da Costa, 1945. v. 1,

337p.

CA 81

[155] Preguntan-me por quê ando sandeu,

e non lhe‟-lo quer‟ eu jamais negar;

e pois me d‟ eles non poss‟ amparar,

nen me leixan encobrir con meu mal,

direi-lhes eu a verdade e non al:

direi-lhes ca ensandeci

pola melhor dona que vi,

[156] Nen mais fremosa, (lhes direi, de pran,

ca lhes non quero negar nulha ren

de mia fazenda -ca lhes quero ben,)

nen pola que og‟ eu sei mais de prez.

E se m‟ ar preguntaren outra vez,

direi-lhes ca ensandeci

pola melhor dona que vi.

E Deu-lo sabe, quan grav‟ a mi é

de lhes dizer o que sempre neguei;

mais pois me coitan, dizer-lhe‟-la ei

a meus amigos, e a outros non.

Mui gran verdad‟ é ¡si Deus mi perdon!

direi-lhes ca ensandeci

pola melhor dona que vi.

E se a eles viren, creeran

ca lhes digu‟ eu verdade, u al non á,

e leixar-m‟ an de me preguntar ja;

e se o non ar quiseren fazer,

querê‟-lhes-ei a verdade dizer:

direi-lhes ca ensandeci

pola melhor dona que vi.

Nuno Fernandes Torneol (v.1, p. 149-171)

Texto

31

CANCIONEIRO DA BIBLIOTECA

NACIONAL; leitura, comentários e

glossário por Elza Paxeco Machado e

José Pedro Machado. Lisboa: Revista de

Portugal, 1949-1964. 8v.

[151] 70.

(Tr. 149)

Ir-vus queredes, mia senhor,

e fiqu‟ end‟ eu con gran pesar,

que nunca soube ren amar

ergo vós, des quando vus vi.

E pois que vus ides d‟ aqui,

senhor fremosa ¿que farei?

E que farei eu, pois non vir‟

o vosso mui bon parecer?

Non poderei eu mais viver,

se me Deus contra vos non val.

Mais ar dizede-me vos al:

senhor fremosa ¿que farei?

E rogu‟ eu a Nostro Senhor

que, se vos vus fordes d‟ aquen,

que me dê mia morte por én,

ca muito me será mester.

E se mi-a el dar non quiser‟:

senhor fremosa ¿que farei?

Pois mi-assi força voss‟ amor

e non ouso vusco guarir,

des quando me de vos partir‟,

eu que non sei al ben querer,

querria-me de vos saber:

senhor fremosa ¿que farei?

(coblas singulares)

POESIAS SATÍRICAS

Afons’ Eanes do Coton

32

A ũa velha quis ora trobar,

quand‟ en Toledo fiquei desta vez;

e veo-me Orraca López rogar

e disso-m‟ assi: — Por Deus, que vos fez,

non trobedes a nulha velh‟ aqui,

ca cuidaran que trobades a min.

33

Ben me cuidei eu, Maria Garcia,

en outro dia, quando vos fodi,

que me non partiss‟ eu de vós assi

como me parti já, mão vazia,

vel por serviço muito que vos fiz;

que me non destes, como x‟ omen diz,

sequer un soldo que ceass‟ un dia.

Mais desta seerei eu escarmentado

de nunca foder já outra tal molher,

se m‟ ant‟ algo na mão non poser,

ca non ei por que foda endoado;

e vós, se assi queredes foder,

sabedes como: ide-o fazer

con quen teverdes vistid‟ e calçado.

Ca me non vistides nen me calçades

nen ar sej‟ eu eno vosso casal,

nen avedes sobre min poder tal

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por que vos foda, se me non pagades;

ante mui ben e mais vos en direi:

nulho medo, grado a Deus e a el-Rei,

non ei de força que me vós façades.

E, mia dona, quen pregunta non erra;

e vós, por Deus, mandade preguntar

polos naturaes deste logar

se foderan nunca en paz nen en guerra,

ergo se foi por alg‟ ou por amor.

Id‟ adubar vossa prol, ai, senhor,

c‟ avedes, grad‟ a Deus, renda na terra.

34

Covilheira velha, se vos fezesse

grand‟ escarnho, dereito i faria,

ca me buscades vós mal cada dia;

e direi-vos en que vol‟ entendi:

ca nunca velha fududancua vi

que me non buscasse mal, se podesse.

E non est‟ũa velha nen son duas,

mais son vel cent‟ as que m‟ andan buscando

mal quanto poden e m‟ andan miscrando;

e por esto rogu‟ eu de coraçon

a Deus que nunca meta semeldon

antre min e velhas fududancuas.

E pero, lança de morte me feira,

covilheira velha, se vós fazedes

nen un torto se me gran mal queredes;

ca Deus me tolha o corp‟ e quant‟ ei,

se eu velha fududancua sei

oje no mundo a que gran mal non queira.

E se me gran mal queredes, covilheira

velha, digu‟ eu que fazedes razon,

ca vos quer‟ eu gran mal de coraçon,

covilheira velha; e sabed‟ or‟ al:

des que fui nado, quig‟ eu sempre mal

a velha fududancua peideira.

35

Fernan Gil and‟ aqui ameaçado

dun seu rapaz e doestado mal;

e Fernan Gil ten-se por desonrado,

ca o rapaz é mui seu natural:

é filho dun vilão de seu padre

e demais foi criado de sa madre.

36

Pero da Ponte, ou eu non vejo ben,

ou de pran essa cabeça non é

a que vós antano, per boa fé,

levastes, quando fomos a Geen;

e cuido-m‟ eu adormecestes ....

37

Foi Don Fagundo un dia convidar

dous cavaleiros pera seu jantar,

e foi con eles sa vaca encetar;

e a vaca morreu-xe logu‟ enton,

e Don Fagundo quer-s‟ ora matar,

por que matou sa vaca o cajon.

Quand‟ el a vac‟ ante si mort‟ achou,

logu‟ i estando mil vezes jurou

que non morreu por quant‟ end‟ el talhou,

ergas se foi no coitelo poçon;

e Don Fagundo todo se messou,

por que matou sa vaca o cajon.

Quisera-x‟ el da vaca despender

tanto per que non leixass‟ a pacer;

ca, se el cuidasse sa vaca perder,

ante xa der‟ a quen-quer, assi non;

e Don Fagundo quer ora morrer,

por que matou sa vaca o cajon.

....................................................................

38

Meestre Nicolás, a meu cuidar,

é mui bon físico; por non saber

el assi as gentes ben guarecer,

mais vejo-lhi capelo d‟ Ultramar

e trage livros ben de Mompisler;

e latin come qual clérigo quer

entende, mais nõno sabe tornar;

E sabe seus livros sigo trager,

como meestr‟, e sabe-os catar

e sabe os cadernos ben cantar;

quiçai non sabe per eles leer,

mais ben vos dirá quisquanto custou,

todo per conta, ca ele xos comprou.

Ora veede se á gran saber!

E en bon ponto el tan muito leeu,

ca per i o preçan condes e reis;

e sabe contar quatro e cinqu‟ e seis

per estrolomia ‟n que aprendeu;

e mais vos quer‟ end‟ ora dizer eu:

mais van a el que a meestr‟ Andreu,

des antano que o outro morreu.

E outras artes sab‟ el mui melhor

que estas todas de que vos falei:

diz das aves en como vos direi:

que xas fezo todas Nostro Senhor;

e dos estormentos diz tal razon:

que mui ben pod‟ en eles fazer son

todo ome que en seja sabedor.

39

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Orraca López vi doente un dia

e preguntei-a se guareceria.

E disse-m‟ ela, tod‟ en jograria:

— Sõo velha e cuid‟ a guarecer.

E dixe-lh‟ eu: — Cuidades gran folia,

ca i mais vej‟ eu das velhas morrer.

E dixe-lh‟ eu: — Gran folia pensades,

se per velhece a guarecer cuidades;

pero non vos digu‟ eu que non vivades

quanto vos Deus quiser leixar viver;

mais en velhice non vos atrevades,

ca i mais vej‟ eu das velhas morrer.

40

Paai Rengel e outros dous romeus

de gran ventura, non vistes maior,

guarecerán ora; loado a Deus,

que non morreron, por Nostro Senhor,

en ũa lide que foi en Josafás:

a lide foi com‟ oj‟ e, come crás,

prenderan eles terra no Alcor.

E ben nos quis Deus de morte guardar,

Paai Rengel e outros dous, enton,

dũa lide que foi en Ultramar,

que non chegaran aquela sazon;

e vedes ora por quanto ficou:

que o dia que s‟ a lide juntou,

prenderam eles port‟ a Mormoion.

De como non entraron a Blandiz,

per que poderan na lide seer,

já os quis Deos de morte guarecer,

per com‟ agora Paai Rengel diz;

e guareceron de morte poren:

que, quando a lide foi en Belen,

aportaron eles en Tamariz.

41

Veeron-m‟ agora dizer

dũa molher que quero ben,

que era prenhe, e já creer

non lho quig‟ eu per nulha ren;

pero dix‟ eu: — Se est‟ assi,

õi-mais non creades per mi,

se a non emprenhou alguen.

E digo-vos que m‟ é gran mal

daquesto que lhi conteceu,

ca sõo eu cord‟ e leal,

pero me dan prez de sandeu;

mais vedes de que ei pesar

daquel que a foi emprenhar:

de que cuidan que xa fodeu.

Pero juro-vos que non sei

ben este foro de Leon,

ca pouc‟ á que aqui cheguei;

mais direi-vos ũa razon:

en mia terra, per boa fé,

a toda molher que prenh‟ é

logo lhi dizen: — Ten baron!

POESIA PALACIANA

42 - TROVAS EM UM CAMINHO

Os lugares em qu‟andei

convosco ledo, e ufano,

nesta tristeza os busquei,

mas o que neles achei

foi a meu dano mor dano.

Comecei-lh‟a perguntar

que fora daquela grória

qu‟ali me viram passar:

responderam, sem falar,

qu‟estaria na memoria.

— “Em qual memória” — pregunto —

“pode tal lembrança ser?”

— Responderam: “Tudo junto,

o próprio e o transunto,

na vossa podereis ver”.

Na resposta que senti

vi meu mal camanho era,

vi o que logo me vi:

partir deles e de mi

para donde não quisera.

Comecei de caminhar

um caminho povoado,

por um mui craro luar

que me fazia parar

a cada passo pasmado.

Pus os olhos nas estrelas,

por não ver por donde andava,

olhando por todas elas;

lágrimas tristes, querelas,

escuro tudo tomava.

Com lembranças ledas tristes,

vim assi fantesiando;

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fantesias que não vistes,

sentidos que não sentistes

como nos vinham matando...

Mas quem soubera morrer

a tal tempo, e tal hora,

para não tornar a ver

vida tão má de sofrer

com‟esta triste d‟agora!

Ó vida de minha vida,

ó triste grória passada,

ó memória entristecida,

pois sois tão desconhecida

para que me lembrais nada?

Esquecei vossas lembranças,

deixai-me viver assi

sem vossas vãs esperanças,

porque com vossas mudanças

vivo sem vós e sem mi.

43 - CANTIGA E FIM

Lembranças, não persigais

a quem já não tem poder

mais que quanto vós lhe dais

mais suspiros e ais, para chorar e gemer.

Ó minha triste memória,

ó minha dor não fingida,

se lembrar fosse vitória,

a quem daríeis mais grória

qu‟a quem dais tão triste vida?

Mas estas lembranças tais

devíeis já d‟esquecer

que, se lembram, acordais

os meus suspiros, e ais,

e meu chorar e gemer. (Francisco de Sousa)

44 - AIRES TELES E CONDE DO VIMIOSO

TROVAS QUE MANDARAM O CONDE DO VI-

MIOSO E AIRES TELES À SENHORA DONA

MARGARIDA DE SOUSA SOBRE UMA PORFIA

QUE TIVERAM PERANTE ELA, EM QUE DIZIA

AIRES TELES QUE NÃO SE PODIA QUERER

GRANDE BEM SEM DESEJAR, E O CONDE

DIZIA O CONTRÁRIO.

AIRES TELES

Desejar e bem querer

são, Senhora, tão parceiro,

que os amores verdadeiros

sem ambos não podem ser;

porque a causa querer bem,

o desejar o efeito:

amores que este não tem

não me negara ninguém

que não têm o ser perfeito.

Não digo que o desejar

seja no homem primeiro,

mas venha por derradeiro,

pera se certificar

o bem querer verdadeiro;

porque quem este não tem,

hei por mui certo sinal

ou que não quer bem nem mal,

ou que quer pequeno bem.

E bem se poderá achar

desejar sem bem querer,

grande bem sem desejar

no homem não pode ser;

e quem tal conclusão tem

contra a minha opinião,

vai tão fora da razão,

como está de querer bem.

Sentir-se-á se se não vir

qualquer cousa desejada,

mas quem não deseja nada

não tem nada que sentir.

Ora Vossa Mercê veja

qual daquestes mais merece:

quem quer bem, e não deseja,

ou quem deseja, e padece?

.............................................

CONDE DO VIMIOSO

VILANCETE

Meu amor, tanto vos amo,

que meu desejo não ousa

desejar nenhuma cousa.

Porque, se a desejasse,

logo a esperaria;

e, se a eu esperasse,

sei que vos anojaria.

Mil vezes a morte chamo,

e meu desejo não ousa

desejar-me outra cousa.

AIRES TELES

Sem outros mais argumentos

na sua mesma razão,

jaz, Senhora, a confusão

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de todos seus fundamentos.

No que diz contra o que digo

nas razões que dei arriba,

ele só luta consigo,

ele mesmo se derriba.

VILANCETE

Meu amor tanto vos quero,

que deseja o coração

mil cousas contra razão.

Porque, se vos não quisesse,

como poderia ter

desejo que me viesse

do que nunca pode ser?

Mas conquanto desespero,

é em mim tanta afeição,

que deseja o coração.

Esforça meu coração,

não te mates, se quiseres

lembra-te que são mulheres.

Lembra-te que por nascer

nenhuma que não errasse,

lembra-te que seu prazer,

por bondade, e merecer.

não vi quem dele gostasse;

pois não te dês à paixão,

toma prazer se puderes,

lembra-te que são mulheres.

Descansa, triste, descansa,

que seus males são vinganças,

tuas lágrimas amansa,

leixas suas esperanças.

Ca pois nascem sem razão,

nunca por ela lh‟esperes,

lembra-te que são mulheres.

Tuas mui grandes firmezas,

tuas grandes perdições,

suas desleais nações

causaram tuas tristezas.

Pois não te mates em vão,

que quanto mais as quiseres,

verás que são as mulheres.

Que te presta padecer,

que te aproveita chorar,

pois nunc‟ outras hão de ser

nem são nunca de mudar?

Deixas com sua nação,

seu bem nunca lho esperes,

lembra-te que são mulheres.

Não te mates cruamente

por quem fez tão grande errada,

que quem de si se não sente,

por ti não lhe dará nada.

Vive lançando pregão

por u fores e vieres,

que são mulheres mulheres.

PROSA DOUTRINÁRIA - INÍCIO DA PROSA PORTUGUESA

Texto

45

ORTO do Esposo. In: NUNES, José Joa-

quim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa:

Clássica, 1970. p. 56-7.

[Uma promessa cumprida]

[56] Hũa santa uirgem, que auja nome

Dorothea, era leuada pera degolar pella fé de Ihesu

Christo, e hũu escolastico leterado, que auia nome

Theofilo, escarnecendo dela, disse-lhe:

— Tu, espossa de Christo, emvia-me do

parayso do teu esposo rosas e pomas.

E a santa uirgem lhe respondeo:

— Certamẽte asy farey.

E ella, quando ueo ao luguar onde auja de

seer degolada, fez oraçõ a Deus. E, acabada a

oraçom a Deus, logo apareceu ante ella hũu menjno,

que tragia ẽ hũu pano de linho muy aluo tres maçãas

muy nobres e trem rosas muy fremosas. E disse-lhe

a santa uirgem:

— Rogo-te que leues esto a Theofilo e di-

lhe: Ex aquelo que pidiste a Dorothea que te

emviasse do parayso do seu esposo.

E a santa uirgem foy degolada e acabou seu

marteyro. E Theofilo estaua recontando e

prometimẽto que lhe fezera a santa uirgem,

escarneçendo della. E aque o menino chegou ante

elle cõ o pano do linho aluo ẽ que tragia aquellas

maçãas marauilhosas e as rossas muy fremosas e

dise-lhe:

— Iirmãao, ex aquj aquello que te prometeu

a uirgẽ muy santa Dorothea, que te emuija do

parayso do meu esposo.

[58] E entõ Theofllo tomou as pomas e as

rosas e braadou muy grande uoz, dizendo:

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— Uerdadeiro Deus he Ihesu Christo.

E diseron-lhe os companheyros:

— Ensandeces ou dizes esso em jogo?

Respondeu Teofilo:

— Eu nõ soom sandeu, nẽ ey talante de

jogo, mais creo uerdadeyramẽte que Ihesu Christo

he uerdadeyro Deus, ca agora he o mes de feuereyro

e toda esta terra de Capadocia he cuberta de geada e

de friu o nõ ha em ella folhas verdes nẽ flores

nehũas, pois donde pensades que ueerõ estas maçãas

con suas folhas e estas rosas tam fremosas?

E elles diserom:

— Esso nõ sabemos nós.

E Theofilo lhes disse:

— Eu faley a Dorothea, quando a leuauã a

degolar, e dise-lhe em escarnho: Molher, hu te uaas?

E ella me disse: uou-me para o meu amigo e meu

esposo Ihesu Christo, que me conujda pera muy

santas uodas e muy solempnes manjares para o seu

parayso. E eu lhe disse como a sandia: Quando fores

em esse parayso, ẽuja-me das rosas e das maçãas. E

ella me prometeu que o farya. E agora, tanto que foy

degolada, ueeo a mi hũu menjno, que me parece que

nõ he mais de idade de quatro ãnos, e chamou-me a

de parte e falou-me tam perfectamente que a mö

parecia soer eu rustico ante el e amostrou-me e deu-

me este pano cõ estas tres rosas e tres maçãas e dise-

mo: Aquella uirgem santa Dorothea te ẽuja esto, asy

como o prometeu, estas doas do orto do seu esposo.

E, tanto que as eu tomey e começey de braadar, logo

aquelle moço nõ pareçeu mais, e eu creo que era

angeo de Deus.

E logo Theofilo começou a braadar:

— Bem auẽturados som aquelles que creem

em Ihesu Christo, e aquelle que dá a elle a sua fé he

uerdadeyro sabedor.

E degolarõ-no con outros e foy-se pera o

parayso do deleyto, que he eno çeeo. E asy mostrou

este leterado a sua doutrina par paçiençia, ca,

segundo diz hũu santo padre, a doutrina do barõ

conheça-sse pela paciẽçia, ca, quanto o homẽ he

meos paciẽte, tanto se mostra por meos ẽsinado.

(Do Orto do esposo, códice alcobacense n.º

273/198, fols. 22 e V.).

Texto

46

JOSEP ab Aramatia. In: NUNES, José Joa-

quim. Crestomatia Arcaica. 7. ed. Lisboa:

Clássica, 1970. p. 74-79.

Um episódio do Josep ab Aramatia

DOS GRAMDES TRABALHOS QUE

MORDAYMNA PENA PASSOU E DAS

TENTAÇÕES QUE O DIABO LHE FEZ E DO

QUE LHE DEOS DISSE

[74] Em esta maneyra foy elrey na pena e cada

dia ho omem bom da naao vinha ha ele e depois ha

molher, e o omem bom lhe dezia todas as palavras que

ho podiam comfortar, e a molher lhe dezia toda tray-

çam, qua ella ho descomfortaua em corpo e em alma.

E, quando veo aos sete dias, veo ho homem

bom da nao e dise-lhe que se lhe achegava ho prazo

de ser lyvre, se se soubese guardar e ter-se comtra ho

diabo. E elrey lhe dise:

[75] — Senhor, como me saberya eu bem

guardar?

E ele lhe dise:

— Se te oje toda via poderes guardar de

asanhares teu Senhor, tuu seras lyvre de todos os

penares e de todas estas más trevas que te am de vir,

se te nom guardares de crer comselho que seja

comtra sua vomtade. E, quamdo d‟aquy pasares,

averás pasadas as gramdes trebulações.

Emtam se foy o senhor da barca e elrey

ficou muy ledo e pôs bem em seu coraçam que já,

por causa que visse, nom se partysse da pena. Asy

esteue, até que foy ora de noa. Entam oulhou por ho

mar e via vyr hũa muy gramde nao e muy rica, mas

nam via hy homem nem molher. A nao era muy

formosa e guarnyda de muy fermosas cousas e veyo-

se direyto a pena, e, tamto que chegou, começou-se

hu mao tempo e (a nao chegou a pena o tempo)

começou a fazer trovõis, chuveiros tam fortemente

que parecia que a pena querya cair, e nom ouvera

homem que ho vise que nom cuydase que se vinha

afim.

Elrei estaua na pena e a chuva ha ferya de

todas partes e nom sabia omde me fosse escomder,

que a parte da pena omde a coua era cayra e a

tempestade cada vez era mayor, os coryscos muy

ameude cayam e tam desamparado era ellrey que

nũnca d‟aquele perygo cuydou escapar. Asy sofreu

elrey ho tromento do vemto e da chuva e dos

coryscos no corpo e na alma, mas por yso nom se

quys acolher a nao, nem leyxar a pena; tamto sofreo,

atá que o tempo estiou e o soll começou a esclarecer,

e entam foy muy ledo.

E emtam veio hũa tam grarnde quemtura que

parecia que a pena querya arder, e, se ante elrrey

sofreo pena, mjll tamto lhe foy esta. Via amte ey a

nao toda aparelhada de boas camaras, omde, se hy

emtrasse, poderia bem sofrer a gramde quemtura,

mas ele duvidou tamto a sanha de seu Senhor que

pôs em seu coraçam de amte sofrer morte que leyxar

a pena.

Com muyta paciẽçia sofreo elrey esta

quemtura, atá que a cabeça lhe esuaeçeu e nom se

pode ter e caio esmorecido. E, quamdo hacordou,

ergeo hũ pouco a cabeça, pera ver se ho tempo

amamsara. E, quamdo via que era temperado, asy

como avia de ser amte ora de nona e besporas, foy

muy ledo. Emtam prouou se se poderya herguer com

a cabeça que lhe esuaeçera e, quaindo se ouve de

alevamtar, nom semtio mall nem dor. E, quamdo se

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ergeo, maravilhou-se das gramdes avemturas que lhe

acomteceram e sofrer tam gramdes trabalhos e nom

hos semtir, e as vezes lhe parecia que sonhara e

tamto era ledo. Nysto cuydou, atá que foy bespora, e

oulhou e vio vir hũa [76] nao muy nuamente

aparelhada e vio-[a] muy rica, e, quamdo se foy

chegamdo, vio no castelo d‟avamte hir dons escudos

e conheceu que hũu era ho seu e o outro de seu

cunhado Naçeram e maravilhou-se e começou

muyto ha cuydar, tamto que se esqueçeo, e logo

ouvio rimchar hũ cavalo e escarvar com as mãos

tamto que pareçia que brytava a nao, ho que elrey

ouvio muj bem, e pareçeo-lhe no rimchar que

haquele era ho seu cavalo, que ele guanhara de

Tolomer, na batalha de Orcanze.

Muyto se maravilhou elrey do cavalo e dos

escudos que via em estranha terra e que aventura

poderya ser que ally os trouxese. E nesto a nao

chegou tamto que emcorou na pena e elrey se hergeo

e vio muy fermosa gemte.

Emtam veo hũ homem fora, que mais

parecia cõ hũ seu irmão que lhe mataram em hũaa

batalha. E, quamdo ho vio, foy muy ledo comtra ele,

mas vio-lhe fazer muy mao comtynemte, em tamto

que muyto fez perder a elrey de sua alegrya e toda

via ho foy abraçar e pregũtou-lhe por que fazia tam

triste gesto, e ele lhe disse:

— Senhor, nam posso fazer menos, qua vos

perdestes dons amigos, os mylhores que numca

tyvestes no mumdo, eu e Naçeram, voso cunhado,

que vede-lo aquy na nao en hua cama.

Quamdo elrey ysto ouviu, cayo esmorecido

e, quamdo acordou, dise-lhe que lho mostrasse e deu

brados, como homem samdeu, e tornou outra vez a

cair esmorecido. E ho homem ho tomou por a mão

esquerda e o levou a nao.

Quamdo elrey foy na nao, vio hũ leyto e

ergeo hũ pano e vio hu corpo que bem cuydou que

era Naçeram, e caio emtam esmoreçido de sorte que,

quem ho vira disera que nom escaparya. E, quamdo

acordou, quys pregumtar ao cavaleiro em que forma

Naseram morrera e teve olho a pena e vio-se muy

alomgado, tamto que hapenas a podia ver. E,

quamdo ysto vio, [caio] esmorecido e, quamdo

acordou, bemzeo-se, e, tam azinha como ouve feyto

o synall da cruz, nam vio homem nem molher na

nao, nem no leyto.

E, quãdo vio como ho negoçio hia, começou

muy feramente a chorar, e dise:

— Senhor Deus, ora me guardey mall

comtra vós e agora sey que vos fize torto, e, se me

mall vier, bem ho mereçy.

E, tam azynha como ysto disse, vio na proa

da nao aquele homem que ele vi[r]a na barca

fermosa da prata e que toda a semana lhe dissera as

boas palavras. E, tamto que o vio, dyse-lhe

choramdo:

— Ay, Senhor, como me emganou haquele

de que vós me mamdastes gardar!

E ho omem lhe dise:

[77] — Nom chores, mas guar-te de fazeres

pior.

E elrey lhe preguntou que poderya fazer e

ele lhe disse:

— Muitas estranhas avemturas verás que te

acomteçerám, mas jamais norn comerás nem

beberás, atá que nom aches Naseraw, teu cunhado. E

virá a ti, como verdadeiro crystam, e, quamdo ho asy

vires, emtam sabe que serás livre. E sabe bem que o

anho que te eu disse omtem por a menham e o lobo

que tu vias nesta nao ho podes ver, e este que te

disse como Naseram era morto, este he o diabo, que

sempre he lobo comtra as ovelhas de Deus, tamto

como comtra o povo de Deus, e este he o lobo que

em tua visam te tolhya os bõs mamjares que te ho

anho dava, e aquele cordeiro saberás tu muy bem

que quer ser, mas esto non será seraá hua vez, e

emtam te será descuberta sua visam e o que pode

seneficar. Bem sabe que aquele diabo que te meteo

na nao foy aquela molher que a ty vinha cada dia e

te dezia as más palavras. Ora te vay e olha como te

guardes comtra ela ho mylhor que puderes e mylhor

que atá‟quy te guardaste, que, se te nom souberes

guardar, muy azinha verás cousas que te tornarám a

morte perduravell.

Emtam se calou, que lhe nom disse mais, e

elrey oulhou e nam ho vio e ficou só na nao e o

vemto deu na nao e toda a noute e dia a trouxe de

quá pera lá. E a outro dia, estamdo elrey na cadeira

do mestre, oulhou e vio lomge da nao hu homem,

asy como a pé, e, quamdo foi perto, vyo-lhe debaixo

dos pés duas aves que os sostynham e o traziam tam

lygeyramente como hũa podia mais boar [voar]. E,

quamdo veio a nao, emtrou e começou a fazer ho

sinall da cruz sobre ha nao e tomou agoa de demtro

da nao e lavou toda ha nao de demtro com ambas as

mãos, sem cousa falar. E el-rey oulhou e muito se

maravilhou que podia ysto ser e por que ho omem

deytava ha agoa hasy por a nao.

E, quamdo ho omem jsto teve feito, falou ha

el-rey e dise-lhe:

— Mordaim.

Elrey se maravilhou muyto, quãdo se vio

nomear por seu nome de bautismo, e lhe respomdeo:

— Senhor.

E ho homem bom lhe dise:

— Sabes quem sam [sou]?

— Nem, disse elrey.

E o homem bom lhe disse:

— Sam teu defemdedor por mamdado de

Ihesu Christo; eu sam [sou] Salustes, aquele em cujo

nome e em cuja omrra tu fizeste a rica ygreja na

cidade de Sarrar, e vym-te comfortar e acomselhar.

E emvia-te dizer por mym ho anho, aquele que em

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tua visão te daua os bõs mamjares que o lobo te

tolhia, que tu vemçeste ho lobo, e [78] ysto foy por

ho synall da cruz que tu fyzeste sobre ty, quamdo te

viste halomgado da pena, e emtam te leixou ho lobo.

Este foy ho diabo, que amtes te tolhia os bõs

mamjares que ho cordeiro te daua; estas sam as boas

palavras que o omen bom da nave te dezia: aquele

homen bom era ho cordeiro que em tua visam te

dava os bõs mamjares. E sabe que ho anho de Deus,

que por ha terreal lynhajem foy sacryfycado, que

veo tam mamso a cruz, como ho anho ha morte, este

hé Ihesu Christo, filho da Vyrgem. Aquele que cada

dia te vinha comfortar, aquele me embiou a ty por te

descobryr tua visam asy como te ele mostrou, pera

que tu saybas que quer dizer. Tuu viste de teu

sobrynho sair hu laguo e dele sai[re]m nove rios e os

oyto eram todos ygaes, e o noveno, que derradeiro

naçera, era tam formoso e tam gramde como todos

os outros, e o lago era muy fermoso e muy grande, e

tuu oulhaste e vyste sobre ty vir hũ omem que tynha

semelhança do verdadeiro croxofixo, e, quamdo

deçeo, emtrou no lago e lavou nele os pes e as

pernas e outro sy em todos os outros oyto rios, e no

nono se lavaua todo. Aquele lago e teu sobrynho em

que Ihesu Christo banhara seus pes e suas pernas

tamto quer dizer que ele era de tam boa vida que

sera verdadeyro na samta fé, do quall sairám os nove

rios. Estes serã nove homẽs que dele decemderám e

nom serám todos seus filhos, amtes decemderárn de

hũu e do outro por geraçam e todos oyto seram

ygaes de bomdade e de vida, pero ho oytauo nom

será no começo de tall vida, mas se-lo-ha depois, ho

noveno sera de muy mayor alteza de vida que todos,

e, por que de todas bomdades vemcerá os outros, por

ysso banhará Ihesu Christo nele todo o seu corpo,

ysto nam vestido, mas nuu, que ele se espirá amte

ele de tall maneyra que lhe mostrará todas as suas

porydades, que ele nũqa ha omen descobryo. Aquele

será cõprydo de todas as bomdades que em coraçam

de homem deva d‟aver e pasará de armas todos

aqueles que amte ele fora e serám; aquele será

aquele de quem ho amygo falou em Sarrat, quamdo

feryo Josefes com a lamça da vimgança, quamdo

disse que jamais as maravilhas do Greall nom

seryan descubertas senam a hu homem soo; aquele

será o noveno dos que decemderám de teu sobrynho

e será tall como te eu digo, mas ho gramde mylagre

e as gramdes vertudes que acomtecerám aly omde

ho seu corpo jazerá nom seram sabidas, porque

naquele tempo saram muy poucos que saybam

verdadeiros synaes de sua sepultura. Agora te faley

já de tua visan, ora te quero falar desta nao e porque

deytey por ela agoa, que esta naao foy do diabo, que

tu por ho synall da cruz deytaste e, por que foy sua,

nom podia ser que algũa vez ha ela nom viesse,

senom fosse lympa, e agora sé lympaa por a agoa e

por ho synal da cruz e por ho comjuramento da

Samta Trymdade asy que nenhu maao esprito nela

emtrará, que elles nenhua cousa, tamto temem como

ho synal [79] da cruz (he bemzia no nome do Padre

e do Filho e do Esprito Santo) e por esta bemçam

fica lympa de toda a sogidade [sujeira], e em quall

quer lugar que ysto com boa fé fycar ja o diabo nam

será ousado que hy vaa. Em tall maneyra faze e serás

seguro que, no lugar omde ho fizeres, o diabo nom

terá poder de fazer mall a teu corpo, nem tua alma

nom será perdida.

Emtam se calou ho samto homem e partio-se

dele e elrey ficou na náo, asy como ouvydes.

(Capítulo LXVI do códice n.º

643 existente no

Arquivo da Torre do Tombo, fols. 105 a fols. 110).

Texto

47

LAPA, Rodrigues (sel.). A morte de

Genevra. In: Crestomatia Arcaica. 4. ed.

Lisboa: Sá da Costa, 1976. 89p. p. 48-

52.

[48] A morte de Genevra15

Eu esta parte diz o conto que, pois a rala

Genevra entrou en orden con pavor dos filhos de

Morderet, ela foi sempre mui viçosa de todolos

viços16

do mundo; onde avẽo que, pois ouve de

sofrer as lazeiras17

da orden, que non avia eu

custurne, caeu logo en camanha enfermidade que

todos aqueles que a vian avian maior asperança en sa

morte ca en sa vida. E ela avia consigo hũa donzela

de gran guisa e que presera18

orden por amor dela.

Aquela donzela fora entendedor de Giflet, filho de

Dondinax. E porque a rala ouvira dizer que Giflet

tevera mais longamente companha a rei Artur ca

outro cavaleiro, amava tanto a companha desta

donzela que non podia mais. E confortavan-se antre

si e choravan muito [49] ameúde, quando lhis

lembrava os grandes viçose a grande alteza e grande

poder eu que foran, e ora eran en orden, con pavor

da morte.

A raöa, como quer que fosse eu orden, non

quedava19

de fazer 3 por Lauçalot e que non dissesse

algũa vez: — Ai, meu senhor Lançalor, don

Lançalot, e como vos esqueci, que amais nunca

15 p. 48, nota: É dos últimos capítulos da Demanda e, sem dúvida, um

dos mais belos e menos conhecidos. A rainha Genevra, mulher do rei

Artur, estava ligada a Lançarote do Lago, o melhor cavaleiro do mundo,

por um amor da carne e dos sentidos, pecaminoso, embora sublimado pelo ideal do amor cortês. No pequeno episódio da sua morte, numa

abadia em cuja austeridade amortecera os «viços» de mulher cortesã,

nem sequer falta o pormenor do ciúme, personificado naquela monja que amara também Lançarote e resolve vingar-se da feliz rival, fazendo-lhe

crer que o seu amigo morrera num naufrágio. Essa mentira cruel foi uma

punhalada no coração doente de Genevra, coração esse que ela manda, após sua morte, arrancar do peito e oferecer num elmo ao homem que

ela amara acima de tudo. 16 Prazeres. 17 Agruras. 18 Tomara. 19 Não deixava.

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cuidei que vós me leixássedes! Se vós catássedes20

a

vossa bondade e o vosso prez, e er21

o gran poder

que Deus vos deu, lembrar-vos-íades algũa vez de

min e vingaríades a morte de rei Artur e

conquistatíades o reino de Logres e alegraríades-mi

desta cuita eu que soõ e deste poder alheo eu que

soõ, eu que me meti con pavor de morte.

Esto dizia a raia de Lançalot, u jazia doente, e

a donzela a confortava muito quanto ela podia.

E dizia que non ouvesse pavor, ca ben

soubesse verdadeiramente que Lançalot non tardaria

muito que non veesse, que já ela ende22

ouvira

novas. E a raöa respondeu: — Sobejo me tarda, e sei

que eu sa tardança tenho morte.

Eu aquela abadia avia hfia monja que entrara

eu orden porque entendera eu Lançalot e uon na

quisera, e desamava a raia mui de coraçon, porque a

leixara Lançalot por amor da raöa. E pensou que,

pois ela non podia vingar sa sanha en Lançalot, que

a vingaria en a raöa. Uũ dia avẽo23

que disse esta

dona aa amiga de [50] Giflet, aquela que a raöa

guardava, e fez sembrante que non queria que a raöa

a ouvisse:

— Ai, donzela, maas novas vos trago! Don

Lançalot, que viöa con gran poder por conquerer o

reino de Logres, perdeu-se no mar con toda sa gente.

— Par Deus — disse a amiga de Giflet —

gran perda é essa. Mas como o sabedes vós se é ver-

dade?

— Eu o sei ben — disse ela — por aquel que

o viu.

A raöa, que jazia doente, quando ouviu estas

novas ouve tan gran pesar, que a poucas que non foi

sandia; pero encubriu-se ben, con pavor daquela que

as novas dizia. E, pois se partiu, disse a raöa con

gran pesar:

— Ai, mar amargoso e maldito, comprido de

amargura e de door, néicio, mao e desconhoçudo,

mal m‟ás morta, que vós à mais leal amador do

mundo tolhestes seu amor.

Pois disse esto, calou-se con tan gran pesar,

que non pôde mais comer nen bever; e jouve24

assi

três dias. Ao quarto dia veeron novas que Lançalot,

sen falha25

, aportara na Grã-Bretanha con tan gran

cavalaria e tan bõa, que non a omen no mundo que o

ousasse atender en campo.

A donzela que a raöa guardava foi mui leda

quando estas novas ouviu, e foi-se correndo aa raia e

disse-lhi:

— Senhora, muito vos trago bõas novas.

20 Se olhásseis para. 21 E também. 22 Disso. 23 Sucedeu. 24 Jazeu. 25 Sem dúvida.

[51] Sabede verdadeiramente que don

Lançalot é na Bretanha con tanta gente que, en

pouca sazon, a correrá toda.

A raöa, que preto estava de morta, quando

estas novas entendeu, respondeu a grande afã26

:

— Donzela, tarde mo dissestes e já me non

vai ren sa viöda, ca eu soõ preto de morta. Mas pero,

porque don Lançalot é o homen do mundo que eu

mais amo, rogo-vos que façades, polo meu amor e o

seu, o que vos quero rogar.

— E ela lhi prometeu lealmente que o faria a

todo seu poder.

— Pois ora vo-lo direi — disse a rala. — Eu

bem vejo que soõ morta e non ei crás a cheguar aa

manha; e ben vos digo que nunca foi27

leda tanto de

novas como destas. E de outra parte, pesa-me sobejo

que o non posso veer ante que moira; ca me

semelhalo que, se o visse, que mia alma seeria mais

leda. E porque eu quero que ele veja e saiba que de

sa vida mi praz e que moiro con pesar e que de

grado o queria veer, se podesse, porén eu vos rogo

que, tan toste28

que eu moira, que me tiredes o

coraçon e que lho ievedes en este elmo que foi seu; e

que lhi digades que, en renembrança de nossos

amores, lhe envio o meu coraçon, que nunca el o

esqueceu.

[52] Aquel dia mesmo, passou a rainha Genevra e a

donzela fez seu mandado; pero non achou Lançalot,

e por esto non acabou todo o que lhe mandara a

rainha.

48 - CRÔNICAS DE FERNÃO LOPES

[25] CAPITULO VII

Como o Primçipe de Galles emviou a elRei Dom

Hemrrique huuma carta, e das razoões comtheudas

em ella.

SABEMDO elRei Dom Hemrrique como

elRei Dom Pedro e o Primçipe de Galiez hiam

caminho do Gronho por passar o tio Debro, partio

domde estava e foisse pera Najara; e pos seu arreal

aaquem da villa, em guisa que o rio de Najara estava

o seu arreal, e o caminho per hu elRei Dom Pedro

avia d‟hir. ElRei Dom Pedro e o Primçipe com sas

gentes partirom do Gronho, e veherom pera

Navarrete; e dalli emviou o Primçipe a ElRei Dom

Hemrrique huum seu arauto com huuma carta, que

dizia assi. «Eduarte filho primogenito delRei «de

Imgraterra, Primçipe de Gallez, e de Guiana, e

duque de Cornoalha, e Comde de Cestre: Ao nobre e

26 Ansiedade. 27 Fui alegre. 28 Tão logo que.

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poderoso Primçipe Dom Hemrrique comde de

Trastamara: Sabee que nestes mas passados o muj

alto e muj poderoso Primçipe Dom «Pedro, Rei de

Castella e de Leom, nosso muj caro e muj amado

paremte, chegou aas partes de Guiana, omde nos

estavamos, e fez nos emtemder, que quamdo elRei

Dom Affonsso seu padre morreo, que todollos

poboos dos reinos de Castella e de Leom

paçificamente ho tomarom por seu Rei e senhor;

amtre os quaaes vos fostes huum dos que assi lhe

obedeçerom, e estevestes gram tempo em sua

obediemçia. E diz que depois desto, pode ora aver

huum ano, vos com gemtes estranhas emtrastes em

seu reino e lho teemdes ocupado per força,

chamamdovos Rei de Castelia, tomamdolhe seus

tesouros e remdas, dizemdo vos que o deffemderees

del, e [26] «daquelles que o ajudar quiserem; da qual

cousa fomos muj maravilhado, que huum tão nobre

homem como vos, e de mais filho de Rei, fezessees

cousa vergomçosa comtra vosso Rei e senhor. E o

dito Rei Dom Pedro emviou mostrar estas «cousas a

elRei de Imgraterra, meu senhor e padre, e lhe

reque«rio que pollo gram divedo de linhagem que

amtre as casas Dingraterra e de Castella ouverom em

huum, des i pollas ligas e amizades que com o dito

Rei meu senhor e comigo «tijnha feitas, o quisesse

ajudar a cobrar seu reino e senhorio. ElRei meu

senhor e padre veemdo que elRei Dom Pedro seu

paremte lhe emviava pedir cousa justa e razoada, a

que todo Rei deve dajudar, prouguelhe fazello assi, e

mandounos que «com todos seus vassalos e amigos

ho ouvessemos ajudar, segumdo a sua homrra

perteemçe; polla qual razom fomos aqui chegados, e

estamos em este logar de Navarrete, que he nos

termos de Castella. E porque se voomtade de Deos

fosse de se escusar tam gramde espargimento de

sangue de Christaãos, como he per força de i aver, se

a batalha se fezer, de que Deos sabe que a nos pesa

mujto: vos rogamos e requirimos da parte de Deos e

do martir Sam Jorge, que se vos praz que nos

seiamos boom medianeiro antre o dito Rei Dom

Pedro e vos, que nollo façaaes saber, e nos

trabalharemos como vos ajaaes em seus reinos, e em

sua boa graça emerçee tam gram parte, per que muj

abastadamente possaaes manteer vosso boom e

homrrado estado: e se alguumas outras cousas

emtemdees de livrar com elle, com a merçee de

Deos emtendemos de poer hi tal meo, como vos

seiaees de todo bem comtento. «E se vos disto nom

praz e querees que se livre per batalha, sabe Deos

que nos despraz e o muj to; pero nom podemos

«escusar de hir com elRei Dom Pedro nosso paremte

e antigo «per seu reino: e se nos alguuns quiserem

embargar o caminho, nos faremos mujto polio ajudar

com aajuda e graça de Deos. Scripta em Navarrete,

vila de Castella, primeiro dia dabril.»

[27] CAPITULO VIII

Da reposta que elRei Dom Hemrrique emviou ao

Primçipe per sua carta.

ELREI Dom Hemrrique veemdo esta carta

reçebeo bem o arauto, e deulhe panos douro e

dobras; e ouve comselho como respomderia ao

Primçipe, por que alguuns diziam que pois lhe nom

chamara Rei, que lhe escprevesse per outra maneira;

des i acordarom que lhe escprevessem cortesmente,

e foi a carta em esta forma. «Dom Hemrrique pela

graça de Deos Rei de Castella e de Leom: Ao muj

alto, e muj poderoso «Primçipe Dom Eduarte, filho

primogenito delRei de Ingra«terra, Primçipe de

Gallez, e de Guiana, e duque de Cornoalha, e comde

de Cestre: Reçebemos per huum arauto vossa carta,

na qual se contijnham mujtas razoões que vos forom

ditas por esse nosso aversairo que hi he; e nom nos

pareçe que fostes bem emformado, como assi seia

que nos tempos passados elle regeo estes reinos de

tal maneira, que todollos que o sabem e ouvem se

podem maravilhar de tanto tempo seer sofrido no

senhorio que teve. E todollos dos reinos de Castella

e de Leom, com gram dampno, e trabalho, e mortes,

e perigos, e mallezas «que seeriam Iomgas de

comtar, soportarom ataaqui seus feitos, «os quacs

nom poderam mais emcobrir nem sofrer; e Deos

«por sua merçee avemdo piedade de todollos destes

reinos, por tam gramde mal nom hir mais adeamte,

sem lhe fazemdo «nenhuum de sua terra, salvo

obediençia qual devia. E estamdo todos com ele em

Burgos pera o servir e ajudar a deffemder «seus

reinos, deu Deos semtemça comtra elle, e de sua

[28] voom|tade propia os desemparou e se foi; e

todollos de seu senhorio «ouverom muj gramde

prazer, teemdo que Deos emviara sobrelles a sua

misericordia, por os livrar de tam duro e tam

«perijgoso senhorio que tijnham: e todollos dos ditos

reinos, assi prellados come cavalleiros e fidallgos, e

çidadaãos de sua «voomtade veherom a nos, e nos

reçeberom por seu Rei e senhor: assi que

entemdemos per estas cousas sobreditas que esto foi

obra de Deos. E por tanto pois per voomtade de

Deos, e de todollos do reino nos foi dado, vos nom

teemdes «razom por que nos ajaaes destorvar; e se

batalha ouver de «seer, sabe Deos que nos despraz

dello, pero nom podemos escusar de poer nosso

corpo por defemder estes reinos, a que tam teudos

somos, aaquel que comtra elles quer seer; e por

emde vos rogamos e requirimos da parte de Deos, e

do apostollo Samtiago, que vos nom queiraaes

tremeter assi podero«samente de em nossos reinos

fazerdes dampno, ca fazemdoo, nom podemos

escusar de os deffemder. Scripta no nosso arreal

açerca de Najara, segumdo dia dabril». Mostrou o

Primçipe esta carta a elRei Dom Pedro, e disserom

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que estas razoões nom eram abastamtes pera se

escusar de nom poer logo a batalha; e pois todo era

na voomtade de Deos, que como sua merçee fosse,

que assi o livrasse.

[29] CAPITULO IX

Como se fez a batalha amtre os Reis ambos, e foi

vemçido elRei Dom Hemrrique.

JA ouvistes como elRei Dom Hemrrique

tijnha seu arreal posto per homde avia de vijnr elRei

Dom Pedro, de guisa que o rio de Najara estava

amtre huuns e os outros; e ouve estomçe seu

comselho de passar o rio, e poer a batalha em huurna

gramde praça, que he comtra Navarrete, per homde

os enimijgos aviam devijnr; e desto pesou a mujtos

dos seus, por que tijnham aa primeira seu arreal

posto com moor avamtagem, do que o depois

teverom: mas elRei Dom Hemrrique era homem de

gram coraçom e esforço, e disse que nom quina poer

batalha, salvo em na praça chaã sem avamtagem

nenhuma. E elRei Dom Pedro e o Primçipe com

todas suas companhas partirom de Navarrete sabado

pella manhaã, e poseromsse todos pee terra ante

huuma gram peça que chegassem aos delRei Dom

Hemrrique, hordenados em batalha, segumdo

avemos comtado. ElRei Dom Hemrrique isso

meesmo hordenou sua batalha na maneira que

dissemos; e ante que as batalhas jumtassem alguuns

genetes, e o pemdom de Santestevam com homeens

desse logar que estavom com elRei Dom

Hemrnique, passaromsse pera elRei Dom Pedro. Em

esto moverom as batalhas, e chegarom huuns aos

outros; e o comde Dom Samcho delRei Dom

Hemrrique, e Monsse Beltram, e todollos cavalleiros

que estavom com o pemdom da bamda, forom ferir

na avanguarda homde vijnha o Duque Dalancastro, e

o comdeestabre; e os da parte delRei Dom Pedro e

do Pnimçipe [30] tragiam todos cruzes vermelhas

em campo bramco, e os delRei Dom Hemrrique

levavam esse .dia bamdas: e assi de voomtade

juntarom huuns com os outros, que cahirom as

lamças a todos, e começarom de se ferir aas espadas,

e ochas, e porras, chamando os da parte delRei Dom

Pedro, Guiana Sam Jorge, e os delRei Dom

Hemrrique, Casteila Samtiago; e tam rijamente se

ferirom, que os da avamguarda do Primçipe se

começarom de retraer quamto seeria huuma passada,

e forom alguuns delles derribados, em guisa que os

delRei Dom Hemrrique cuidarom que vemciam, e

chegaromse mais a elles, e começaromsse outra vez

a ferir. Dom Tello irmaão delRei Dom Hemrrique,

que estava de cavallo da maão ezquerda da

avanguarda delRei Dom Hemrrique, nom movia

pera peileiar, que foi huum gramde aazo de se perder

a batalha, e por que lhe elRei. Dom Hemrrique

depois sempre quis mal; e os dalla dereita da avam-

guarda do Prinçipe aderemçarom comtra Dom Tello,

e ei e os que com ei estavom nom os ousarom

datemder, e moverom do campo a todo romper,

seguindoos os daquella alia que hiam a Dom Tello; e

veemdo que lhe nom podiam empeencer, tornarom

sobre as espaldas dos que que estavom de pee na

avamguarda delRei Dom Hemrrique, com o

pemdom da bamda que pdlleiavom com a

avamguarda do Primçipe, e ferimdoos pelas

espalidas começarom de matar delles; e isso meesmo

fez a outra alia da maão seestra da avanguarda do

Primçipe, depois que nom achou gentes de cavallo

que pelleiassem com elles: assi que alli era toda a

pressa da batalha, seemdo Dom Samcho e os outros

todos çercados de cada parte dos emmijgos; porem o

pemdom da bamda aimda nom era derribado. E

elRei Dom Hemrrique come ardido cavalleiro,

chegou per vezes em cima de seu.cavallo, armado de

loriga, alli hu era a pressa tam gramde, por acorrer

aos seus, teemdo que assi o fariam os outros que

estavom com ei de cayallo: e quando vio que os seus

nom pelleiavom, nom pode sofrer os emnújgos, e

ouve de volver costas e todollos de davallo que com

ei eram, e desta guisa se perdeo a batalha. E

afirmasse, se he verdade, que seemdo a batalha da

sua parte bem pelleiada/ era gram duvjda nom seer

elRei Dom Pedro desbaratado; e assi mal como ela

foi, se nom fora o gramde esforço e ardideza do

Primçipe e do duque Dalancastro, que eram

estremados homeens darmas, aimda o vemçimento

dela esteve em gramde avcmtuira; e forom mortos

[31] dos de pee que aguardavom o pemdom da

bamda, e antre cavalleitos e homeens darmas ataa

quatro çemtos, e presos outros znujtos, assi como

Dom Samcho, e Monsse Beltram, e o mariscal, e

Dom Filipe de Castro e outros, cujos nomes

Ieixamos por nom alomgar. E dos de cavallo forom

isso meesmo presos o comde de Denja, e o comde

Dom Affonsso, o comde Dom Pedro, e o meestre de

Callatrava e outros que dizer nom curamos: e forom

mortos no emcalço ataa villa de Najara mujtos

delRei Dom Hemrrique, ë matou elRei Dom Pedro

depois per sa maão, teemdo preso hum cavalleiro do

Primçipe Inhego Lopez de Orozco; e fez matar

Gomez Carrilho de Quinitina, camareiro moor

delRei Dom Hemrrique, e Sancho Sanchez de

Orozco, e Garçia Jofre Tenoiro, que forom presos na

batalha, e teveromno todos a mal; e foi esta batalha

vemçida sabado de Lazaro, seis dias dabril, da era de

Cesar de mil e quatro çemtos e çimquo annos.

A DEMANDA DO SANTO GRAAL

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MEGALE, Heitor (ed.). A Demanda do Santo Graal.

São Paulo: T. A. Queiroz, 1992. 538p.

[25]

I

Galaaz é armado cavaleiro

1. Véspera de Pentecostes, houve muita gente

reunida em Camalote, de tal modo que se pudera ver

muita gente, muitos cavaleiros e muitas mulheres de

muito bom parecer. O rei, que estava por isso muito

alegre, honrou-os muito e fez servi-los muito bem e

toda coisa que entendeu que tornaria aquela corte

mais satisfeita e mais alegre, tudo mandou fazer.

Aquele dia que vos digo, exatamente quando

queriam pôr as mesas, — isto era hora de noa —

aconteceu que uma donzela chegou muito formosa e

muito bem vestida; e entrou no paço a pé, como

mensageira. Ela começou a procurar de uma parte e

de outra pelo paço; e perguntaram-lhe o que

buscava.

— Busco, disse ela, dom Lancelote do Lago.

Está aqui?

— Sim, donzela, disse um cavaleiro. Vede-o:

está naquela janela falando com dom Galvão.

Ela foi logo para ele e saudou-o. Ele, assim

que a viu, recebeu-a muito bem e abraçou-a, porque

aquela era uma das donzelas que moravam na ilha da

Lediça a quem a filha Amida do rei Peles amava

mais que a donzela da sua companhia.

2. Como a donzela disse a Lancelote que fosse

com ela.

— Ai, donzela! disse Lancelote, que ventura

vos trouxe aqui? Que bem sei que sem razão não

viestes.

— Senhor, verdade é; mas rogo-vos, se vos

aprouver, que vades comigo àquela floresta de

Camalote; e sabei que amanhã, à hora de comer,

estareis aqui.

— Certamente, donzela, disse ele, muito me

agrada, pois tenho obrigação de vos servir em tudo

que puder.

Então pediu suas armas. E quando o rei viu

que se fazia armar com tanta pressa, dirigiu-se a ele

com a rainha e disse-lhe:

— Como? Deixar-nos quereis em tal festa,

quando cavaleiros de todo o mundo vêm à corte, e

muito mais ainda por vos verem que por outro

motivo: uns para vos verem, e outros por terem

vossa companhia?

— Senhor, disse ele, não vou senão a esta

floresta, com esta donzela que me pediu, mas

amanhã, à hora de terça, estarei aqui.

3. Como Lancelote se foi com a donzela.

Então saiu Lancelote do paço e montou seu cavalo, e

a donzela, seu palafrém, e haviam ido com a donzela

dois cavaleiros e duas donzelas. E quando ela voltou

a eles, disse-lhes:

[26] — Sabei que consegui aquilo por que

vim: dom Lancelote do Lago há de ir conosco.

Então puseram-se a andar e entraram na

floresta, e não andaram muito por ela que chegaram

à casa do ermitão que costumava falar com Galaaz.

E quando ele viu Lancelote ir e a donzela, logo

soube que ia para fazer Galaaz cavaleiro, e deixou

sua ermida para ir ao mosteiro das mulheres, porque

não queria que Galaaz fosse antes que ele o visse,

porque bem sabia que se ele partisse dali, não

voltaria, porque lhe conviria, assim que fosse

cavaleiro, entrar nas aventuras do reino de Logres. E

por isso lhe parecia que o havia perdido e que o não

veria amiúde e temia, pois tinha por ele muito

grande estima, porque era santa cousa e santa

criatura.

4. Como Lancelote chegou à abadia. Quando

chegaram à abadia, levaram Lancelote a uma câmara

e o desarmaram. E veio a ele a abadessa com quatro

mulheres, e trouxe consigo Galaaz, tão formosa

pessoa que maravilha era. E andava tão bem vestido

que não podia melhor. E a abadessa chorava muito

com prazer, assim que viu Lancelote, e disse-lhe:

— Senhor, por Deus, fazei nosso novo

cavaleiro, porque não queríamos que fosse cavaleiro

por mão de outro; porque melhor cavaleiro que vós

não o pode fazer cavaleiro; porque bem cremos que

ainda será tão bom, que vos achareis bem por isso, e

será vossa a honra de o fazerdes, e se ele vos isto

não pedisse, vo-lo deveríeis fazer, pois bem sabeis

que é vosso filho.

— Galaaz, disse Lancelote, quereis ser

cavaleiro?

E ele respondeu vivamente:

— Senhor, se vos aprouvesse, bem o queria

ser, porque não há cousa no mundo que eu tanto

deseje como a honra de cavalaria e ser cavaleiro da

vossa mão, porque de outro o não queria ser, que vos

ouço tanto louvar e prezar de cavalaria, que

ninguém, no meu entender, podia ser covarde e mau,

que vós fizésseis cavaleiro. E isto é uma das cousas

do mundo que me dá maior esperança de ser homem

bom e bom cavaleiro.

— Filho Galaaz, disse Lancelote,

estranhamente vos fez Deus formosa criatura. Por

Deus, se não cuidásseis ser bom homem ou bom

cavaleiro, assim Deus me aconselhe, sobejo seria

grande dano e grande desventura não serdes bom

cavaleiro, porque sobejo sois formoso.

E ele disse:

— Se me Deus fez formoso, dar-me-á

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bondade, se lhe aprouver, porque de outro modo

valeria pouco. E ele quererá que eu seja bom e coisa

que semelhe minha linhagem e aqueles de quem eu

[27] venho; e posta hei minha esperança em Nosso

Senhor; e por isso vos rogo que me façais cavaleiro.

E Lancelote respondeu:

— Filho, pois vos apraz, eu vos farei

cavaleiro. E Nosso Senhor, assim como a ele

aprouver e o poderá fazer, vos faça tão bom

cavaleiro como sois formoso.

E o ermitão respondeu a isto:

— Dom Lancelote, não tenhais dúvida de

Galaaz porque vos digo que em bondade de

cavalaria, os melhores cavaleiros do mundo passará.

E Lancelote respondeu:

— Deus o faça assim como eu queria.

Então começaram a chorar de prazer quantos

no lugar estavam.

5. Como Galaaz prometeu ao ermitão o que

lhe pedia. Aquela noite, ficou Lancelote ali e fez

Galaaz vigília na igreja. E o ermitão, que sobejo

amava Galaaz, velou toda aquela noite e não parou

de chorar porque viu que havia de separar-se dele.

Quando veio a manhã, disse a Galaaz:

— Filho, coisa santa e honrada, flor e louvor

de toda a mocidade, outorga-me, se te apraz, que te

faça companhia por toda a minha vida enquanto te

puder seguir, desde que partires da corte de rei

Artur, porque bem sei que não demorarás lá mais

que um dia, porque a demanda do santo Graal

começará, assim que lá chegares. E eu te peço tua

companhia, assim como tu ouves que conheço tua

santa vida e tua bondade, mais que tu mesmo. E não

conheço no mundo coisa que tanto pudesse

confortar-me, de hoje em diante, como ver tão santo

cavaleiro como tu serás e ver as maravilhas como tu

verás e a que darás cabo. Porque Deus que te fez

nascer em tal pecado como sabes, para mostrar seu

grande poder e sua virtude, te outorgou, por sua

piedade e pela vida boa que começaste desde a

infância até aqui, poder e força e bondade de armas e

bravura sobre todos os cavaleiros que, em qualquer

época, trouxeram armas no reino de Logres; assim

darás cabo a todas as outras maravilhas e aventuras

em que todos os outros falharam e falharão. E por

isso quero todos os teus feitos saber, a que darás

cabo tu, que foste feito em tal pecado, e a que os

outros não puderam chegar que foram feitos em leal

casamento. Eu te quero fazer companhia, porque sei

que em nosso tempo nunca fez tão formosos

milagres Nosso Senhor, nem tão conhecidos, como

fará por ti. Isto quero eu melhor saber, por ver as

grandes aventuras e milagres que Deus por ti fará. E

porei por escrito todas as maravilhas que Deus

mostrará por teu amor nesta demanda. Filho,

outorga-me o que te peço. Que Deus te faça homem

bom.

[28] 6. Como Lancelote fez Galaaz cavaleiro.

Aquele dia, hora de prima, rezada a missa, fez

Lancelote cavaleiro seu filho Galaaz, assim como

era costume. E sabei que quantos lá estavam

agradavam-se de sua aparência; e não era maravilha,

porque naquele tempo não se podia achar em todo o

reino de Logres donzel tão formoso e tão bem feito;

porque em tudo era tal que não se podia achar nada

em que o censurasse, exceto que era meigo demais

em seu modo de ser. E sabei que, quando Lancelote

o fez cavaleiro, não pôde conter-se de chorar, porque

sabia que em toda parte era de grande prestígio que

não podia maior ser; e via tão pobre festa e tão

pequena alegria em sua cavalaria; nem ele podia

jamais cogitar que pudesse chegar a tal grandeza

como depois chegou. O corpo tinha bem feito e o

modo de ser era meigo.

7. Como Lancelote viu Boorz e Leonel que

vieram atrás dele. Depois que Lancelote fez quanto a

cavaleiro convinha, disse:

— Filho Galaaz, agora sois cavaleiro. Deus

mande que seja a cavalaria tão bem empregada em

vós, como em nossa linhagem. Agora dizei: ireis à

corte do rei Artur para onde muitos homens bons de

todas as partes do mundo vêm e onde todos os

cavaleiros do reino de Logres estão reunidos nesta

festa de hoje?

E ele disse:

— Senhor, irei, mas não convosco; outrem me

guiará até lá.

— E quando? disse Lancelote.

E outros cavaleiros que com ele andavam

disseram:

— Senhor, pois já cavaleiro é, irá mais cedo à

corte do que vós cuidais, porque estará lá muito

cedo.

— Pois encomendo-vos a Deus, disse

Lancelote, porque quero ir à corte, pois à hora de

terça, hei de lá estar.

Então tomou suas armas e cavalgou; e,

quando queria sair do mosteiro, viu, na frente de

uma câmara, Boorz e Leonel armados, que também

queriam cavalgar; e assim que eles o viram,

dirigiram-se para ele e ele lhes disse:

— Que ventura vos trouxe aqui? Cuidava que

estivésseis na corte.

— Senhor, disseram eles, viemos por pavor de

vossa morte, porque não partiríeis senão por alguma

aflição muito grande. Por isso viemos atrás de vós

até aqui e nos ocultamos o melhor que pudemos.

Quando soubemos que queríeis voltar à corte,

armamo-nos para voltar convosco, e não por outra

razão.

— Então cavalgai e vamo-nos, disse ele.

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[29] Então cavalgaram e, indo pelo caminho,

perguntou Boorz:

— Senhor, quem é este cavaleiro que ora

fizestes?

— Logo o sabereis, disse Lancelote. Deixai

por isso agora a pergunta.

Também disse Leonel:

— Quem quer que seja, é o mais formoso que

alguma vez vi na sua idade e, se for tão bom

cavaleiro como é formoso, muito bem lhe fará Nosso

Senhor.

II

Na corte do rei Artur

8. Como Lancelote e Boorz e Leonel

chegaram à corte. Assim falando, chegaram a

Camalote, e sabei que quantos na corte estavam

ficaram com isso muito alegres, porque muito seria a

festa menor e mais pobre, se eles nela não

estivessem. O rei foi então ouvir missa na Sé em

companhia de tantos cavaleiros que ficaríeis

maravilhado de os ver. E ele trajava tão rica

vestimenta que maravilha era. E com a rainha iam

tantas donas e donzelas, que era grande maravilha. E

ela e eles ouviram missa e foram para o paço. E

aconteceu, entrementes, que, procurando os assentos

da távola redonda, acharam: “Aqui deve ser fulano e

aqui fulano.” E quando chegaram ao assento

perigoso, encontraram letreiro recentemente escrito

que dizia: “A quatrocentos e cinqüenta e três anos

cumpridos da morte de Jesus Cristo, em dia de

Pentecostes, deve haver este assento senhor.”

— Por Deus, disse Lancelote, quando esta

maravilha ouviu: pois hoje deve haver senhor,

porque da morte de Jesus Cristo a este Pentecostes

há quatrocentos e cinqüenta e três anos. E bem

quereria, se pudesse, que este letreiro ninguém visse,

até que viesse aquele que o há de acabar.

E eles disseram:

— Nós guardaremos bem.

Então cobriram o assento com um pano de

seda vermelha, assim como os outros estavam

cobertos.

Quando o rei veio da igreja, a rainha foi para a

câmara com todas as suas donzelas e companhia. E o

rei perguntou se era hora de comer.

— Senhor, disse Quéia, já tempo é de comer,

pois já está perto de meio dia; mas se vosso costume,

que mantivestes até aqui em todas as grandes festas,

quereis manter, não me parece que comer [30]

possais, porque em tão grande festa como esta não

aconteceu ainda aventura nenhuma; e enquanto

aventura não vos acontecesse, não costumáveis

comer em nenhuma grande festa.

— Verdade é, disse o rei; este meu costume

mantive sempre desde que fui rei e manterei

enquanto viver. E pelas grandes aventuras que na

minha corte acontecem, chamam-me rei aventuroso;

e por isso manterei as aventuras, porque, a partir da

época em que deixarem de acontecer, bem sei que a

Nosso Senhor não agradará que muito eu reine daí

em diante. Mas assim como as aventuras

costumavam acontecer nas festas grandes, nesta sei

bem que no dia de hoje não faltarão, antes

acontecerão as maiores e as mais maravilhosas que

nunca aconteceram, pois adivinha meu coração isto.

Não me incomodo de esperarmos um pouco, pois

bem sei verdadeiramente que nossa festa não será

hoje sem aventura, mas tive tão grande prazer com a

vinda de Lancelote e de seus coirmãos, que me

esquecia o costume.

9. Como o cavaleiro caiu da janela bradando.

Enquanto o rei isto dizia, dom Lancelote e muitos

outros cavaleiros olhavam para umas janelas que

davam para um regato e viram lá estar um cavaleiro

que era natural de Irlanda, muito fidalgo e bom

cavaleiro de armas, de muito grande fama e muito

bem vestido. E estava pensando tanto, que ninguém

o podia acordar de seu pensar, de modo que não

prestava atenção à festa nem à corte. E quando

estava assim pensando, deu um grito:

— Ai! desgraçado de mim, estou morto!

E deixou-se cair da janela e quebrou-lhe o

pescoço. E os cavaleiros que lá estavam foram até

ele para ver o que era e acharam que lhe saía pela

boca e pelas narinas chama de fogo tão forte como

se fosse de um forno aceso, e tinha em suas mãos

uma carta que lhe escapou. Os cavaleiros pegaram a

carta, e o rei chegou lá com seus cavaleiros para ver

aquela maravilha. E porque era companheiro da

távola redonda, quando o rei viu que estava morto,

mandou que o levassem fora do paço, porque não

quis que sua corte fosse perturbada com ele. E então

o levaram para fora com muito grande dificuldade,

porque queimava tanto que toda a roupa tinha virado

cinza, e não se podia a ele chegar ninguém que não

se queimasse, e, posto ele fora do paço, novamente

começaram sua alegria como antes e muito tinham

grande pesar todos do cavaleiro, porque era muito

estimado. Ao rei, muito pesava, mas não o ousava

mostrar para não ficar a corte mais triste. E depois

que soube que estava na igreja, disse:

[31] — Cavaleiros, agora podeis comer,

porque já por aventura maravilhosa não deixareis de

comer, pois me parece muito estranha esta aventura.

10. Como o escudeiro disse ao rei as novas da

pedra. E eles disto falando, eis que vem um

escudeiro que disse ao rei:

— Senhor, eu vos trago as mais maravilhosas

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novas de que ouvistes falar.

— E que novas são? disse o rei, dizei-no-las.

— Neste vosso paço, aportou agora uma pedra

de mármore, na qual está metida uma espada, e

sobre esta pedra, no ar, está uma bainha. E eu vos

digo que vi a pedra nadar sobre a água, como se

fosse madeira.

E o rei, que o teve por chufa, disse-lhe se

podia ver esta pedra. Então disse o escudeiro:

— Já estão lá muitos cavaleiros da vossa

companhia para ver aquela maravilha.

E o rei, assim que isto ouviu, foi logo para lá

com sua companhia de homens bons. E Lancelote,

apenas soube o que era, logo foi para lá atrás deles; e

Heitor e Persival, que já haviam visto, queriam ver,

entre tão grande companhia como lá estava reunida,

se haveria alguém que desse cabo agora daquela

aventura.

Quando o rei chegou à ribeira e viu a pedra e

a espada que nela estava metida, pelo encantamento

de Merlim, assim como o conto já referiu, e uma

bainha que estava perto dela no meio do ar, e o

letreiro que Merlim fizera, ficou todo espantado.

— E, amigos, disse ele, novas vos direi. Ora,

sabei que por esta espada será conhecido o melhor

cavaleiro do mundo, porque esta é a prova pela qual

se há de saber; e nenhum, se não for o melhor

cavaleiro do mundo, poderá sacar a espada desta

pedra.

11. Como o rei disse a Lancelote que tirasse a

espada da pedra e Lancelote ndo quis. Quando os

cavaleiros ouviram isto, afastaram-se quase todos os

que queriam tentar sacá-la. E o rei disse a Lancelote:

— Dom Lancelote, tirai esta espada, porque

ela é vossa, por testemunho de quantos aqui estão

que vos têm pelo melhor cavaleiro do mundo.

E quando isto ouviu, ficou muito

envergonhado e respondeu:

— Senhor, estes me tem pelo melhor

cavaleiro do mundo; certamente, não sou eu que esta

espada devo ter, porque muito melhor cavaleiro do

que eu a terá e pesa-me que não sou tão bom como

vós o cuidais.

[32] Disto que Lancelote disse, tiveram

muitos pesar, e mais os da linhagem de rei Bam, que

o tinham pelo melhor cavaleiro do mundo. O rei, que

percebeu que havia algum pesar, disse:

— Provar vos convém. Porque assim não sois

pois culpado se, porventura, fracassardes.

— Senhor, disse ele, apesar de vossa graça,

não me chegarei aí, porque, assim Deus me valha,

não valho eu tanto que deva pôr a mão em arma de

tal homem como aquele será que esta espada há de

trazer.

12. Como Galvão provou a espada por ordem

do rei. Então disse o rei a Galvão:

— Sobrinho, pois Lancelote receou a espada,

provai-a vós e veremos o que acontecerá.

— Eu, senhor, disse ele, prová-la-ei para

cumprir vossa ordem, mas sei que nada é que eu

possa conseguir, porque bem sabeis vós e quantos

aqui estão que, quando dom Lancelote deixa alguma

coisa por míngua de cavalaria, eu nada nisto

conseguirei, pois ele é muito melhor cavaleiro do

que eu.

— E ainda assim, disse o rei, prová-la-eis,

porque assim me apraz.

Então aproximou-se Galvão e pegou a espada

pelo punho e puxou-a o mais que pôde, mas nunca

tanto que a pudesse sacar da pedra, e deixou-a então

e disse ao rei:

— Senhor, agora podeis buscar quem a prove,

porque eu não porei mais a mão, pois bem vejo que

Deus não ma quer outorgar.

— Dom Galvão, disse Lancelote, o rei fez seu

prazer, pois que vo-la mandou provar, mas nesta

aventura não deveis entrar, porque não pode

demorar muito que não hajais mal por isso, pois

recebereis o maior golpe ou ferimento pelo qual

tereis pavor da morte ou morrereis.

— Amigo, disse ele, não pude mais, porque se

aqui cuidasse morrer, não deixaria de cumprir a

ordem do rei.

— Pois feito está, disse o rei, não é culpa,

apenas míngua.

E então perguntou a todos os outros:

— Amigos, há aqui alguém que queira provar

esta espada?

E calaram-se todos. E quando o rei viu que

não faziam mais questão, disse:

— Agora vamos almoçar, porque já é hora, e

Deus nos dê quem a esta aventura dê cabo, pois

certamente muito me agradaria que chegasse logo.

[33] 13. Como os clérigos acharam letreiros

em dois assentos. Depois disto, chegaram ao paço e

mandaram pôr as mesas. E os clérigos, que se

esforçavam por cuidar dos assentos da távola

redonda, o que haviam de fazer, andaram de uma

parte e da outra. E acharam então que em dois

assentos não havia letreiro como antes, senão outro

recente. Num assento estava escrito o nome de Erec,

e era o assento daquele cavaleiro que fora morto

como o conto já referiu. E o outro tinha sido de um

cavaleiro da Escócia que tinha nome Dragão, a quem

Tristão matara naquela semana diante da Joiosa

Guarda, porque aquele Dragão pedira amor à rainha

Isolda. Mas isto não relata agora a estória do santo

Graal, porque não toca a seu livro, mas a grande

estória de dom Tristão o conta no seu livro.

14. Como Erec e Elaim tiveram os assentos.

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Quando os clérigos viram os assentos guarnecidos

de novos nomes, souberam logo que aqueles a quem

haviam pertencido tinham morrido e entenderam que

a Deus agradaria que outros entrassem no lugar

deles. E acharam nos assentos outros nomes, de Erec

e de Elaim, o branco. Então foram até o rei e

disseram-lhe o que haviam achado. E o rei

agradeceu muito a Nosso Senhor que tanto lhes dava

conselho na realização do santo Graal e da távola

redonda. E com Erec e Elaim também ficaram todos

muito felizes. Mas bem sabei que de Elaim, o

branco, tiveram todos os da linhagem de rei Bam

muito grande prazer, porque Elaim era filho de

Boorz de Gaunes e fizera-o naquele dia cavaleiro o

rei Artur.

Rei Artur, que muito amava Erec e o prezava

de cavalaria pela fama que dele ouvira, que não

prezava tanto nenhum cavaleiro da sua idade,

quando viu que esta honra lhe viera, disse feliz e

com muito prazer:

— Erec, meu amigo, filho do rei Lac, que

nesta corte de sua idade não se devia mais prezar

mancebo de cavalaria, vinde a mim e vos

conduziremos à grandeza que Nosso Senhor vos

deu, que a outrem não.

Então foi buscá-lo à câmara da rainha, onde

estava falando com as donzelas. E depois, tomou-o o

rei pela mão e conduziu-o ao assento da távola

redonda no qual seu nome estava escrito e disse-lhe,

ao assentar-se:

— Erec, Deus vos faça de hoje em diante tão

bom cavaleiro

como fostes até aqui.

Depois dirigiu-se a Elaim, o branco, e disse-

lhe:

— Filho, muito sois formoso, mas Deus, por

sua bondade, vos faça semelhar em cavalaria à vossa

linhagem de rei Bam.

[34] Quando viram que assim ganhara ele o

assento da távola redonda por bondade de Nosso

Senhor, ficaram muito felizes à maravilha. E disse

Lancelote:

— Elaim ainda sairá a grandes feitos.

E saibam todos que este conto ouvirem que

aquele Elaim, o branco, foi filho de Boorz de

Gaunes e o fez numa filha do rei da Grã-Bretanha.

Mas antes que isto acontecesse, prometera Boorz a

Nosso Senhor lhe guardar sua virgindade. Mas tão

logo ela o viu, gostou dele desde então e amou-o; e

depois enganou-o por encantamento, e dormiu com

ela e fez ali aquela noite aquele que foi depois

imperador de Constantinopla. E se Boorz quebrou

aquilo que prometeu, não foi por sua vontade, mas

pelo encantamento que lhe a donzela fez; e depois

corrigiu aquilo que fez, pois todos os dias de sua

vida manteve castidade.

III

O assento perigoso

Galaaz acaba a aventura da pedra

Torneio em Camalote

15. Como os que procuravam os assentos os

acharam. Aquele dia que vos digo, que Erec e Elaim

foram postos nos assentos da távola redonda,

mandou o rei pôr as mesas, porque já era tempo de

comerem. E o rei foi sentar em seu alto assento. E

depois os companheiros da távola redonda foram

sentar cada um em seu lugar. E os outros, que não

eram de tão grande fama, sentaram cada um onde

devia.

Aquela hora, antes que lhes dessem de comer,

mandou o rei contar quantos companheiros da távola

redonda tinham vindo àquela festa e os que ainda

faltavam. E os que os contaram acharam todos os

cento e cinqüenta assentos ocupados, menos dois, e

disseram-no ao rei. O rei estendeu as mãos ao céu e

disse: “Jesus Cristo, Pai e Senhor de todas as coisas,

bendito sejas tu que me deixaste tanto viver que

visse cheia a távola redonda, que não faltassem

senão dois.”

Então disse àqueles que os assentos haviam de

olhar:

— Quais são esses dois que faltam?

— Senhor, disseram eles, Tristão e o assento

perigoso que não está ocupado.

— Não vos pese, disse o rei, que logo estará

ocupado, porque por outra razão não fiz vir tanta

gente à minha corte, senão para [35] verem as

maravilhas que acontecerão a esta mesa, porque hoje

será a minha corte chamada para sempre corte

aventurosa.

16. Como Galaaz entrou no paço e acabou o

assento perigoso. Eles nisto falando, olharam e

viram que todas as portas do paço se fecharam e

todas as janelas, mas não escureceu por isso o paço,

porque entrou um tal raio de sol, que por toda a casa

se estendeu. E aconteceu então uma grande

maravilha, não houve quem no paço não perdesse a

fala; e olhavam-se uns aos outros e nada podiam

dizer, e não houve alguém tão ousado, que disso não

ficasse espantado; mas não houve quem saísse do

assento, enquanto isto durou. Aconteceu que entrou

Galaaz armado de loriga e brafoneiras e de elmo e

de duas divisas de veludo vermelho; e, depós ele,

chegou o ermitão, que lhe rogara que o deixasse

andar com ele, e trazia um manto e uma garnacha de

veludo vermelho em seu braço.

Mas tanto vos digo que não houve no paço

quem pudesse entender por onde Galaaz entrara, que

em sua vinda não abriram porta nem janela. Mas do

ermitão não vos digo, porque o viram entrar pela

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porta grande. E Galaaz, assim que chegou ao meio

do paço, disse de modo que todos ouviram:

— A paz esteja convosco.

E o homem bom pôs as vestes que trazia sobre

um tapete, e foi ao rei Artur e disse-lhe:

— Rei Artur, eu te trago o cavaleiro desejado,

aquele que vem da alta linhagem do rei Davi e de

José de Arimatéia, pelo qual as maravilhas desta

terra e das outras terão fim.

E com isto que o homem bom disse, ficou o

rei muito alegre. E disse:

— Se isto é verdade, sede bem-vindo. E bem

seja vindo o cavaleiro, porque este é o que há de dar

cabo ãs aventuras do santo Graal. Nunca foi feita

nesta corte tanta honra como lhe nós faremos; e

quem quer que ele seja, eu quereria que lhe fosse

muito bem, pois de tão alta linhagem vem como

dizeis.

— Senhor, disse o ermitão, cedo o vereis em

bom começo. Então fê-lo vestir os panos que trazia e

foi assentá-lo no assento perigoso. E disse:

— Filho, agora vejo o que muito desejei,

quando vejo o assento perigoso ocupado.

E quando viram Galaaz no assento, logo todos

os cavaleiros tiveram poder de falar, e bradaram

todos a uma voz:

— Dom Galaaz, sede o bem-vindo, pois já seu

nome sabiam, porque o ermitão o nomeara já ali.

[37] 17. O cavaleiro de quem Merlim e todos

osprofetasfalaram. O rei, assim que viu no assento

perigoso o cavaleiro de quem Merlim e todos os

profetas falaram na Grã-Bretanha, então bem soube

que aquele era o cavaleiro por quem seriam

acabadas as aventuras do reino de Logres, e ficou

com ele tão alegre e tão feliz, que bendisse a Deus:

— Deus, bendito sejas tu que te aprouve de

tanto viver eu que, em minha casa, visse aquele de

quem todos os profetas desta terra e das outras

profetizaram, tão longo tempo há já. Agora falta,

disse ele, da távola redonda, dom Tristão, e nenhum

outro. Mas maldita seja a beleza de Isolda, porque o

assim temos perdido, porque se ela não fosse, não

deixaria ele, de modo algum, de vir a esta festa tão

grande.

18. Como um donzel deu novas à rainha de

Galaaz. Assim falava o rei de Tristão, com muito

grande pesar de que não vinha à corte; mas os outros

não tinham disso pesar, antes estavam muito alegres,

porque o assento perigoso estava acabado, e

honravam e serviam Galaaz quanto podiam, que não

podiam mais, porque bem sabiam que este havia de

dar cabo às maravilhosas aventuras do reino de

Logres; mas sobre todos estava Lancelote mais

alegre, porque bem via que, se Galaaz vivesse,

passaria em bondade e em cavalaria todos os do

reino de Logres. Estas novas foram de uma parte e

da outra, de modo que chegaram à rainha, porque

um donzel lhe disse:

— Senhora, maravilha grande aconteceu

agora no paço.

— E que maravilhas são? disse a rainha,

dizei-no-las.

— Senhora, disse ele, o assento perigoso está

ocupado. Um cavaleiro senta nele.

— Sim? disse ela. Por Deus, formosa aventura

Deus deu. Porque de muitos que já sentaram, nunca

um houve que não morresse. E de que idade pode

ser? disse a rainha.

— Senhora, disse ele, de dezoito anos.

E ela maravilhou-se das maravilhas que a

respeito ouviu; depois disse:

— Maravilha pode daí advir e nada eu nunca

soube. E sabes de qual linhagem é?

E o donzel disse que não, apenas que dizem

todos que parece ser da linhagem de rei Bam, mais

que de outra. E ela começou a pensar e logo cuidou

em seu coração que era filho de Lancelote, porque

lhe dissera Heitor que era já Galaaz moço feito e

logo seria cavaleiro; e disse a rainha ao cavaleiro:

— Donzel, sabes como tem nome?

— Senhora, disse ele, tem nome Galaaz.

[37] E ela, quando ouviu o nome, logo soube

com certeza que era filho de Lancelote, porque

tempo havia que ela sabia como tinha nome. Então

disse para as mulheres que com ela estavam:

— Estai certas, se ele é o bom cavaleiro, não

me maravilho muito, porque de todas as partes vêm

bons cavaleiros, que não pode errar que não seja

melhor do que outro cavaleiro.

— Senhora, disseram elas, quem é bom sobre

todos?

— Vós o sabereis, disse ela, mas não por

mim.

19. Como Galaaz acabou a aventura da pedra.

Aquele dia foi grande a alegria entre eles. E o rei

mandou que lhes dessem de comer. Tão logo

comeram, perguntou o rei a quantos estavam no

paço:

— Que vos parece do que nos aconteceu?

Porque a mim tal hora foi, antes que chegasse

Galaaz, que não pude falar.

E todos disseram que bem assim acontecera a

eles.

— Por Deus! disse o rei, grande maravilha foi

esta. E podeis entender por que foi?

— Não, disseram eles.

— Por Deus, disse ele, muito me pesa.

Grande foi a alegria e o prazer que todos

tiveram. E o rei se ergueu da mesa e foi à mesa onde

sentava Galaaz, e viu lá seu nome escrito, e ficou

muito alegre e disse a Galvão:

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— Sobrinho, agora podeis ver Galaa.z, o

muito bom cavaleiro sobejo, que tanto esperamos e

tanto desejamos ver.

E os da távola redonda falavam mais amiúde

do que todos os outros. E diziam:

— Pois no-lo Deus trouxe, sirvamo-lo e

honremo-lo enquanto estiver entre nós, porque não

viverá muito conosco por causa da demanda do

santo Graal que começará logo.

— Assim Deus me ajude, disse Galvão, bem o

devemos servir, porque Deus no-lo enviou por nos

livrar a terra das grandes maravilhas e das estranhas

aventuras que tão amiúde acontecem e desde tão

longo tempo.

Então veio o rei a Galaaz e disse-lhe:

— Senhor, sede bem-vindo, porque muito

tempo há que vos desejei ver; e graças a Deus e a

vós, quisestes aqui vir.

— Senhor, disse ele, vim aqui, porque me

convinha, porque daqui hão de partir agora todos

aqueles que à demanda do santo Graal queiram ir e

bem sei que logo será começada.

— Senhor, disse o rei, vossa vinda nos é mui

mister por muitas aventuras maravilhosas a que não

podemos dar cabo. E vo-lo digo por uma que nos

hoje aconteceu; ide-a ver, se vos aprouver.

[38] E Galaaz disse que iria de muito bom

grado. Então o pegou o rei pela mão e levou-o à

margem do rio, onde a pedra estava.

E os do paço foram todos com ele, para verem

o que poderia ser.

E quando a rainha viu que o rei levava Galaaz

pela mão à pedra, saiu ela com grande companhia de

donas e donzelas. E o rei disse a Galaaz:

— Quereis sacar esta espada desta pedra? Pois

a não quer ninguém provar de quantos aqui estão,

porque dizem que a aventura não é deles. Provai-a,

se vos aprouver, porque se o não provais, não

acharemos cavaleiro que o prove.

Então pegou Galaaz a espada pelo punho e

puxou-a tão facilmente, como se não estivesse presa

a nada. E depois, pegou a bainha e meteu-a dentro e

cingiu-a logo, e disse ao rei:

— Senhor, agora tenho já a espada, mas o

escudo não tenho.

— Amigo, disse o rei, pois Deus e a ventura

vos a espada deu, não tardará muito o escudo.

20. Como a donzela disse as novas ao rei. Eles

nisto falando, viram vir pela ribeira uma donzela

sobre um palafrém branco; e quando chegou a eles,

perguntou se estava aí Lancelote. Ele estava diante

dela e disse-lhe:

— Donzela, que vos apraz?

Disse ela:

— Eu te trago as mais maravilhosas novas que

viste, tempo há, e não de teu prazer, mas de teu

pesar; e sabe que tens teu nome desonrado desde

hoje de manhã, porque quem ontem te chamava,

porque eras, o melhor cavaleiro do mundo, te dizia a

verdade; mas agora não é assim. E isto podes bem

ver por prova desta espada, porque vês que melhor

cavaleiro que tu a ganhou.

— Donzela, disse ele, vós não me dizeis nada

que eu por verdade não soubesse, tempo há, porque

já outra vez vi esta espada e não ousei prová-la.

E então tornou a donzela ao rei e disse-lhe

assim:

— Rei Artur, manda-te dizer o ermitão que,

neste dia de hoje, te acontecerá a maior maravilha e

honra que te nunca aconteceu. E não virá por ti, mas

por outrem.

E assim que isto disse, volveu a rédea ao

palafrém e voltou. E muitos houve que quiseram

mais saber dela, mas não quis ficar por rogo de

ninguém, nem dizer mais de seus feitos.

21. Como rei Artur fez armar o torneio no

campo de Camalote. Então disse o rei aos que

estavam perto dele:

[39] — Amigos, assim é que a demanda do

santo Graal é sinal verdadeiro de que ireis daqui

logo; e porque sei verdadeiramente que jamais vos

verei reunidos em minha casa, como agora vejo,

quero que naquele campo de Camalote seja agora

começado um torneio tal que, depois de minha

morte, seja contado e no qual hajam que referir

nossos heróis.

E concordaram com isso todos. E voltaram à

cidade e pediram suas armas e armaram-se e

voltaram ao campo. E o rei não fizera isto, senão

para ver alguma coisa da cavalaria de Galaaz, por-

que bem sabia que não estaria muito em Camalote.

22. Como Galaaz justava, e como o rei partiu

para aquele torneio. Aquele dia, rogou Lancelote a

seu filho Galaaz que trouxesse armas naquele

torneio com divisas da linhagem de rei Bam. E ele o

fez de muito bom grado, porque não há nada que ele

receasse, que lhe seu pai mandasse; mas não quis

trazer escudo. Depois que foram reunidos no campo

de Camalote, começaram a se ferir com lanças, de

modo que muitos veríeis cair, e muitos havia que o

faziam muito bem. E Galaaz, que entrou no campo,

começou as lanças a quebrar e a derrubar cavaleiros,

e a fazer tantas maravilhas, que todos diziam que

nunca viram tão bom cavaleiro de justa. Porque, sem

falha, nunca ele alcançava cavaleiro hábil, por mais

valente que fosse, que o não metesse em terra; e fez

disso tanto, que todos aqueles que o viram, disseram

que nunca tão altamente começara cavaleiro a

derribar cavaleiros. E bem aparecia no que naquele

dia fizera, porque, de todos. aqueles que eram

companheiros da távola redonda, não ficaram senão

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poucos que ele não derribasse.

Este torneio desta justa durou até hora de

vésperas. Então mandou o rei que parassem, porque

se temia acontecer alguma desavença. E disse-lhes

que se fossem desarmar, e fez tirar o elmo a Galaaz

e deu-o a Boorz de Gaunes, que o segurasse, porque

aquele era em quem tinha confiança muito grande,

que sempre fora em sua honra e em sua ajuda.

IV

Tristão

A Graça do santo Graal

A demanda

23. Como o rei e os cavaleiros viram vir

Tristdo. Ainda o preito não estava acabado nem

decidido, quando viram vir um cavaleiro pelo fundo

da ribeira, sobre um cavalo tão bom, que poucos

[40] ha|via no campo melhores; e vinha tão depressa,

como se todos os diabos do inferno viessem depós

ele. E não trazia todas as armas, apenas a espada e o

escudo. E o rei olhou o escudo e mostrou-o a

Lancelote, que perto dele estava, e disse-lhe:

— Agora estou alegre e tenho muito gosto,

porque vejo aqui vir Tristão, o sobrinho de rei Mars

de Cornualha, porque bem conheço aquele escudo

que não vi desde que me fez muito pesar.

E Lancelote começou a ferir o cavalo com as

esporas e foi em direção dele, e disse-lhe, de tão

longe como pôde entender que o poderia ouvir:

— Dom Tristão, sede bem-vindo.

E Tristão, que o reconheceu, saudou-o e

abraçou-o. E depois perguntou:

— Amigo Lancelote, ë verdade que veio

Galaaz, o mui bom cavaleiro, à corte, aquele que há

de acabar o assento perigoso e há de dar fim às

aventuras do reino de Logres?

— Com certeza, amigo, disse Lancelote, ele

veio à corte e acabou o assento perigoso e deu cabo

da aventura de uma espada, em que nenhum

cavaleiro da távola redonda ousou pôr a mão. Mas

como soubestes que ele, no dia de hoje, aqui havia

de estar?

— Isto vos direi eu, disse ele, mas em outra

oportunidade, não agora.

Enquanto isto, eis que o rei saiu em direção a

ele, porque muito estava alegre com sua vinda, e

disse-lhe:

— Dom Tristão, sede bem-vindo.

E Tristão saudou-o muito educadamente. E o

rei disse-lhe:

— Dom Tristão, estou muito alegre com vossa

vinda, porque não faltava nenhum dos companheiros

da távola redonda, senão vós.

24. Como o reifalava com Tristão e da alegria

dos cavaleiros. Quando os cavaleiros viram que

aquele era Tristão com quem o rei falava, foram para

lá muito alegres e com grande prazer da sua vinda,

porque muito prezavam sua cavalaria e sua cortesia.

E assim que viram o escudo, disseram entre si:

— Enganados fomos noutro dia, porque este

era o cavaleiro que levava a mulher, e o que derribou

os cavaleiros daqui.

Grande foi a alegria e o prazer que todos com

Tristão tiveram.

E ele rogou ao rei que lhe mostrasse Galaaz, o

mui bom cavaleiro, e o rei lhe disse que havia ido

para a cidade com alguns da linhagem de rei Bam.

— Ai, senhor, disse Tristão, fazei que o veja,

porque por outro motivo não vim aqui.

— De bom grado, disse o rei.

[41] Então se foram para o paço e desceram. E

quando entraram no paço, acharam Galaaz com sua

linhagem, que já se desarmaram. E o rei pegou

Tristão e levou-o a ele e disse-lhe:

— Amigo Tristão, vedes aqui o que buscais.

— Em nome de Deus, disse Tristão, bem seja

ele vindo, porque com sua vinda estou muito alegre.

Então ficou de joelhos diante dele e disse-lhe:

— Senhor, abençoado seja o dia em que

nascestes, quando vos Deus deu tal graça.

Galaaz não lhe quis permitir que ficasse assim

a seus pés; ç depois ergueu-o e beijou-o em

significado de companheirismo e de fraternidade. E

bem ouvira já dizer que aquele era o mais afamado e

o melhor cavaleiro da távola redonda, com exceção

de Lancelote apenas.

25. Como os da mesa redonda tiveram a graça

do santo Graal. Grande foi a alegria e o prazer que

os cavaleiros da távola redonda tiveram aquele dia,

quando se viram todos reunidos. E sabei que, desde

que a távola redonda começou, nunca todos assim

foram reunidos, mas aquele dia, sem falha,

aconteceu que estavam lá todos, mas depois, nunca

de novo estiveram.

Contra a noite, depois de vésperas, quando se

assentaram às mesas, ouviram vir um trovão tão

grande e tão espantoso, que lhes semelhou que todo

o paço caía. E logo depois que o trovão deu, entrou

uma tão grande claridade, que tornou o paço dois

tantos mais claro que era antes. E quantos no paço

estavam sentados, logo todos foram repletos da

graça do Espírito Santo e começaram a olhar uns aos

outros, e viram-se muito mais formosos, muito mais

do que costumavam ser, e maravilharam-se muito do

que aconteceu e não houve quem pudesse falar por

muito grande tempo, antes estavam calados e

olhavam-se uns aos outros. E eles assim estando

sentados, entrou no paço o santo Graal, coberto de

um veludo branco; mas não houve um que visse

quem o trazia. E assim que entrou, foi o paço todo

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repleto de bom odor, como se todos os perfumes do

mundo lá estivessem. E ele foi para o meio do paço,

de uma parte e da outra, ao redor das mesas. E por

onde passava, logo todas as mesas ficavam repletas

de tal manjar, qual em seu coração desejava cada

um. E depois que teve cada um o de que houve

mister.a seu prazer, saiu o santo Graal do paço que

ninguém soube o que fora dele, nem por qual porta

saíra. E os que antes não podiam falar, falaram

então. E deram graças a Nosso Senhor, que lhes

fazia tão grande honra e os confortara e abundara da

graça do santo Vaso. Mas sobre todos aqueles que

alegres estavam, mais [42] o estava rei Artur, porque

maior merca lhe mostrara Nosso Senhor que a

nenhum rei que antes reinasse em Logres. Disto

foram maravilhados quantos lá estavam, porque bem

lhes pareceu que se lembrara Deus deles, e falaram

muito disso. E o rei disse aos que perto dele

estavam:

— Com certeza, amigos, muito devíamos

estar alegres, que Deus nos mostrou tão grande sinal

de amor, que em tão boa festa como hoje, de

Pentecostes, nos deu a comer de seu santo celeiro.

26. Como Galvão começou a demanda do

santo Graal. Galvão que sentava diante do rei, disse:

— Senhor, ainda há outra cousa que não

imaginais. Sabei que não há cavaleiro no paço que

não houvesse de comer o que pensou cada um em

seu coração. E isto nunca houve em nenhuma corte,

senão na casa do rei Peles. Mas tanto fomos

enganados que o nao vimos senão coberto. Quanto

em mim é, prometo agora a Deus e a toda cavalaria

que, de manhã, se me Deus quiser atender, entrarei

na demanda do santo Graal, assim que a manterei

um ano e um dia e, porventura mais; e ainda mais

digo: jamais voltarei à corte, por cousa que aconteça,

até que melhor e mais a meu prazer veja o que ora

vi; mas se não puder ser, voltarei então.

27. Como os da mesa redonda começaram a

demanda do santo Graal. Quando os cavaleiros da

távola redonda ouviram que aquele era Galvão e

viram o que disse, pararam até de comer; mas assim

que as mesas foram tiradas, foram todos ante o rei e

fizeram aquela promessa que fizera Galvão, e

disseram que jamais deixariam de andar até que

vissem a tal mesa e tão saborosos manjares e tão

bem preparados, como eram aqueles que aquele dia

comeram, se era cousa que lhes outorgada fosse por

dificuldade e por esforço que sofrer pudessem.

28. Como o rei disse a Galvão mal. E quando

o rei viu que todos haviam feito esta promessa, teve

grande pesar e grande armagura em seu coração

porque viu que não podia fazê-los voltar atrás de

modo algum. E disse a Galvão:

— Vós me haveis morto e escarnecido porque

por esta promessa que fizestes, me tirastes a melhor

companhia e a mais leal que nunca houve no mundo

— a companhia da távola redonda; porque, depois

que partirem daqui, sei bem que não tornarão tão

cedo, antes morrerão muitos nesta demanda, porque

não terá tão cedo fim como cuidais; e por isso me

pesa, porque sempre lhes fiz honra de todo meu

poder, e lhes quis bem e quero, como se fossem

meus [43] irmãos ou meus filhos. E por isto me é

grave sua partida, e quando eu, que os costumava

ver e ter sua companhia, os não vir, grande dor

sofrerei e grande pesar.

Depois que isto disse, o rei começou a pensar

muito; e ele pensando, começaram-se-lhe ir as

lágrimas dos olhos pelas faces, assim que todos o

viram. E, ao cabo de um tempo, disse de modo que

todos o ouviram:

— Galvão, Galvão, vós me metestes tão

grande pesar no coração, que jamais sairá até que

desta demanda veja o fim, porque terei grande pesar

e pavor de perder nela meus amigos.

— Ai, senhor, disse Lancelote, que dizeis? Tal

homem como vós não deveria ter pavor, mas animo

e boa esperança. Certamente, se morrêssemos todos

nesta demanda, maior honra seria do que morrer em

outro lugar.

— Ai, Lancelote, disse o rei, o muito grande

amor que sempre tive por vós e por eles me faz isto

dizer. E não é grande maravilha, se tenho grande

pesar, porque nunca rei cristão teve tantos cavalei-

ros, nem tantos homens bons à sua mesa, como hoje

tenho, nem terá jamais. E por isso receio que jamais

estarão reünidos aqui nem em outro lugar, como

agora estão.

V

Galvão e a donzela feia

29. Como a donzela feia chegou à casa de rei

Artur. A isto que o rei disse, não soube Galvão o que

responder, porque sabia que dizia a verdade, e

fizera-se de bom grado a fora, se pudesse, mas não

podia pelos Outros que prometeram já, como ele. E,

além disso, porque sabia já a rainha e as donas e as

donzelas todas que a demanda do santo Graal estava

já começada e os que haviam de ir, haviam de sair

de manhã. Então começaram as mulheres sua la-

mentação tão grande a fazer, que era maravilha, e

foram entrar no paço como loucas. Mas o rei

acordou com estas vozes e com este rebuliço que as

mulheres faziam nos aposentos da rainha. Estava o

rei com seus ricos homens com grande pesar

pensando. Nisto, eis que uma donzela entrou a pé e

trazia uma espada que tinha o punho muito rico e

muito formoso e a bainha muito bem lavrada; e ela

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reconheceu o rei e foi ao rei e disse-lhe:

— Rei, não penses, porque teu pensar não

vale nada; mas recebe isto que te trago e faze disto o

que te eu mandar. Eu te digo que verás ainda tal

coisa vir que a terás por maravilha.

[44] 30. Como a donzela fez tirar a espada.

Então ergueu o rei a cabeça e disse-lhe:

— Que dizeis, senhora?

— Digo-vos que tomeis esta espada e a façais

tirar da bainha a cada um de vossos cavaleiros da

mesa redonda e vereis que grande maravilha por isso

vos acontecerá: e depois aconselhar-vos-ei o que

havereis de fazer.

Ele pegou então a espada e tirou-a da bainha,

e achou-a então muito formosa. E a donzela lhe

disse:

— Ora a podeis dar a outrem, porque não sois

quem eu procuro.

— Ora dizei-me, donzela, disse o rei, que

maravilha pode disso advir e acreditaremos em vós

por isso mais, quando a virmos.

— Eu vo-lo direi, disse ela, pois tendes gosto

de o saber. Sabei que esta espada, que agora vedes

tão formosa e tão limpa, ficará toda tinta de sangue

quente e vermelho, assim que a tiver na mão aquele

que fará a maravilha de matar cavaleiros nesta

demanda mais que outrem. Esta espada trouxe eu

aqui para o conhecerdes e para o fazerdes aqui ficar,

porque, sem falha, se ele for, tanto mal e pesar

haverá e tanta mortandade de homens bons, que vós

vos chamareis, a seu retorno, rei pobre, deserdado de

bons fidalgos.

— Por Deus! donzela, disse o rei, mais me

vale perda-lo do que me sobrevir tanto mal por ele.

E melhor é cada um provar.

— Pois, disse ela, provai qual é, porque o

podeis entender e reconhecer por isto que vos digo.

Então deu o rei a espada a Galaaz e sacou-a da

bainha, e não se mudou de qual era. O rei disse:

— Vós estais quite.

E Galaaz deu-a a seu pai, e seu pai tirou-a, e

não apareceu nada. E depois a Boorz de Gaunes, e a

Heitor e a Persival de Galas e a Erec, filho do rei

Lac, e a Gaeriete; mas nada se mostrou em nenhum

destes. E então a pegou Galvão, e logo que a sacou

da bainha, ficou toda coberta de sangue, toda de uma

parte e da outra, tão quente e tão vermelho, como se

a sacassem do corpo de homem ou de chaga.

31. Como o rei ordenou a Galvão que não

fosse. Quando os do paço viram isto, disseram:

— Esta é das grandes maravilhas que vimos,

tempo há. E disse o rei a Galvão:

— Rogo-vos que não vades a esta demanda,

porque muito grande mal pode daí sair. Donzela,

cuidais vós que este é o homem que

[45] — Não cuido, disse ela, mas sei

verdadeiramente que, se for, fará tão grande dano

aos cavaleiros que aqui estão, que toda sua linhagem

não nos poderá recuperar.

E o rei bem acreditou que dizia a verdade, e

disse a Galvão:

— Sobrinho, eu vos peço que fiqueis aqui e

não vades a esta demanda.

E ele, que teve grande pesar sobejo desta

aventura, entre tanto homem bom, respondeu:

— Senhor, não deveis acreditar no que vos

disserem. Sabei que tudo é encantamento e chufa a

maior que vistes, tempo há. Não vos lembra quando

vistes a rainha Morgana e toda sua companhia

tornada em pedra? E por isso não deveis crer nisto.

Então disse a donzela:

— Isto não é encantamento, assim Deus me

ajude, mas antes inteira verdade. E, por Deus! se

fordes, tio grande dano se fará, que não o podereis

recuperar, nem rei Artur que aqui está.

A isto respondeu o rei:

— Donzela, vital sinal da sua ida que, assim

Deus me ajude, sei verdadeiramente que sobrevirá

disso mal. E por isto lhe ordeno, como senhor faz a

cavaleiro, que não vá, mas de todo modo fique.

— Como, senhor, disse Galvão, mais

acreditais nesta donzela do que em mim?

— Eu acredito, disse o rei, no que vejo. E por

isso vos ordeno de todo em todo, que não vades a

esta carreira.

— Senhor, disse ele, parece-me que não

cuidais da minha honra, mas do meu mal e da minha

vergonha, porque, se eu não for, sou perjuro e

desleal e então ninguém me deveria considerar como

cavaleiro.

— Não sei, disse o rei, o que fareis; mas se

fordes, pesar-me-á muito sobejo.

VI

Preparativos da demanda

32. Como a rainha houve pesar por Lancelote.

Galvão, que disto houve grande mágoa, afastou-se

do rei e foi para sua pousada. E a rainha disse ao

donzel que lhe dissera as novas da demanda:

— Agora dize-me, estavas presente quando

prometeram os cavaleiros buscar o santo Graal?

— Sim, senhora, disse ele.

[46] — Galvão e Lancelote hão de ir?

— Senhora, disse ele, dom Galvão o jurou

primeiro, e depois dele, Lancelote, e depois, todos os

outros da mesa redonda.

— Assim? disse ela, em mal ponto foi

começado este preito, porque muitos homens bons

morrerão nele e haverá então grande prejuízo no

reino de Logres.

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Então houve tão grande pesar de Lancelote,

que as lágrimas lhe vieram aos olhos, e disse outra

vez:

— Certamente este é grande dano sobejo,

porque, sem a morte de muitos homens bons, não

será esta demanda acabada, e maravilho-me do rei,

como o pode suportar, porque os melhores

cavaleiros do mundo se afastarão dele e sua terra

valerá por isso muito menos.

Então começou a chorar muito intensamente,

e as mulheres e as donzelas também. E a donzela

feia, que estava ainda no paço, quando deram a dom

Galvão a espada, e viu que se afastara já dali com

sanha, disse ao rei:

— Que será da ida de dom Galvão? Sabei que

muito mal disso virá e acontecerá.

E ele disse:

— Sabei que não irá à demanda cavaleiro que

me muito não pese; mas muito mais deste me pesará,

porque bem sei que muito mal por ele acontecerá.

— Pois, disse ela, senhor, rogo-vos que o

façais ficar.

— Eu vos digo, disse ele, que não será tão

ousado que o experimente, porque bem lhe proibi

eu, e vós o ouvistes.

— Muito obrigada, disse ela. Então se foi com

sua espada.

33. Como os da corte souberam que Galaaz

era filho de Lancelote. Como leram a carta. Aquela

tarde, souberam os mais da casa do rei Artur que era

Galaaz filho de Lancelote, porque não podia ser que

a origem de tão grande homem como Galaaz

pudesse ser escondida tão longamente. Muito

falaram o rei e a rainha aquela noite com Galaaz e os

altos homens qüe lá estavam e sua linhagem que o

amavam muito. Quando a noite chegou, não

esqueceu ao rei a maravilha do cavaleiro que se

queimou de manhã e perguntou quem estava com a

carta que tinha na mão quando se queimara. Então

disse um cavaleiro de Norgales.

— Senhor, vedes a carta que tinha na mão.

E ele pegou a carta na mão e leu-a, e achou

que dizia assim:

— Ai! Arcebispo de Cantuária, homem santo

e de boa vida e sisudo, aconselha-me em minha má

ventura e em meu pecado, [47] assim como te

contarei. Sabe verdadeiramente que o revelo a Deus

e a ti, que sou pecador, maior dos pecadores, que

deitei com minha mãe e com minha irmã. E depois,

matei-as ambas, na mesma hora, porque não queriam

cumprir minha vontade. E depois, estando a olhá-las

onde as matara, sobreveio o meu pai, o rei da ilha do

Porto; depois que viu aquela morte, meteu mão à sua

espada e eu à minha, e matei-o. E estando a olhá-lo,

sobreveio meu irmão, o conde de Geer, e causou-me

mal e matei-o. Todo este mal que te digo, fiz num só

dia. Agora me aconselha, padre santo, porque já tão

grande penitencia não me darás, que a não cumpra.

Tudo isto dizia a carta que o cavaleiro tinha

quando morreu. Depois que o rei leu a carta, assim

que a ouviu Galaaz e os outros homens que com ele

estavam, disse:

— Agora podemos saber por que este

cavaleiro morreu tão cruelmente. Sabei que isto foi

vingança de Jesus Cristo.

E os outros disseram que bem parecia

verdade, segundo a carta dizia. Então fez o rei

guardar a carta numa abadia, que era de Santo

Estevão, que era a Sé de Camalote e fez fazer um

mui rico túmulo para o cavaleiro e escrever em

cima: “Aqui jaz o cavaleiro que num dia matou seu

pai e sua mãe e seu irmão e sua irmã”.

Este escrito foi feito depois que os cavaleiros

foram para a demanda do santo Graal.

34. Como o homem velho disse que nenhum

levasse consigo amiga na demanda. Depois disto,

mandou o rei chamar a rainha e as donzelas e

mulheres que viessem a ele. E depois que chegaram

ao paço, cada um dos cavaleiros foi estar com sua

mulher ou com sua amante ou com sua amiga. E

alguns houve que combinaram com suas amigas de

as levarem. E assim aconteceria, se não fosse um

velho, que chegou vestido com hábito de ordem, que

disse tão alto que todos ouviram:

— Cavaleiros da távola redonda, ouvi. Vós

jurastes a demanda do santo Graal. E Nascião, o

ermitão, vos manda dizer por mim que nenhum

cavaleiro desta demanda leve consigo mulher nem

donzela, senão fará pecado mortal. E não seja tal que

nela entre, se não for bem confessado, porque em tão

alto serviço de Deus como este, não deve entrar se

não for bem confessado e bem comungado e limpo e

purificado de todos os danos e de pecado mortal;

porque esta demanda não é de tais obras, antes é

demanda dos segredos e das coisas escondidas de

Nosso Senhor, que fará ver conhecida-, mente ao

bem-aventurado cavaleiro que ele escolheu para seu

[48] ser|vo entre todos os cavaleiros terrenos, ao

qual mostrará as grandes maravilhas do santo Graal

e lhe fará ver o que o coração mortal não poderia

pensar, e língua humana não poderia dizer.

35. Como a rainha perguntava a Galaaz. Por

esta palavra ficou que nenhum cavaleiro levaria

consigo sua amiga. O rei mandou muito bem cuidar

do homem bom e perguntou-lhe por seus feitos, mas

ele disse muito pouco, porque em outro lugar tinha o

coração. E a rainha veio a Galaaz e assentou-se ao

lado dele e disse-lhe:

— Amigo, de onde sois e de qual linhagem?

E ele lhe disse um tanto, mas não lhe disse

que era filho de Lancelote e que Lancelote o fizera

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na filha do rei Peles, que muitas vezes ouvira já a

respeito ela falar. E, no entanto, porque ela queria

saber a verdade dele, perguntou-lhe outra vez e

disse-lhe:

— Dizei-me, quem é vosso pai?

— Senhora, disse ele, não o sei muito bem.

— Ai, senhor! disse ela, vós mo ocultais. Por

que o fazeis? Assim Deus me ajude, ao vos

lembrardes de vosso pai, não tenhais vergonha

nenhuma, porque ele é o mais formoso cavaleiro do

mundo e de todas as partes vêm reis e rainhas e a

mais alta linhagem do mundo em apreço ao melhor

cavaleiro do mundo, porque por direito deveríeis

passar todos os cavaleiros do mundo.

36. Como a rainha disse a Galaaz que era filho

de Lancelote. E quando ele isto ouviu teve grande

vergonha e respondeu:

— Senhora, pois que vós tão bem conheceis,

tanto o podereis dizer a mim, como eu a vós. E se é

aquele que penso, não vo-lo negarei, mas se este não

é quem me dizeis, nãô concordarei com outro.

— Pois que não me quereis dizer, disse ela, eu

vo-lo direi. Vosso pai é dom Lancelote do Lago, o

melhor cavaleiro de armas e o mais formoso e o de

melhor donaire e o mais desejado e o mais amado de

todos aqueles que nasceram em nossso tempo. Todas

estas bondades tem vosso pai. E por isso me parece

que o não deveis negar a mim nem a outrem, porque

de melhor pai e de melhor cavaleiro não poderíeis

ser filho.

— Senhora, disse ele, pois que assim sabeis,

por que vo-lo diria eu? Porque bem o saberão já

sempre.

37. Como rei Artur pensava nos cavaleiros

que iam à demanda. Aquela noite, fez o rei Galaaz

ficar numa câmara onde ele costumava ficar, num

leito seu, porque tinha muito gosto de lhe fazer

honra. E todos os da linhagem de rei Bam ficaram

nos aposentos [49] do rei, por causa de Galaaz. E

muito lhe era penoso terem de partir tão cedo,

porque toda aquela linhagem se amavam muito,

porque mais queriam viver juntos do que partirem.

E, sem falha, na casa do rei havia então daquela

linhagem dezenove cavaleiros, que eram todos muito

bons. E todos foram tão venturosos, que não houve

entre eles um que não fosse da távola redonda. E por

isso era aquela linhagem tão honrada e tão afamada,

que nunca falavam de outra linhagem no reino de

Logres, fora daquela.

Aquela noite, quando rei Artur viu que os

cavaleiros da linhagem do rei Bam — que, naquele

tempo, era a flor e o louvor dos cavaleiros do mundo

— ficaram em sua casa por causa de Galaaz,

começou a olhá-los e a pensar que estes eram os

homens do mundo que mais vezes foram melhores

para ele e que melhor o vingaram de seus inimigos.

E quando novamente pensava que queriam de manhã

ir a tal lugar de onde cuidava que jamais voltassem,

teve tão grande pesar, que não se pôde aconselhar,

porque esta era a linhagem do mundo que mais

amava, fora a sua. E foi então deitar só numa câmara

e começou a fazer o maior pranto do mundo e mal-

dizer muito Galvão, seu sobrinho. E disse que

maldita fosse a hora em que o vira primeiro, porque

lhe tiraria logo todos os bons cavaleiros e todos os

homens bons pelos quais era ele o mais temido de

todos os reis do mundo.

38. Como o rei fez seu pranto por seus

cavaleiros e como lhe pesava de sua ida. Assim se

queixava e fez seu pranto o rei por seus cavaleiros,

que se dele separavam, e, assim que foi manhã,

levantou-se o mais cedo que pôde, porque muito

estava em grande cuidado com o que havia de fazer,

mas não se levantou tão cedo que já não achasse

mais de sessenta cavaleiros dos que haviam de ir à

demanda, que vestiam já as lorigas e cingiam as

espadas. O rei que tinha grande pesar disso, que não

há homem no mundo que o imaginar pudesse,

quando os viu assim estar, teve tão grande pena que

não teve força para saudá-los e aconteceu-lhe falhar

o coração com grande pesar. E viu Gaeriete e disse-

lhe assim:

— Gaeriete, morto me há vosso irmão que me

tolheu tantos homens bons como havia em minha

casa. E ao menos se me ficasse a linhagem de rei

Bam, não haveria tão grande pesar.

Quando Gaeriete isto ouviu, calou-se, porque

bem entendia que dizia o rei verdade. Aquele dia,

ajudou o rei armar Galaaz, e depois que foi armado,

exceto do elmo e do escudo, foi ouvir missa na

capela do rei, ele e sua linhagem. E depois, voltaram

ao paço e encontraram jáos outros, que haviam de ir

à demanda, que não esperavam outra coisa senão

eles e sentaram-se uns perto dos [50] ou|tros. Então

se ergueu rei Bandemaguz e falou tão alto que todos

ouviram:

— Senhor, disse ele ao rei Artur, pois que este

preito assim está começado, que não pode já ser

deixado e os que nele hão de ir não esperam senão a

vós, eu louvaria que os santos Evangelhos viessem

aqui, e os cavaleiros fizessem tal juramento como

devem fazer os que vão a tão alta demanda.

— Está bem, disse o rei, pois outra coisa já

não pode ser.

Então mandaram vir os clérigos e trouxeram o

livro sobre o qual faziam o juramento da corte, e

depois o puseram no alto assento do rei, e o rei

chamou Galaaz, porque o tinha pelo melhor

cavaleiro de quantos lá havia, e disse-lhe:

— Galaaz, sois como mestre dos cavaleiros da

mesa redonda e o melhor. Vinde adiante e fazei o

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juramento desta demanda.

E ele disse que o faria de muito bom grado.

Então foi ficar de joelhos ante o livro, e jurou que, se

Deus o guardasse do mal e o guiasse, manteria esta

demanda um ano e um dia, e mais, se preciso fosse,

e não tornaria à corte, até que soubesse, de algum

modo, a verdade do santo Graal. Depois jurou

Lancelote e Tristão. Também sabei que, de todos os

cento e cinqüenta cavaleiros da mesa redonda, não

ficou nenhum que este juramento não fizesse, afora

Galvão somente. Aquele dia, sem falha, não estava

lá, porque já se fora pela manhã, bem armado, para

esperar os outros na floresta de Camalote, porque

bem sabia que, se com os outros quisesse sair, não o

deixaria o rei, mas o faria ficar.

39. O conto dos cento e cinqüenta cavaleiros

da távola redonda. Os nomes deles. Por isso partiu

Galvão pela manhã da corte, e o rei, pelo grande

pesar que tinha quando recebia o juramento, nunca

lembrou de Galvão, tantos eram os outros. Mas

porque a está-ria não citou os nomes daqueles que

foram na demanda do santo Graal, convém que

refira aqui os nomes dos que foram companheiros da

mesa e fizeram juramento. Dos cento e cinqüenta

cavaleiros que fizeram o juramento desta demanda,

foi o primeiro Galaaz, depois dele, Tristão e

Lancelote e Boorz de Gaunes e Bliobleris e Leonel e

Heitor de Mares; Brandinor, seu irmão, e Elaim, o

branco; Banim, o afilhado do rei Bam; Abão, bom

cavaleiro a maravilha; Gadrão; Laner; Tanri;

Pincados; Lelas, o ruivo; Crinides, o negro; Ocursus,

o negro; Acantão, o ligeiro; Danúbio, o corajoso.

Todos estes cavaleiros, exceto Tristão, eram da

linhagem de rei Bam e vieram à corte de rei Artur

por causa de Lancelote. E aconteceu-lhes assim por

boa cavalaria e por sua vida boa que foram

companheiros da távola redonda e eram estimados

pelos cavaleiros sobre todos [51] os cavaleiros da

casa de rei Artur; e pela bondade destes, que eram

andantes, era a linhagem de rei Bam famosa como

vos digo. Os outros da linhagem de rei Branco não

eram senão estes: Galvão e Gaeriete, Agravaim,

Grieres, Morderete; estes eram irmãos. Os outros

eram estes: Agroval e Persival; Corsidares;

Maidairos, seu primo coirmão; e Persives de

Langaulos. Os outros eram filhos de Lot: Cujerão,

seu irmão, de Ganaor, mui bom cavaleiro de armas,

mas era tão soberbo, que maravilha era. Os outros:

Quéia, o mordomo, e Sagramor, o dizimador; e

Gilfrete, o filho de Dó; Lucão, o copeiro; e

Dondinax, o selvagem; Calogrenante; Ivã, filho de

rei Urião; Ivã das mãos brancas; Ivã de Canelones de

Alemanha; Oures, o pequeno; Gures, o negro; o

Laido ousado; Garnaldo, seu irmão; Mador da Portà,

o grande cavaleiro; Craidandos; Isaias; rei

Bandemaguz; Patrides, seu sobrinho; Madão, seu

coirmão, o donzel da saia mal talhada, de quem o

conto do Brado fala muito; Dinadeira, seu irmão,

bom cavaleiro à maravilha e que foi muito no reino

de Logres; Gar da Montanha; Clamadim, que pouco

havia que ganhara o assento da távola redonda;

Galaaz, o grande da Deserta; Senala, seu irmão;

Caradão, Damas, Damacab, que eram seus primos

coirmãos. Sabei que todos estes eram tão bons

cavaleiros que não se podia achar melhores no reino

de Logres, a menos que fossem da linhagem de rei

Bam. Estes cinco queriam mal a esta linhagem com

inveja, porque não faziam a eles tanta honra como

aos outros. E outro Lambeguêm, que foi aio de

Boorz e de Leonel; Sinados, Artel, Bagarim,

Sanasésio; Arnal, o formoso; e o cavaleiro do Chão;

Angelis dos Vaos, Baradão, o manso, que era seu ir-

mão; Marat, o da torre; Nicorante, o bem feito e o

famoso de espada; Alaim dos Prados; Martel do

grande escudo; Melez, o longo; Dinas, seu irmão;

Codias das longas mãos; Pinabel da Ilha; Daniel, o

cuidador, e Gandaz, o negro, Gandim da Montanha,

que eram ambos irmãos; Ataz; Calendim, o

pequeno; Utrenal; Raface; Conais, o branco;

Agregão, o sonhador; Guigar, o filho de Galvão de

quem o conto do Brado fala; Anarão, o grosso;

Amatim, o bom justador; Canedão, o delgado;

Canedor, o da formosa amiga; Ar-pião da estranha

montanha; Saret; Dinados; Peliaz, o forte, aquele,

sem dúvida era natural de Logres; Alamão; Ganadal;

Lucas de Camalote; Brodão; Endalão; Melião;

Julião; Galiadão; Cardoilem de Londres, bom

cavaleiro violentamente ousado; Delimaz, o pobre;

Asalim, o pobre; Caligante, o pobre: estes três eram

irmãos; Ecubas; Eladinão, seu irmão. Todos estes de

que vos eu antes disse os nomes eram da mesa

redonda, e não houve um que não fosse cavaleiro

escolhido e provado de muito boa cavalaria. Rei

Artur, sem falta, está com eles, e com ele, sem falha,

são cento e cinqüenta.

VII

Despedida dos cavaleiros

40. Como a rainha se lamentava por Lancelote

que ia à demanda. Uma vez que fizeram o juramento

e comeram um pouco, pelo rei que lhes pediu,

novamente puseram seus elmos em suas cabeças e

encomendaram-se muito à rainha e a Deus e

despediram-se com lágrimas e com choro. E ela

começou um tão grande lamento, como se visse o

mundo todo morto diante de si. E para não a

ouvirem, voltou à sua câmara e deixou-se cair em

seu leito e começou a fazer tão grande lamento que

não há quem a visse que se não maravilhasse.

Quando Lancelote ficou já todo pronto e tinha pena

de sua senhora, que maior não podia, foi à câmara

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onde a viu entrar. E assim que ela o viu, disse:

— Ai, Lancelote! Morta me tendes, porque

deixais a casa do rei para irdes às terras estranhas de

onde jamais voltareis, senão por maravilha.

— Ai, senhora, disse ele, voltarei, se Deus

quiser, muito mais cedo do que cuidais.

— Ai! disse ela, meu coração mo diz, que me

poe em tal pavor e sofrimento, como nunca mulher

de tal modo ficou por cavaleiro.

— Senhora, disse ele, irei com vossa graça,

quando vos aprouver.

— A meu prazer, nunca pode ser, disse ela,

depois que viu que não havia outra coisa a fazer,

mas ide com a graça de Deus Nosso Senhor que vos

guie e vos traga de volta com saúde e vos dá honra

nesta demanda.

— Senhora, disse ele, assim o faça Deus, se

lhe aprouver.

41 .Como o rei foi até ldfora com os

cavaleiros. Então se despediu Lancelote da rainha e

foi ao paço do rei e encontrou todos que cavalgavam

montados, menos ele, porque o esperavam. E ele foi

ao seu cavalo e montou. E o rei, que viu Galaaz sem

escudo, disse-lhe:

— Amigo, não me parece que fazeis bem de

não levar escudo como os outros.

— Senhor, faria mal se daqui o levasse. E

sabei que não trarei escudo até que a ventura mo dê.

Agora seja no nome de Deus.

42.Como os cavaleiros iam alegres à demanda

do santo Graal. Então se afastaram do paço e foram

pela vila, mas nunca vistes tão grande lamentação

como faziam os cavaleiros de Camalote e a outra

gente que ficava. Mas os que haviam de ir não

mostravam [53] ne|nhum sinal de tristeza, antes vos

pareceria, se os vísseis, que iam muito felizes e

muito alegres, e, sem dúvida, assim era.

43. Como a donzela feia disse a Galvão que

voltasse, porque muito mal faria naquela demanda.

Quando chegaram à entrada da fioresta em direção

ao castelo de Vagam, pararam todos diante de uma

cruz. Então disse Lancelote ao rei:

— Senhor, voltai, bastante viestes conosco.

— Assim Deus me ajude, disse o rei, voltar

me será pesado, porque sobremaneira me despeço de

vós contrariado, mas porque vejo que me convirá

fazer, voltarei.

Então tirou Lancelote o elmo e os outros

também, e abraçouos o rei, e beijou-os muito

afetuosamente chorando, e os outros homens que lá

estavam também. Depois que puseram seus elmos,

encomendaram-se a Deus uns aos outros e choravam

muito sentidamente. Então se afastou o rei deles e

voltou a Camalote. E eles entraram na floresta, e

então cavalgaram tanto que chegaram ao castelo de

Vagam, onde foram muito bem servidos de quanto

tinham necessidade. E aquele Vagam era um

cavaleiro bom e de vida boa, e quando viu os

cavaleiros da távola redonda, soube que iam

demandar a aventura do santo Graal, recebeu-os

muito bem e considerou-se satisfeito de que lhe

Deus trouxera tantos homens bons, pois os poderia

albergar. Aquela noite, albergaram com Vagam e

foram tão bem servidos de quanto tinham

necessidade que ficaram maravilhados de como tão

depressa se preparou para tão grande companhia

tanta coisa. À tarde, quando estavam comendo, eis

que vem a donzela feia, que vos disse que injuriara

Erec e ferira Lancelote com o freio. E viu que

Galvão estava e foi parar diante dele e disse-lhe

assim com raiva:

— Galvão, Galvão, cavaleiro desleal, como és

tão ousado que nesta demanda queres ir, quando

sabes que tanto mal por ti acontecerá? E rogam-te

estes cavaleiros da távola redonda que, se te qui-

sesses lembrar da morte de Lamorante e de seu

irmão Briam de Monjaspe, e da deslealdade que

então fizeste, deverias agora mais te guardar do que

outro cavaleiro de fazer coisa desleal, porque

bastante fizeste naquele tempo. Queres ir a esta

demanda como os outros; mas olha o que por tua

causa acontecerá. Sabe que dom Galaaz que aqui

está — este é agora o melhor cavaleiro do mundo —

não fará tanto bem nesta demanda, como tu farás

mal, porque pela tua mão — que em má hora

pegaste a espada — matarás dezoito destes teus

companheiros, tais que valem mais que tu de

cavalaria. E isto acontecerá por ti nesta demanda.

Agora, olha como eles devem cciisurar e maldizer a

tua vinda.

[54] 44. Como Galvão se salvou e como a

donzela disse que alguns a creriam, outros não.

Galvão teve muito grande vergonha do que lhe disse

a donzela e respondeu:

— Donzela, se eu cuidasse que tanto mal por

mim aconteceria nesta demanda, voltaria, mas

porque sei verdadeiramente que, do que se diz, nem

tudo acontece, não acredito no que dizes.

— Não? disse ela.

— Senhora, não.

— Não acreditas? Acreditarás, porque tudo

verás que como to eu digo, assim te acontecerá. E

não tenho pena deste preito se cindir por ti, mas pelo

mais sisudo homem do reino de Logres que matarás.

Então virou para rei Bandemaguz e disse-lhe:

— Rei Bandemaguz, tenho muita pena de que

vás a esta demanda, porque nela morrerás e será

grande dano, por duas causas: uma, porque és muito

bom cavaleiro, e a outra, porque és o mais sisudo do

reino de Logres. E sabe que um só cavaleiro te

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matará a ti e a teu sobrinho Patrides, e Erec e Ivã e

tantos outros, porque em má hora nasceu este

pecador que tanto mal fará, que mais valera que

ainda estivesse por nascer, porque, por suas armas,

ficarão, depois de sua morte, mais de cem anos,

muitos remos órfãos de bons cavaleiros e de

senhores.

Então voltou a Galvão e disse:

— Galvão, cre que tu e Morderete, teu irmão,

não nascestes senão para fazerdes más aventuras e

dolorosas. Se os que aqui estão o soubessem como o

sei, arrancariam vossos corações, porque ainda os

fareis morrer de dor e de sofrimento. E estes, que

agora não criem no que lhes digo, ainda acreditarão

a tal hora em que não poderão tomar sentido.

45.Como o cavaleiro disse a Galaaz que ou o

matasse ou o mataria ele. Logo que a donzela isto

disse, afastou-se deles e saiu tão depressa quanto

pôde. E eles ficaram tão espantados que não sabiam

se deviam acreditar; e deixaram então de falar disso

por causa de Artur e Galvão, que tanto amavam. E

estando assim, eis que um cavaleiro entrou

desarmado, exceto de espada, e era muito grande e

muito forte; e assim que viu Galaaz, ficou de joelhos

e disse-lhe:

— Galaaz, bem-aventurado cavaleiro e

escolhido sobre todos aqueles que trouxeram armas

na Grã-Bretanha, eu te rogo pela fé que deves a toda

a cavalaria que me dês um dom, que ninguém te

pediu desde que recebeste a ordem da cavalaria. E se

o não fizeres, cstranhaniente errarás.

[55] — Galaaz olhou o cavaleiro, que tão

francamente lhe pedia, e não sabia o que responder,

porque cuidou que era grande coisa e disse-lhe:

— Erguei-vos, cavaleiro; eu vos dou o que me

pedistes, se coisa é que possa dar ou deva.

— Muito obrigado, disse o cavaleiro. Pois

agora vos peço que me corteis a cabeça com esta

espada que trago, que nada desejarei tanto, como

morrer por mão de tão bom cavaleiro como vós, por-

que bem sei que bom cavaleiro como vós não me

poderá matar.

Então tirou a espada da bainha e colocou-a na

mesa e disse:

— Galaaz, pegai esta espada e fazei o que vos

eu rogo.

E ele olhou-o e começou a persignar-se pelo

que lhe dizia, porque o teve por maravilha. E

respondeu:

— Ai, senhor cavaleiro! Outra coisa me pedi,

porque a vós nem a outro cavaleiro não matarei,

senão em defendendo meu corpo ou meu senhor.

— Certamente, disse o cavaleiro, isto não

fareis em começo de vossa cavalaria, que me não

cumprais o que me prometestes, porque por isso

seríeis o pior cavaleiro do mundo e o mais

mentiroso, se assim começásseis.

— Não vos é vantagem, disse Galaaz, de me

tal pedido fazerdes, porque não há nada no mundo

por que vos matasse assim.

— Não? disse ele, não me cumprireis minha

promessa?

— Outra promessa vos manteria, disse

Galaaz, mas esta não faria, ainda que pudesse.

Então se ergueu o cavaleiro e tomou a espada

na mão e disse:

— Agora vos farei outro pedido: ou vós me

matais, ou eu vos matarei. Agora escolhei qual

quereis.

E Galaaz começou a sorrir e persignou-se,

tanto tinha isto por grande maravilha.

— Vede, pois, disse ele, por boa fé, cavaleiro,

sois o mais louco e o mais néscio de que nunca ouvi

falar, porque quereis que, por força, alguém vos

mate.

— Se me não matardes, disse o cavaleiro, de

manhã me matará outro, de quem ninguém, exceto

Deus, pode me guardar, porque aquele é o homem

do mundo a quem pior quero e a quem menos prezo.

Então queria que me matásseis vós, para que não me

achassem de manhã vivo.

— Como quer que aconteça, disse Galaaz, de

modo algum vos matarei.

— Não? disse ele. Pois quero-vos eu matar.

Então ergueu a espada e fez de conta que o

queria matar. Mas Galaaz, que nunca tivera medo,

não se moveu, porque nunca [56] du|vidou do que

quer que fosse. E quando o cavaleiro viu que o não

podia espantar, disse:

— Galaaz, agora bem vejo que acabarás as

aventuras do reino de Logres, porque te vejo

esforçado, como nunca cuidei ver alguém que o

fosse tanto. E por isso te provei eu; porque és mais

valente que outro, te deixei de matar, porque muito

seria grande o dano se neste momento morresses. E

pois que de manhã hei de morrer, não por ti, quero

lamentar minha morte.

Então enfiou a espada em si e com sofrimento

de morte caiu e disse a Galaaz.

— Senhor, roga a Deus por mim.

Logo que isto disse, morreu. E quantos na

casa estavam, ficaram maravilhados. Então vieram

os cavaleiros e escudeiros e tiraram-no do paço onde

comiam. Os cavaleiros disseram ao senhor do cas-

telo que o fizesse enterrar e que perguntasse por seu

nome e por seus feitos e os fizesse escrever sobre

seu túmulo para que os que depois viessem

soubessem aquela maravilha. Naquela hora, toma-

ram a decisão de partirem de manhã e que cada um

tomasse o seu caminho, porque por mal e por

covardia tomariam, se andassem juntos.

46. Como partiram os cavaleiros. No outro

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dia, pela manhã, ouviram missa e depois montaram e

encomendaram a Deus seu anfitrião e agradeceram

muito quanto lhes fizera. Depois, saíram do castelo e

assim que chegaram à floresta, partiu cada um por

onde achou a carreira ou senda, e muito choraram ao

partir.

Mas ora deixa o conto a falar dos cavaleiros e

volta a Galaaz.

VIII

Galaaz recebe o escudo

47. Ora diz o conto que Galaaz, quando se

separou de sua companhia, andou tres dias sem

aventura achar que de contar seja, e não trazia

escudo. E sabei que sempre o ermitão ia atrás dele a

pé, porque não queria montar em animal. Ao quarto

dia, aconteceu-lhe que chegou, à hora de vésperas, a

uma abadia de monges brancos; e os frades

acolheram-no muito bem, porque o reconheceram

como cavaleiro andante, e fizeram-no descer, e

levaram-no a uma câmara e o desarmaram. E ele

olhou e viu dois cavaleiros da mesa redonda; um era

rei Bandemaguz e o outro era Ivã, o bastardo. E

assim que se reconheceram, ficaram muito alegres e

abraçaram-se [57] e bem o deviam fazer porque

eram como irmãos por causa da mesa redonda.

Aquela tarde, depois que comeram, sairam por

uma horta para folgarem, e Galaaz perguntou que

ventura os trouxera ali. E rei Bandemaguz disse:

— Viemos aqui para ver uma aventura

maravilhosa que aqui há.

— E que aventura é? disse Oalaaz.

— Eu vo-lo direi, disse rei Bandemaguz; aqui

há um escudo, que não pode alguém levar uma

jornada daqui, se o deitar a seu colo, que não seja

morto ou muito ferido. E dom Ivã veio aqui para vã-

lo; e quero prová-lo e levá-lo de qualquer maneira.

— Por Deus, disse Galaaz, de grande

maravilha falais; esta éuma das grandes maravilhas

que vi e tenho por bem que o proveis. E se o não

puderdes levar, eu o levarei, se puder, porque não

tenho escudo.

— Senhor, disse Bandemaguz, se vós a

aventura provardes primeiro, creio que a acabareis,

mas deixai-me pegar o escudo, e veremos se é

verdade o que dizem.

48. Como os frades contaram a aventura do

escudo a Galaaz e aos outros. Aquela noite, foram os

cavaleiros muito bem albergados de quanto os frades

puderam ter e fizeram muita honra a Galaaz pelo

bem que ouviram dele dizer aqueles dois cavaleiros.

De inanhã, depois que ouviram missa, perguntou rei

Bandemaguz a um frade que lhe dissesse onde

estava o escudo de que tanto falavam pela terra. E o

frade disse:

— Por que o perguntais?

— Quero prová-lo, se o puder levar, e verei se

tem tal virtude como dizem.

— Nisto não vos louvarei eu, disse o frade,

porque cuido que ganhareis desonra.

— Não vos incomodeis, disse ele, mas se vos

aprouver, mostrai-mo.

— De bom grado, disse ele.

E levou-os então para o altar e mostrou-lhes

então o escudo, que estava de trás do altar, e o

escudo era branco e tinha uma cruz vermelha. E o

frade lhes disse:

— Vede aqui o escudo que buscais.

E eles o olharam e pareceu-lhes que era o

mais formoso e o mais rico que nunca viram. E

exalava tão bom odor, como se todas as espécies do

mundo nele estivessem. Quando Ivã, o bastardo, viu

o escudo, disse:

[58] — Assim Deus me ajude, deste escudo

digo eu tanto que nenhum cavaleiro o devia deitar a

seu colo, se não fosse o melhor cavaleiro. E

certamente, serei aquele que o não provarei, porque

não me sinto tal que o deva fazer.

— Em nome de Deus, disse rei Bandemaguz,

eu o quero daqui tirar, não importa o que aconteça

por isso.

Então tomou o escudo e deitou-o a seu colo e

disse a Galaaz:

— Senhor, eu queria, se vos aprouvesse, que

me esperásseis aqui até que víssemos o que podia

advir desta aventura. E se me acontecesse mal por

este escudo, queria que o provásseis vós porque bem

sei que não sereis mal sucedido.

— Eu vos esperarei, disse Galaaz, de mui

boamente.

E os frades lhe deram um escudeiro que fosse

com ele em sua companhia e trouxesse o escudo, se

o levar não pudesse, e tornasse à abadia com ele.

49. Como rei Bandemaguz foi ferido. Assim

ficou então Galaaz, e Ivã com ele, e rei

Bandemagu.z se foi; e depois que andaram quanto

seria duas léguas, viram sair de uma ermida um

cavaleiro de umas armas brancas. E vinha quanto o

cavalo o podia trazer, a lança sob o braço, contra rei

Bandemaguz. E o rei que o viu vir, voltou a ele e

quebrou a lança nele. E o cavaleiro que o alcançou

em descoberto, feriu-o tão rijaxnente, que lhe

quebrou a loriga e meteu-lhe o ferro da lança por sob

a espádua esquerda, e lançou-o em terra.

Depois desceu e pegou-lhe o escudo e montou

seu cavalo e disse-lhe:

— Muito fostes louco, cavaleiro, que este

escudo pegastes, porque não é outorgado senão para

um homem só, e aquele convém que seja o melhor

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cavaleiro do mundo. Pelo grande erro que nisto

fizestes, me enviou aqui aquele que toma as grandes

vinganças, para tirar de vós vingança, segundo o

erro que fizestes.

Depois que isto disse a rei Bandemaguz, virou

para o escudeiro e disse-lhe:

— Toma este escudo e leva-o ao servo de

Jesus Cristo, aquele que chamam Galaaz. E dize-lhe

que o alto Mestre lho manda, que o traga, porque

sempre será tão novo como agora é e tão formoso, e

isto é grande coisa por que se deve muito amá-lo. E

saúda-o da minha parte.

— Senhor, disse o escudeiro, quem sois?

— Isto não podes agora saber nem depois,

disse o cavaleiro.

— Pois que assim é, disse o escudeiro, que

vosso nome não quereis dizer, eu vos rogo, pela

coisa do mundo que mais amais, que me digais a

verdade do escudo e de quem o trouxe a esta terra,

porque nunca vi cavaleiro que a seu colo o deitasse,

que lhe mal não viesse.

[59] — Tanto me conjuraste, disse o

cavaleiro, que to direi, mas não o direi a ti só, antes

quero que tragas aqui o cavaleiro a que hás de levar

o escudo e to direi diante dele, e dize-lhe de minha

parte que, se quiser saber a verdade, venha falar

comigo, porque bem aqui me achará.

Então foi o escudeiro a rei Bandemaguz e

perguntou-lhe se estava ferido.

— Eu cuido, disse o rei, que estou ferido de

morte.

— E podereis cavalgar? disse o escudeiro.

— Prová-lo-ei, disse ele, porque de ficar não

me pode vir senão mal.

Então se ergueu como pôde e cavalgou com

muita dificuldade. E o escudeiro atrás dele para o

segurar.

50. Como o escudeiro deu o escudo a Galaaz.

Assim partiram daquele campo e voltaram à abadia e

os frades pegaram rei Bandemaguz e levaram-no a

uma câmara e esforçaram-se para lhe pensar a chaga,

que era muito grande. E Galaaz perguntou a um

frade que lhe cuidava da chaga:

— Cuidais que possa sarar? Certamente,

grande dano seria se por tal aventura morresse,

porque o ouvi muito louvar de sangue e de cavalaria.

— Senhor, disse o frade, não tenhais medo de

morrer; mas nao devia ninguém dele ter dó, porque

antes lhe havíamos dito que, se levasse o escudo,

colheria disso mal.

Então veio o escudeiro a Galaaz e disse-lhe

perante quantos lá estavam:

— Senhor, manda vos saudar o bom cavaleiro

das armas brancas; manda vos dizer que vos envia

este escudo, que o tragais, porque não há agora,

como ele diz, ninguém no mundo senão vós que o

tanto mereça. E diz que, se quiserdes saber donde

veio o escudo e quantas maravilhas dele advim,

vades a ele e ele vo-lo dirá. E eu vos levarei onde ele

está.

Quando os frades isto ouviram, humilharam-

se muito perante Galaaz e disseram:

— Abençoadas sejam estas novas e bendito

seja Deus, que o aqui trouxe, porque agora sabemos

bem que por este serão acabadas as aventuras

maravilhosas do reino de Logres.

E Ivã, o bastardo, disse:

— Senhor Galaaz, deitai este escudo ao vosso

colo. E assim será um pouco minha vontade

cumprida, porque, se Deus me ajude, nunca tanto

desejei nada como ver o bom cavaleiro que deste

escudo haveria de ser senhor.

[60] Galaaz disse que o faria, pois lho

enviaram, mas que antes queria ter suas armas; e

trouxeram-lhas. Depois que ficou armado e montou

em seu cavalo e deitou seu escudo ao colo,

encomendou os frades a Deus e foi-se. E Ivã, o

bastardo, que estava já armado para montar em seu

cavalo, disse que lhe faria companhia. E ele disse

que lho agradecia muito, mas não queria que

ninguém fosse com ele, senão o escudeiro e o

ermitão. Sem falha, o ermitão andava sempre atrás

dele, às vezes longe, às vezes perto e contava-lhe

cada dia as vidas dos padres santos e as estórias

antigas. E contou-lhe de onde era, e de qual

linhagem e de quais cavaleiros, e contou-lhe de José

e de rei Mordraim e de Nascião, que homens foram e

que cavaleiros e de quanto amor Nosso Senhor os

amava. Isto era coisa que de bom grado mais no

mundo escutava e mais o confortava, e tanto tinha

gosto de ouvir que nada no mundo lhe agradava

tanto.

51. Como o ermitão disse a dom Galaaz a

verdade do escudo. Quando Galaaz chegou à ermida,

onde o cavaleiro das armas brancas o esperava, o

escudeiro que ia com Galaaz, assim que viu o

cavaleiro, disse a Galaaz:

— Senhor, vedes o cavaleiro que vos enviou o

escudo.

E o cavaleiro, assim que o viu, saiu em

direção a ele e saudouo. E Galaaz também a ele.

— Senhor, disse o escudeiro, agora contai a

dom Galaaz o que dissestes que lhe contaríeis diante

de mim.

— Muito me agrada, disse ele, porque não há

no mundo ninguém a quem antes devesse contar do

que a ele, que é agora o escolhido que não tem par

entre todos os cavaleiros que agora são e foram, há

muito tempo.

Então disse a Galaaz:

— Sabei que me pede o escudeiro que vos

faça saber a verdade deste escudo e por que tantas

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maravilhas por ele advieram àqueles que, por seu

louco atrevimento, contra a proibição de Nosso Se-

nhor, o deitaram a seus colos, porque lhes

acontecem tantas desventuras como sabem nesta

terra. Tudo isto ele me pediu que vos dissesse,

porque não é justo que outrem saiba antes que vós,

mas pois que aqui viestes, eu vo-lo contarei diante

dele e diante deste ermitão que anda convosco e vos

contou já dele um tanto.

— Senhor, disse Galaaz, certamente, isto é

uma coisa que desejei saber.

— Pois vo-lo direi, disse o cavaleiro, tudo

assim como aconteceu.

[61] Então lhe começou a contar de tal modo

como vos depois contará o livro.

52. Como o cavaleiro branco contou a Galaaz

sua linhagem.

— Galaaz, disse ele, aconteceu, já há muito

tempo, que, depois da morte de Jesus Cristo,

sessenta e dois anos, José de Arimatéia veio à cidade

de Sarras, assim como o alto Mestre o destinava por

sua vontade. Depois que chegou à cidade de Sarras

com seus parentes, que eram então novos servos e

discípulos de Jesus Cristo, o rei da cidade, que tinha

nome Evalac e era então pagão, os recebeu muito

bem. O rei estava então muito triste e muito

desconfortado com Tolomer, um rei seu vizinho

mais rico e mais poderoso que ele, que o guerreava e

facilmente seria desbaratado, porque seus homens

lhe falhavam, se não fosse Josefes, o filho de José,

que lhe disse:

— Rei Evalac, se me tu quiseres acreditar, eu

te aconselharei de modo que terás alegria sobre

todos os teus inimigos. E mais te farei ganhar a

alegria que nunca terá fim.

O rei ficou muito feliz com estas novas e

perguntou-lhe que homem era.

— Eu sou cristão, disse Josefes.

Quando o rei isto ouviu ficou maravilhado, e

mandou logo chamar seus clérigos, que disputassem

com ele sobre a lei dos cristãos. E quando estavam

reunidos, Josefes, que do Espírito Santo falava com

simplicidade, os venceu a todos, assim que não

houve quem falasse. Quando o rei viu Josefes tão

sisudo, acreditou. E quando aconteceu que o rei

queria ir contra Tolomer, que lhe entrava na terra,

Josefes lhe disse:

— Rei, faze-me trazer o teu escudo.

E o rei o fez trazer logo. E Josefes pegou um

pano de seda vermelho, e fez dele uma cruz e

pregou-o no escudo com pregos bons, pequenos.

Depois disse ao rei:

— Vedes este sinal?

— Sim, disse ele; é muito bom.

— Certamente, disse Josefes, no mundo não

há perigo de que não escapasse o que perfeitamente

acreditasse naquele a quem por este sinal oramos. E

por isso quero que o leves. E quando estiveres em tal

perigo que não cuides escapar jamais, então o

descobre e dize: “Deus, que neste sinal recebeste

morte, tu me torna feliz e são a receber tua graça” e

bem sabe verdadeiramente, se o chamares de bom

coração, que não morrerás, antes terás alegria e

honra.

Então cobriu Josefes com um pano o escudo.

[62] 53. Como Evalac viu aprova do escudo e

como prendeu Tolomer. Então acreditou o rei que

Josefes bem podia dizer a verdade. E apesar de que

duvidava daquilo que dizia, fez levar consigo o

escudo na batalha que havia de ter com Tolomer.

Então partiu de Sarras e foi contra Tolomer, e

juntaram-se umas gentes com as outras. E aconteceu

assim que Evalac foi preso e desbaratado e levado

para uma floresta, onde o queriam matar os que o

prenderam. Quando Evalac se viu afastado dos seus,

imaginou que jamais poderia escapar, se aqueles

homens que o levaram o houvessem de meter na

floresta. E então pegou o pano com o qual o escudo

estava coberto e viu na cruz uma imagem do

crucificado, que lhe parecia que lhe caíam dos pés e

das niãos gotas de sangue. Quando isto viu, tomou-

se-lhe por isso o coração de grande piedade, que era

maravilha. Então disse em seu coração: “Senhor

Deus, que por este sinal tomaste morte, faze-me

tornar ã minha cidade são e feliz, que receba a tua

santa crença e que os outros saibam por mim que tu

és verdadeiro e poderoso em todas as coisas.” Por

esta palavra que vos digo, disse o branco cavaleiro a

Galaaz, ficou o rei Evalac livre do perigo em que

estava, porque Nosso Senhor me enviou lá para

socorrê-lo e tão bem o ajudei, pelo poder que me deu

aquele que para lá me enviou, que o livrei daqueles

que o tinham, e tanto fiz que Tolomer foi preso e

toda sua gente destruída.

54. Como Evalac venceu seus inimigos.

Depois que rei Evalac venceu seus inimigos, voltou

para Sarras e recebeu o batismo pelos grandes

milagres que lhe Nosso Senhor mostrara, porque viu

que o cavaleiro que o braço cortado tinha, assim que

tocou o escudo, logo ficou curado. E ainda

aconteceu outra maravilha, que a cruz se desprendeu

do escudo e se prendeu ao braço do cavaleiro.

Quando o rei viu isto, mandou guardar muito bem o

escudo, porque se comoveu muito pelos milagres

que lhe Nosso Senhor mostrava por ele. E quando

aconteceu pois que ele veio a esta terra para livrar

José de prisão, andou com Josefes, seu filho, de

José, por quem Nosso Senhor fazia tanto bom

milagre, que maravilha era.

55. Como o cavaleiro contou a Galaaz como

fora feita a cruz no escudo. Depois que Evalac

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permaneceu nesta terra muito tempo com Josefes,

este havia de cumprir sua vida. Quando o rei viu que

ele havia de passar, rogou-lhe, por Deus, que lhe

deixasse alguma coisa, pela qual ainda se lembrasse

dele.

— Rei, disse Josefes, pois fazei-me trazer o

vosso escudo, onde vistes o sinal do verdadeiro

crucificado, pelo qual ficastes livre das mãos de

Tolomer.

[63] O rei lhe fez trazer o escudo. Aquela hora

que o escudo trouxeram diante de Josefes, saiu-lhe

tanto sangue das narinas, que o não podiam estancar.

Josefes pegou o escudo e fez nele do seu sangue esta

cruz, tal qual agora vedes, e este é o escudo de que

vos conto. E depois que fez a cruz tal qual ainda

podeis ver, deu o escudo ao rei e disse-lhe:

— Vedes aqui a lembrança que vos deixo de

mim, porque sabeis bem que esta cruz é do meu

sangue. E sabei que sempre assim será fresca e

vermelha, bem como agora vedes, enquanto o

escudo durar; e não durará pouco, porque não o

deitará cavaleiro ao seu colo, que se mal não ache,

até a vinda do bom cavaleiro Galaaz, que será o

derradeiro da linhagem de Nascião, que o deitará a

seu colo. E por isso vos digo que nenhum será tão

valente que o a seu colo deite, senão aquele a quem

Nosso Senhor o tem outorgado. E como mais

maravilha haverá deste escudo que de outro, assim

haverá mais bondade de armas e de santa vida

naquele que o há de trazer do que em outro

cavaleiro.

— Pois assim é, disse o rei, que tão boa

lembrança aqui deixais de vós, dizei-me, se vos

aprouver, onde deixarei o escudo? Porque queria eu,

dc muito bom grado, que ele fosse posto em tal lu-

gar, onde o encontrasse o bom cavaleiro, quando

viesse.

— Direi como fareis, disse Josefes. Lá onde

virdes que Nascião se mandará lançar à sua morte, lá

deixai o escudo. E lá chegará o bom cavaleiro, logo

ao quarto dia que a ordem de cavalaria receber.

E agora assim é, disse o cavaleiro branco a

Galaaz, que ao quarto dia que fostes cavaleiro,

viestes a este mosteiro onde jaz Nascião, e achastes

aqui o escudo. E agora vos contei por que as más

aventuras e as grandes aconteceram aos cavaleiros

que, por sua louca valentia contra esta proibição,

queriam levar o escudo que não estava outorgado

senão a vós.

56. Como o escudeiro rogou a Galaaz que o

fizesse cavaleiro. Assim que isto havia contado a

Galaaz, sumiu-se de tal modo que nunca soube

Galaaz o que fora dele, nem para qual direção se

fora. E quando o escudeiro, que estava diante de

Galaaz e tudo isto ouvira, viu que aquele que tudo

contara havia sumido, desceu do seu rocim, e foi

ficar de joelhos diante de Galaaz, e disse-lhe

chorando:

— Ai, senhor! Eu vos rogo, por amor daquele

Senhor cujo sinal trazeis em vosso escudo e que em

tal sinal recebeu a morte, que me recebais por vosso

escudeiro e me façais cavaleiro.

— Amigo, disse Galaaz, se eu quisesse

companhia de escudeiro, não recearia a vossa, mas

assim é que afastei de mim meus [64] es|cudeiros,

porque não quero companhia de mnguém, a não ser

por ventura, se me encontrar assim com alguém que

não possa ser diferente.

— Senhor, disse ele, fazei-me cavaleiro, por

Deus, porque vos digo lealmente, segundo Deus, não

já para me louvar, que pela ajuda de Deus, será em

mim bem empregada a cavalaria, de acordo com a

força e a valentia que tenho, e Deus, por sua

bondade, me fará bem fazer meus feitos.

IX

Galaaz e a aventura do mosteiro

57. Como Galaaz atendeu o pedido do

escudeiro. Galaaz olhou para o escudeiro e o viu

chorar tão copiosamente, como se visse a pessoa do

mundo que mais amava morta diante de si, e teve

por ele grande compaixão. E por isso lhe concedeu

que o faria cavaleiro.

— Senhor, disse o escudeiro, pois assim é que

me outorgais que me fareis cavaleiro, rogo-vos que

me tomeis à abadia, porque lá terei cavalo e armas, e

não volteis lá tanto por mim, como para ver uma

aventura que há lá que vós tereis pela maior

maravilha que nunca vistes; e como eu cuido, vós

lhe dareis cabo, porque nunca houve cavaleiro que a

ela pudesse pôr fim. E por isso seria bom voltardes

lá.

E ele disse que iria de boamente. Então

voltaram à abadia, e os frades saíram em sua direção

e receberam-no muito bem, e perguntaram ao

escudeiro por que voltara lá; e ele disse que voltava

para o fazer cavaleiro e para ver a aventura que lá

havia. E Galaaz, assim que desceu, perguntou se

poderia ver a aventura que ali havia.

— Senhor, disse um homem bom, bem a

podeis ver e nunca de tal maravilha ouvistes falar. E

vos direi como tempo há que houve aqui perto um

cemitério onde corpos de muitos homens bons e

muitos santos jaziam. E aconteceu que um pagão, o

mals desleal cavaleiro que nunca se viu na Grã-

Bretanha e a mais endiabrada coisa do mundo, foi lá

enterrado. E logo que foi enterrado, quantos na

abadia estavam, viram logo os diabos sobre seu

túmulo, e começou de lá sair uma voz tão infeliz que

todo aquele que a ouvia podia perder a cor por muito

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tempo. E por esta maravilha vieram aí muitas vezes

muitos homens bons e nunca houve um que se não

achasse muito mal, porque, assim que ouvia a voz,

não tinha força de se levantar do lugar; e alguns

havia que morriam; e alguns que viviam, mas estes

eram poucos.

[65] — Aquele túmulo queria eu ver, disse

Galaaz.

E ele disse que lho mostraria, e levou-o então

fora da abside da igreja e passaram por um

cemitério, depois mostrou-lhe num grande campo

ermo, uma grande árvore que lá havia e disse-lhe:

— Em baixo daquela árvore está o túmulo de

onde sai a voz que todo homem que a ouve perde o

sentido e fica desmaiado para sempre; e se lá quereis

ir e quer Deus que possais erguer a pedra, alguma

maravilha encontrareis lá em baixo dela, que é muito

grande verdade.

58. Como Galaaz acabou a aventura do

mosteiro. Depois disto, não esperou mais Galaaz,

mas foi logo ao túmulo; e assim que chegou lá,

ouviu logo uma voz de tão grande dor que maravilha

era, e dizia assim:

— Ai, Galaaz, servo de Jesus Cristo, não te

chegues a mim, porque me farás deixar este lugar

em que até agora fiquei.

Mas Galaaz isto ouviu, não se espantou, como

aquele que era mais esforçado do que outro

cavaleiro, e foi ao túmulo e quis erguer a pedra, e

viu sair uma fumaça, tão negra como pez, depois

uma chama, depois uma figura em semelhança de

homem, a mais feia e a mais estranha coisa que

nunca se viu, e persignou-se, porque bem lhe

pareceu coisa do diabo. Então ouviu uma voz que

lhe disse:

— Ai, Galaaz santa coisa em ti vejo; eu te

vejo cercado de anjos, que não posso resistir contra

ti. E por isso te deixo o meu lugar, em que longo

tempo folguei. Quando ele a voz ouviu, agradeceu

muito a Jesus Cristo e persignou-se e lançou a pedra

longe do túmulo e viu jazer no túmulo um corpo de

cavaleiro todo armado, e uma espada ao lado dele, e

quanto havia mister para cavaleiro, exceto cavalo e

lança. E quanto ele isto viu, chamou os frades e

disse-lhes:

— Vinde ver o que aqui achei, e me direis o

que ainda farei, porque farei mais, se mais devo

fazer.

E eles vieram e viram o corpo jazer no túmulo

e disseram:

— Senhor, bastante tendes feito e não convém

que mais façais, porque este corpo não será daqui

removido, como nós cuidamos.

— Sim, será, disse um homem velho que ali

estava, convém que este homem seja tirado deste

túmulo, porque, nesta terra abençoada e sagrada, não

deve tão desleal corpo e tão mau, como este era,

jazer.

— Amigos, disse Galaaz, fiz nesta aventura

quanto devia fazer?

— Sim, senhor, disseram eles, porque nunca

mais se ouvirá a voz de que tanto mal vinha.

[66] — E que interpretação podia ter esta voz,

disse Galaaz, e esta aventura? Porque sem grande

interpretação isto não podia ficar.

— Senhor, disse um homem bom velho, eu

vo-lo direi, e bem o deveis ouvir, porque muito

maravilhosa coisa é.

59. Como Galaaz fez Melias cavaleiro. Então

se afastaram do túmulo e voltaram ao mosteiro. E

Galaaz disse ao escudeiro:

— Amigo, esta noite fazei vigília para

que de manhã sejais cavaleiro, assim como direito

costume.

E o escudeiro fez como ele mandou e ensinou.

E o homem bom levou Galaaz a uma câmara e o fez

desarmar e depois o fez deitar no leito e disse-lhe:

— Senhor, perguntastes-me pelo significado

desta aventura, a que hoje destes cabo. Eu vo-lo direi

de muito bom grado. Nesta aventura havia três

coisas mui duvidosas. Uma era a pedra do túmulo,

que não era muito fácil de erguer; a outra era o corpo

do cavaleiro; a terceira era a voz que todo homem

que a ouvia perdia o sentido e a força dos braços e

de todos os membros. Destas três coisas vos direi os

significados.

60. Significado da pedra. Sabei que a pedra

que cobria o túmulo representa os endurecidos

corações que Nosso Senhor achou no mundo quando

veio, porque na terra não encontrou senão corações

duros. E bem aparecia, porque o filho não amava o

pai nem o pai o filho, e por isso iam todos para o

inferno. Quando o pai dos céus viu que na terra era

tão grande a dureza dos corações, que os homens

não queriam guardar as palavras dos profetas e

faziam seus novos deuses, enviou à terra seu filho,

para que aquela forte dureza dos corações pudesse

amolecer para tornar os corações dos homens novos

e obedientes. Depois que ele chegou à terra, achou

os corações tão duros e tão envoltos nos pecados

mortais, que tão difíceis lhe eram de tornar a si, quão

difícil seria a alguém amolecer uma pedra muito

grande. Por isso disse ele pela boca de seu profeta

Davi: “Eu estou sozinho na minha paixão”; tanto

quer esta palavra dizer como se dissesse: “Pai, muito

pequena parte deste povo terei convertido até minha

morte.” Ora, é assim que aquela missão para a qual o

Pai‟enviou seu Filho à terra para livrar o povo, agora

está renovada. Porque assim como a discórdia e a

loucura fugiram com sua vinda, e a verdade, por ele,

ficou conhecida, bem assim vos escolheu Nosso

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Senhor sobre todos os cavaleiros, para vos enviar

pelas terras estranhas, para destruirdes as difíceis

aventuras e para fazerdes conhecer como surgiram e

de que modo foram começadas. E por isso se deve

ensinar a vossa vinda como a de Jesus [67] Cristo,

quanto à semelhança, mas não em grandeza. E assim

como os profetas, muito tempo antes da vinda de

Jesus Cristo, profetizaram sua vinda e que ele

livraria o povo dos sofrimentos do inferno, bem

assim profetizaram os santos ermitães e também

muitos homens bons, a vossa vinda, muito tempo

antes que vós viésseis. E diziam bem todos que

jamais as aventuras do reino de Logres teriam fim,

enquanto não chegásseis. E tanto vos esperamos que,

agora, por graça de Deus, já o temos.

61. Significado do cavaleiro, o que demonstra.

— Agora dizei-me, disse Galaaz, o que dizeis

do cavaleiro? Que já muito bem me explicastes o

que demonstrava a pedra do túmulo.

— Eu vo-lo direi, disse o homem bom. O

corpo do cavaleiro nos faz entender o povo que

vivera sob aquela dureza dos corações muito tempo,

assim que eles eram mortos e confundidos por mui-

tos pecados mortais que carregavam sobre si e

acrescentavam sobre si de dia em dia. E bem

aparecia que estavam todos confundidos quando

Jesus Cristo veio à terra. Porque eles, quando viram

entrar em seu meio o Rei dos reis e o Salvador do

mundo, não o conheceram, antes o tiveram por

pecador e cuidaram que era tal como eles e

acreditaram mais na voz do diabo do que nas outras

palavras, e justiçaram sua carne por ordem daquele

que todo o mal tem comandado — pelo diabo, que

lhes andava todo o dia no ouvido. E por isso fizeram

tal feito pelo qual depois Vespasiano os deserdou e

os destruiu, assim que ele soube a verdade daquele

profeta que eles justiçaram tão deslealmente. Assim

foram todos mortos e confundidos, porque

acreditaram no conselho do inimigo. Agora devemos

crer como esta semelhança de agora e de então se

ajusta no conjunto. Esta pedra que aqui está significa

a dureza dos corações, que Jesus Cristo achou nos

judeus e o corpo do cavaleiro significa os judeus e

todos os hereges, que estavam todos mortos pelos

pecados mortais, de que se não podiam livrar. A voz,

que do túmulo saía, significa a dolorosa palavra que

eles disseram a Pilatos, quando disseram: “O seu

sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos.” Por

esta palavra foram confundidos, e foram destruidos e

ficaram desacreditados para sempre.

62. Significado do cavaleiro da paixõo de

Jesus Cristo. Assim podeis entender nesta aventura o

significado da paixão de Jesus Cristo e a lembrança

da sua santa vida. E outra coisa acontecia então

muitas vezes que os cavaleiros andantes vinham aqui

e queriam entrar no túmulo, e o diabo, que os

conhecia por pecadores e por envoltos nos pecados,

os espantava de tal modo que, pela voz [68] espan-

|tosa que fazia, eles perdiam a força dos corpos e dos

membros e jamais esta força, que perdiam, podiam

recuperar. Mas isto não ousou traduzir Robert de

Boron em francas de latim, porque os segredos da

santa Igreja não os quis ele revelar, porque não

convém que os saiba homem leigo. E, de outra parte,

tinha medo de revelar a demanda do santo Graal,

como a verdadeira estória do latim a conta, porque

os homens, enquanto não sabem, ao estudar, caem

em erro e em menosprezo da fé. E por isso, poderia

acontecer que seu livro fosse proibido, que ninguém

se utilizasse dele nem lesse, o que ele não queria de

modo algum; e por isso, promete uma terceira parte

do seu livro que exponha a demanda do santo Graal,

as cavalarias e as proezas que os cavaleiros da mesa

redonda fizeram naquela demanda, e as maravilhas

que nela acharam, e como o santo Graal se foi da

Inglaterra para a cidade de Sarras. E bem saibam

todos que a divindade do Filho sofria, o que não

convem, nem quer ele revelar, porque seria culpado

diante da santa Igreja. Mas quem isto quiser saber,

procure ver o livro do latim. Aquele livro vos fará

entender e saber inteiramente as maravilhas do santo

Graal; porque devemos louvar os segredos da santa

Igreja, nem direi mais, segundo o meu poder, do que

à estória convém, pois não convém ao homem

descobrir os segredos do alto Mestre.

X

Aventuras de Galaaz e de Melias

63. Como Melias pediu a Galaaz que fosse

com ele. Depois que aquele homem revelou a Galaaz

o significado daquela aventura que acabara, disse

que muito era a melhor interpretação que ele

revelara. Aquela noite, fizeram-lhe os frades muito

serviço, porque muito o prezavam e amavam. Antes

da hora de prima, fez Galaaz o escudeiro cavaleiro,

assim como era costume naquele tempo, e depois

perguntou-lhe qual era seu nome e ele disse que

tinha nome Melias e que era filho de rei.

— Amigo, disse Galaaz, pois sois de muito

juízo, guardai que seja empregada bem em vós a

cavalaria de modo que a honra de vossa linhagem

seja por vós levada à frente. Certamente, pois que

filho de rei chega a ponto de receber ordem de

cavalaria, deve-se adiantar em bondade de cavalaria

e em toda proeza a todos os outros cavaleiros, assim

como faz o raio do sol sobre as estrelas.

E ele disse que a honra da sua linhagem não

se perderia por ele porque pela dedicação de seu

corpo que ele punha a serviço da [69] cavalaria, não

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deixaria de ser bom cavaleiro. Então pediu Galaa.z

suas armas para se ir dali e trouxeram-lhas e armou

Melias.

E disse-lhe Melias:

— Senhor, vós me fizestes cavaleiro, à merca

de Deus e à vossa. E por isso tive tão grande prazer

em meu coração que difidilmente vo-lo poderia eu

dizer. Porque, sem falha, o melhor cavaleiro do

mundo me deu armas. E vós sabeis que, segundo o

costume, quem faz cavaleiro novo não lhe pode

negar um dom, se vir que é razoável.

— É verdade, disse Galaaz.

— Senhor, disse ele, peço-vos pois, por favor,

que me deixeis ir em vossa companhia convosco

nesta demanda, até que a ventura nos separe: e se a

ventura nos ajuntar, que me não tolhais vossa

companhia.

E ele lho outorgou de bom grado. Então pediu

suas armas e, depois que foi armado, montou em seu

cavalo e encomendaram os monges a Deus e

andaram aquele dia e outro, sem aventura achar.

Assim que, uma segunda-feira, lhes aconteceu de

manhã, que chegaram a uma cruz de que partiam

duas carreiras. E aquela cruz estava na entrada de

um grande campo, e era de madeira muito velha, e

acharam um letreiro que dizia: “Ouve tu, cavaleiro

andante, que aventura demandar vens. Aqui há duas

carreiras, uma à direita e outra à esquerda. E a da

esquerda te proíbo eu. porque demasiado bom deve

ser o cavaleiro que nela entrar, porque, se bom não

fosse, não poderia sair dela sem grande dano. E da

direita não te digo tanto, porque não há nela tanto

perigo; mas, se nela entrares e não fores bom

cavaleiro, não acabarás lá nada.”

Quando Melias viu este letreiro, disse a

Galaaz:

— Senhor, por cortesia, deixai-me esta

carreira da esquerda, porque quero provar se há em

mim cousa pela qual deva ter mérito de cavalaria, se

vos aprouver.

— Certamente, disse Galaaz, eu iria por lá,que

saberia melhor dar cabo de alguma aventura; creio

que passaria por lá mais facilmente que vós.

E ele disse que, ainda assim, por lá queria ir, e

ele lho outorgou, pois viu que o muito rogava. E

então se abraçaram e encomendaram-se a Deus, e

cada um foi por sua carreira.

64. Mas ora deixa o conto a falar de dom

Galaaz e torna a Metias. Diz o conto que Melias se

separou de Galaaz e andou tanto tempo até que

passou aquele campo e chegou a uma floresta velha

e antiga que se estendia ao longo de duas jornadas; e

andou tanto por ela que chegou a uma ribeira e

encontrou muitas choças feitas e [70] duas tendas

armadas e formosas e bem feitas de pano de seda

vermelha. E entre as tendas, no meio, havia uma

cadeira muito formosa e muito rica e, naquela

cadeira, sentava-se um homem velho, mas não sei se

era cavaleiro ou não; mas tinha coroa de ouro tão

formosa e tão rica, como se fosse feita para algum

imperador. Sabei que dormia tão profundamente,

como se nunca tivesse dormido, mas não havia com

ele homem nem outra coisa, a não ser as tendas.

Quando Melias isto viu, chegou à cadeira, a cavalo

como estava, e lhe pareceu a mais formosa como

nunca vira. Mas quando viu que o homem bom

dormia, pensou como o despertaria, porque muito

lhe agradava saber de seus feitos, antes de retirar-se

e disse em alta voz:

— Amigo senhor, quem sois vós? Dizei-mo,

se vos aprouver.

E ele não respondeu nada; de novo chamou

outra vez com mais alta voz que antes. E ele dormia

tão profundamente; que se não despertou. E então

disse Melias dentro de si: “Ai! Deus, será este

homem rei? que nunca vi rei assim dormir; e pela

maldade que nele vejo, quero-lhe tomar a coroa,

porque cuido que nunca este homem foi rei, senão

de dormir.”

E então lhe tomou a coroa e a pôs em baixo de

seu braço esquerdo, e deixou-o dormir, e foi pela

floresta quanto se pôde ir a poder de cavalo.

65. Como Me/ias levou a coroa e como levou

a donzela de Amador de Belrepaire. E Melias indo

assim pela floresta, encontrou uma donzela, que

fazia grande lamentação por um cavaleiro, que havia

pouco que estava ferido, e a donzela era muito

formosa, e Melias gostou dela e perguntou-lhe por

que fazia tão grande lamento por aquele cavaleiro.

Disse ela que outro cavaleiro o feriu agora de morte,

que não pode cavalgar nem sair daquela floresta. E

Melias lhe disse:

— Donzela, o cavaleiro está morto e não o

podeis levar, e mais vale que o deixeis e vades a um

lugar a salvo, porque sei que, se aqui ficardes nesta

floresta, logo vos poderia vir algum mal.

— Não, senhor, disse ela, em deixá-lo aqui

farei grande mal, e muito a contragosto o farei,

porque muito me amava; mas, pois que, a ficar, a

mim não haveria senão mal, e ele, se eu ficasse, não

teria bem, irei convosco, porque tenho medo de

andar perdida por esta floresta.

— Donzela, disse ele, eu vos guiarei e vos

levarei a salvo.

— Senhor, disse ela, se isto soubesse, iria

convosco, porque bem vejo que deste cavaleiro não

posso ter ajuda, bem o cuido.

Então disse Melias:

— Parece-me perto de morto, mas ainda a

alma nele está.

[71] Então foi a donzela a seu palafrém, que

atara a uma árvore, e cavalgou e deixou o cavalo do

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cavaleiro perto dele, que ainda o tinha pela rédea, e

tinha perto de si o escudo e a lança, e não estava tão

ferido que ainda não sarasse, se tivesse quem o

curasse, porque, sem falha, Boorz de Gaunes o ferira

tanto que estava desmaiado; mas o ferimento não era

assim tão grande. E ouviu bem o cavaleiro quanto

Melias e a donzela disseram, e soube que não era

Boorz aquele com quem ela se ia, e teve muito

grande pesar de que o deixara tão cedo a donzela,

antes que soubesse se estava morto.

66. Como Amador foi atrás de Melias. Então

se ergueu de onde estava e depois lançou seu elmo e

limpou seus olhos, que tinha cheios de sangue, e

depois ajeitou-se o melhor que pôde, como quem ti-

nha grande força e grande ânimo, e cavalgou sobre

seu cavalo e foi atrás de Melias para se vingar, e

alcançou-o e gritou-lhe:

— Deixar vos convém a donzela, porque em

má hora a vistes.

Depois baixou a lança. E quando Melias o viu

vir, pôs a coroa numa árvore e voltou a ele e feriu-o

tão fortemente, que meteu a lança pelo cavaleiro; e o

cavaleiro que era muito forte, feriu Melias tão

fortemente que lhe quebrou o escudo e a loriga e

meteu-lhe pela costa esquerda o ferro da lança, e

caíram em terra tão feridos, que não houve quem

não tivesse necessidade de descansar e de quem o

curasse. E o cavaleiro levantou-se, porque era muito

forte de ânimo, e depois que viu que estava ferido de

morte, meteu mão à espada, e foi à donzela e disse-

lhe:

— Eu estou por vós morto, e justo é que

morrais por mim, porque de outra maneira, estaria

mal vingada a minha morte.

E então pegou a espada e cortou-lhe a cabeça.

Depois que isto fez, não teve tão grande força que

pudesse montar no cavalo, nem ir a Melias, antes

caiu em terra tão ferido, que não cuidou sarar mais.

67. Mas ora deixa o conto a falar de Melias e

torna a Galaaz. Quando Galaaz se separou de

Melias, andou todo aquele dia sem aventura achar

que de contar seja. Aquela noite, chegou à casa de

uma viúva que morava no meio de uma floresta, que

o albergou muito bem e, aquela noite, lhe contou o

ermitão a vida e os feitos de sua linhagem, como

eram leais a Jesus Cristo e o grande amor que lhes

mostrava Jesus Cristo por seu serviço. De manhã,

ouviu missa e despediu-se da mulher e cavalgou e

andou até meio-dia. E então encontrou uma donzela,

que andava num palafrém negro, que lhe perguntou:

— Senhor, sois cavaleiro andante?

— Donzela, sim, sou, por que perguntais?

— Por uma mui grande maravilha, disse ela,

que vos agora direi que encontrei naquela floresta.

[72] — E que maravilha é? disse Galaaz.

— Eu achei agora mortos dois cavaleiros e

uma donzela, que tinha a cabeça cortada, e jazem

todos os três no meio do caminho, e, se quiserdes ir

por esta carreira por onde eu venho, vos levará a

eles.

— E é longe? disse ele.

— Não, disse ela: não há mais que dois

arremessos de besta.

68. Como Galaaz achou Melias ferido. E

então foi Galaaz para onde lhe disse a donzela e

achou o que buscava. E quando reconheceu Melias,

teve grande pesar, pois bem cuidava que estava

morto, e desceu e perguntou-lhe como se sentia. E

ele levantou a cabeça, e, quando o viu, ficou muito

alegre e disse:

— Ai! senhor dom Galaaz, sede bem-vindo.

Por Deus, levai-me a alguma abadia onde possa ter

meus direitos da santa Igreja, porque bem sei que

estou ferido de morte.

— Muito me pesa, disse Galaaz; e quem vos

feriu assim?

— Senhor, disse ele, aquele cavaleiro que jaz

ali, e bem creio que está muito ferido, tão mal como

eu ou pior.

— E aquela donzela, quem a matou? disse

Galaaz.

— Esse cavaleiro, porque vinha comigo, disse

ele.

Então foi Galaaz ao cavaleiro e tirou-lhe o

elmo, porque, se pudesse, queria saber quem era. E

depois que lhe tirou o elmo e o almofre, abriu o

cavaleiro os olhos que tinha cheios de sangue e falou

então e disse a Galaaz:

— Quem sois vós que me o elmo tirastes?

— Mas quem sois vós, disse Galaaz, que a

esta donzela fizestes tal crueza?

— Eu não fiz tanto quanto devera fazer,

porque estou morto e da minha morte terão muitos

grande pesar.

— E quem sois vós? disse Galaaz. Porventura,

sois da casa de rei Artur ou sois da mesa redonda?

— Sim, sou, disse ele, e parti com os outros

na demanda do santo Graal; mas assim me

aconteceu, por meus pecados, que estou morto, e

Deus dê melhor sorte aos outros do que a mim deu.

Quando Galaaz ouviu que era da mesa

redonda, teve grande pesar e teve medo que fosse

dos da sua linhagem de rei Bam. E por isso lhe

perguntou:

— Como tendes nome?

Então disse ele:

— Eu tenho nome Amador de Belrepaire.

E Galaaz reconheceu que era este o derradeiro

cavaleiro que entrara na demanda do santo Graal, e

pesou-lhe muito da sua morte, [73] porque o ouvira

elogiar na corte, de cavalaria e de cortesia. E disse-

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lhe então:

— Amador, muito me pesa da vossa morte,

porque éreis bom cavaleiro.

E Galaaz, isto dizendo, estendeu-se sobre ele

com a dor da morte e disse:

— Ai, Jesus Cristo, Pai de piedade, não olheis

para os meus pecados, mas assim como um pai tem

piedade de seu filho, se o engana, assim tende vós de

mim como de vossa criatura e de vosso filho, ainda

que eu seja pecador.

Então ficou muito tempo assim, e Galaaz teve

tão grande pesar que começou a chorar.

E disse Amador outra vez a Galaaz:

— Galaaz, mui santa pessoa e mui santo

cavaleiro, roga por mim ao Rei dos reis, que tenha

merca de tal pecador como eu sou, porque sei, com

certeza que, se lhe pedires, terá de mim merca e ma

dará, porque ele atende o pedido do justo.

Assim que disse isto, saiu-lhe a alma do

corpo. Quando Galaaz viu que estava morto, tirou o

elmo e beijou-o, e isto fazia ele, porque era da mesa

redonda.

Depois que viu que estava morto, cerrou-lhe a

boca, depois foi a Melias e perguntou-lhe o que lhe

faria.

— Senhor, disse ele, levar-me-eis a uma

abadia, que há aqui perto; e se eu tiver que morrer,

que morra antes lá que em outro lugar no ermo; e se

tiver que sarar, depressa sararei.

Então o desarmou Galaaz e tirou-lhe o ferro

da ferida e atou-a o melhor que pôde. E quando o

queria pôr na besta, chegou Ivã, o bastardo, e

assim que viu Galaaz, reconheceu-o, foi a ele e

saudou-o e perguntou-lhe a verdade como

acontecera, e maravilhou-se, e teve grande pesar do

cavaleiro, e disse:

— Certamente, muito grande pesar terá rei

Artur, quando souber da morte deste cavaleiro,

porque, sem falha, Amador de Belrepaire era um dos

famosos cavaleiros que havia na corte de rei Artur,

em bondade de armas.

E Galaaz disse:

— Agora me pesa mais da sua morte do que

antes, porque todo homem deve ter pesar da morte

de homem bom e, mais, de tão bom cavaleiro como

este companheiro da távola redonda.

69. Como Galaaz defendeu Melias dos

cavaleiros. Eles isto dizendo, eis que vêm dois

cavaleiros armados, que chegaram e perguntaram

qual era o cavaleiro que trazia o escudo branco e a

banda vermelha. E Galaaz disse:

[74] — Vede-o aqui.

E mostrou-lhes Melias, que estava lá; e os

cavaleiros disseram:

— Nós o andamos buscando, porque ele nos

tem feito tanto mal, que, se não está morto, matá-lo-

emos nós.

— Assim? disse Galaaz, certamente não o

fareis, porque o defenderei eu quanto puder.

Então meteu mão à espada; e eles que o viram

a pé, disseram-lhe:

— Cavaleiro, vós sois sandeu, porque quereis

vos matar de caso pensado. E cuidais poder conosco,

estando nós a cavalo e vós a pé?

E ele não respondeu ao que lhe eles disseram.

Então feriu o primeiro que alcançou, tão rijamente

que lhe cortou a metade da loriga com a coxa, assim

que o corpo caiu de um lado e a coxa do outro.

Quando o outro viu este golpe, não teve coragem de

o esperar: além disso, viu que seria loucura esperar

golpe de quem assim feria, e foi à coroa que viu

estar na árvore e tomou-a e voltou-se e começou a ir

quanto pôde. E Galaaz pôs Melias em seu cavalo e

depois foi depós ele e levou-o a um mosteiro que

ficava num vale, porque tinham medo dos ladrões,

pois havia muitos na floresta; e assim fez Ivã, o

bastardo, a Amador de Belrepaire, levou-o àquele

lugar para o enterrar em sagrado; e a donzela,

deixaram-na, porque a não puderam levar, e o conto

não fala mais dela. Mas diz do cavaleiro que foi

enterrado e foi seu nome escrito sobre o túniulo. E

Galaaz perguntou aos monges se havia lá alguém

que soubesse curar ferimentos.

— Senhor, disseram, sim, há.

E trouxeram um homem velho, que fora

cavaleiro. E ele olhou logo Melias, e disse que o

daria logo curado com a ajuda de Deus, e Galaaz

ficou muito alegre e esteve lá três dias depois.

(...)

LXXIX

Galaaz, Persival e Boorz na nave de Salomão

Sepultamento da irmã de Persival

614. De manhã, partiram a tal hora que não

viram rei Peles nem rei Peles a eles. E cavalgaram

muitas jornadas até que chegaram à beiramar e

acharam lá na praia a mui formosa nave, que Salo-

mão e sua mulher fizeram e entraram e acharam

sobre o leito, que no meio da nave estava, o santo

Graal coberto de baixo de um rico pano de seda tão

formoso e tão rico, que era uma grande maravilha;

mostrou-o um ao outro e disseram:

— Que boa ventura nos aconteceu, pois temos

em nossa companhia o que desejávamos; com o que

vamos onde apraza a Nosso Senhor que tenhamos de

ficar.

E depois que estavam dentro da nave, o vento

a feriu tão violentamente, que a levou da praia e a

meteu em alto mar. Assim navegaram muito tempo,

que não sabiam onde Deus os queria levar; e toda

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vez que se deitava e se levantava, Galaaz fazia sua

oração a Nosso Senhor, que a qualquer hora que lhe

pedisse sua morte, lha desse. E tanto fez esta oração,

que a santa voz lhe disse:

[464] — Galaaz, Nosso Senhor fará tua

vontade a respeito do que lhe pedes, porque à hora

em que lhe pedires tua morte, a terás e acharás a

vida da alma e a alegria perdurável.

Esta oração que ele fazia ouviu muitas vezes

Persival e pediu-lhe que dissesse por que tal cousa

rogava.

— Isto vos direi bem, disse ele.

615. Aquela hora que vimos uma parte das

maravilhas do santo Graal, que Deus nos mostrou

por sua piedade, vi umas coisas maravilhosas

escondidas, que não são mostradas a qualquer

pessoa. E vi tais coisas que língua não poderia

contar nem coração sentir, e meu coração ficou em

tão grande alegria e tão grande prazer, que, se então

morresse, nunca alguém teria morrido em tão grande

prazer como eu, porque vi tão grande companhia de

anjos e tantas coisas espirituais, que, se então

morresse, iria logo para a perdurável vida dos

gloriosos mártires e dos verdadeiros amigos de

Nosso Senhor. E por isso fazia eu o rogo que

ouvistes. E por isso ando ainda em tal estado que

morro, vendo as maravilhas do santo Graal.

Deste modo revelou Galaaz sua morte a

Persival como havia de ser, como lhe ensinou a

santa voz.

616. Aquela noite aconteceu que estava

dormindo Galaaz e veio a ele um homem muito

formoso, vestido de uns panos brancos, e disse-lhe:

— Galaaz, bem sei o que pensavas quando

adormeceste.

— E como o sabeis? disse Galaaz.

— Eu o sei bem, disse ele.

— Pois dizei-mo, disse Galaaz.

E ele respondeu:

— Pensas se voltarás ainda ao reino de Logres

ou se o santo Vaso lá voltará. Eu te digo que jamais

voltarás ao reino de Logres, nem Persival, mas

Boorz voltará; e jamais o santo Graal, que tanto bem

fez no reino de Logres, voltará lá, porque não o

veneraram lá nem serviram como deveriam, e, por

quanto bem dele tiveram, muitas vezes, não

deixaram de pecar; por isso serão privados dele de

modo que jamais o terão.

Deste modo soube Galaaz que o santo Vaso

não voltaria à Grã-Bretanha.

617. De tal modo como vos digo, perderam os

da Inglaterra o santo Graal, que tiveram muitas

vezes muito bem por ele, e foram muitas vezes

saciados por ele e, enquanto ele esteve no reino de

Logres, nunca houve fome na terra. Mas assim que

se retirou, começou tal [465] fome, que durou três

anos e foi tão grande, que morreu muita gente e o

sofrimento foi tão grande que, por pouco, não se

comiam os homens uns aos outros. E então

lembraram eles do santo Graal, e disseram que

tinham sofrido muito grande perda e lhes acontecera

por seu pecado e por sua desventura. E quando rei

Artur viu esta fome na terra, disse:

— Certamente, esta fome e aflição

merecemos nós por nosso pecado, e bem se mostra

pelo santo Graal; e assim como Nosso Senhor o deu

a José e aos outros homens bons, que de sua

linhagem vieram, por sua bondade e por sua proeza,

assim o tirou de nós por nossa maldade e por nossa

má vida, e por isso se pode ver que os maus

perderam por sua maldade o que os bons

mantiveram por sua bondade.

Mas ora deixa o conto a falar de rei Artur e de

toda sua companhia e torna aos três cavaleiros.

618. Muito tempo andaram os três cavaleiros

pelo mar e um dia aconteceu que foi Galaaz ao

convés da nave para saber se veria terra, e olhou e

viu a cidade de Sarras e mostrou-a aos outros e tive-

ram grande prazer sobejo porque, havia muito tempo

que não viam terra de nenhum lado. Então ouviram

uma voz que lhes disse: “Saí desta nave, cavaleiros

de Jesus Cristo, e tomai esta mesa de prata como

está, e levai-a à cidade, mas de nenhum modo a

ponhais na terra até que chegueis ao Paço Espiritual,

onde Nosso Senhor fez o primeiro bispo Josef.es.”

E eles queriam já pegar a mesa e olharam pelo

mar e viram vir uma barca, aquela em que meteram

a irmã de Persival. E quando a viram, disseram:

— Bem cumpriu esta donzela o que nos

prometeu.

619. E quando chegaram à praia, pegaram a

mesa e tiraram-na da nave, e pegaram-na pela frente

Boorz e Persival, e Galaaz na outra extremidade e

assim foram para a cidade, e quando chegaram à

porta, estava Galaaz um pouco cansado. Diante da

porta estava um paralítico, que ficava pedindo

esmola aos que passavam, e, quando tinha de andar,

apoiava-se em dois paus, e disse-lhe Galaaz:

— Homem, vem aqui e ajuda-me a levar esta

mesa e a poremos naquele paço.

— Ai, senhor, disse ele, isto não posso fazer,

porque há bem dez anos que não dou um passo sem

ajuda de outrem.

— Não importa, disse Galaaz, levanta-te e não

tenhas medo, porque estás são.

[466] E Galaaz isto dizendo, experimentou o

homem se poderia erguer-se e achou-se são como se

nunca tivesse tido mal. Então correu à mesa e

pegou-a da parte onde segurava Galaaz e, quando

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entrou na cidade, disse a quantos achou o formoso

milagre que Nosso Senhor lhe fizera. E, quando

entraram no paço, puseram a mesa diante da rica

cadeira que Nosso Senhor fizera para Josefes, e logo

correram todos da cidade para ver o que fora

paralítico e estava são.

620. Depois que os três cavaleiros fizeram o

que lhes foi mandado, voltaram ao mar e tiraram a

donzela da barca e levaram-na ao paço e soterraram-

na lá tão ricamente como filha de rei deve ser so-

terrada. Quando Escorante, que era rei da cidade de

Sarras, viu os três cavaleiros, perguntou-lhes de

onde eram e o que traziam sobre a mesa de prata. E

disseram a verdade de quanto lhes perguntou e da

força e virtude que Deus na mesa pusera. Aquele rei

era bravo e desleal mais que qualquer outro do

mundo, como quem era da maldita linhagem dos

pagãos e não quis acreditar em nada de quanto

disseram, antes disse que eram mentirosos e

briguentos e esperou até que os viu desarmados e

mandou então pegá-los e deitá-los na prisão e lá os

manteve um ano. Mas deles não esqueceu Nosso Se-

nhor, que logo meteu dentro o Graal com eles, pelo

qual foram saciados de quanto mister houveram,

enquanto estiveram na prisão.

LXXX

Morte de Galaaz e de Persival

Boorz volta ao reino de Logres

621. No fim do ano, aconteceu que fez Galaaz

esta oração a Nosso Senhor:

— Senhor, a mim parece que vivi já muito

neste mundo. Se vos aprouver, levai-me logo.

Aquele dia mesmo que ele esta oração fez, rei

Escorante estava doente de morte, e fez vir Galaaz

diante de si, e pediu-lhe perdão do que lhe fizera que

o afrontara tanto e tão sem razão. E ele e os outros

lhe perdoaram de muito bom grado, e, quando ele

morreu e foi enterrado, os da cidade ficaram em

grande aflição, porque não sabiam a quem fariam

rei, pois ele não tinha filho, e falaram isto muito

tempo, e estando em seu conselho, disse-lhes uma

voz: “Pegai o maior dos três cavaleiros estrangeiros,

o qual vos guardará e manterá bem, enquanto estiver

convosco.”

[467] E eles cumpriram a ordem da voz, e

pegaram Galaaz, querendo ou não, e fizeram-no rei,

e puseram-lhe a coroa na cabeça, querendo ou não e

desagradando-lhe muito, mas porque viu que o que-

riam matar se o não fizesse, concordou, e depois que

foi rei, fez fazer sobre a mesa, onde o santo Graal

estava, uma abóbada de ouro e de pedras preciosas

tão ricas, que nunca alguém viu tanto. E Galaaz e os

outros, cada vez que se levantavam, iam ao santo

Vaso e ficavam de joelhos diante dele e faziam suas

orações e suas preces.

622. Quando veio, no fim de um ano, o dia em

que ele tomara a coroa, levantou-se muito cedo e os

outros também. E quando entraram no Paço

Espiritual, olharam diante de si o santo Vaso, e

viram um homem revestido como clérigo de missa,

que estava de joelhos diante da mesa e batia a mão

no peito dizendo sua culpa; e estava ao redor dele

muito grande companhia de anjos; e, depois que

ficou muito tempo de joelhos, ergueu-se e começou

sua missa da gloriosa Senhora. E quando chegou

depois da secreta, que o homem bom tirou a patena

de cima do santo Vaso, chamou Galaaz e disse-lhe:

— Vem adiante, servo de Jesus Cristo, e verás

o que tanto desejaste sempre ver.

E ele se aproximou logo e olhou o santo Vaso

e depois que olhou um pouco, começou a tremer

muito violentamente, tão logo a mortal carne

começou a ver as coisas espirituais, e estendeu logo

suas mãos para o céu e disse:

— Senhor, a ti dou graças e a ti oro e a ti

bendigo, porque me fizeste tão grande merca, que

vejo abertamente o que língua mortal não poderia

dizer, nem coração sentir. Aqui vejo o começo das

grandes audácias. Aqui vejo a razão das grandes

maravilhas. E pois assim é, Senhor, que cumpristes

minha vontade de me deixardes ver o que sempre

desejei, ora vos rogo que, nesta hora em que nesta

grande alegria estou, vos agrade que eu passe desta

terreal vida e vá à celestial.

E tão logo rogou a Nosso Senhor, o homem

bom que cantava a missa tomou o Corpus Domini e

lhe deu em comunhão. E Galaaz o recebeu com

grande humildade e o homem bom perguntou:

— Sabeis quem sou?

— Não, disse ele, se não me disserdes.

— Pois sabe, disse ele, que sou Josefes, o

filho de José de Arimatéia, que Nosso Senhor te

enviou para te fazer companhia. E sabes por que me

enviou de preferência a Outro? Porque pareces

comigo em duas coisas: porque viste as maravilhas

do santo Graal [468] como eu, e porque é direito que

um virgem faça companhia a outro virgem.

Depois que Josefes disse isto a Gaiaaz, voltou

Galaaz a Persivai e beijou-o, e depois disse a Boorz:

— Saudai por mim muito a dom Lancelote,

meu pai e meu senhor, tão logo o vejais.

Então voltou para diante da mesa e ficou de

joelhos e não demorou senão pouco. Quando caiu no

chão, a alma se lhe saiu do corpo e levaram-na os

anjos fazendo grande alegria e bendizendo a Nosso

Senhor.

623. Tão logo ele morreu, aconteceu uma

grande maravilha, Boorz e Persival viram que veio

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do céu uma mão, mas não viram o corpo de quem

era a mão, e tomou o santo Vaso e levou-o para o

céu com tão grande canto e com tão grande alegria,

que nunca alguém viu mais agradável coisa de ouvir,

assim como nunca houve quem na terra depois

pudesse dizer com verdade que alguma vez também

viu. Quando Persival e Boorz viram que estava

morto Galaaz, tiveram tão grande pesar que não

puderam maior, e se não fossem tão bons homens e

de vida boa como eram, cairiam em desespero, tanto

tiveram grande pesar. O povo da terra também teve

muito grande pesar, porque era de vida muito boa e

porque fora muito bom rei e porque os mantivera em

sua honra e honra da terra.

624. Dépois que Galaaz foi enterrado no paço

espiritual o mais honradamente que puderam os da

cidade de Sarras, Persival se meteu ermitão numa

ermida fora da vila, e pesou muito aos da vila, que já

haviam decidido que o fariam rei, mas ele não quis e

disse que Deus nunca o fizesse rei longe de seus

amigos e do reino de Logres. E Boorz foi para

Persival, mas não trocou a roupa do século, porque

tinha empenho em ir ainda à casa de rei Artur. Um

ano e dois meses viveu Persival na ermida. Então

passou deste século e o fez Boorz enterrar no Paço

Espiritual com sua irmã e perto de Galaaz. Quando

viu Boorz que havia perdido Galaaz e Persival e

estava em tão longínqua terra e tão estranha como se

estivesse em terra de Babilônia, teve tão grande

pesar, que não soube se aconselhar. E partiu de

Sarras tão escondidamente, que ninguém o pôde

saber, porque, se o soubessem, não o deixariam ir

pela boa cavalaria que nele conheciam. Quando

Boorz partiu de Sarras, veio até o mar armado e

entrou numa nave e teve tão bom vento, que em

pouco tempo chegou ao reino de Logres; e depois

que andou tanto, achou quem lhe desse cavalo; e

cavalgou e foi pelo mais curto caminho que

conhecia para Camalote. E quando chegou a quatro

jornadas [469] de lá, albergou em casa de um

montanheiro e achou lá um cavaleiro que chegara

pouco antes dele.

625. Depois que comeram, Boorz perguntou

ao cavaleiro estranho de onde vinha.

— Senhor, disse ele, venho de Camalote e não

há sete dias que de lá parti.

— E estava lá rei Artur? disse Boorz.

— Sim, disse ele; deixei-o na corte bem com

doze cavaleiros daquela linhagem, mas estavam

muito tristes e tinham muito pesar de Boorz de

Gaunes, que diziam que fora morto na demanda do

santo Graal, e de Galaaz, o bom cavaleiro, e de

Persival. Da perda destes três cavaleiros tinha rei

Artur grande pesar.

— Como vai, disse ele, na corte, a linhagem

de rei Bam?

— Muito bem, disse ele, fora duas coisas:

uma porque rei Artur tem queixa um pouco de

Heitor de Mares, que desafiou Galvão pela morte de

Erec, depois que voltaram da demanda do santo

Graal, e também pela morte de Palamades, e quer

provar que não deve ser cavaleiro nem ter a

companhia da távola redonda, e teria já acontecido a

batalha se dependesse de Heitor; mas a rainha e dom

Lanceloie meteram nisso paz, mas nunca depois se

amaram; a outra é que a linhagem de rei Artur está

condenada, e dizem em segredo, mas não sei se é

verdade, que dom Lancelote deita com a rainha e o

querem dizer ao rei para meterem mortal desamor

entre o rei e a linhagem de rei Bam.

— E que pensais disso? disse Boorz, assim

Deus vos salve, pensais que é verdade?

— Cuido, disse ele, tanto o ouço dizerem

muitos homens bons que merecem crédito.

626. Aquela noite, perguntou muito Boorz por

novas de sua linhagem. No outro dia, despediu-se de

seu anfitrião e do cavaleiro e andou tanto por suas

jornadas, que chegou a Camalote. Mas nunca por

alguém viram tão grande alegria num lugar, porque

muito era amado no reino de Logres por todos e por

todas. Mas o prazer que tinha a linhagem de rei Bam

não tinha par, porque consideravam que tinham em

seu bando um dos melhores cavaleiros do mundo. E

quanto agradara a eles, tanto pesara a Galvão,

porque a linhagem de rei Bam crescia. Rei Artur,

quando viu que Boorz estava já descansado dos

grandes trabalhos que tivera mandou-o vir um dia

diante dele e disse-lhe:

— Eu vos digo, pelo juramento que fizestes

quando daqui partistes, que me conteis todas as

aventuras recentes pelas quais passastes nesta

demanda em que tanto demorastes.

[470] E Boorz, que era bom e de vida boa e

não perjuraria de modo algum, disse todas as

aventuras de que se lembrou que tivera, e como

Galaaz e Persival tinham morrido. E sabei que se

estivésseis ouvindo tudo aquilo, veríeis chorar

muitos homens bons e muitos bons cavaleiros,

quando ouviram como morreram Galaaz e Persival.

Rei Artur fez escrever todas as aventuras que Boorz

lhe contou. E sabei que estes três cavaleiros foram

os mais louvados da demanda:

Galaaz, Boorz e Persival. E Boorz se

intrometeu em meter paz entre Heitor e Galvão, mas

não podia ser, porque Heitor era de ânimo muito

forte e não podia concordar em nada que fosse a

favor de Galvão, porque o tinha por desleal, e amava

tanto Erec, que não podia esquecer sua morte, e dizia

que ainda seria vingado. Que vos direi? Boorz

demorou na corte até perceber que Lancelote amava

a rainha e pesou-lhe muito. Mas sabei que o

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cavaleiro de sua linhagem a quem mais pesava este

feito era Leonel, porque era mais sisudo do que

muitos, e quando se afastava com sua linhagem para

onde não havia outro, dizia:

— Pesar e dano nos advirão deste amor e em

má hora foi começado. Tanto manteve já Lancelote

este amor, que não há cavaleiro em casa de rei Artur,

que algo não tenha ouvido a respeito, e não o

encobrem ao rei, senão pelo pavor que têm da

linhagem de rei Bam, porque sabem que o não dirá

tal que morte não sofra. E os homens da casa de rei

Artur que melhor o sabem sao Galvao e seus irmãos,

mas não o querem dizer, porque entendem que nas-

cerá disso grande mal.

Mas ora deixa o conto a falar das novas que

trouxe Boorz àcorte, de Galaaz e de Persival e do

santo Graal e da condenação da rainha e de

Lancelote, e torna a Agravaim, por contar de que

modo descobriu Lancelote e a rainha contra o rei.

LXXXI

É revelada a rei Artur a deslealdade de

Lancelote

627. Um dia, diz o conto que os irmãos se

apartaram numa câmara e falavam mal do preito da

rainha e de Lancelote; e Galvão, que era mais sisudo

que os outros, disse:

— Calai-vos, porque não há mister, porque se

o dissermos ao rei, tal guerra poderá daí nascer, pela

qual mais de sessenta mil homens poderiam morrer,

e com tudo isto poderia não ficar nossa desonra

vingada, porque sobejaniente é grande a força da

linhagem [471] de rei Bam e Deus os pôs em tal

honra e em tal poder, que não cuido que possam ser

derrubados por alguém, e por isso deixemos isto,

porque muito grande desgraça sobejo poderia advir.

E não digo isto porque não queira mais mal à

linhagem de rei Bam do que poderíeis cuidar, e, se

dependesse de mim, veríeis o que eu mostraria.

628. Depois que isto Galvão disse, respondeu

Gaeriete:

— Como quer que digais isto entre nós, não

concordo que por nós lhes sobrevenha mal, porque

são todos muito bons homens e de muito ânimo e

nosso senhor, o rei, os pôs em tão grande honra e em

tão grande poder, de que só por homens não podem

ser derribados, pelo que vos digo que vos guardeis

de começar guerra contra eles, porque são tão bons

cavaleiros e têm tantos amigos que logo nos

poderiam sobrevir grande mal e muito grande

desonra e, porventura, o reino de Logres seria

destruido.

Com isto concordaram Galvão e Gaeriete,

mas os outros três não, antes disseram que o fariam

saber ao rei e queriam antes ser mortos do que

suportarem mais tão grande angústia de seu senhor e

sua.

— Ai! disse Gaeriete não o façais, porque se o

fizerdes, comprareis vossa morte e a nossa. Ora

olhai que não podeis ver em toda a linhagem de rei

Bam cavaleiro que não valha dois dos outros e estão

tão armados que, se hoje quisessem daqui partir,

veríeis que mais da metade dos cavaleiros da távola

redonda iria com eles. E não é jogo da graça que

Deus lhes deu, antes grande maravilha como já

metem todo o mundo sob seu poder, e o farão, sem

falha, se longamente viverem. E por isso vos

aconselho, por Deus e por vossa honra, que vos

guardeis, e isto mantende em segredo, assim como

amais vossos corpos.

Mas eles não concordaram com nada do que

lhes dissessem.

629. Eles nisto falando, entrou o rei e ouviu o

que dizia Galvão a Agravaim:

— Calar, disse; e nada mais.

— Meu senhor e meu irmão dom Galvão,

assim Deus me ajude, não calarei, antes o direi ao

rei, se Deus ainda me ajudar.

E o rei, que isto ouviu, aproximou-se e disse:

— Agravaim, o que é que me direis?

— Senhor, disse Galvão, não é senão bem;

deixai-nos; isto não é conosco.

— Ainda assim, disse o rei, quero saber.

— Senhor, disse dom Gaeriete, não vos

importeis; já por meu conselho, não sabereis mais,

porque por saber alguém tudo, nenhum [472] bem

pode sobrevir. E sabei que Agravaim não diz senão a

maior chufa e a maior mentira.

— Por Santa Maria, disse o rei, sabê-lo quero

eu. Eu vos digo, pelo compromisso e pelo juramento

que me fizestes, que me digais.

— Senhor, disse Galvão, maravilha é que

sempre vos enfureceis por saber novas. Sabei que

não sabereis por mim nem por Gaeriete. E se alguém

vos disser, mal lhe sobrevirá e a vós pior.

— Assim? disse o rei. Ora quero saber por

esta cabeça, de qualquer jeito.

À boa ventura, disse Galvão, porque, se Deus

quiser, por mim não o sabereis, porque não poderia

sobrevir daí proveito nem honra para mim nem para

outrem, e, sem falha, ganharia no fim vosso

desamor, de modo que me quereríeis daí pior que

qualquer outro, porque assim sucede de tal coisa.

Então saiu da câmara e Gaeriete com ele,

ambos com muito grande pesar, e disseram que em

má hora fora esta conversa começada, porque, se o

rei souber e se pegar com Lancelote, o reino de

Logres será destruído, porque outra coisa não pode

ser. O rei ficou com seus três sobrinhos, fechou a

câmara e virou para eles e disse-lhes:

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— Dizei-me o que ora antes faláveis.

— Assim Deus me ajude, disse Agravaim,

não vos direi a respeito mais nada.

— Por Santa Maria, sim, fareis, disse o rei.

E foi muito rápido correndo a uma espada e

sacou-a da bainha e disse-lhe:

— Ou me direis, ou estais morto.

E ergueu a espada para lhe dar um golpe, e

ele, com pavor, disse:

— Ai, senhor, parai, vo-lo direi.

Então lhe contou o que falavam e disse que

era verdade. O rei ouvira já alguma vez dizer que

Lancelote amava a rainha, mas não o podia crer,

tanto o amava sobejamente, pelo que vezes houve

que respondeu deste modo aos que lhe diziam:

— Por certo, se é que Lancelote ama Genevra,

bem sei que não é por sua vontade, mas a força do

amor o força, que costuma fazer da pessoa mais

sensata do mundo sandeu e do mais leal cavaleiro

desleal, e por isso não sei que vos diga, porque não

cuidava de maneira alguma que tão bom cavaleiro

como ele soubesse cometer traição.

630. Isto disse o rei de Lancelote, que não

podia crer que fosse verJade. Mas aquela hora que

os sobrinhos lhe foram testemunhas teve disso pesar

superior a todos os pesares, porque ele amava a

[473] rai|nha tão desmedidamente, que mais não

podia. Então começou a pensar e ficou muito tempo

sem falar. E Morderete lhe disse:

— Senhor, nós vo-lo encobrimos o quanto

pudemos, e ora vo-lo dizemos contra nossa vontade.

Ora fazei o que vos parecer e que não venha mal a

nossa terra e a nossos amigos.

— Como quer, disse ele, que disso

sobrevenha, eu me vingarei de modo que sempre a

respeito falarão, e, se me quereis bem, rogo-vos que

me apoieis nisso.

E eles lhe prometeram que o fariam, e o rei

lhes prometeu que faria tal justiça que sempre ele e

sua linhagem ficassem honrados. Então saíram da

câmara e foram ao paço, mas bem demonstrava o rei

que andava sanhudo.

631. Todo aquele dia ficou o rei muito triste.

E aconteceu, à hora de noa, que entraram no paço

Galvão e Gaeriete, e quando viram o rei triste, logo

perceberam que sabia já os feitos de Lancelote e da

rainha, e por isso não foram por onde o rei estava,

mas por outro lugar. E Gaeriete disse a Galvão:

— Mau dia hoje chegou a Camalote. Se

alguma vez conheci o orgulho da linhagem de rei

Bam, o reino de Logres pagará isto que ao rei foi

dito.

Todos os do paço estavam calados, que não

ousavam falar, pelo rei que viam triste, afora aqueles

cinco irmãos. Depois entrou um cavaleiro, que disse

ao rei:

— Senhor, novas vos trago do torneio de

Carais, onde os do reino de Sorelois e dà terra Gasta

foram vencidos.

— Ora me dizei, disse o rei, dos cavaleiros

daqui esteve lá algum?

— Sim, disse ele, Lancelote esteve, que os

venceu a todos e levou por isso o apreço e a fama de

uma parte e da outra.

Quando o rei isto ouviu, baixou a cabeça e

começou a pensar muito profundamente e, ao cabo

de muito tempo, ergueu-se tão triste e tão

angustiado, que não podia mais e disse tão alto que o

podiam todos ouvir muito bem:

— Ai, Deus! que aflição e que dano, quando

em tal homem albergou traição!

E foi para sua câmara e deitou-se em seu leito

tão triste e tão aflito, que não soube o que fizesse,

porque bem sabia que, se Lancelote fosse morto ou

preso neste preito, nunca tão grande mal haveria pela

morte de um cavaleiro do mundo, mas antes queria

que morresse, do que sua desonra não ser vingada.

Então mandou chamar seus sobrinhos e disse-lhes:

— Quero que deis cabo e proveis este feito.

[474] E eles disseram:

— Senhor, em vosso alcance está e vos

diremos como pode ser. Dizei, à noite, a vossos

companheiros, que quereis ir de manhã àcaça, mas

não leveis Lancelote convosco, e bem sabemos que,

se ficar aqui, irá à rainha e o espreitaremos.

— E o rei concordou com aquele conselho.

Sobrevieram Galvão e Gaeriete e, quando viram que

falavam nisto, disse Galvão ao rei:

— Senhor, Deus faça que deste conselho

venha bem a vós e a outrem, porque, certamente,

temo que venha dele muito mal. Agravaim, meu

irmão, rogo-vos que não façais nada a que não deis

fim, e nada digais de Lancelote, que não sabeis

verdadeiramente, porque, certamente, ele é muito

melhor cavaleiro que vós.

— Galvão, Galvão, disse o rei, fora daqui,

porque jamais confiarei em vós, porque muito mal

me andastes neste feito, que sabíeis de minha

desonra e não me queríeis dizer. Certamente, quem.

examinasse bem vos devia fazer como a desleal e

traidor.

— Senhor, disse ele, direis o que vos

aprouver, mas traição nunca em mim vistes, e se

traição fiz, nunca foi a vós nem em vosso dano.

Então saiu da frente dele e disse:

— Agravaim, nada daria por isso, mas sei

verdadeiramente que há de vir grande mal, e muitos

homens bons que nunca dano mereceram, morrerão

por isso.

— Ora, ainda que sobrevenha bem, disse

Gaeriete ao rei e a vós, meu irmão, jamais me

esforçarei neste preito, porque sei verdadeiramente

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que nunca alguém se pegará com a linhagem de rei

Bam, que a bom termo possa chegar.

— Por Deus! disse Galvão, não há homens no

mundo que eu tanto desame. Mas são tantos e tão

bons, que lhes prejudica muito pouco meu desamor.

E por isso os deixo até que veja minha força.

632. Então saíram da câmara e foram à

pousada de Gaeriete. E indo pela vila, acharam

Lancelote e Boorz e Leonel e Heitor e Bliobleris

com grande companhia de cavaleiros, e receberam-

se muito bem e com grande alegria, e Gaeriete disse

então a Lancelote:

— Eu vos rogo que esta noite passeis em

meus aposentos, e sabei que vo-lo digo em vosso

proveito.

E ele concordou. Então voltou Lancelote com

ele e foram àpousada e desarmaram-se; depois, à

tarde, foram ao rei, e estando às mesas, disse o rei a

todos os cavaleiros que, no dia seguinte, queria ir à

caça. E Lancelote disse:

— Senhor, eu vos farei companhia, se vos

aprouver.

[475] — Não, disse o rei, porque tendes mais

necessidade de descansar que de caçar, porque

chegastes hoje cansado do torneio, por isso quero

que fiqueis.

E ele não ousou contrariar a ordem do rei e

disse que ficaria, mas bem entendeu que o rei não

lhe fazia gesto de amor nem de bom cavaleiro como

costumava, e maravilhou-se do que seria, porque não

julgou que tivesse sido denunciado.

À noite, quando voltaram à pousada de

Gaeriete, disse a Boorz:

— Vistes que atitude teve comigo hoje o rei?

Não acreditarei em nada, senão que está com raiva

de alguma coisa.

— Sabei verdadeiramente, disse Boorz, que

recebeu novas de vós e da rainha. Ora cuidai do que

faremos, pois estamos numa guerra, que, por muito

tempo, não acabará. Deus no-la faça bem acabar,

porque o rei Artur é muito temido.

— Ai, Deus! disse Lancelote, quem foi tão

ousado que disse estas novas ao rei?

— Se foi cavaleiro, disse Boorz, foi

Agravaim; e se foi mulher, foi Morgana, que vos

desama tão mortalmente como sabeis. Nenhuma

outra pessoa ousaria dizer, senão uma destas.

No outro dia, disse Galvão a Lancelote:

— Eu e Gaeriete com estes outros cavaleiros

queremos ir à caça; quereis ir?

— Não, disse ele, porque não tenho hoje

vontade de ir desta vez. Então foram atrás do rei e

ele ficou.

633. Assim que rei Artur foi à caça, mandou

dizer a rainha a Lancelote que fosse a ela, no çaso de

ele não ter mais o que fazer, e ele ficou muito alegre

e disse-lhe que iria o mais escondidamente que

pudesse, e aconselhou-se com Boorz como o poderia

fazer.

— Ai, senhor! disse Boorz, por Deus, não

vades, porque se fordes, pesar vos sobrevirá, porque

meu coração, que nunca teve medo por vós, o diz.

E ele disse que de nenhum modo deixaria de

ir.

— Senhor, disse ele, visto que não quereis

ficar, ensinarei como ir lá escondidamente. Vedes

aqui uma horta pela qual podeis ir, e ninguém vos

verá. Mas ainda assim levai vossa espada, porque

ninguém sabe o que pode acontecer.

E assim fez ele, e foi à câmara da rainha. Mas

bem sabei que Morderete e seus irmãos com muitos

outros cavaleiros seguiam seu caminho. Assim que

ele entrou na câmara, deitou-se com a rainha, mas

não ficou muito que vieram à porta os que

espreitavam, e acharam-na fechada e disseram:

— Agravaim, que faremos? Arrombaremos a

porta?

[476] — Sim, disse ele.

E, ao baterem à porta, ouviu-os a rainha e

levantou-se toda intimidada e disse a Lancelote:

— Ai, amigo! estamos mortos.

— Como? disse ele, que é isto?

E escutou e ouviu à porta grande rebuliço e

grandes brados de pessoas que queriam arrombar a

porta.

— Ai, amigo! disse ela, ora saberá o rei meus

feitos e os vossos. Tudo isto nos preparou Agravaim.

— Assim Deus me ajude, disse ele, eu lhe

urdirei por isso a morte.

Então se levantou.

— Ai, senhora, disse ele, há aqui alguma

loriga?

— Certamente, disse ela, não, porque apraz a

Deus que morramos ambos. Mas se aprouvesse a

Deus que escapásseis daqui são, não haveria quem

ousasse me matar sabendo que estais vivo; mas

cuido que nosso pecado nos destrói.

Então foi Lancelote à porta e gritou aos que

fora estavam:

— Maus cavaleiros e covardes, esperai um

pouco, porque logo tereis a porta aberta, e verei qual

será o valente que entrará primeiro.

Então abriu a porta e disse:

— Ora entrai.

E um cavaleiro que tinha nome Einaguis,

entrou primeiro, porque desamava Lancelote. E

Lancelote, que tinha já a espada levantada, feriu-o

com toda sua força, que lhe não prestou arma que

trouxesse, que o não fendesse todo até as espáduas, e

o meteu morto no chão. E quando os outros viram

este golpe, não houve alguém tão valente que

quisesse entrar, antes se afastaram, de modo que a

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entrada ficou livre. Quando isto viu, disse à rainha:

— Senhora, esta guerra está acabada. Quando

vos aprouver, irei.

E ela disse:

— Se fordes a salvo, não temerei por mim.

Então puxou Lancelote o cavaleiro que matara

e fechou a porta para não entrarem os outros e

desarmou-o e depois armou-se com aquelas armas o

melhor que pôde e disse à rainha:

— Senhora, agora posso ir, se Deus quiser, a

salvo, porque de quantos aqui me aguardam me

livrarei muito bem, como cuido.

— Pois ide, disse ela, e pensai em mim,

porque bem sei que logo terei mister de vossa ajuda.

— Convém que eu vá, disse ele, mas se vos

aprouver, levar-vos-ei, porque não há alguém aqui

por quem vos deixe.

[477] — Isto não quero eu, disse ela, porque

assim logo seriam nossos feitos mais conhecidos;

mas melhor o disporá Deus.

Então abriu as portas Lancelote, e disse que

não queria mais ficar preso, e feriu o primeiro com

um tão grande golpe, que caiu no chão desfalecido; e

os outros, que isto viram, afastaram-se, e não houve

quem o caminho não lhe deixasse. E Lancelote foi à

horta e da horta à pousada, e achou numa câmara

Boorz, que tinha medo de que ele não voltasse,

porque bem lhe dizia o coração que os da linhagem

de rei Artur o pegariam com a rainha, se pudessem.

634. Quando Boorz viu armado seu senhor,

que fora desarmado, logo entendeu que havia

acontecido alguma briga e perguntou-lhe a respeito.

E ele lhe disse tudo, como Agravaim e Morderete e

Guerrees quiseram pegá-lo com a rainha, com

grande companhia de cavaleiros, mas se defendera

de modo que não puderam pegá-lo.

— Ai, senhor! disse Boorz, ora vai mal, agora

está o preito descoberto, agora começará a guerra

que nunca acabará, e quanto vos amou o rei até aqui

mais de coração que a qualquer outro que de sua

linhagem não fosse, tanto vos desamará daqui para

frente, depois que souber verdadeiramente a afronta

que lhe fizestes com sua mulher. Ora vede o que

possamos fazer, porque bem sei que de hoje em

diante o rei será nosso mortal inimigo. Mas pela rai-

nha, que será por nós julgada de morte, muito me

pesa, e de bom grado queria que tivéssemos

conselho como escapasse.

A este conselho sobreveio Heitor e pesou-lhe

muito, quando soube como estava a contenda, e

disse:

— Senhor, já que é assim, vamos àquela

floresta e escondamonos; e quando a rainha for

julgada de morte, levá-la-ão fora da vila para a

queimarem. Então sairemos e a livraremos e a

levaremos a Benoic ou a Gaunes; e depois não

recearemos o rei.

Com esta idéia concordaram Lancelote e

Boorz e logo cavalgaram eles e vinte e sete

cavaleiros muito bons que lá estavam, e depois que

partiram de sua pousada, foram à floresta e

meteram-se pela beira dela onde a viram mais

espessa e lá ficaram até a noite. Então chamou

Lancelote um seu donzel e mandou-o a Camalote

para saber novas da rainha, e o donzel se despediu

deles e cavalgou em seu rocim e foi ao paço.

Ora deixa o conto a falar dele e torna aos três

irmãos de quem Lancelote se separou.

635. Diz o conto que, àquela hora em que

Lancelote escapou daqueles que o queriam pegar

com a rainha, entraram eles na câmara e pegaram a

rainha e fizeram-lhe muita desonra e muito pesar, e

[478] disseram-lhe que estava agora a sua traição

provada e que agora morreria. E ela chorava tão

sentidamente, que bem deveriam dela ter dó os que a

levavam.

Hora de noa, chegou o rei da caça, e assim

que apeou, logo lhe disseram novas da rainha, que

acharam com Lancelote e estava presa. Quando ele

isto ouviu, teve grande pesar, isto não pergunte

ninguém, e perguntou se Lancelote estava preso.

— Senhor, disseram eles, não, porque se

defendeu tão violentamente como nunca alguém se

defendeu.

— Pois que, disse o rei, não está aqui, achá-

lo-eis em sua pousada. Mandai armar cavaleiros e

ide e prendei-o e trazei-mo, e farei justiça dele e da

rainha juntos.

Então foram-se armar bem trinta cavaleiros e

não de boa vontade, mas porque o rei ordenou, e

foram à pousada de Lancelote, mas não o acharam, e

não houve quem ficasse muito alegre por isso,

porque bem sabiam que achariam nele defesa

mortal. Então voltaram ao rei e lhe disseram, e o rei

disse que lhe pesava, mas, visto que não podia

vingar-se em Lancelote, vingar-se-ia na rainha. O rei

Iom lhe disse:

— Senhor, o que quereis fazer?

— Quero, disse ele, por esta deslealdade,

fazer dela tal justiça, que todas as outras sejam

castigadas. E mando a vós, rei Iom, primeiramente,

porque sois rei, e a todos os ricos-homens também

que aqui estão, e rogo-vos pela fé que me deveis,

que cuideis de qual morte deve morrer, porque da

morte não deve escapar, ainda que o julgásseis.

— Senhor, disse rei Iom, não é direito

costume nesta terra proferir juízo depois de noa,

sobretudo de morte de homem ou de mulher, e

acima de tudo, de tão alta dama como é a rainha.

Mas amanhã cedo, se mandardes, o faremos.

Então deixaram de falar nisso e o rei teve tão

grande pesar, que todo aquele dia não comeu nem

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bebeu, nem quis que a rainha ficasse diante dele.

636. De manhã, hora de prima, assim que os

ricos-homens foram reunidos, ordenou o rei a

Morderete e Agravaim e a todos os ricos-homens

que dissessem o que haviam de fazer com a rainha

por direito juízo. E eles emitiram veredicto e

disseram Agravaim e Morderete:

— Este é o julgamento correto e não há outro:

visto que, em lugar de tão alto homem como rei

Artur meteu outro cavaleiro, deve ser queimada.

[479] Com isto concordaram todos ou por

vontade ou por força. Quando Galvão viu que davam

tal julgamento, disse:

— Se Deus quiser, nunca concordarei com tal

julgamento, em que veja a morte da mulher do

mundo que mais honra me fez.

Então foi ao rei e disse-lhe:

— Senhor, deixo-vos quanto de vós tenho, e

jamais, enquanto viver, vos servirei.

O rei não ligou a nada que lhe dissesse,

porque muita outra coisa tinha em seu coração. E

Galvão despediu-se dele e foi a sua pousada,

fazendo o maior pranto do mundo. E o rei mandou

fazer muito grande fogueira fora da vila no campo, e

as lamentações e os prantos foram tantos e tão

grandes pela vila, como se a rainha fosse mãe de

todos. O rei mandou buscar a rainha, que viesse à

sua frente, e ela veio chorosa, vestida de um pano de

seda vermelho. E ela era tão formosa mulher e tão

agradável, que no mundo não se acharia outra em

sua idade. E quando o rei a viu, teve dela tão grande

dó, que não podia deter nela o olhar, e mandou que a

levassem de sua frente e lhe fossem fazer aquilo a

que a condenaram.

637. Assim que a rainha saiu do paço e a

levaram pelas ruas da vila, veríeis correr de todas as

partes e sair moços e moças e velhos e velhas e ricos

e pobres gritando e bradando e fazendo a maior

lamentação do mundo, e diziam todos a uma voz:

— Ai, boa senhora e de boa aparência e mais

cortês e mais educada que outra mulher, em quem

acharão depois os mais pobres conselho e piedade?

Ai! rei Artur, que a fazes por deslealdade e bravura

matar, pesar ainda te sobrevenha e sejas por isto

destituído do reino, e os traidores que te levaram a

fazer ainda morram de má sorte!

Assim diziam todos os da vila, quando

passava por entre eles; e depois iam todos atrás dela,

gritando como se estivessem fora de juízo.

LXXXII

Lancelote arrebata a rainha

O sofrimento de rei Artur

638. O rei ordenou a Agravaim e a seus

irmãos que pegassem oitenta cavaleiros para guardar

o campo onde a fogueira estava, de modo que, se

Lancelote viesse, não a pudesse livrar.

— Senhor, disse ele, se quiserdes que eu vá,

ordenai a meu irmão Gaeriete que vá conosco.

[480] E o rei ordenou, e Gaeriete disse que

não o faria, mas tanto o ameaçou o rei que disse que

iria. Então armou-se e todos os outros que Agravaim

escolheu e Agravaim também se armou. E depois

que ficaram armados e saíram da vila, disse Gaeriete

a Agravaim:

— Imaginais que venho aqui para me pegar

com Lancelote, se ele socorrer a rainha? Sabei que

não me esforçarei por isso porque, assim Deus me

ajude, antes queria que outra coisa ele tivesse,

enquanto vivesse, do que morte aqui.

Assim falando, chegaram à fogueira. E

Lancelote, que estava escondido na floresta, assim

que viu seu donzel chegar, perguntou-lhe:

— Que novas trazes da rainha?

— Senhor, disse ele, más, porque a trazem

para ser queimada.

— Assim? disse ele. Ora cavalguemos, porque

quem cuida matála morrerá por isso. E praza a Deus,

se alguma vez ouviu oração de pecador, que ache lá

Agravaim que armou isto.

Então montaram e contaram-se e acharam

trinta e três, e foram muito bem armados o mais que

puderam para onde viram o fogo. E quando as

pessoas que estavam no campo os viram vir, gri-

taram aos que guardavam a rainha:

— Fugi, fugi! Vedes aqui Lancelote que vem

libertar a rainha.

E Lancelote, que vinha à frente dos outros,

deixou-se correr para Agravaim, porque bem o

reconheceu por suas armas, e feriu-o tão

violentamente, que lhe não valeu escudo e loriga,

que não metesse a lança por ele, de modo que o ferro

apareceu da outra parte, e meteu-o por terra, e, ao

cair, quebrou-lhe a lança. E Boorz se deixou ir a

Guerrees e feriu-o com uma lançada, que o meteu

em terra de tal modo que não houve mister mestre. E

os outros, que com Lancelote vinham, foram ferir os

outros e derribaram muitos deles; depois, meteram

mão às espadas e começaram sua luta muito brava e

muito feroz. Mas quando Gaeriete viu que seus

irmãos estavam por terra, ficou muito sanhudo,

porque bem cuidou que estavam mortos. Então se

deixou ir a Meliaduz, o negro, que se esforçava

muito por ajudar Lancelote e por vingar a honra da

rainha, e deu-lhe uma tal lançada, que deu com ele e

o cavalo na fogueira; e depois meteu mão à espada e

feriu outro com tal golpe, que o meteu morto aos pés

de dom Lancelote. E quando este, que muito

observava Gaeriete viu que lhes fazia tal dano, disse

consigo mesmo que, se muito durasse, muito os

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atrapalharia, e por isso mais valeria o matarem, se

pudessem, embora fosse o cavaleiro da corte que os

da linhagem de rei Bam mais amavam. Então foi

dar-lhe tão forte espadada, que lhe deitou o elmo da

cabeça no chão. [481] E quando ele sentiu a cabeça

descoberta, ficou todo espantado. E Lancelote, que

ia de uns a outros e andava correndo as fileiras de

uma parte e da outra e não o reconhecia, feriu-o tão

violentamente por cima da cabeça, que o fendeu até

os dentes e o meteu morto por terra. E isto foi muito

grande dano, porque era um dos bons cavaleiros da

corte, e amara sempre Lancelote, mais do que outro

cavaleiro da corte que alguma vez tivesse visto. Com

este golpe ficaram os do rei apartados e

desbaratados, de modo que de oitenta que eram, não

escaparam senão três, que fugiram para a cidade.

Um foi Morderete e os outros dois da távola

redonda. E quando Lancelote isto viu, foi à rainha e

disse-lhe:

— Senhora, o que quereis que vos façamos?

E ela respondeu muito alegre:

— Queria que me levásseis a um lugar onde o

rei não me pudesse fazer mal.

— Senhora, disse ele, montai e vamos àquela

floresta, e tomaremos lá conselho do que será bom

fazer.

E ela concordou. Então a puseram num

cavalo, porque havia bastantes sem dono; depois

foram à floresta onde a viram mais espessa e

contaram sua companhia e acharam menos quatro, e

perguntaram-se o que fora feito deles, e disse-lhes

Heitor:

— Vi três que Gaeriete matou.

— Como? disse Lancelote, estava Gaeriete

nesta luta?

— E que é isso que me perguntais, disse

Heitor; vós o matastes.

— Ora, disse Lancelote, bem podemos dizer

que jamais teremos paz com o rei e com Galvão, por

morte de Gaeriete, de que me pesa muito, assim

Deus me ajude. E agora começará a guerra que não

acabará em todos os dias de nossa vida.

639. Muito teve Lancelote grande pesar da

morte de Gaeriete, porque era dos cavaleiros do

mundo que ele sempre mais amara. E Boorz disse a

Lancelote:

— Senhor, haverá mister ficar a rainha a salvo

em lugar onde não tivesse medo do rei.

— Se a pudéssemos ter, disse Lancelote, num

castelo que eu conquistei, lá estaria a salvo, porque o

castelo é forte à maravilha e fica num lugar que não

pode ser cercado; e depois que lá fôssemos e o

tivéssemos abastecido, mandaria pedir ajuda a

muitos cavaleiros, a quem ajudei muitas vezes, e a

muitos que conquistei, e são tantos que, se os tiver

em minha ajuda e ficarmos naquele castelo, com

facilidade poderemos guerrear com um homem de

grande poder.

— E onde fica este castelo? disse Boorz.

[482] — Perto da cidade de Longuefão e

chama-se castelo da Joiosa Guarda; mas quando o

conquistei, há muito tempo, quando era cavaleiro

novo, chamava-se a Dolorosa Guarda.

— Ai! disse a rainha, já vi este castelo, e é

exatamente tão forte, que não teme nada a não ser

traição.

Concordaram com isto e andaram tanto que

chegaram a um castelo que ficava no meio da

floresta e tinha nome Caleque e era senhor dele um

conde muito bom cavaleiro e de grande poder, que

amava muito a Lancelote, e quando soube que vinha,

ficou muito alegre e recebeu-o muito bem e lhe fez

todo o serviço que pôde e toda honra, e prometeu-

lhe que o ajudaria contra o rei Artur e disse-lhe:

— Senhor, senhor, eu vos dou este castelo

para vós e a rainha e o deveis receber, porque é tão

forte, que não tereis aqui medo de rei Artur.

E Lancelote agradeceu muito, mas disse que a

outro lugar queriam ir.

No outro dia, despediu-se do conde Dangis,

que lhe deu quarenta cavaleiros e o fez jurar que o

ajudasse, como o ajudaria ele. Então partiram e

andaram tanto que chegaram ao castelo da Joiosa

Guarda. E quando os do castelo souberam que

Lancelote vinha, saíram para recebê-lo, fazendo tão

grande alegria e tão grande festa, como se fosse

Deus. E quando souberam que havia de morar como

eles e por quê, juraram que o ajudariam contra todos

os homens do mundo e ele se animou com isso.

Mandou logo buscar todos os da terra, e eles vieram

e eram muitos, depois fez abastecer muito bem seu

castelo.

Mas ora deixa o conto a falar dele e torna a rei

Artur.

640. Naquela hora, diz o conto, em que rei

Artur viu voltar seu sobrinho Morderete com muito

pequena companhia, maravilhou-se e perguntou

como era aquilo; e um donzel que esteve onde a

batalha acontecera, disse-lhe:

— Senhor, muito más novas vos direi, de que

vos pesará e a quantos aqui estão. Sabei que de todos

os cavaleiros que levaram a rainha à fogueira, não

escaparam senão três, e destes três que escaparam,

um é Morderete e os outros dois não sei quais são.

— Ai! disse o rei, Lancelote esteve lá?

— Por Deus, senhor, sim, disse ele. E ainda

fez mais, que leva a rainha consigo e entrou na

floresta com ela.

Quando o rei estas novas ouviu, teve tão

grande pesar, que não soube o que fizesse. Nisto

chegou Morderete que disse ao rei:

— Senhor, vai mal! Lancelote nos desbaratou

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a todos e levou a rainha consigo.

[483] — Ora, atrás dele, disse o rei, porque

não escapará, se depender de mim.

Então fez armar cavaleiros, servos e todos

aqueles que com ele estavam e cavalgaram o mais

rápido que puderam e foram à floresta e olharam de

uma parte e da outra. Mas aconteceu que não o

acharam. Então mandou o rei que se distribuíssem

por muitas partes para ver se os poderiam achar. E

rei Carados disse:

— Senhor, isto não tenho por bem, porque se

se dividirem e Lancelote os achar, a todos matará,

porque traz boa companhia de bons cavaleiros.

— Pois o que faremos? disse rei Artur.

— Senhor, disse ele, vo-lo direi. Mandai

vossos homens com cartas vossas a todos os desta

terra, que ninguém ouse deixar passar Lancelote

nem alguém de sua companhia, e assim, terá de ficar

na terra; e depois que ficar e soubermos onde está,

iremos a ele e poderemos facilmente pegá-lo e vos

vingareis dele.

641. Fez o rei suas cartas e mandou a todos os

portos de Logres para que ninguém ousasse deixar

passar Lancelote ou alguém de sua companhia. E

depois que enviou os mensageiros, dirigiu-se para

onde fora a derrota e viu Agravaim, seu sobrinho,

que Lancelote matara, e tinha um pedaço da lança no

meio do peito, de modo que o ferro aparecia da outra

parte. E teve tão grande pesar, que não pôde manter-

se em sela, e caiu sobre ele desfalecido e ficou assim

muito tempo, e quando acordou e pôde falar, disse:

— Ai, bom sobriilho! mortalmente vos

desamava aquele que este golpe vos deu e grande

dor meteu no meu coração quem tal cavaleiro abateu

de minha linhagem.

E depois que isto disse, tirou-lhe o elmo da

cabeça e beijou-lhe os olhos e a boca; depois o fez

levar à cidade. E depois percorreu todos os outros, e

achou Guerrees, que Boorz matara, e tinha uma

lançada pelo meio do peito. Ali veríeis o rei

lamentação fazer e dizer que muito vivera quando

via a morte dos homens do mundo que mais amava e

com que pesar isto via. E depois fez levar Guerrees

em seu escudo. E andou olhando os outros e olhou à

esquerda e viu Gaeriete, que Lancelote matara, e

este era o sobrinho que ele mais amava, afora

Galvão. E quando viu aquele que tanto amava, não

se comparou a dor que dos outros tivesse à deste.

Então foi a ele e abraçou-o, e caiu desfalecido sobre

ele, que os que estavam no lugar cuidavam que

tivesse morrido. E depois que ficou assim o tempo

que andaram uma meia légua, acordou e disse:

— Ai, morte! como me tardas, porque me

parece que já vivi muito. Ai, Gaeriete, meu

sobrinho, se tenho de morrer de pena, [484] morrerei

com pena de ti, porque nunca vi morte de que tanto

me pesasse. Ai, bom sobrinho e bom amigo, em má

hora foi feita aquela espada que assim te feriu e

maldito seja o braço que tal golpe te deu, porque

confundiu a mim e a toda a minha linhagem.

Depois beijou-lhe os olhos e a boca e o rosto

ensangüentado como estava, e fez tal pranto, porque

todos o amavam e o prezavam, tanto era bom

cavaleiro e bom cortesão.

642. Grandes foram os lamentos e os gritos

que faziam por ele os mais, tanto parentes como

amigos, e tomaram Gaeriete em seu escudo e o

levaram à vila, e quando os da vila souberam que

esta morte fora feita, veríeis o pranto violento e cada

um pegava seu amigo e levava ao paço. A estes

gritos saiu Galvão de sua pousada, que bem cuidava

que a rainha já estava morta e este tão grande pranto

era por ela. E estando na rua perguntando, disseram-

lhe:

— Ai, dom Galvão, se quereis ver vosso

grande pesar e a destruição de vossa linhagem, ide

ao paço e lá vereis o maior pesar que nunca vistes.

E ele teve grande pesar destas novas e não

respondeu a nada que lhe dissessem, e baixou a

cabeça muito triste e começou a dirigir-se ao paço,

mas não cuidou que o pranto era senão pela rainha e

olhou à direita e à esquerda e viu as pessoas todas

chorarem e carpirem; e cada um lhe dizia:

— Ide, dom Galvão, ide, e vereis vosso mui

grande pesar e vossa mui grande pena.

Quando ouviu que todos falavam daquilo,

cresceu-lhe muito maior pesar, mas não o ousou

mostrar e foi triste e pensativo. E, quando entrou no

paço, achou todos tão grande pranto fazendo como

se todos os parentes do mundo vissem diante de si

mortos. E quando o rei viu Galvão, disse-lhe em alta

voz:

— Galvão, Galvão, vedes aqui vossa grande

dor e minha; vedes, aqui está vosso irmão Gaeriete

morto, o mais prezado cavaleiro da nossa linhagem.

E mostrou-o todo ensangüentado, como o

tinha reclinado em seu peito. Quando isto viu,

Galvão não teve força para falar nada, nem para se

manter de pé, porque lhe faltou o ânimo e o corpo

fraquejou e caiu no meio do paço como morto, e

ficou muito tempo desfalecido. E os ricos-homens,

que lá estavam com grande pesar, que jamais

cuidavam ter prazer, quando viram que era Galvão,

foram pegá-lo e o seguraram em seus braços

chorando muito sentidos e dizendo:

— Ai, Deus! Como aqui há grande dano de

todas as partes!

[485] E depois que Galvão ficou assim muito

tempo e acordou, levantou-se e voltou a Gaeriete,

que estava morto e retirou-o do rei e abraçou-o e

começou a beijá-lo e tomou-se-lhe de tão grande dor

o coração, que não pôde se manter de pé e caiu por

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terra com Gaeriete e ficou maior tempo que antes, e

depois que acordou, sentou-se e começou a olhar

Gaeriete, e quando lhe viu tão grande golpe, disse:

— Ai, bom irmão! maldito seja o braço que

tal golpe vos deu, porque matou a mim e a toda a

minha linhagem, e não vale mais por isso, porque,

depois do que vejo, não quero mais viver, ai bom

irmão, senão até que vos vingue do traidor que isto

vos fez e me deu tão grande dor no coração.

643. Tal lamento fez Galvão e maior fizera, se

pudesse, mas apertou-se-lhe o coração com pesar, de

modo que o não pôde fazer senão tarde. E depois

que esteve assim muito tempo, olhou a sua direita e

viu jazerem Guerrees e Agravaim diante do rei sobre

seus escudos em que os trouxeram. E quando os

reconheceu, disse em muito alta voz:

— Ai, mesquinho! em má hora vivi tanto, que

vejo mortos de má morte meus irmãos!

Então foi a eles e deixou-se cair sobre eles, e

abraçou-os e beijouos ensangüentados como

estavam e desfaleceu sobre eles muito amiúde, de

modo que os altos homens que lá estavam cuidaram

que morreria entre seus irmãos.

644. O rei, que estava tão abatido que não

sabia o que pudesse fazer nem dizer, perguntou aos

ricos-homens:

— O que faremos? Porque se deixarmos aqui

muito tempo Galvão, cuido que morrerá de pesar.

— Senhor, disseram eles, acharíamos bom

afastá-lo daqui e o guardarmos numa câmara até que

estejam enterrados, porque, sem falha, se ficar muito

tempo aqui, morrerá.

E o rei concordou com este conselho, e

levaram-no os ricos-homens a uma câmara

desfalecido como estava. E todo aquele dia e aquela

noite dormiu que nada falou. Todo aquele tempo foi

grande a dor no paço e pela vila. E os cavaleiros

mortos foram desarmados e enterrados cada um

como valiam. Para Guerrees e Agravaim tão ricos

túmulos fizeram e tão formosos, como se fossem

para filhos de rei. E puseram-nos ambos juntos e

meteram-nos dentro do mosteiro de Santo Estevão

de Camalote, que então era Sé. Assim estes dois

deitaram e à cabeceira destes, puseram outro tuniulo

muito melhor e mais rico que algum daqueles e

fizeram nele meter [486] Gae|riete. Mas ao enterrar,

poderíeis ver o grande dó e o grande pranto, porque

todos os arcebispos e bispos da terra foram lá e

todos os altos homens bons, que puderam, chegaram

a sua sepultura e fizeram tanta honra aos mortos

quanto mais puderam, mas muito mais a Gaeriete. E

porque era tão bom homem, fizeram erguer seu

túmulo mais que todos os outros, e fizeram escrever

um letreiro que dizia: “Aqui jaz Gaeriete, sobrinho

de rei Artur, que Lancelote do Lago matou.” E

também fizeram sobre as lápides dos outros escrever

o nome daquele que julgavam que os matara.

645. Depois que os arcebispos e bispos e

clérigos fizeram -tudo o que deviam fazer, voltou o

rei a seu paço e sentou-se diante de seus ricos-

homens com grande pesar, como não teria, se

perdesse a metade de seu reino; e também estavam

todos tristes, que não sabiam o que dizer e fazer. No

paço estavam todos os ricos-homens e muitos outros

cavaleiros e muita gente, mas tão calados estavam,

que parecia que não havia ninguém lá. O rei estava

na parte mais alta do paço muito triste, e depois que

ficou muito tempo, disse tão alto que todos o

ouviram:

— Ai, Deus! quão longamente me suportastes

e mantivestes em grande honra e grande altura, e

agora estou em pouco tempo rebaixado e aviltado

por desgraça. Nunca alguém perdeu tanto como

perdi, porque esta é perda superior a todas as perdas;

porque se alguém perde terra, pode recuperá-la,

como muitas vezes acontece, mas se alguém perde

amigo ou parente, não pode recuperar de nenhum

modo. Senhores, esta perda sofri como vedes, e não

por vontade de Nosso Senhor, mas pela soberba de

Lancelote do Lago. E se esta perda me viesse por

vingança de Deus, a suportaria com honra, mas veio

por aquele que pusemos em mais alto lugar de honra

que achamos, e recebemos em nossa terra tão

honradamente como se fosse meu filho. Aquele nos

fez este dano e esta desonra. E tendes todos de mim

terra e sois meus vassalos, porque me fizestes ho-

menagem e juramento, e por isto vos rogo, pelo

direito que deveis cumprir, que me ajudeis e

aconselheis como homens bons devem aconselhar

seu senhor, de modo que minha desonra seja vingada

e tenhais honra em quebrar e confundir aqueles que

esta desonra me fizeram.

646. Depois que o rei isto disse, calou-se e

esperou até que seus ricoshomens respondessem. E

começaram a olhar-se e a dizer um ao outro o que

falar. E depois que ficaram muito tempo calados,

levantou-se rei Iom e disse ao rei:

[487] — Senhor, sou vosso vassalo e de bom

grado devo aconselhar-vos o que seja em vossa

honra e em proveito do reino. Nossa honra, sem

falha, é vingar com a nossa força, mas quem em

proveito do reino quisesse olhar, não cuido que

começasse guerra contra a linhagem de rei Bam de

Benoic, porque vemos que Nosso Senhor os exaltou

tanto sobre todas as outras linhagens, que se sabe

que em força de gente e de boa Qavalaria e de boa

linhagem, não há, que eu saiba, quem no mundo lhes

pudesse muito prejudicar, estando eles em sua terra,

senão vós; e, senhor, por isso vos rogo, por Deus,

que não comeceis guerra contra eles, se não virdes

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que a podeis acabar muito bem, porque, certamente,

a meu ciente, difícil será desbaratá-los.

647. Então foi grande o rebuliço no paço e

falaram que rei Iom nada dissera e que o dizia por

covardia.

— Certamente, disse ele, não o digo por pavor

maior que algum de vós, mas sei verdadeiramente

que, depois de começada a guerra, e se recolherem

eles a sua terra, nos temerão muito menos do que

cuidais.

— Certamente, dom Iom, disse Morderete,

nunca de tão bom homem saiu tão mau conselho.

Mas se o rei confiar em mim, de nenhum modo

deixará de ir e de vos levar consigo, ainda que vos

pese.

— Morderete, Morderete, disse rei Iom, por

certo irei com mais boa vontade do que vós. E vá o

rei quando quiser, que, de bom grado, irei com ele.

— E o que discutis? disse Mador da Porta. Se

quereis a guerra, muito perto a achareis, porque

Lancelote está num castelo que conquistou logo que

foi cavaleiro quando andava nas primícias das

aventuras pelo reino de Logres e o castelo tem nome

a Joiosa Guarda e o conheço bem e sei onde fica e

tenho o dever de saber, porque estive lá muito tempo

preso e tinha grande pavor da morte, quando me

livrou Lancelote a mim e a outros cavaleiros daqui

que lá estavam presos.

— Por Deus, disse o rei, esse castelo conheço

muito bem, mas cuidais que está lá a rainha com ele?

— Senhor, digo-vos verdadeiramente que a

rainha está lá, e Lancelote com todos os seus

parentes, assim como aqui estava e não vos

aconselho que vades lá desta vez para lhes fazer mal,

porque o castelo é tão forte, que nunca alguém o

cercou; e eles são tão bons cavaleiros, que não

recearão vos fazer guerra e desonra.

648. Quando o rei isto ouviu, respondeu:

[488] — Por boa fé, Mador, verdade me dizeis

do castelo, que é forte, e da soberba deles. Mas bem

sabeis e quantos aqui estão que, desde que fui

coroado rei, não comecei guerra a que não desse ca-

bo à minha honra e de meu reino. Por isso vos digo

que não deixarei de nenhum modo de fazer guerra

contra aqueles que me têm feito traição e tão grande

perda e rogo-vos primeiramente a quantos aqui

estais que me ajudeis nisso, assim como em vós

confio. Também mandarei chamar os que mais longe

estão que de mim têm terra; e depois que estiver

toda nossa força reunida, e pode ser daqui a quinze

dias, partiremos então. E porque quero que não vos

afasteis, quero que me façais todos homenagem e me

jureis que mantereis comigo esta guerra com toda

vossa força até que nossa desonra seja vingada.

E fez logo trazer os santos Evangelhos e

recebeu logo homenagem e juramento. Depois

mandou dizer por toda sua terra, perto e longe, aos

que dele tinham terra, que viessem a ele e marcou o

dia em que estivessem com ele com toda sua força

na Joiosa Guarda. Com isto concordaram todos e

prepararam-se para ir lá e cuidaram levar a cabo

facilmente o que diziam.

649. Quando Lancelote ouviu estas novas,

mandou dizer ao reino de Benoic e ao reino de

Gaunes, e aos ricos-homens que dele terra tinham,

que guarnecessem bem os castelos, de modo que, se

porventura tivessem de partir da Grã-Bretanha e ir

para Gaula, tivessem seus castelos bem guarnecidos

contra rei Artur. Depois, mandou a rainha para o

reino de Sorelois, e mandou dizer à terra Forânea e a

todos os cavaleiros que ele ajudara e a quem

demonstrara amor muitas vezes, que viessem ajudá-

lo contra rei Artur. E porque ele era o cavaleiro do

mundo mais amado e que maior amor e honra fazia

aos cavaleiros, e por aquele rogo com que os

mandou rogar, vieram tantos cavaleiros em sua

ajuda que, se Lancelote fosse rei coroado, seria

grande coisa reunir tão grande cavalaria como reuniu

na Joiosa Guarda.

Mas ora deixa o conto a falar deles e torna a

rei Artur e sua companhia.

LXXXIII

Desfecho da guerra de rei Artur e de

Lancelote

650. Conta a estória que aquele dia que o rei

marcou para seus ricoshomens que estivessem

reunidos em Camalote, o foram e houve [489] lá tão

grande ajuntamento, que muito tempo havia que não

se ajuntara tão grande cavalaria. Neste ínterim, ficou

curado Galvão, que tivera muito grande enfermidade

com o pesar da morte de seus irmãos. Aquele dia

que foram reunidos, disseram ao rei:

— Senhor, antes que partais daqui, teríamos

por bem e seria assim como nos parece, que destes

fidalgos que aqui estão, escolhêsseis tantos quantos

mataram pela rainha e os metêsseis na távola

redonda no lugar dos que mataram, de modo que a

conta de cento e cinqüenta fosse preenchida, e bem

vos dizemos que, se o fizésseis, nossa companhia

seria mais temida.

651. O rei concordou com isto e disse que era

bem, e chamou seus ricos-homens e ordenou-lhes

pelo juramento e pela homenagem que lhe haviam

feito, que escolhessem os melhores cavaleiros de

bondade e de boas habilidades que achassem e não

os deixassem por pobreza e por não serem de alta

linhagem e os metessem na távola redonda. Então

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saíram à parte superior do paço e souberam pri-

meiramente quantos eram os que faltaram, e

acharam na contagem que faltavam setenta e dois e

escolheram outros tantos que mereceram. Mas, sem

falha, o maior assento da távola redonda, que con-

tinuavam a chamar o assento perigoso, não houve

tão ousado que ousasse nele sentar. Mas no assento

de Lancelote sentou um cavaleiro que tinha nome

Elians e era o melhor cavaleiro e o mais afamado de

toda a Irlanda e era filho de rei. No assento de Boorz

sentou outro cavaleiro que tinha nome Balinor e era

filho do rei das Estranhas Ilhas; aquele, sem falha,

era muito bom cavaleiro e, por rogo de seus amigos,

ganhou o assento de Boorz. E o assento de Heitor

teve outro de Escócia, que era bom cavaleiro e

poderoso de armas e amigos, e era grande de corpo e

muito valente à maravilha e chamava-se Vadans, o

negro, e era de muito alta posição, mas era tão bravo

e tão invejoso, que não se conhecia cavaleiro que o

fosse tanto. O lugar de Gaeriete teve um cavaleiro

que se chamava Gaeris de Norgales e era jovem e

muito bom cavaleiro; depois, os melhores dos outros

cavaleiros que acharam meteram nos outros

assentos.

652. Quando isto fizeram, as mesas postas,

assentaram-se para comer e serviram aquele dia a

mesa de rei Artur sete reis seus vassalos, e aquele

dia ajeitaram seus feitos para que partissem no outro

dia de manhã. No outro dia, ouviram missa e saíram

e chegaram nesse dia a um castelo que tinha nome

Lambor. No outro dia, partiram daí e andaram tanto

por suas jornadas, que chegaram a meia légua da

Joiosa Guarda, e porque viram o castelo tão forte

que não [490] temia força de gente e não podia ser

cercado, senão de longe, pousaram na margem do

Ombre, e puseram a sua frente, enquanto se

preparavam, cavaleiros armados de modo que, se

viessem os do castelo, fossem tão bem recebidos

como se deve receber inimigos. Deste modo se

prepararam os da hoste para receberem seus

inimigos. Mas os do castelo, que eram bons

cavaleiros, mandaram boa parte de sua cavalaria que

se escondesse numa floresta, que ficava perto dali,

para terem condição de ataque imprevisto na guerra,

quando vissem que fosse azado, de modo que

fossem atacados pelos da floresta e pelos do castelo,

e não deram nada por seu cerco, antes os deixaram

pousar muito em paz e disseram que no outro dia

atacariam.

653. Os cavaleiros da floresta eram em

número de duzentos, muito bons cavaleiros e muito

valentes, e Boorz e Heitor eram capitães deles; e os

do castelo combinaram com eles este sinal: assim

que de manhã vissem uma senha vermelha na maior

torre, logo saíssem e fossem atacar, porque logo

sairiam, assim que a guerra fosse empreendida por

ambas as partes. Como disseram, assim o fizeram.

Quando viram que os deixavam pousar em paz,

ficaram muito seguros e disseram muitos deles que,

se Lancelote tivesse grande companhia, não deixaria

de nenhum modo de atacar, porque não era cavaleiro

que suportasse mal que lhe fizesse seu inimigo.

Quando Lancelote viu que rei Artur o havia

cercado e era o homem do mundo que ele mais

amara e lhe fizera mais honra, teve tão grande pesar

que não soube o que fizesse, não por medo, mas

porque amara o rei mais que outra pessoa que não

fosse seu parente. E por isso pegou uma donzela e

apartou-se com ela numa câmara e disse-lhe:

— Donzela, ireis a rei Artur e lhe direis da

minha parte que me maravilho muito, porque

começou esta guerra contra mim, porque bem cuido

que nunca tanto o afrontei por que o devesse fazer.

Se vos disser que o faz pela rainha e que o afrontei

como alguns dizem, dizei que me defenderei contra

os dois melhores cavaleiros de sua corte que

injustamente me recriminam, e pela honra dele e por

seu amor que perdi por falsa acusação, dizei-lhe que

me meterei em juízo diante de sua corte, se lhe

aprouver. E se disser que começou esta guerra pela

morte de seus sobrinhos, dizei-lhe que daquela

morte não sou culpado por que me devesse desamar

tão mortalmente, porque eles mesmos foram

culpados de sua morte. Donzela, dizei ao rei, meu

senhor, que não me sinto tão culpado contra ele, que

não me submeta a julgamento em sua corte. E, se ele

não quiser concordar com nenhuma destas coisas

que lhe mando dizer, [491] resistirei a sua força com

maior pesar que ele ou outrem cuidaria pensar. E

saiba que, depois que a guerra começar, todo o mal

que puder fazer aos seus, farei. E ele,

verdadeiramente, porque o tenho por senhor e

amigo, embora não me venha ver como amigo, mas

como inimigo mortal, asseguro-lhe que não se

guarde de mim, antes o guardarei sempre de todos

aqueles que vir que lhe querem fazer mal. Donzela,

isto lhe dizei.

E ela disse que aquela ordem cumpriria tão

bem que depois não pudesse ser culpada. A donzela

se despediu dele e saiu do castelo, de modo que

ninguém o ouviu. Isto foi à hora de vésperas.

Naquela hora estava o rei ceando, e porque ouviram

que era mensageira, assim que lá chegou, levaram-

na ao rei, e chegou-se ao rei e disse-lhe quanto

Lancelote mandou.

654. Galvão, que estava perto do rei, ouviu

quanto a donzela lhe disse e falou antes que os

outros falassem e disse de modo que todos os ricos-

homens o ouviram:

— Senhor, senhor, está na hora de vingar

vossa vergonha e o grande dano que recebestes de

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vossos sobrinhos por Lancelote, e tendes poder e

força para fazer o que tínheis dentro do coração em

Camalote: confundir e reduzir a nada a linhagem de

rei Bam, que, por sua soberba e desmedida ambição,

vos fez tão grande mal e tão grande dano, que jamais

poderá ser vingado, senão por Deus.

E isto vos digo, porque se agora fizésseis paz

estando na hora de vos vingardes, vo-lo teriam por

mal os vossos e os estranhos.

— Galvão, disse à rei, o preito já está de tal

modo que, enquanto viva, por cousa que Lancelote

possa dizer ou fazer, jamais terá paz comigo, embora

seja o homem do mundo a quem eu mais devia

perdoar um grande erro, porque, sem falha, ele fez

mais por mim do que qualquer outro cavaleiro. Mas,

enfim, me fez um tão grande mal que vos prometo

como rei que nunca comigo terá paz.

655. Então dirigiu-se à donzela e disse-lhe:

— Donzela, dizei a vosso senhor que, de

quanto me mandou dizer, nada farei e jamais,

enquanto viva, não terá paz comigo.

— Por certo, disse a donzela, senhor, isto é

grande dano, mais para vós do que para outrem,

porque vós, que sois agora o homem mais poderoso

do mundo e o mais afamado, sereis por isso destruí-

do e morto e os homens sisudos, que muito falaram

do vosso fim, não estavam enganados, porque,

quanto a isto, não há dúvida de que os sisudos

adivinhadores que houve em nosso tempo, que sa-

biam grande parte das coisas que haviam de vir,

disseram que, no fim, havia a linhagem de rei Bam

de trazer mal e vencer e [492] asse|nhorear-se de

todos os seus inimigos. E vós, dom Galvão, que de-

víeis ser sisudo, sois mais néscio do que eu cuidava,

porque buscais vossa morte a ainda o podeis ver.

A donzela despediu-se então do rei e foi para

seu senhor e contou-lhe quanto lhe disse o rei, e ele

teve grande pesar.

656. No outro dia, pela manhã, mandou

Lancelote erguer a senha vermelha na torre, e os da

floresta a viram logo e saíram e Lance-lote saiu

àquela hora do castelo, e começaram a batalha muito

violenta de ambas as partes. Naquela batalha, perdeu

o rei Artur muito, e muito mais que os outros,

porque os da linhagem de rei Bam eram de tão

grande bondade de armas, que o rei e seus homens

não lhes podiam resistir sem perder muito cada vez

que se enfrentavam, e isto era muito amiúde. E no

fim, perdera o rei tudo, se não fosse o arcebispo de

Cantuária, que era parente da rainha, e excomungou

todo o reino de Logres, porque o rei não queria

voltar a sua mulher, mas quando o rei viu que a

santa Igreja o constrangia deste modo, pegou-a. E

ficou muito mais alegre do que parecia, porque ele

amava a rainha sobre todas as coisas do mundo. E

sabei verdadeiramente que Lancelote não a

entregara, se não fosse que as pessoas percebessem

que era verdade o que diziam. E ele se desculpava a

respeito para muitos homens bons.

657. Depois que Lancelote deu a rainha,

retirou-se de todo o reino de Logres com toda sua

linhagem, e passou o mar e foi para Gaunes e fez

reis coroados seus primos: a um deu o reino de

Gaunes, e a outro o de Benoic e toda a Gaula, como

lhe dera rei Artur. Naquele tempo podiam dizer bem

os do reino que eram ricos de bom senhor e de boa

cavalaria; porque tinham bom senhor, que bem

mantinha a terra e o reino em paz. Mas aquela paz

não demorou muito, porque depois veio aí rei Artur,

com todo seu exército para vingar a morte de seus

sobrinhos e isto foi por conselho de Galvão; e cercou

a cidade de Gaunes, onde estava Lancelote com toda

sua linhagem. E depois que a teve cercada, perdeu lá

mais do que ganhou, porque sobejo tinham grande

poder os de dentro. E, se Lancelote quisesse, muitas

vezes o vencera e o prendera, mas não quis, porque

amava rei Artur com muito grande amor.

658. Quando o rei viu que nada podia fazer

naquele cerco para sua honra, disse um dia a Galvão:

— Matastes-me, porque me fizestes aqui vir,

porque os de dentro não dão nada por nós.

Quando isto ouviu Galvão, teve grande pesar,

e tão grande foi o pesar, que mandou dizer a

Lancelote:

[493] — Lancelote, se és tal que digas que

não mataste meus irmãos, à traição, eu te provarei.

E Lancelote quando isto ouviu, teve grande

pesar e disse que se defenderia. E foi à batalha

diante da cidade de Gaunes; e quando foram metidos

no campo, fez Galvão seu tio prometer que, se

Lancelote o vencesse, rompessem o cerco de Gaunes

e dessem a Lancelote por quite de todo queixume

que dele tinham; e Lancelote também fez sua

linhagem prometer que, se Galvão o vencesse, todos

se tornassem vassalos de rei Artur exceto rei Boorz e

rei Leonel: estes dois ficassem livres desta

convenção, porque eram reis.

659. Então foram combater ambos os

cavaleiros, e durou a batalha muito tempo. Mas no

fim, ficou Galvão tão ferido, que não pôde mais; e

matara-o então Lancelote, se não fosse por amor do

rei e de todos os ricos-homens do reino de Logres. E

sabei que, naquela batalha, recebeu Galvão um tal

golpe de que depois não pôde curar-se, antes o levou

aquela chaga à morte. Quando a batalha foi

encerrada, rei Artur deu por quite Lancelote e toda

sua linhagem de quanto queixume dele tinha.

Mas ora deixa o conto a falar deles e torna a

rei Artur, por falar como teve sua batalha com o

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imperador de Roma.

660. Nesta parte diz o conto que, assim que o

pacto de rei Artur e de Lancelote foi feito, chegaram

umas novas de que teve grande pesar e muito grande

sanha, porque lhe disseram que o imperador de

Roma estava na Bretanha com muito grande gente e

queria tomar Gaula e depois passar ao reino de

Logres e conquistá-lo. E o rei tinha muitos

cavaleiros feridos e demorou até que sararam. Quan-

do viu que Galvão e outros cavaleiros estavam já

sãos, saiu com todo seu exército contra o imperador

de Roma e lutou com ele e venceu-o e matou-o, e

pegou muitos dos melhores de Roma e os fez jurar

sobre os santos Evangelhos que o levassem a Roma;

e, ao partir, disse-lhes:

— Levareis aos romanos, de minha parte, o

imperador, e lhes direis que esta é a renda- que lhes

devo.

LXXXIV

Levante de Morderete

Rei Artur na capela Veira

661. Aquele dia que os romanos foram

vencidos, chegaram a rei Artur umas novas muito

más, porque um escudeiro lhe disse:

[494] — Senhor, perdestes o reino de Logres.

Morderete, vosso sobrinho, sé virou com todos os

homens bons da terra contra vós e é rei coroado de

toda vossa terra, e cercou a rainha Genevra no ai-

cácer de Logres e ameaçou que a mataria, porque o

não queria receber por marido.

E quero-vos contar como. Digo-vos que,

quando rei Artur partiu de Logres sobre Lancelote,

recomendou, sem falha, sua terra e sua mulher e sua

gente, que ficava, a seu sobrinho Morderete e fez

jurar sobre os santos Evangelhos que fizessem por

Morderete tanto como por seu corpo. Quando

Morderete viu que a terra estava em seu poder, logo

pensou que faria de modo que seu tio não tivesse

como voltar a ela. E ele amava a rainha como nunca

Lance-lote a amou mais. E mandou então fazer uma

carta falsa que fez trazer como a caminho de onde

estava, perante os homens bons de Logres, que

fizessem Morderete rei e lhe dessem a rainha por

mulher. Os de Logres, que verdadeiramente

cuidavam que era como a carta dizia fizeram

Morderete rei; e quando lhe quiseram dar a rainha

por mulher, não quis ela, porque o desaniava muito e

meteu-se no aicácer de Logres, com gente de sua

linhagem. E Morderete fez combater a torre, mas

não a pôde tomar, porque os que dentro estavam

eram muito bons e a defenderam bem.

662. Esta foi a traição que Morderete fez a seu

tio, de que o rei teve grande pesar, quando a respeito

ouviu as novas, e disse:

— Agora cavalguemos, porque, se Deus

quiser, não descansarei até que esteja em Logres.

Quéia, o mordomo, fizera muito bem na

batalha, mas saiu ferido de morte, e também Galvão

e muitos outros bons cavaleiros. Quéia, que bem viu

que não poderia ir à batalha, fez-se levar à Nor-

mandia, à casa de uma mulher que fora sua amante.

Ali morreu Quéia e fizeram os da linhagem do rei,

por amor de Quéia, uma vila que tem o nome Caião.

663. O rei chegou ao mar e passou-o com

tanta gente como trazia. Galvão, assim que chegou à

terra, morreu logo, e levaram-no ao castelo de Cros.

Morderete, logo que assumiu o poder, fez-se amar

tanto por todos, pelo muito bem que nele havia de

muitas coisas, que todos o amavam muito. Por isso

aconteceu que lhe disseram, quando souberam que

vinha rei Artur:

— Senhor, não tenhas medo, mas cavalga e

defende o que nós te demos, porque temos gosto de

receber morte por defender tua honra.

[495] 664. Morderete fez então armar toda sua

gente, e partiu de Logres, onde mantinha a rainha

cercada. E assim que ele partiu, meteu-se a rainha

num mosteiro de mulheres e pensou que, se

Morderete vencesse, não seria tão mau que dali a

tirasse, e se Morderete fosse vencido, iria para seu

senhor.

Morderete cavalgou com toda sua companhia

tanto que alcançou rei Artur com muita gente.

Quando os dois exércitos se encontraram, muito foi

dito de uma parte e da outra, se poderiam meter

nisso a paz. Mas não pôde ser, porque o rei não

concordou. Todas estas coisas que aqui convém que

vos não revele amplamente, achareis no conto do

Brado, porque não me comprometi a revelar exaus-

tivamente as grandes batalhas que houve entre a

linhagem de rei Bam e de rei Artur, e o imperador de

Roma e rei Artur, porque seriam mais que as três

partes do livro.

665. Quando os exércitos foram ajuntados no

campo de Salaber, lá se poderia ver bons cavaleiros

de um lado e de outro. Por isso aconteceu que, assim

que se feriram às lanças, veríeis tantos jazer em terra

mortos e feridos, que maravilha era. E naquela

batalha havia sete reis da parte de rei Artur. E o

conto do Brado diz quais eram. Ali morreu Ivã, filho

de rei Urião. Ali morreu Quéia Destrais e Dondinax,

o selvagem, e Brandeliz e bem vinte da távola re-

donda, dos quais o que menos valia era tido por

muito bom cavaleiro e por bom homem.

Naquela batalha fez Morderete tão bem em

armas e tanto se defendeu maravilhosamente, que

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não houve quem o visse naquele dia, que o não

tivesse por muito bom cavaleiro estranhamente. E

sabei que a estória diz que, em toda sua vida, não fez

tanto em armas como naquele dia só, porque por

suas mãos matou seis companheiros da távola

redonda, de quem o conto do Brado conta os nomes

e os feitos.

E rei Artur também fez tão bem aquele dia,

que todos os seus consideraram façanha e nunca

mais cansava de ferir com a espada. Por isso Lucão,

que estava perto dele e via as maravilhas que fazia,.

disse a Gilfrete:

— Dom Gilfrete, estejamos seguros de que

venceremos esta batalha; vedes aqui rei Artur que

boa figura nos faz. Bem ensina a vencer e matar seus

inimigos. Bem deve ser chamado rei quem assim

sabe ajudar sua gente.

Isto disse Lucão, o copeiro, de rei Artur,

quando viu que tão bem o fazia. E rei Artur andou

tanto pela batalha, que achou Morderete e deu-lhe

por cima do elmo um tão grande golpe, que o meteu

em terra estonteado, e cuidou que estava morto, e

disse-lhe:

[496] — Morderete, muito mal me tens feito,

mas não se tornou em teu proveito.

666. Rei Artur derribou Morderete como vos

digo. Mas não ficou em terra nada, porque seus

vassalos o ergueram. Mas quando montou o cavalo,

teve grande vergonha de ter caído diante de seus ho-

mens. E deixou-se correr a Sagramor, e deu-lhe um

tão grande golpe, que lhe deitou a cabeça longe, e o

corpo caiu no chão. E quando o rei viu este golpe,

disse:

— Ai, Deus, como é grande a má andança do

traidor, matar os bons cavaleiros e os leais.

O rei recuperara já sua lança boa e forte e

deixou-se correr a Morderete, que nada temia, tanto

era de bom ânimo, e feriu-o tão rijamente, que lhe

meteu a lança pelo peito e o cabo apareceu da outra

parte. E diz a estória que, depois que tirou a lança

dele, passou pelo meio da chaga um raio de sol, tão

claramente, que bem o viu Gilfrete; por isso os da

terra, depois que a respeito ouviram falar, disseram

que era milagre de Nosso Senhor e sinal de pesar.

Morderete sentiu bem que estava ferido de

morte e feriu o rei, seu tio, tão violentamente que

elmo nem almofre não prestou que a espada não

fizesse entrar até o osso, e do osso lhe cortou grande

pedaço. Daquele golpe, caiu o rei no chão e também

Morderete.

667. De tal modo como vos conto, matou rei

Artur Morderete e Morderete o feriu de morte. E isto

foi grande mal e grande dano, porque não houve,

depois de rei Artur, rei cristão tão venturoso e que

tão bem fizesse seus feitos e que tanto amasse e

honrasse cavalaria.

Quando Bliobleris, que diante dele estava, viu

este golpe, disse com muito grande pesar:

— Ai, Deus! Agora vejo a profecia cumprida

que os homens sisudos desta terra disseram muitas

vezes, que rei Artur morreria pela mão de seu filho.

Ai, Deus! que dano e que perda!

Então apeou e aproximou-se do rei e o pôs em

seu cavalo. E o rei estava ainda tão estonteado do

golpe, que dificilmente se podia manter, no entanto,

assim que acordou e viu Morderete jazer por terra,

disse:

— Morderete, em má hora te fiz cavaleiro. Tu

me confundiste a mim e ao reino de Logres, e por

isso estás morto. Maldita seja a hora em que

nasceste!

E aquela hora que o rei isto disse, estava já a

batalha acabada, porque de sessenta mil, que aquele

dia foram lá ajuntados, não ficaram senão sessenta,

que não morreram. E Bliobleris, que fizera [497] tão

bem de armas, que ninguém o fizera melhor, depois

que pôs o rei em seu cavalo, desceu para Morderete,

à vista de quantos lá estavam, e atou-o à cauda de

seu cavalo e começou a arrastá-lo pelo meio da

batalha. Então o levou de modo que ficou todo

despedaçado.

Do exército de Morderete não ficou ninguém

vivo, nem do exército de rei Artur, senão quatro: o

arcebispo de Cantuária e Bliobleris e Gilfrete e

Lucão, que ainda estavam a cavalo. E rei Artur, que

ainda estava a cavalo, mas bem sentia que estava

ferido de morte.

Quando viram que não ficara ninguém com

quem pudessem combater e viram o campo de

Salaber coberto em todas as partes de cavaleiros

mortos, disseram entre si chorando:

— Ai, Deus! Como há grande dano e grande

perda! Ai, Deus! que não poderíeis mais mal nos

fazer do que vermos aqui todo o mundo lazer morto

de sofrimento e de dor!

668. Depois que fizeram seu pranto,

despediram-se do campo doloroso. E o rei fazia tão

grande dó, que morria, e o arcebispo o confortava

quanto podia e disse:

— Ai, senhor! se perdestes vossos amigos,

por outro lado, graças a Deus, tivestes sorte, e

escapastes vivo e vencestes esta mortal batalha e

matastes vossos inimigos.

— Ai! disse o rei, se escapei vivo, de que me

adianta? Porque minha vida não é nada, pois bem

vejo que estou ferido de morte. Ai, Deus! que

sofrimento provocou tão grande desgraça a uma

grande terra, pela traição de um mau homem!

669. Deste modo partiu rei Artur do campo de

Salaber, e Bliobleris trazia ainda trás de si a cabeça

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de Morderete, porque, sem falha, o corpo estava

todo despedaçado. O rei perguntou a Bliobleris:

— Ficou-vos algo do traidor que tão mal nos

confundiu?

— Senhor, disse Bliobleris, sim, esta é a

cabeça de Morderete.

— Muito me apraz, disse o rei; faremos

colocá-la em lugar onde possa ver quem quiser. E

vós e o arcebispo ficareis neste campo e fareis uma

grande torre em que deitem as cabeças dos que aqui

morreram. E pendurai alto numa grande corrente a

cabeça de Morderete e fazei escrever o grande

sofrimento que neste campo aconteceu por ele, de

modo que os que depois de nós vierem, quando

souberem pelo letreiro o mal que por ele aconteceu,

maldigam todos sua alma.

670. Bem como o rei ordenou o fizeram o

arcebispo e Bliobleris, porque fizeram no campo

uma grande torre e puseram-lhe o nome [498] a

Torre dos mortos. E puseram nela a cabeça de

Morderete, e ficou lá pendurada até que Carlos

Magno passou à Inglaterra e foi ver a torre. E

quando Galarão, o traidor, que depois fez tanto mal

como o conto relata, soube por que a cabeça de

Morderete estava lá. pendurada, pareceu-lhe que

fora lá posta por injúria e por lembrança dos

traidores todos do mundo e pesou-lhe muito, porque

se tinha por tal. E foi lá de noite, e retirou-a e meteu-

a em lugar onde não souberam depois o que dela foi

feito. A torre ficou, sem falha; ainda hoje há muros

dela.

Mas ora deixa o conto a falar da torre e torna

a rei Artur.

671. Ora diz o conto que, depois que rei Artur

se retirou do campo onde a batalha foi tão mortal e

tão dolorosa e se foram com ele Lucão e Gilfrete,

cavalgou tanto que chegou a uma capela. E aquela

capela tinha nome capela Veira. Mas de onde teve

este nome, o romance do Brado o revela, porque diz

mais respeito a seu conto do que a este. Quando

chegaram à capela, o rei, que se sentia muito ferido,

apeou e os outros com ele entraram na capela e o rei

ficou de joelhos no chão diante do altar. E Lucão,

que estava a seu lado também de joelhos, não

demorou muito que viu o estrado ao redor do rei

cheio de sangue. Então entendeu pela primeira vez,

que o rei estava ferido de morte e dela não podia

escapar, e não se pôde conter que não dissesse

chorando:

— Ai, rei Artur, como é grande o dano de

vossa morte! Jamais tal homem devera morrer!

E o rei ficou espantado com esta fala, como

alguém se espanta quando ouve falar de sua morte. E

respondeu:

— O dano não será só meu; mas muitos

homens bons perderão com isso.

Então se deixou cair de costas; e ele era

grande e pesado e estava armado. E aconteceu,

quando caiu, que atingiu entre si e a terra Lucão, que

já estava desarmado. E estendeu-se sobre ele tão

violentamente, que o apertou muito em baixo de si,

não por raiva que dele tivesse, mas pela grande dor

que sentia, que o quebrou, de modo que logo

morreu.

672. O rei, depois que ficou assim muito

tempo, ergueu-se, mas não cuidou que matara

Lucão. E Gilfrcte que viu que Lucão estava morto,

disse-o ao rei. Ao rei pesou muito e disse como

quem tinha grande dor:

— Gilfrete, não sou rei Artur, a quem

costumavam chamar rei venturoso, pelas boas

venturas que tinha. Mas agora quem me chamar por

meu correto nome me chamará mal-aventurado e

[499] mês|quinho. Isto me fez a ventura, que se me

tornou madrasta e inimiga. E a Nosso Senhor apraz

que viva em dó e tristeza este pouco que hei de

viver; bem o mostra ele, porque como ele quis e foi

poderoso para me elevar por muitas formosas

aventuras e sem meu merecimento, assim é poderoso

para me derrubar por aventuras feias e más, por meu

merecimento e por meu pecado.

Assim disse rei Artur quando viu que matara

Lucão. E ficou lá aquela noite com grande pesar e

tão sofrido, que bem entendeu que pouco duraria.

Quando chegou o dia, disse a Gilfrete:

— Cavalguemos e vamos diretamente ao mar,

porque tanta desgraça me sobreveio desta vez em

Logres, que não queria aqui morrer. E bem assim

como minha vida andou sempre em aventura, assim

será a minha morte. Porque minha morte ficará tão

em dúvida para todas as gentes, que ninguém poderá

se gabar de saber com certeza a verdade do meu fim.

Então cavalgaram e afastaram-se da capela e

foram diretamente para o mar.

Mas ora deixa o conto a falar de rei Artur e de

Gilfrete e torna a Bliobleris e ao arcebispo.

LXXXV

Combate de Bliobleris e Artur, o pequeno

673. Diz o conto que, depois que Bliobleris e

o arcebispo fizeram a torre, como rei Artur lhes

mandou, partiram de lá. E Bliobleris disse ao

arcebispo:

— Senhor, o que fareis?

— Por certo, disse o arcebispo, desde que

começamos esta torre a que demos cabo, ouvi dizer

muitas vezes a muitos dignos de crença, que rei

Artur estava perdido de tal modo que não sabiam

onde andava. E visto que sei com certeza que nunca

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mais terei a companhia de tão bom homem, não

quero mais viver no século. E o século não valerá

daqui adiante, senão pouco, pois tal homem como

este está perdido, porque este era o esteio do mundo

e honra do século e já que está perdido, eu me farei

ermitão numa ermida e rogarei a Nosso Senhor por

rei Artur, que lhe faça merca à alma e pelos outros

bons cavaleiros que morreram na dolorosa batalha

de Salaber.

— De me fazer ermitão, disse Bliobleris, não

tenho intenção, porque ouvi dizer que meu senhor

dom Lancelote logo há de passar por aqui com muita

gente para tomar esta terra, pelo que ambos os filhos

de Morderete já vão se entregando.

[500] — Pois recomendo-vos a Deus, disse o

arcebispo, porque quero ir àquela ermida.

E disse-lhe onde ficava a ermida.

— Conheço bem esta ermida, disse Bliobleris,

porque já fui lá. E sabei que, se ventura me trouxer

por aqui, vos quereria ver.

674. Deste modo se despediram. O arcebispo

foi para a ermida e Bliobleris foi sozinho à aventura

pelo reino de Logres, munido de todas as armas

como cavaleiro andante. Um dia aconteceu que to-

pou com Artur, o pequeno, também armado de todas

as armas. E quando se viram, não se reconheceram,

porque muito havia que tinham trocado suas armas.

Mas bem julgaram ambos de si mesmos que eram

cavaleiros andantes e, assim que se aproximaram,

pararam; e cada um estava com tal pesar, que, por

um tempo, não se falaram, lembrando-se daquele

sofrimento e daquele martírio em que os cavaleiros

andantes e os homens bons do reino de Logres

morreram e a que estava o reino de Logres reduzido.

Depois disse

Bliobleris:

— Por Deus, dizei-me quem sois, porque

muito o queria saber, porque julgo que fostes dos

cavaleiros de Artur.

E ele respondeu com mui grande dificuldade,

porque sobejo teve grande pesar, quando ouviu falar

de seu pai, e disse chorando:

— Tenho nome Artur, o pequeno. Muito

tempo estive na corte de rei Artur. E tanto lá estive

que aprouve a Deus que fosse companheiro da

távola redonda. Agora dizei-me quem sois.

— Sou, disse ele, Bliobleris, que bem deveis

conhecer, porque sou da távola redonda como vós.

Quando Artur, o pequeno, o ouviu, disse:

— Sois dos inimigos de rei Artur, porque sois

da linhagem de rei Bam. Por aquela linhagem estão

mortos e destruídos todos os do reino de Logres,

porque começaram a guerra e por isso sou vosso

inimigo mortal, e vos digo que vos guardeis de mim,

porque não há aqui senão morte.

675. Quando Bliobleris isto ouviu, respondeu:

— Ai, dom Artur! Isto não fareis, se Deus

quiser; porque sabeis que seríeis perjuro e desleal.

— Isto não há mister, disse Artur. Defendei-

vos, se quiserdes, se não vos achareis mal.

Quando Bliobleris viu que não podia outra

coisa fazer, deixou-se correr a ele. E feriram-se

ambos tão violentamente, que se meteram em terra e

os cavalos sobre si. E ficaram ambos muito feridos,

[501] mas eram de tão bom ânimo e de tão grande

força, que se levantaram o mais rápido que puderam

e meteram mão às espadas e deixaram-se ir e deram-

se tantos golpes, que se fizeram tais os escudos e as

lanças, que valiam muito pouco perto do que antes

eram, porque bem perceberia quem lá estivesse, que

bem entendiam ambos de espadas.

Que vos direi? Antes que daquela vez se

cansassem, foram tais os golpes que Outro cavaleiro

se teria por muito ferido. Mas eles tinham os ânimos

tão fortes e a raiva tão desmedida, que o não

sentiam.

Depois que ficaram cansados, descansaram

para recobrar força. E depois que descansaram um

pouco, disse Bliobleris:

— Dom Artur, vós me acometestes sem

motivo e combatestes comigo e nada ganhastes.

Rogo-vos, por Deus e por cortesia, que deixeis esta

batalha e vos darei por quite de quanto nela errastes.

E Artur disse que não o faria até que um deles

morresse.

— E se me matardes, disse Bliobleris, que

bem vos advirá? Porque quem quer que o saiba vos

terá por perjuro e desleal; e além disso, sabeis que

nunca mereci morte de vós.

— Sim, merecestes, disse Artur, e vos direi

como. Bem sabeis que tal é o costume dos cavaleiros

andantes, que, se algum cavaleiro é traidor de seu

senhor natural, e alguém ajudasse aquele cavaleiro

contra ele, seria por isso traidor. Pois agora me dizei,

disse Artur, bem sabeis que ajudastes Lancelote do

Lago, que era traidor de seu senhor, porque foi

achado com a rainha Genevra. E o ajudastes em toda

aquela guerra que por ele começou. Pois então não

sois traidor por ajudardes contra vosso senhor o

traidor? Por isso vos ataquei agora e porque matastes

diante da Joiosa Guarda o cavaleiro do mundo que

eu mais amava. E agora vos acho aqui e quero vos

dar o galardão.

— Certamente, dom Artur, disse Bliobleris,

vós vos conduzis por mau conselho. E já que vejo

que não posso convosco fazer paz, digo-vos uma

coisa, mas não para me louvar, não vos temo, porque

verdadeiramente sei que sou tão bom cavaleiro como

vós ou melhor. E bem vos mostrarei que é verdade,

porque vos matarei ou vencerei, antes que de vós me

separe e, assim Deus me ajude, me pesa muito, mas

pois que outra coisa não posso fazer, o farei. Porque

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antes quero que morrais nas minhas mãos do que eu

nas vossas.

676. Depois disto, sem mais, deixaram-se

correr um ao outro e meteram mão às espadas e

deram-se os maiores golpes que puderam. E

demorou tanto aquela batalha que não houve quem

não tivesse [502] medo da morte, porque ambos se

sentiam feridos, mas muito mais estava ferido Artur,

o pequeno, do que Bliobleris, de modo que via que

não podia escapar, porque tinha bem doze feridas,

sendo que a menos perigosa era mortal. E quando

viu que não podia suportar a batalha, afastou-se um

pouco e disse:

— Bliobleris, como vos sentis?

— Bem, disse ele, graças a Deus, segundo o

preito, porque estou muito ferido, mas não de morte.

— Não? disse Artur. Por Deus, o mesmo não

digo de mim, porque me sinto ferido de morte por

minha loucura; e não me pesa tanto de minha morte,

como de que me não vinguei.

E depois que disse isto, caiu por terra de

costas. E Bliobleris, que teve grande pesar, meteu a

espada na bainha, porque lhe não quis mais mal

fazer. E foi a ele e tirou-lhe o elmo e o almofre, para

lhe dar algum ar que o alentasse mais. E Artur,

quando isto sentiu, cuidou que o fazia para lhe cortar

a cabeça e disse-lhe:

— Ai, Bliobleris! Não me façais mais mal,

porque me matastes por minha soberba, e se vos

afrontei, bem vos vingastes. Apressaivos, se vos

aprouver, e deixai-me soterrar inteiro.

— Assim Deus me ajude, disse Bliobleris, não

tenho vontade de vos fazer mais mal, pesa-me de

quanto fiz.

— Por Deus, disse Artur, não deveis ser

culpado, porque tudo foi por minha soberba. Mas

uma coisa que nunca disse a ninguém vos quero

dizer, porque vejo que estou morto e quero que o

mundo saiba. Sabei que rei Artur era meu pai, e por

isso tenho nome Artur, o pequeno. E isto, se vos

aprouver, fazei escrever sobre meu túmulo.

E assim que isto disse, morreu. E Bliobleris o

pôs diante de si sobre seu cavalo e o levou a uma

abadia e o fez enterrar muito honradamente e fez

escrever sobre o túmulo o que lhe rogara, e partiu.

Ora deixa o conto a falar dele e torna a rei

Artur.

LXXXVI

Morte de rei Artur

677. Quando rei Artur partiu da capela Veira

como já vos disse, foi com Gilfrete em direção ao

mar, com muito grande pesar das aventuras que

aconteciam e das desgraças que lhe sobrevinham re-

centemente, uma atrás das outras.

[503] Quando chegou ao mar, isto foi hora de

meio-dia, apeou e sentou-se na praia e descingiu a

espada e tirou-a da bainha e viu a cinta vermelha de

sangue daqueles que matara. E depois que a olhou

muito tempo, disse suspirando:

— Ai, Excalibur, espada boa e honrada, a

melhor que alguma vez entrou no reino de Logres,

fora a da estranha cinta, agora perderás teu dono,

mas onde acharás em quem tão bem empregada

sejas, como eras em mim, se não vens às mãos de

Lancelote? Ai, Lancelote, o melhor homem e o

melhor cavaleiro que alguma vez vi, fora Galaaz,

que foi o melhor dos melhores! Ora aprouvesse a

Nosso Senhor que esta espada tivesses e eu o

soubesse! Certamente a minha alma estaria mais

satisfeita com isso para sempre.

Então chamou Gilfrete e disse-lhe:

— Tomai esta espada e ide sobre aquele

outeiro e achareis lá um lago; e jogai-a nele, porque

não quero que os maus, que depois de nós reinarão,

tenham esta espada.

— Senhor, disse ele, cumprirei vossa ordem,

mas antes queria, se vos aprouvesse, que ma désseis.

— Não o farei, disse ele, porque não será em

vós empregada segundo minha vontade, porque não

tendes muito a viver.

678. Então tomou Gilfrete a espada e foi ao

outeiro e achou o lago e tirou a espada da bainha e

olhou-a e viu-a tão boa e tão rica, que lhe pareceu

que seria dano sobejo jogá-la no lago e era melhor

jogar a sua e pegar aquela para si e diria ao rei que a

jogara no lago. Então tomou a sua e jogou-a no lago

e escondeu a do rei nas ervas e voltou para o rei e

disse que a jogara no lago.

— Pois que viste então? disse o rei.

— Senhor, não vi nada.

— Ai, disse o rei, muita mágoa me dás. Volta

lá e joga-a, porque ainda não a jogaste.

E ele voltou lá e pegou a espada e olhou-a e

fez seu lamento e disse que seria grande dano se

fosse perdida; e pensou que jogaria a bainha e teria a

espada, porque ainda poderia ter proveito a ele ou a

outrem; e pegou a bainha e jogou-a no lago e voltou

para o rei e disse que deitara a espada. E o rei de

novo lhe perguntou o que vira.

— Senhor, disse ele, não vi nada. E o que

havia de ver?

— O que havias de ver? disse o rei. Não a

jogaste ainda. Por que me fazes tanto mal? Vai e

joga-a. Então verás o que acontecerá, porque, sem

grande maravilha, ela não pode ser perdida.

Quando viu que tinha que fazer, voltou ao

lago e pegou a espada e disse:

[504] — Ai, espada boa e rica, como é grande

dano que algum homem bom não te tome na mão!

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Então a lançou o mais que pôde; e quando

chegou perto da água viu uma mão sair do lago que

aparecia até o cotovelo, mas do corpo não viu nada.

A mão recebeu a espada pelo punho e brandiu-a três

vezes ou quatro; depois que a brandiu, meteu-se com

ela na água. Ele esperou muito tempo se se lhe

mostraria mais.

679. Depois partiu do lago e voltou ao rei e

disse-lhe como deitara a espada e o que vira.

— Por Deus, disse o rei, tudo isto sabia que

aconteceria. Agora sei bem que minha morte se

aproxima muito.

Então vieram-lhe as lágrimas aos olhos e

pensou muito tempo e disse:

— Ai, Gilfrete! longo tempo me servistes e

me tivestes companhia. Mas agora chegou já o fim

em que nos convém já que eu parta. E bem vos

podeis orgulhar de que sois o companheiro da távola

redonda que mais longamente me teve companhia.

Mas agora vos digo que vos vades, porque de hoje

em diante não quero que fiqueis comigo, porque

meu fim se aproxima; e não é conveniente que

alguém saiba a verdade de meu fim, porque assim

como aqui porventura fui rei, passarei deste reino

porventura, porque ninguém poderá se gabar,

doravante, de com certeza saber o que será de mim.

E por isso quero que vos vades; e depois que

estiverdes de mim separado, se vos perguntarem

novas de mim, respondei-lhes que rei Artur veio

porventura e porventura partiu, e só ele foi rei

venturoso.

— Ai, senhor! mercê, disse Gilfrete. Por

Deus, deixai-me que vos faça companhia até que

seja o vosso fim.

— Nunca vos amarei, disse o rei, se não

fordes e vos dou certeza de que mal vos advirá, se

não fordes.

— Ai, senhor, disse Gilfrete, irei, pois vos

apraz, mas sabei que nunca fiz nada de que tanto me

pesasse, como me separar de vós, porque vos amei

sempre sobre todas as coisas. Mas por Deus e por

vossa bondade, isto me dizei, se vos aprouver,

cuidais que de novo vos veja, depois de partir agora?

— Por certo, disse o rei, nunca mais me

vereis.

E ele respondeu então:

— Senhor, quanto é maior meu pesar!

Então foi a seu cavalo e montou e disse

chorando com tão grande dificuldade como a quem

bem parecia que o coração se lhe queria partir:

— Senhor, recomendo-vos a Deus.

— Deus seja convosco, disse o rei.

[505] E deixou-o Gilfrete. Então começou a

chover muito e a fazer mau tempo. E foi Gilfrete

para um outeiro o mais depressa que pôde, porque

pensou que do outeiro conseguiria ver para onde rei

Artur iria.

680. Quando Gilfrete chegou ao outeiro,

parou em baixo de uma árvore até que passasse a

chuva, e começou a chorar e olhar aquele lugar onde

deixara o rei. E não ficou lá muito tempo, que viu vir

pelo meio do mar uma barqueta em que vinham

muitas mulheres. A barca aportou diante do rei Artur

e as mulheres sairam e dirigiram-se ao rei. E andava

entre elas Morgana, a fada, irmã de rei Artur, que

dirigiu-se ao rei com todas aquelas mulheres que

trazia, e rogou-lhe então muito, que, por seu rogo,

teve o rei que entrar na sua barca. E depois que

estava dentro, fez meter lá seu cavalo e todas as suas

armas; depois começou a barca a ir pelo mar com ele

e com as mulheres, em tal hora, que não houve

depois cavaleiro nem outrem no reino de Logres que

dissesse depois, com certeza, que o tivesse visto.

Quando Gilfrete, que estava no outeiro, viu

que o rei entrara na barca com as mulheres, desceu

do outeiro e dirigiu-se para lá, quanto o cavalo o

pôde levar, porque julgou que, se chegasse a tempo,

se meteria com seu senhor na barca e não se

separaria dele por nada que acontecesse, a não ser

por morte.

E quando chegou ao mar, a barca estava já

afastada da praia e viu o rei entre as mulheres e

reconheceu bem Morgana, a fada, porque muitas

vezes a vira. E a barca estava da praia tanto como

um lance de besta. E quando Gilfrete viu que assim

perdera o rei, começou a fazer o maior pranto do

mundo e ficou ali todo aquele dia e toda aquela

noite, que não comeu nem bebeu, e já o dia anterior

não comera.

681. No outro dia, quando o sol estava já

levantado, montou Gil-frete muito sofrido e com

grande pesar e partiu dali e cavalgou tanto que

chegou a um mato pequeno, e morava lá um ermitão

que era muito seu conhecido, e contou-lhe então o

que vira de rei Artur, quando o vira entrar no mar

com as mulheres.

Ao terceiro dia, partiu dali e foi à capela Veira

para saber se estava já Lucão enterrado, e chegou iá

à hora de meio-dia e apeou e atou seu cavalo a uma

árvore e entrou e achou dois túmulos diante do altar,

muito formosos e muito ricos. Mas um era muito

mais rico do que o outro. Sobre o que era menos rico

havia um letreiro que dizia: “Aqui jaz Lucão, o

copeiro, que rei Artur matou em baixo de si.” Sobre

o outro mais rico que era maravilha, havia.um

letreiro [506] que dizia: “Aqui jaz rei Artur que, por

sua proéza e por sua bondade, conquistou doze

remos.”

682. Quando leu os letreiros, desfaleceu sobre

o túmulo, e quando acordou, beijou-o chorando

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muito sentidamente, e ficou lá até a tarde, quando

um homem bom chegou, que servia o altar da cape-

la. E assim que o viu, Gilfrete perguntou-lhe:

— Senhor, por Deus, é verdade que aqui jaz

rei Artur?

— Certamente, disse o homem bom, creio que

sim, porque há pouco traziam aqui mulheres o corpo

de um cavaleiro num leito, e faziam pranto muito

grande à maravilha, e quando lhes perguntei quem

era aquele por quem tal pranto faziam, me disseram

que era rei Artur; e metemo-lo então neste túmulo.

Depois foram elas em direção ao mar e não

voltaram.

E Gilfrete julgou então que aquelas eram as

mulheres que vira meter rei Artur na barca, mas

disse no seu íntimo que ainda queria saber

verdadeiramente se era rei Artur quem no túmulo

jazia.

683. Então foi Gilfrete ao túmulo, estando

diante dele o homem bom. Então mandou erguer a

lápide e quando olhou dentro, nada viu, senão o

elmo de rei Artur, aquele mesmo que trouxera na do-

lorosa batalha. Quando viu que o corpo do rei não

estava lá, mostrou ao homem bom o túmulo vazio e

disse-lhe:

— Aqui não jaz meu senhor, quero que sejais

testemunha. E tornou a lápide sobre o túmulo, como

antes estava; depois pergun-tou outra vez:

— Vistes aqui meter bem o corpo de meu

senhor?

— Por Deus, disse o homem bom, metemos aí

um corpo e as mulheres me fizeram saber que era rei

Artur. Outra verdade não vos saberia dizer a

respeito.

— Assim? disse Gilfrete; em vão me

esforçarei por perguntar como rei Artur morreu.

Verdadeiramente, este é o rei venturoso, cuja morte

ninguém saberá; e disse bem a verdade, que como

veio ao reino de Logres porventura, assim se foi ele

porventura. Mas pois vejo que não é proveito

procurá-lo, pois achado não pode ser, nunca mais

viverei no século, antes quero ficar aqui nesta

ermida e viver aqui, enquanto viva.

Então rogou ao homem bom, que o recebeu

em sua companhia. Deste modo como vos digo,

ficou Gilfrete com aquele homem bom e serviu a

Deus na capela Veira e levou vida muito santa e boa.

Mas ora deixa o conto a falar de rei Artur e da

morte de Gilfrete, para contar de Lancelote e dos

filhos de Morderete.

[507] LXXXVII

Últimos feitos de Lancelote

684. Conta a estória que, enquanto Gilfrete foi

à ermida, ambos os filhos de Morderete foram a

Ginzestre para guardar a vila. Quando souberam da

morte de seu pai e de rei Artur e de outros homens

bons, que morreram na batalha dolorosa, ficaram

muito confortados. Eram ambos bons cavaleiros e

conheciam muito o mal, como seu pai, e prometeram

tanto e deram aos de Ginzestre, que os receberam

por senhores, como fizeram a seu pai. E reuniram

logo quanta gente puderam e foram pela terra

assenhoreando-se dela. E isto podiam facilmente

fazer, porque todos os homens bons foram mortos na

batalha.

Quanto a rainha soube a verdade da batalha

que acontecera no campo de Salaber e lhe disseram

que o rei estava morto e todos os homens bons de

Logres, teve tão grande pesar que bem quisera estar

morta. E quando lhe disseram que os filhos de

Morderete iam se assenhoreando da terra e tinham

tanta gente, que logo teriam todo o reino, teve tão

grande pesar, que não poderia maior, porque teve

medo de a matarem. E por isso tomou hábito de

ordem e fez-se monja.

685. Enquanto isto, chegaram as novas a

Lancelote, que estava em Gaunes com grande

companhia de homens bons de seu reino. Depois

também contaram-lhe como os filhos de Morderete,

que não estiveram na batalha, andavam se

assenhoreando da terra. E destas novas teve grande

pesar Lancelote e fez muito grande pranto por rei

Artur, porque não havia ninguém no mundo que

mais amasse.

E perguntou por novas da rainha. Mas não lhe

soube nada dizer quem as novas lhe dava, porque

poucos havia na terra que soubessem o que fora feito

dela, porque, sem falha, ela pensava esconder-se o

mais que pudesse, com medo de sua morte. Muito

teve Lancelote grande pesar daquelas novas e tomou

conselho com rei Boorz e com rei Leonel do que

poderiam fazer, porque não desamava nada do

mundo tanto como Morderete e seus filhos.

Respondeu rei Boorz:

— Senhor, teria por bem que nos reuníssemos

e passássemos à Grã-Bretanha; e, se nos esperarem,

matemo-los com alguma morte estranha, porque não

vejo como deles possamos nos vingar de outro

modo.

Lancelote concordou com seu conselho. Então

mandaram mensageiros ao reino de Benoic e ao

reino de Gaunes e ao de Gaula [508] e reuniram na

cidade de Gaunes mais de vinte mil homens tanto a

pé como a cavalo. E depois que foram reunidos,

Lancelote e rei Boorz e rei Leonel e Heitor, com

toda sua companhia, partiram de Gaunes e andaram

tanto por suas jornadas, que chegaram ao mar e

acharam suas naves preparadas e entraram e tiveram

tão bom vento que, nesse dia mesmo, aportaram na

Grã-Bretanha e desceram e pousaram na praia.

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686. No outro dia, chegaram as novas aos

filhos de Morderete, que Lancelote estava na terra

com muita gente. Quando isto ouviram, ficaram

muito espantados e decidiram se ajuntar e lutar com

ele. Com isto concordaram, porque tinham mais

gente do que Lance-lote. Assim disseram, assim

fizeram, porque se reuniram em Ginzestre e tanto

fizeram em tão pouco tempo por sua grandeza e

proeza, que todos os homens do reino de Logres lhes

fizeram homenagem e contavam com a ajuda de

muitos cavaleiros estranhos.

Depois que estavam reunidos, saíram de

Ginzestre e indo, no outro dia, pela manhã, logo lhes

chegou um mensageiro que lhes disse:

— Mortos estais e confundidos, porque

Lancelote vem aqui com grande companhia e não

está daqui mais de seis léguas, e asseguro-vos que

muito cedo estará convosco.

Quando isto ouviram, disseram que o

aguardariam lá e lá combateriam com ele; e apearam

para descansar a eles e os cavalos. Assim ficaram os

de Logres diante de Ginzestre. E Lancelote com toda

sua compahia cavalgou, mas com muito grande

pesar sobejo, porque aquele dia lhe chegaram novas

de que a rainha estava morta, havia três dias.

Mas porque o nosso conto não revela como

morreu, contaremos aqui de outra maneira.

687. Nesta parte, diz o conto que, depois que a

rainha Genevra entrou no convento com pavor dos

filhos de Morderete, ela, que sempre fora feliz com

todas as alegrias do mundo, e teve de sofrer as peni-

tências da ordem, de que não tinha costume, caiu

logo de cama enferma, e todos os que a viam tinham

muito cuidado com sua morte e com sua vida. E

tinha consigo uma donzela de alta posição e que

tomara hábito por amor dela. Esta donzela fora

amante de Gilfrete, filho de Dondinax. E porque a

rainha ouvira dizer que Gilfrete fizera mais

longamente companhia a rei Artur do que outro

cavaleiro, amava tanto a companhia desta donzela,

que mais não podia. E confortavam-se e choravam

muito amiúde, quando lhes lembravam as grandes

alegrias e a grande nobreza e o grande poder em

[509] que estiveram, e agora estavam no convento

com pavor da morte. A rainha, embora no convento,

não deixava de fazer grande pranto por Lancelote

que não dissesse alguma vez:

— Ai, meu senhor Lancelote, dom Lancelote!

Como esquecestes de mim que jamais cuidei que me

deixásseis. Se levásseis em conta vossa bondade,

vosso prazer e o grande poder que Deus vos deu, vos

lembraríeis alguma vez de mim e vingaríeis a morte

de rei Artur e conquistarieis o reino de Logres e me

alegraríeis desta dor em que estou e deste poder

alheio em que estou, em que me meti com pavor da

morte.

Isto dizia a rainha de Lancelote, quando

estava doente, e a donzela a confortava muito,

quanto ela podia. E dizia que não tivesse pavor, que

bem soubesse que verdadeiramente Lancelote não

tardaria muito a vir, porque dele já ouvira novas.

E a rainha respondeu:

— Sobejo me tarda, e sei que em sua

tardança, morro.

688. Naquela abadia, havia uma monja que

entrara no convento, porque amara Lancelote e não a

quisera, e desamava a rainha muito profundamente,

porque a deixara Lancelote por amor da rainha. Um

dia aconteceu que disse esta monja à amiga de

Gilfrete, aquela que guardava a rainha, e fingiu que

não queria que a rainha ouvisse:

— Ai, donzela, más novas vos trago! Dom

Lancelote, que vinha com grande força para

conquistar o reino de Logres, perdeu-se no mar com

toda sua gente.

— Por Deus, disse a amiga de Gilfrete, grande

perda é esta. Mas como sabeis se é verdade?

— Sei bem, disse ela, por quem o viu.

A rainha, que estava doente, quando ouviu

estas novas, teve tão grande pesar que, por pouco,

não ficou louca; mas disfarçou bem, com medo

daquela que as novas dizia. E depois que partiu,

disse a rainha com grande pesar:

— Ai, mar amargoso e maldito, cheio de

amargura e de dor, néscio, mau e desconhecido, mal

me mataste, porque me tiraste o mais leal amante do

mundo e tiraste-me seu amor.

Depois que disse isto, calou-se com tão

grande pesar, que não pôde mais comer nem beber, e

ficou assim três dias. Ao quarto dia, chegaram novas

de que Lancelote, sem falha, aportara na Grã--

Bretanha com tão grande cavalaria e tão boa, que

não há quem no mundo o ousasse esperar em campo.

689. A donzela, que guardava a rainha, ficou

muito alegre com estas novas e foi correndo à rainha

e disse-lhe:

[510] — Senhora, muito vos trago boas novas.

Sabei verdadeiramente que dom Lancelote está na

Grã-Bretanha com tanta gente que em pouco tempo

a correrá toda.

A rainha, que perto estava de morta, quando

estas novas ouviu, respondeu com grande

dificuldade:

— Donzela, tarde mo dissestes, e já não me

vale nada sua vinda, porque estou quase morta. Mas,

porque dom Lancelote é o homem do mundo que

mais amo, rogo-vos que façais pelo meu amor e pelo

seu, o que vos quero rogar.

E ela lhe prometeu lealmente que o faria a

todo seu poder.

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— Pois ora vo-lo direi, disse a rainha. Bem

vejo que estou morta e não hei amanhã de chegar à

manhã e bem vos digo que nunca fiquei tão alegre

como com estas novas. E de outra parte, pesa-me

sobejo que o não posso ver antes de morrer, porque

se o visse, parece que minha alma ficaria mais

alegre. E porque quero que ele veja e saiba que sua

vinda me apraz e que morro com pesar e de bom

grado o que queria ver, se pudesse, por isso vos rogo

que, tão logo eu morra, me tireis o coração e o leveis

para ele neste elmo que foi dele; e lhe digais que, em

lembrança de nossos amores, lhe envio meu coração

que nunca o esqueceu.

Aquele dia mesmo passou a rainha Genevra e

a donzela cumpriu sua ordem, mas não achou

Lancelote e por isso não deu cabo a tudo que a

rainha mandara.

Mas ora deixa o conto a falar dela e torna a

Lancelote e aos filhos de Morderete.

690. Aqui diz o conto que, depois que

Lancelote ouviu as novas da rainha, que estava

morta, teve tão grande pesar que era maravilha, e

contudo partiu e andou aquele dia e sua companhia

até que chegaram a Ginzestre. E os outros, que os

esperavam, quando os viram, cavalgaram a

ajuntaram-se com eles. Naquele ajuntamento, muitos

ficaram mortos e feridos e foi grande o desamor

entre eles. Depois que quebraram suas lanças,

meteram mão às espadas e começaram a ferir o mais

que puderam, de modo que, por este preito, veríeis

muitos mortos de uma parte e da outra e muitos feri-

dos. A batalha durou até hora de noa e aconteceu

que Meliante, o filho de Morderete, tinha uma lança

pequena e grossa e de ferro muito cortador e ele era

muito bom cavaleiro de armas; e deixou-se correr a

Leonel e feriu-o de modo que escudo e loriga não

lhe prestaram que a lança não fosse do outro lado,

pelo meio do peito, e meteu-o em terra do cavalo, e

ao cair, quebrou-lhe a lança, de modo que o ferro

com pedaço da haste ficou nele. Este golpe viu [511]

rei Boorz e bem reconheceu, sem falha, que seu

irmão estava ferido de morte, e teve tão grande

pesar, que bem cuidou da morte com pena.

Então se deixou correr rei Boorz a Meliante e

foi lhe dar uma espadada, como quem muito grande

golpe havia já dado, e lhe quebrou o elmo e o

almofre e o fendeu até as espáduas, e caiu Meliante

em terra morto. E quando o viu em terra morto disse:

— Ai, traidor! Que mal hoje cobro o dano que

me fizeste! Certamente meteste em meu coração tão

grande dor que jamais sairá.

Então se deixou correr aos outros, onde via

maior aperto para matar e derribar quantos podia, de

modo que não há quem não se maravilhasse das

maravilhas que faziam os cavaleiros de Gaunes.

Quando viram cair rei Leonel, apearam e livraram-

no do aperto e deitaram-no sob uma árvore. E

embora o vissem tão ferido, não ousaram fazer

lamento para que seus inimigos não tivessem prazer.

691. Assim foi diante de Ginzestre a batalha

começada, má e dolorosa, que durou até hora de noa

tão obstinadamente que, com dificuldade se podia

reconhecer quem levava a melhor. Depois da hora de

noa, aconteceu que Lancelote topou com aquele que

era o filho maior de Morderete, e era sem falha bom

cavaleiro. Lancelote o reconheceu, porque trazia tais

armas como seu pai costumava trazer, e deixou-se

correr a ele com a espada na mão. E o outro não o

receou, antes ergueu o escudo contra o golpe,

quando viu vir a espada. E Lancelo.te, que

mortalmente o desamava, feriu-o tão violentamente

que lhe fendeu o escudo até o centro, de modo que

lhe cortou o punho com que o segurava. E quando

ele sentiu que tinha perdido a mão, quis fugir para

uma floresta, que ficava perto dali, porque bem sabia

que não podia resistir a Lancelote. Mas Lancelote o

reteve em tão grande dor, que não teve força para

escapar, e deu-lhe um tão grande golpe, que lhe fez a

cabeça com seu elmo voar do corpo em terra mais

longe que uma lança. Quando os outros viram este

morto, não souberam como recuperar-se e tomar

conselho, e começaram a fugir e os outros

começaram a ir atrás deles matando-os e derribando-

os por esses caminhos. E Lancelote, que os ia

alcançando à frente de toda sua companhia, matava e

feria e derribava tão violentamente, que bem se

poderia ver o rastro atrás dele dos que derribava

mortos e feridos. Tanto andou assim que alcançou

um duque de Gorra, que sabia que era traidor e

desleal e fizera muitas vezes pesar aos da linhagem

de rei Bam.

692. Quando Lancelote o alcançou e o

reconheceu, disse-lhe:

[512] — Ai, traidor e desleal! Certamente

estais morto, porque não há nada no mundo que vos

salve, senão Deus.

E o outro olhou atrás de si e quando

reconheceu que era Lancelote e que deste modo o

ameaçava, teve grande pavor, porque bem sabia que

verdadeiramente era o melhor cavaleiro do mundo e

bem viu que estava morto se o alcançasse. E

começou a ir quanto o cavalo podia levar em direção

a uma montanha. E andava em muito bom cavalo, e

Lancelote também, de modo que bem correram duas

léguas. Então cansou o cavalo do duque, de modo

que, de cansado, caiu morto em baixo dele. E

Lancelote, que ia perto, quando o viu em terra, foi a

ele como estava, a cavalo, e deu-lhe uma espadada

por cima do elmo, que o fendeu até os dentes. De-

pois não o olhou mais e começou a ir quanto pôde,

mas quanto mais cuidava aproximar-se da

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companhia, tanto mais se afastava dela.

693. Tanto andou Lancelote perdido, que

chegou a um vale muito fundo. Então achou lá um

escudeiro que vinha de Ginzestre, e perguntou-lhe

de onde vinha. E ele lhe disse que vinha do campo

onde fora a dolorosa batalha.

— E cuido, a meu ciente, disse o escudeiro,

que não escapou de lá ninguém vivo, senão vós.

E isto dizia ele, porque cuidava que Lancelote

era do reino de Logres.

— Mas isto vos digo: os outros têm muito

grande pesar de rei Leonel, que perderam na batalha.

— Como? disse Lancelote, é verdade que rei

Leonel está morto?

— Verdade, disse o escudeiro; eu o vi morto,

e nunca vistes tão grande pranto como os seus por

ele faziam.

— Certamente, disse Lancelote, aqui há

grande dano, porque muito era bom cavaleiro. Nosso

Senhor lhe tenha merca à alma.

Então começou a chorar muito violentamente;

e o escudeiro lhe disse:

— Senhor, onde cuidais hoje albergar? porque

é muito tarde.

— Não sei, disse ele, não daria nada por

pousada, tão grande é meu pesar.

— E o escudeiro lhe perguntou como se

chamava.

— Tenho nome Lancelote, disse ele.

— E o escudeiro começou a fugir assim que o

ouviu dizer que era Lancelote, porque tinha muito

grande pavor que o matasse. E Lancelote começou a

andar triste e muito sofrido. E andou já aquela noite

e todo aquele dia, que não comeu ele nem seu

cavalo. De manhã, aconteceu que a ventura o levou a

uma ermida, onde achou [513] o arcebispo de

Cantuária e Bliobleris, que se meteram lá para servir

a Nosso Senhor. E quando os achou, ficou muito

alegre; e eles quando o viram também ficaram muito

alegres e o desarmaram. E assim que ficou

desarmado, foi a um altar de Santa Maria, que lá

havia, e ficou de joelhos diante dele e jurou que, se

Deus e Santa Maria e os santos o ajudassem, jamais

se afastaria do serviço de Nosso Senhor, mas ficaria

naquela ermida, enquanto vivesse. E como jurou,

assim o fez, porque ali morreu em serviço de Nosso

Senhor. Mas ora deixa o conto a falar dele e torna a

Boorz e a sua companhia.

694. Depois que os de Gaunes terminaram sua

batalha e desbarataram os de Ginzestre e viram rei

Leonel morto, tiveram grande pesar, e decidiram

entre si o que fariam.

— Certamente, disse rei Boorz, tanto tenho

perdido no reino de Logres depois que perdi meu

irmão, que não tenho mais vontade de morar aqui,

antes quero ir embora.

Mas não sabia ainda que Lancelote estava

separado deles, e mandou meter seu irmão num leito

e partiu do campo em que fora a batalha e cavalgou

tanto até que chegou ao mar, e lhe disseram os de

sua companhia:

— Senhor, fizemos mal, porque já dois dias

andamos e não temos conhecimento de nenhum

recado de Lancelote.

Então mandou a metade das pessoas com o

corpo de rei Leonel e a outra metade ficou.

— Porque nunca, disse rei Boorz, tanto amei

esta terra como agora desamo pela morte de meu

irmão que aqui perdi.

695. Do modo como rei Boorz lhes mandou

fizeram: a metade ficou com Heitor e a outra metade

foi com rei Boorz. Os que ficaram permaneceram

quatro dias num castelo chamado Ambenic e

esperaram lá, se poderiam ter novas de Lancelote; e

Heitor ficou com eles, com grande pesar de seu

irmão, de quem não podia ter nenhuma nova. Eles

assim esperando, eis que vem um ermitão que disse

a Heitor:

— Em vão esperais aqui vosso irmão, porque

não tem prazer de vir aqui, porque se meteu numa

ermida, de que não sairá jamais, porque o prometeu

a Nosso Senhor; e está com ele o arcebispo de

Cantuária e Bliobleris. Estes dois também são

ermitães.

— E onde estão? disse Heitor, poderia

encontrá-los?

— Isto vos não direi, disse o ermitão.

— Se não me quiserdes dizer, disse Heitor,

não será por isso que não vá buscá-lo até que o ache.

[514] 696. Então fez diante de si vir toda sua

companhia e os fez jurar que cumprissem todos sua

ordem, e depois que juraram, disse-lhes:

— Agora ordeno que saiais do reino de

Logres e vades para vossas terras.

— E vós, disseram eles, senhor, o que fareis?

— Ficarei, disse ele, e se depois me der

vontade de ir, irei atrás de vós.

E assim fizeram, porque se meteram no mar e

foram para suas terras, e Heitor ficou. Então rogou

ao ermitão, por Deus, que o levasse onde estava seu

irmão, que queria lá servir a Deus como ele. Então

partiram e levou-o à ermida onde seu irmão estava e

os outros de quem vos disse. Assim que os irmãos se

viram, choraram de alegria, porque muito se

amavam. E Heitor disse a Lancelote:

— Senhor, pois vos acho em serviço de Jesus

Cristo e vos apraz ficar, quero convosco ficar para

nunca de vós me separar.

Quando os outros isto ouviram, ficaram muito

alegres de que tão bom cavaleiro entrava no serviço

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de Deus e receberam-no muito bem, dando graças a

Nosso Senhor. Deste modo ficaram ambos os irmãos

na ermida e dai em diante esforçaram-se por fazer

serviço a Nosso Senhor. Quatro anos e mais ficou

Lancelote na ermida de modo que ninguém poderia

suportar mais canseira e esforço do que ele sofria em

jejuar e em velar, em fazer preces e oraçães e em

mortificar seu corpo de todas as maneiras que podia.

Ao quarto ano, passou Heitor e soterraram-no

na ermida.

697. Ao quinto ano, quinze dias antes de

maio, deu tal enfermidade em Lancelote, que bem

viu que não podia escapar, e rogou ao arcebispo e a

Bliobleris que, assim que passasse, o levassem à

Joiosa Guarda e o metessem naquele túmulo onde

jazia Galeote, o senhor das longas ilhas. E eles

prometeram que o fariam. Quatro dias depois deste

rogo viveu Lancelote e, ao quinto dia, cessou. Mas

àquela hora em que passou não estava com ele o

arcebispo nem Bliobleris, antes dormiam fora sob

um olmo. E aconteceu então que Bliobleris

despertou primeiro e viu o arcebispo dormindo

perto, e dormindo ria e tinha o maior aspecto de

alegria que nunca vistes. E dizia por sonho:

— Ai, Deus, bendito sejais, porque agora vejo

quanto desejava ver e saber!

Quando Bliobleris viu que ele dormia deste

modo e ouviu o que dizia, teve o maior medo de que

o demo tivesse entrado nele e despertou-o.

— Ai, senhor! disse ele, por que me tirastes

de tão grande alegria em que estava?

[515] — Em que alegria estáveis? disse

Bliobleris.

— Estava, disse ele, em tão grande festa e em

tão grande companhia de anjos, que nunca vi tão

grande reunião. E levavam com tio grande alegria e

com tão grande festa como vos digo, a alma de dom

Lancelote. Agora vamos ver se está morto.

— Vamos, disse Bliobleris.

E foram logo onde deixaram Lancelote, e

acharam que a alma já se havia separado dele.

— Ai, Deus! disse o arcebispo, bendito sejais!

Agora sei verdadeiramente que aquela grande festa

que os anjos faziam era com sua alma. Agora posso

dizer que a penitencia vale mais que todas as coisas

do mundo. De hoje em diante, enquanto viver, não

me separarei da penitencia.

— Agora convém, disse Bliobleris, que o

levemos à Joiosa Guarda, por que lhe prometemos.

— verdade, disse o arcebispo.

Então prepararam uma padiola e deitaram nela

o corpo de Lancelote. E pegou um de um lado e

outro de outro e partiram da ermida e andaram tanto

por suas jornadas, que chegaram à Joiosa Guarda.

Mas sabei que foi muita canseira e grande esforço.

698. Quando os do castelo souberam que

aquele era o corpo de Lancelote, saíram em direção

dele com grande pranto e chorando muito e fazendo

grande lamento, como se todos vissem sua linhagem

morta diante de si. E levaram-no à maior igreja do

castelo e fizeram-lhe quanta honra mais puderam e

quanta deviam fazer a tal homem. Aquele dia

mesmo, aconteceu que rei Boorz chegou lá muito

pobremente, acompanhado de um só cavaleiro e de

um só escudeiro. E quanto soube que o corpo de

Lancelote estava na igreja foi lá e o fez descobrir e

tanto o olhou e observou que bem reconheceu que

era seu senhor. E assim que o reconheceu, caiu

desfalecido sobre ele; e quando acordou, começou a

fazer seu pranto o maior do mundo.

Todo aquele dia e aquela noite, foi muito

grande o pranto no castelo e fizeram abrir o túmulo

de Galeote, que era tão rico, que mais não podia. E

de manhã, meteram-no lá. Depois fizeram sobre a

lápide entalhar um letreiro, que dizia: “Aqui jaz

Galeote, o senhor das longas ilhas, e com ele,

Lancelote, o melhor cavaleiro que alguma vez

trouxe armas na Grã-Bretanha, fora somente Galaaz,

seu filho.”

Depois que o meteram no túmulo, veríeis mais

de mil ao redor dele fazer lamentação.

E o arcebispo perguntou ao rei Boorz como

lhe acontecera que chegara na hora do enterro de

Lancelote.

[516] — Por certo, senhor, disse rei Boorz,

um ermitão de santa vida que há no reino de Gaunes,

me disse, não há um mês que, se neste dia, pudesse

yir a este castelo, acharia meu senhor ou morto ou

vivo. E aconteceu como ele disse. Mas, por Deus, se

soubésseis onde morou até aqui, dizei, porque muito

o desejo saber.

E o arcebispo lhe contou a vida que Lancelote

sempre teve desde que partiu da batalha de

Giftzestre e o formoso fim que teve o seu

passamento e quanto a respeito viu.

699. Quando Boorz, que de muito bom grado

escutava o que o arcebispo dizia, ouviu toda sua

vida, respondeu:

— Senhor, pois ele convosco viveu até seu

fim, eu sou aquele que no lugar dele vos farei

companhia, enquanto viver, porque jamais, sem

falha, me afastarei de penitencia, antes quero ir

convosco. E viverei em vossa companhia todos os

dias de minha vida.

E o arcebispo e Bliobleris agradeceram muito.

E no outro dia, partiram do castelo da Joiosa Guarda

e rei Boorz mandou seu escudeiro e seu cavaleiro

dizerem aos de Gaula e aos de Gaunes que fizessem

rei a quem quisessem, porque jamais voltaria lá. E

foi com o arcebispo e com Bliobleris a pé e mui

pobremente de modo que quem bem olhasse sua alta

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posição de rei de tão rico reino, bem poderia

entender que tinha boa vontade com Deus para

servi-lo.

700. Um dia aconteceu que, quando iam assim

para sua ermida, acharam Meraugis de Porlegues

armado de todas as armas. quando ele viu os três

homens bons, embora não os reconhecesse, teve de-

les grande pena, porque os viu andar descalços e

bem lhe pareceu que eram bons e honrados e de vida

boa e, estando a cavalo, lhes perguntou:

— Quem sois?

E respondeu o arcebispo:

— Somos pecadores que fazemos penitencia

de nossos pecados. E bem nos adviria, se por tão

pouca miséria, pudéssemos salvar nossas almas.

E Meraugis olhou bem e pareceu-lhe que o

vira já outra vez, mas não o pôde reconhecer. Por

isso lhe disse:

Rogo-vos, pela fé que deveis àquele que

servis, que me digais quem sois.

E ele disse:

— Sou ermitão, mas já fui arcebispo de

Cantuária e naquele dia o era ainda em que foi a

dolorosa batalha de Salaber, pela qual o reino de

Logres foi destruído. E por aquele mau dia que vi,

entrei numa ermida, e fiquei lá até agora e ficarei,

enquanto viver.

[517] — E quem são estes outros dois? disse

Meraugis, que andam encobertos?

E ele os nomeou. Quando Meraugis isto

ouviu, ficou maravilhado da maravilha que teve,

porque não há nada por que ele cuidasse tão

honrados cavaleiros e de tão alta posição se

metessem tão cedo no serviço de Deus. E desceu

logo de seu cavalo e disse:

— Senhores, pois vejo que deixastes a

cavalaria para servir a Nosso Senhor, eu a deixo,

porque hei bem mister de minha alma salvar como

vós, e não tomarei mais armas, a não ser que grande

cuidado me obrigue.

Então se desarmou e deixou todas as suas

armas no meio do caminho e foi com eles. Quando

os outros três isto viram, tiveram grande prazer e

agradeceram a Nosso Senhor. Depois começaram a

andar juntos até que chegaram a sua ermida. E

Meraugis lhes perguntou se sabiam algumas novas

de Lancelote. E eles lhe contaram quanto a respeito

sabiam e como fora ermitão com eles.

Mas ora deixa o conto a falar deles e torna a

rei Mars para dizer como teve conhecimento das

mortes dos cavaleiros do reino de Logres e como

eram todos da távola redonda.

LXXXVIII

Vingança de rei Mars

701. Assim que as novas da morte de

Lancelote Foram sabidas por toda Grã-Bretanha e

por Gaula e por Gaunes e por Benoic e pela Pequena

Bretanha e por Escócia e por Irlanda e por

Cornualha, rei Mars estava ainda vivo e era tão

velho que, àquele tempo, não havia rei no mundo de

tão avançada idade, e cavalgava ainda ani-

madamente e mantinha bem sua terra, que não temia

vizinho que tivesse; mas tanto estava sua linhagem

rebaixada, que Tristão, seu sobrinho, estava morto.

Mas não tinha ele disso grande pesar. Mas da morte

da rainha Isolda andava ele muito triste, tão

sobejamente a amava muito. Mas da morte de seu

sobrinho não estava triste, mas muito alegre. Quando

ouviu falar da morte de Lancelote, ficou muito

alegre e disse então:

— De hoje em diante, não vejo quem me

possa impedir de ter o reino de Logres, pois os da

linhagem de rei Bam estão mortos. E ainda que

estivessem vivos, a morte deste só me bastaria. Mas

vivendo este, não há quem no mundo o pudesse

acabar.

Então reuniu quanta gente pôde ter e passou o

mar e foi à GrãBretanha. E depois que saíram das

naves e tiraram o que tinham de tirar, disse rei Mars:

[518] — Agora estou na terra em que recebi

mais desonra e dano que em qualquer lugar onde

tenha estado. Agora quero que alguma vez me

tenham por rei, se não me vingo.

Então ordenou aos seus uma crueldade que

nunca rei cristão fez: que não deixassem de matar

homem e mulher que achassem.

— Tampouco quero, disse ele, que quanto rei

Artur tenha feito, fique, mas que tudo seja destruído;

e quantas igrejas e quantos mosteiros ele fez, sejam

destruidos, porque já tantos não destruireis que eu

não faça mais e melhores. E faço esta destruição,

porque não quero que depois de minha morte

apareça neste reino nada que rei Artur tenha feito.

Isto mandou rei Mars fazer. Por isso

aconteceu que o reino de Logres chegou perto de ser

destruído.

702. Depois que isto foi ordenado, começaram

a ir pela terra, estragando-a toda por onde iam; e

tanto andaram, que chegaram numa meia-noite à

Joiosa Guarda, entraram e destruíram-na, de forma

que nunca depois valeu senão pouco. Quando rei

Mars soube que ali estava o corpo de Lancelote, foi

ver o túmulo onde jazia, e quando o viu tão formoso

e tão rico, disse:

— Ai, Lancelote, quanto mal me fizeste

enquanto viveste! E nunca me pude vingar. Mas

agora me vingarei quanto posso.

Então fez perfurar o túmulo, que era tão rico e

tão formoso, que todo o haver de Cornualha não

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seria seu preço, e o fez deitar fora do castelo num

lago, de onde ninguém o pudesse tirar. E tomou o

corpo de Lancelote, que ainda estava inteiro, e

mandou fazer uma grande fogueira, e mandou deitar

nela os ossos de Galeote e deixou-os arder até que

viraram cinza.

E bem vos digo que estavam lá muitos

homens bons, a quem pesava muito.

703. Depois que rei Mars isto fez, foi para

Camalote, porque eram muito poucos contra os seus,

mas eram de forte ânimo e de muita fama e disseram

que não se deixariam cercar. E sairam logo todos da

vila e combateram com eles. Mas eram tão poucos,

que logo foram todos mortos, de modo que ninguém

escapou; e, sem falha, isto os fez morrer, porque

eram de tão forte ânimo, que não quiseram fugir. Rei

Ma2rs entrou na cidade e destruiu o resto dela. E

quando foi à távola redonda e viu o lugar de Galaaz,

disse:

— Este foi o lugar daquele que destruiu num

só dia a mim e aos do reino de Sansonha. E

destruirei por desamor dele, a távola redonda e seu

lugar primeiramente, e depois todos os outros.

E bem como o disse, fez, que mandou tudo

destruir, que não ficou nada.

[519] 704. Naquela hora que rei Mars isto fez,

veio a ele um cavaleiro de Cornualha, que sempre

desamara rei Artur e a linhagem de rei Bam, e disse-

lhe:

— Senhor, nada tereis feito, se não matardes

rei Boorz e Bliobleris e o arcebispo de Cantuária e

Meraugis; aqueles foram da távola redonda e vivem

nesta terra, e se vos escapam, buscarão gente com

que vos farão muito mal a vós e a todos os do vosso

lado.

E o rei lhe perguntou onde estavam. Eele lhe

contou todos os feitos dos quatro cavaleiros.

— Isto não há mister, disse rei Mais; nestes

convém que vingue minha sanha. Agora cuidai de os

buscar, e a quem até eles me levar, darei tal riqueza,

que se terá por bem recompensado.

Por esta promessa que ouviram, foram muitos

cavaleiros pelas ermidas buscá-los.

705. Da linhagem de rei Mars foram àquela

demanda quatro cavaleiros. E um dia aconteceu que

chegaram perto da ermida onde os quatro cavaleiros

moravam e acharam diante de uma fonte Meraugis

dormindo, muito pobremente vestido e magro e

amarelo e muito mudado do que costumava ser,

porque muita miséria sofrera. E despertaram-no para

perguntarem a respeito do que buscavam. E ele lhes

disse:

— Nesta ermida os achareis. E eu sou

Meraugis, um dos quatro cavaleiros que buscais.

Depois, disseram:

— Levai-nos lá.

E ele o fez. E quando viram os dois

companheiros, que foram tão bons cavaleiros de

armas e tão poderosos de tudo, e assim se meteram

no serviço de Nosso Senhor, tiveram deles muita

pena e saíram da ermida e disseram entre si:

— Matá-los-emos ou não?

E foi assim afinal que concordaram em não

matá-los, mas em contar ao rei. Depois voltaram ao

rei e disseram-lhe o que acharam.

— Assim? disse o rei: estas são boas novas.

Estes muitas vezes me afrontaram; eu me vingarei.

Então pegou um dos quatro cavaleiros e disse-

lhe:

— Levai-me lá.

E ele disse que o faria. Então se separou o rei

de sua companhia todo armado e não quis que

ninguém soubesse, fora aquele que o guiava; e ele

desamava tanto aqueles quatro, que os poderia matar

com sua mão. Quando chegou à ermida, achou

dentro um cavaleiro da linhagem de rei Bam, que

chamavam Paulas, mas estava ainda armado, e

quando viu que não era aquele que buscava, [520]

saiu da ermida e andou ao redor procurando os

quatro ermitães que estavam fazendo sua alegria

pelo hóspede que chegara. Quando rei Mars foi a pé

onde estavam, perguntou qual deles era rei Boorz. E

rei Boorz disse:

— Senhor, que vos apraz?

— Apraz-me algo que se tornará em vosso

dano, disse ele. Sabeis quem sou? Sou rei Mars de

Cornualha, que aqui vim para me vingar de vós.

706. Então meteu mão à espada, e quando o

arcebispo viu que os queria matar, meteu-se entre o

golpe, e deu-lhe o rei por cima da cabeça tão grande

golpe, que o meteu morto. Quando Paulas viu isto,

ergueu-se com grande pesar e disse:

— Ai, rei Mars, bravo e desleal! Fizeste-me a

maior traição que nunca rei fez. Mas te acharás por

isso mal, se eu posso.

Então meteu Paulas mão à espada e deixou-se

ir a rei Mars e feriu-o tão violentamente como quem

era de muita força, que lhe não valeu elmo nem

almofre, que o não fendesse todo até os dentes, e o

corpo caiu por terra. Quando o cavaleiro que viera

com o rei, viu este golpe, pediu-lhe merca que o

não matasse.

— Pois promete-me, disse Paulas, que desta

morte não dirás a ninguém.

E ele prometeu e partiu. E os ermitães

pegaram o corpo de rei Mars e enterraram-no diante

da ermida, fora de sagrado, porque o tinham por um

dos desleais homens do mundo.

Deste modo como vos digo, morreu rei Mars

de Cornualha; e os ermitães ficaram na ermida em

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serviço de Deus. E assim acabemos nós. Amém.

50 - AMADIS DE GAULA

O ROMANCE DE AMADIS. Reconstituição

doAmadis de Gaula dos Lobeiras (sécs. XIII-XIV)

porAffonso Lopes Vieira. São Paulo: Martins

Fontes,1995.135p.

[1] 1. Perion

Senhores, ouvide o Romance de Amadis, o

Namorado. Escreveu-o um velho trovador

português, mas depois um castelhano, trocando-lhe a

língua e o jeito, da terra lusa o levou. Porém as mais

nobres mentes de Espanha já por nosso o dão.

Em Portugal tem a segunda pátria o espírito

heróico e amoroso da Távola Redonda.

E o conto é de amor fino e fiel, de português

amor, rendido como ele é só.

Ao começar o Romance, invoco a memória do

cavaleiro-poeta que o compôs, para que me alumie.

Invoco a alma do Portugal que aprendeu com

Amadis a ser gentil e forte e a prezar a flor da

Honra.

E vós que amais com amor heróico e fiel, que

amais o amor, ouvide a história como eu a senti.

Não muitos anos depois da Paixão do nosso

Salvador e Redentor Jesus Cristo, [2] houve na

Pequena Bretanha um rei, por nome Garinter, bom

cristão e de lhanas maneiras.

Teve este rei duas filhas, de sua mulher, boa

dona. A mais velha casou com Languines, rei de

Escócia; e a essa se chamou a Dona da Guirlanda,

porque de uma grinalda mui rica quis seu marido

que ela sempre cobrisse os formosos cabelos, tanto

gosto lhe dava olhá-los; e por filhos houveram

Agrajes e Mabília, de quem menção se fará.

A outra filha, chamada Elisena, era muito

mais linda que a irmã e tão virtuosa, que parecia ser

Deus o único senhor capaz de estimar tal criatura.

Bem haviam pedido a sua mão muitos príncipes

dignos de a esposar, os quais demandavam a corte

da Pequena Bretanha, sabedores da formosura e

virtude que nela resplandeciam.

— Filha — dizia-lhe el-rei Garinter, a quem

dava desgosto esta isenção da infanta —, estou já de

muitos dias e quisera, antes de dar contas a Deus,

deixar-te segura nas voltas do mundo.

Porém ela só aos gozos da religião se in-

clinava, sem mostrar outro fito que o do Céu. E tanta

esquivança deu azo a que a apelidassem Devota

perdida.

Ora, este rei Garinter, quando o tempo ia

brando, saía algumas vezes a montear, para espalhar

cuidados. Uma vez que se apartara dos monteiros e

pela espessura andava a rezar suas Horas, viu um

cavaleiro que com [3] dois outros pelejava, nos quais

reconheceu dois vassalos, de quem, por soberbos e

descorteses, el-rei muitas queixas havia. Mui bravo

era o que acometia sozinho os dois juntos, pois, com

tão natural galhardia se guardava e investia com

eles, que da sua parte mais parecia desenfado que

peleja, seguro como se achava de si o cavaleiro

desconhecido.

El-rei Garinter, que se arredara, olhava o

combate desigual, no fim do qual foram mortos os

maus vassalos.

Isto feito, veio o cavaleiro a el-rei e, vendo-o

só, perguntou-lhe:

— Bom homem, que terra é esta em que os

cavaleiros são salteados?

— De isso não hajais espanto — retrucou el-

rei —, que em todas as terras bons e maus cavaleiros

há; e desses que dizeis muitos tinham agravos, e até

seu mesmo rei.

— A esse rei quero falar — tornou o cavaleiro

—, e, se sabeis onde pára, peço-vos o .digais.

Não quis el-rei manter por mais tempo o

engano. E respondeu:

— Pois, seja como for, sabei que tal rei eu o

sou.

Ouvindo estas palavras, entregou o cavaleiro

ao escudeiro o escudo e o elmo e foi abraçar el-rei

Garinter, dizendo-lhe que era el-rei Perion de Gaula

e que muito quisera conhecê-lo. Ao som deste nome,

deveras folgou o senhor bretão. Conhecia ele Perion

[4] por sua fama alta e honrada, pela bravura e

gentileza da sua cavalaria, as quais, sendo aquele rei

moço como era, tão celebradas andavam por todos

os remos da Pequena e da Grã Bretanha. E, do

coração, deu-lhe as boas-vindas. Ledos se juntaram

os senhores e dispuseram-se a procurar os

monteiros, para se recolherem à vila de Alima,

donde el-rei Garinter partira para montear.

Prosseguiam os dois, discorrendo sobre coisas

aprazíveis. El-rei Garinter ouvia com gosto quanto

lhe ia dizendo o senhor de Gaula, em cujas palavras

a cortesia emparelhava com o nobre juízo.

— Tão moço é ainda — pensava o da Pe-

quena Bretanha —, e assim na bravura é ousado

como na mente esclarecido. Ditoso será o pai que a

este houver de dar filha!

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Súbito, pelo caminho saltou-lhes um veado

escapo da montaria e atrás do qual correram os reis,

a fim de o lancear. Mas um leão, que das brenhas

saíra, alcançou o veado, atassalhou-o e pôs-se a

olhar sanhudo os cavaleiros, como quem preara

coisa que julgava ninguém disputaria.

Vendo o quê, desmontou el-rei Perion do

cavalo, que a vista do leão espantara:

— Pois não há de ser teu! — disse Perion.

Sem que o estorvassem as vozes de el-rei

Garinter, com as quais lhe pedia não desse batalha a

tão bruto inimigo, Perion endireitou à fera, com o

escudo embraçado e a espada na mão. Logo o leão

deixou a presa e, [5] furioso de ver que o

contestavam, arremessou-se contra quem lhe negava

os direitos de tomador. Juntando-se ambos, o leão o

teve debaixo, prestes a esquartejá-lo. Mas el-rei, não

perdendo o ânimo no apuro, ensopou-lhe a espada

no ventre e o matou.

Perto soaram as buzinas dos monteiros que

logo vieram e rodearam a seu senhor.

E do que viu se admirou el-rei Garinter, entre

si dizendo que não sem causa el-rei Perion era tido

pelo mais esforçado cavaleiro do mundo.

[7] II. Darioleta

Carregados em dois palafréns o leão e o

veado, para a vila se encaminharam com grande

prazer os senhores; do que sendo avisada a rainha,

de muitos e ricos atavios se enfeitaram os paços e

foram postas as mesas. Quando foram comer,

sentaram-se a uma mais alta os dois reis e a minha,

com Elisena em outra a par desta; e ali foram

servidos como em casa de tão bom senhor convinha.

Mas, sendo a infanta assim virtuosa e ei-rei

Perion tão alto cavaleiro, em tal hora se olharam,

que o grande recato dela não pôde tanto que de mui

grande amor presa nao fosse; e Perion também da

infanta, pois seu próprio coração livre o havia. De

maneira que um e outro todo o tempo ali estiveram

fora de si. Recolhendo-se a rainha à sua câmara,

levantou-se Elisena e, caindo-lhe do regaço um anel

que tirara para se lavar, a fim de o apanhar se

baixou, quando Perion o tomou e lho deu.

[8] No dar e receber o anel, as mãos deles

encontraram-se e Perion apertou a da infanta, que,

olhando-o com amorosos olhos, lhe agradeceu,

corando.

— Ai, senhora! O último serviço não será que

vos eu farei, pois toda a vida a quero empregar em

vos servir!

Tão turbada se foi Elisena, que a vista quase

perdia. Desconhecia-se a si própria a infanta. É que

o efeito do amor, em alma tão isenta, ia lavrando

com dobrado lume.

Não podendo calar dor tão nova, descobriu

seu segredo a uma donzela de quem muito se fiava e

se chamava Darioleta. E, com pranto dos olhos e

mais do seu coração, pediu-lhe conselho sobre como

poderia saber se Perion amava outra mulher, e se

aquele amoroso rosto, com que a estivera olhando,

seria prova de amor igual ao seu. Pasmou a donzela

com tal mudança em pessoa para quem estas coisas

eram tão desusadas. Teve por caso peregrino que as-

sim, de súbito, quisesse saborear o humano, quem

até ali desdenhara de alguma vez o provar. Porém

logo prometeu servi-la, vendo que o amor não

deixara em sua senhora lugar para caberem razão ou

aviso.

Determinando-se, pois, a ajudar sem detença a

nova enamorada, encaminhou-se Darioleta para a

câmara de el-rei Perion, a tempo que o escudeiro ia

levar os vestidos do seu senhor. Pediu-lhos a

donzela, dizendo que ela mesma os levaria.

[9] Tomando por maior honra o que a seu se-

nhor se fazia, deu-lhos o escudeiro. E Darioleta,

entrando na câmara de el-rei, por esse foi

reconhecida como a donzela da infanta:

— Boa donzela, que me quereis?

— Senhor, dar-vos de vestir.

— Nu de alegria está meu coração.

— Mas por quê?

— Porque sempre livre fui, a esta terra livre

vim, e agora, em casa de vosso senhor, ferido estou

de ferida mortal. E, se para ela remédio me

achásseis, eu vos daria bom galardão.

Respondeu Darioleta que contente seria de

servir a tão bom senhor, se soubesse em quê. Ora,

Darioleta sabia muito bem aquilo em que poderia

servir a el-rei Perion. Mas alegrava-se de o ouvir

falar do amor que Elisena lhe merecia, comparava as

palavras dele com as que lhe ouvira a ela, e tudo ia

encaminhando ao ponto que desejava.

Respondeu-lhe el-rei:

— Se me prometeis, como leal donzela,

guardar segredo do que vos eu disser, descobrindo-o

só onde de razão, então direi.

E, prometendo-lho Darioleta, disse-lhe que

vivera até ali sem haver empregado o coração,

costumado a correr aventuras, mas não a penar

cuidados; que em forte hora olhara a grande

formosura de Elisena, cuja presença lhe havia

ensinado o que era o verdadeiro amor, pois tão

cuidoso estava agora, que se julgava a ponto de

morrer, e [10] enfim que morreria se algum remédio

não achasse.

Tornou-lhe a donzela:

— Se me prometeis, como rei, guardando em

tudo a verdade a que mais obrigado sois, de, a seu

tempo, a tomar por mulher, então eu farei coisa que

não só o coração vos contente, mas também o dela,

onde mora amor igual ao vosso. Porém, se o não

prometerdes, por mulher a não lograreis, nem vossas

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palavras haverei como de honrado amor.

El-rei Perion, que obedecia também ao mando

de Deus para que tudo sucedesse como adiante

ouvireis, pôs a mão na cruz da sua espada e jurou:

— Juro nesta cruz e espada, com que a

Cavalaria recebi, de isso fazer que me pedis,

donzela, e quanto por vossa senhora requerido me

for.

— Pois folgai ora, que eu farei o que vos

disse!

Buscando a infanta, contou-lhe o que com el-

rei Perion concertara e repetiu-lhe as palavras de tão

seguro amor que tinha ouvido a el-rei.

Elisena abraçou-a, tomada de uma alegria

como jamais a havia iluminado:

— Minha amiga verdadeira! Mas quando

soará a hora em que em meus braços aperte aquele

que por senhor me foi dado?

Explicou-lhe Darioleta que, dando a câmara

de el-rei Garinter para o pomar, a ela [11] iriam

seguras quando todos estivessem dormindo. E,

lembrando-lhe Elisena que, na mesma câmara, el-rei,

seu pai, dormia, a donzela prometeu que tudo faria

bem.

Quando caiu a noite, Darioleta apartou-se com

o escudeiro de el-rei Perion e perguntou-lhe quem

era a mulher que seu senhor amava com entranhado

amor.

— O meu senhor — respondeu o escudeiro —

a todas ama,mas a nenhuma como dizeis.

Ficou a donzela contente de receber esta

resposta, que tão bem se ajustava com o que a tal

respeito lhe havia dito el-rei Perion.

Neste ponto acercou-se el-rei Garinter e,

vendo os dois conversando, perguntou àdonzela que

tinha ela que dizer àquele escudeiro.

— Por Deus, senhor, eu vo-lo direi: ele me

chamou e disse que seu senhor costuma dormir

sozinho em sua câmara, e vossa companhia certo o

estorvará.

El-rei Garinter, muito honrado com o seu

hóspede e querendo que ele se achasse bem, foi

dizer a el-rei Perion que, levantando-se a matinas,

por ter muito em que cuidar, o deixaria só para

estorvo lhe não fazer.

Quando Darioleta viu que os reposteiros

levavam de ali a cama de el-rei Garinter, foi contar à

infanta quanto sucedia.

[12] — Boa amiga — disse-lhe Elisena —,

creio que Deus assim o quere! O que parece agora

erro será ao depois grande serviço seu.

E deste modo estiveram elas, até que todos

foram dormir.

[13] III. Elisena

Como tudo estivesse sossegado e o ermo

silêncio da noite lhes fosse aconselhando ânimo, a

donzela encaminhou a infanta e saíram ambas ao

pomar. Fazia um luar muito claro.

Darioleta, olhando Elisena, abriu-lhe o manto,

remirou-lhe o corpo, que ela trazia nu, só com

camisa, e disse, rindo:

— Senhora, em boa hora nasceu aquele que

vos vai ter!

Sorriu a infanta e tornou-lhe:

— Amiga, dizei antes que bem-aventurada fui

em me dar Deus tal senhor.

Com passadas tão cautas quanto lho ia

pedindo o melindre da empresa, foram as duas

andando à surda, sob a Lua.

Perion, com a queixa do coração e a esperança

que a donzela nele lhe fora plantar, não havia podido

dormir. Caíra em modorra e sonhava. Padecia aflito

os tratos que lhe estavam dando, pois é maravilha da

mente [14] representar-nos tão vivo o que só nela

própria se engenha. Sonhava que alguém entrara por

uma porta falsa naquela câmara, sem que se ele

pudesse defender do inimigo agora vindo à sua

ilharga.

Este fora-se ao que ali jazia e abrira-lhe as

costas com as mãos , remexendo até lhe agarrar o

coração.

— Por que me fazeis tal crueza? — dizia

Perion, a labutar nas vascas do pesadelo.

Afogado em dor, vira el-rei o seu próprio

coração levado a uma janela, donde fora lançado às

águas de um rio.

Enquanto el-rei Perion pelejava no sonho, a

infanta e a sua guia haviam chegado à porta da

câmara. Elisena tremia toda. Ao tocarem na aldrava,

o ferro tiniu. Perion acordou espavorido e benzeu-se.

Neste ponto iam entrar as donzelas, e,

havendo-as ele sentido, temeu-se de traição e saltou

do leito, empunhando a espada contra os vultos.

— Senhor, isso que é? — segredou-lhe Da-

rioleta.

Reconhecendo então Elisena, foi tomá-la

Perion nos braços. Darioleta disse à infanta:

— Ficai, senhora, que, ainda que vos de-

fendestes de muitos, e ele de muitas também se

defendeu, mandou Deus que vos não defendêsseis

um do outro.

E, vendo a espada de el-rei, tomou-a em sinal

da jura feita e saiu.

[15] Perion, olhando Elisena à luz das tochas

que ardiam, parecia-lhe que nela se ajuntara toda a

formosura do mundo.

Antes da alva romper, veio Darioleta pela

infanta e, indo as duas dormIr, nada se soube em

palácio.

Assim, por espaço de dez noites se amaram

Perion e Elisena. Em cada uma guiava Darioleta a

infanta até a câmara onde os desígnios do Senhor se

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cumpriam.

Por isso o Senhor juntara os dois, mudando

para tal fim a um e a outro: a ele, tirando-lhe a

liberdade com que correra aventuras; fazendo-lhe a

ela baixar os formosos olhos à terra. Em uma noite,

perguntou Elisena ao seu amigo:

— E, quando vos fordes, que há de ser de

mim?

Respondeu-lhe el-rei, sentindo já também a

dor da próxima ausência:

— Quando me eu for, deixo-vos o coração, e

ele, junto ao vosso, nos dará forças, a vós para

esperar um tempo, a mim para cedo tornar.

Ao cabo daqueles dias el-rei Perion acordou e

forçou sua vontade, decidindo-se a partir. Bem se

pode dizer que acordara, porque o verdadeiro amor,

ao encher coração de homem, de tal sorte o eleva e

embala, que o livra do peso do mundo. Além da

pena principal que lhe fazia o deixar Elisena, sentia

el-rei outro grande cuidado, e este lho dava o sonho

que tivera. Queria [16] sa|ber como os sábios do seu

reino entenderiam aquilo do coração deitado ao rio,

pois, desde que tal coisa sonhara, não havia podido

recobrar o ânimo seguro.

Despedindo-se de el-rei Garinter, com

palavras de muita cortesia, e tendo ouvido outras de

grande estimação, quando quis cingir a espada, não a

achou. Não se atreveu a pedi-la, o que muito lhe

custava, porque era boa e formosa.

E partiu daquele reino.

Porém antes falara com Darioleta, com quem

desabafou a pena em que ia e lhe contou aquela em

que sua senhora ficava.

— Ai, minha amiga, eu vo-la recomendo

como ao meu próprio coração!

E, tirando do dedo um formoso anel, de dois

iguais que trazia, deu-lho para que lho levasse por

seu amor.

[17] IV. Amadis sem tempo

Com que saudade e dor Elisena ficou do seu

amigo! Em tão breve tempo, e tão pouco propensa

como havia sido às coisas do amor, provara a infanta

toda a alegria e toda a pena. Só falando com

Darioleta algum alívio achava. Passando foram os

dias, uns menos tristes que outros, porém povoados

todos de cuidados. O mais do tempo levava-o

Elisena a cismar, e, recolhida na própria alma, ia

escutando as vozes das lembranças, que são consolo

e amargura de quem lhes dá ouvidos. Até que a

infanta se sentiu grávida, perdendo o comer e o dor-

mir e a sua formosa cor.

Cresceram então os temores, e não sem

grande razão, porque era lei naquele tempo que não

escapasse à morte, por maior que fosse seu estado e

senhorio, mulher que cometesse culpa.

Culpa, não a cometera Elisena, pois o que el-

rei Perion jurara sobre a cruz [18] santifi|cava para

Deus o amor que haviam. Mas isto era para Deus,

não para os homens. E durou esta lei cruel até a

vinda do mui virtuoso Rei Artur, que a revogou ao

tempo em que matou Floyan em batalha, às portas

de Paris.

Mas aquele poderoso Senhor Deus, por cuja

permissão todas estas ações se faziam para seu santo

serviço, tão discreta tornou Darioleta, que a donzela

tudo remediou, como agora ouvireis.

Havia em palácio uma apartada câmara de

abóbada, sobre um rio que por ali passava, e ao rés

do qual se abria uma portinha de ferro, por onde às

vezes as donzelas entravam na água para folgar.

Por conselho de Darioleta, pediu Elisena esta

câmara a seus pais, a fim de melhorar a saúde e rezar

suas horas, sem que a estorvasse ninguém, levando

Darioleta para que a servisse. Tendo-lho eles

consentido, ali se aposentou a infanta, e alguma

coisa descansou de seus temores.

Um dia, perguntou à donzela que se havia de

fazer ao que nascesse.

— Quê, senhora? Que padeça para que vos

livreis!

— Ai! Santa Maria! E como deixarei matar o

que aquele que mais amo fez?

— Disso não cureis — tornou-lhe a donzela

—, porque, se a vós matassem, a ele não poupariam.

[19] Mas o coração da que ia ser mãe é que se

não podia conformar com tais juízos. Do fundo das

entranhas, Elisena exclamou:

— Ainda que eu como culpada morra, não

quero que o inocente padeça!

— Pois grande loucura seria que, para salvar

coisa sem proveito, vos perdêsseis e a vosso senhor,

que viver sem vós não poderia. Mas, vivendo ambos,

outros filhos vireis a ter, que a pena deste vos farão

passar.

Como à donzela era Deus quem a guiava,

antes do aperto quis o remédio. Buscou quatro

tábuas tão grandes, que com elas fez uma arca do

comprimento de uma espada, e com betume as ligou

tão bem, que toda a água vedavam.

Mostrando a Elisena o que fizera, disse-lhe

que a seu tempo saberia para que era aquilo.

A pobrezinha respondeu-lhe:

— Pouco se me dá saber o que se faz ou se

diz, que perto estou de perder minha alegria e meu

bem!

Doeu-se de pena a donzela, vendo-a tão triste

e chorando, pois bem lhe custava ter de ser crua por

força. E foi-se para que a infanta a não visse também

chorar.

Pensava Elisena em Perion, de quem não

houvera mais novas. E, embora cresse no amor dele

e em que ele nunca a esquecia, pesava-lhe muito a

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ausência, para mais em tão incerta hora.

Uma vez, perguntou a Darioleta:

— Por que não virá o meu senhor?

[20] Sossegou-a a donzela, respondendo-lhe o

que a infanta a si mesma dizia quando cuidava

naquela ausência:

— Senhora, por tudo será, menos porque vos

esqueça, pois no juramento feito sua palavra

empenhou.

Não tardou muito que a Elisena chegasse a

hora de ser alumiada; e, como não podia gemer,

dobradamente sofria.

Enfim quis Nosso Senhor que um filho

nascesse, e, tomando-o a donzela nos braços, viu que

era vivo e formoso!

Porém logo tratou de fazer o que convinha,

segundo o que antes determinara: batizou o menino

como se fora em artigo de morte, e, depois de o

embrulhar em ricos panos, trouxe a arca.

Elisena, abraçada ao filho, não entendia estes

preparos:

— Que ides fazer?

— Pô-lo aqui e deitá-lo ao rio!

A mãe apertava-o ao peito, chorava que se

matava:

— Meu menino! Meu rico filhinho!

Mas o temor do risco em que se achavam

aguçava a ligeireza da donzela.

Darioleta escreveu num pergaminho: Este é

Amadis sem tempo, filho de Rei. O nome era o de um

santo de muita devoção, a quem o encomendou; e

dizia “sem tempo” porque cuidava que ele ia logo

morrer.

Pendurou a carta ao pescoço do menino e

Elisena enfiou na mesma fita o anel que [21] Perion

lhe havia dado. Deitado o menino na arca, puseram-

lhe ao lado a espada de seu pai — e a donzela deitou

a arca ao rio...

Como a corrente era forte, depressa chegou ao

mar. E, sendo já manhã, aconteceu um daqueles

sucessos que Nosso Senhor ordena quando lhe

apraz.

No mar navegava uma nau em que um

cavaleiro de Escócia partia da Pequena Bretanha,

com sua mulher, que dera à luz pouco havia; e de

bordo viram a arca e mandaram recolhê-la. Trazida

esta pesca de nova feição, o cavaleiro, que se

chamava Gandales, abriu a arca e viu o menino,

sorrindo, deitadinho ao lado da espada.

— Este é filho de algo. E que espada formosa!

Apertou-o ao peito, com dó e encanto do que,

por milagre, assim lhe vinha.

Maldizia o cavaleiro a mãe que a tal criatura

pudera enjeitar e pediu a sua mulher que o criasse.

Logo esta lhe deu o seio da ama que a seu filho

Gandalim aleitava e onde o menino mamou com

vontade, do que os bons senhores se alegraram.

Era brando o coração de Gandales, e também

o de sua mulher. Custoso seria, com efeito, não

sentir piedade de quem fora deitado às ondas em tão

frágil embarcação, mal havia aberto os olhos para

sorrir ao mundo cru. E logo a bordo da nau o menino

foi querido, no que o ajudava o mistério de sua

origem.

[22] Assim foram Gandales e os seus nave-

gando até Antália, cidade de Escócia, e, de ali

partidos, chegaram a um castelo que tinham e era

dos bons do reino.

Aí foram criando o menino como seu filho. E

todos creram que o era, porque pelos marinheiros

nada se soube, tendo eles navegado a outras partes.

[23] V O Donzel do Mar

Partindo el-rei Perion da Pequena Bretanha,

como já se vos contou, quanta saudade de sua

senhora havia! Pelo caminho por onde antes tinha

ido solto, voltava agora cativo. E que também

Perion, como Elisena viera a conhecer o que até ali

havia ignorado: o verdadeiro amor. E também ele

pensava na infanta, temendo que se ela achasse em

perigo.

Chegado que foi ao seu reino, enviou recado

aos homens-bons para que lhe mandassem os mais

sabedores, a fim de lhe explicarem um sonho que

tivera.

Vieram os vassalos mui desejosos de o ver,

que de todos el-rei era querido; e, depois que tratou

das coisas do reino e do que ã sua fazenda cumpria,

a cada um despachou para as suas terras. Passado

tempo, chegaram a palácio três homens entendidos

naquilo que a el-rei tornava cuidoso, por serem

práticos na leitura dos astros. Tendo-[24] os levado à

capela, onde lhes fez jurar que toda a verdade diriam

, sem lhe esconderem dura verdade, contou-lhes el-

rei o sonho, guardando-se de dizer onde e como o

tivera. E começaram os mestres a futurar. Com as

razões dos primeiros não pôde Perion satisfazer-se:

tão embrulhada saía a explicação, que não entrevia

luz o entendimento. Ungan, o Picardo, que era o

mais avisado, sorria de ouvi-los e, quando lhe

chegou a vez, começou de dizer:

— Senhor, porventura vi eu já coisas que é

melhor guardar para nós.

Saíram os outros, conforme o desejo

mostrado. Quando ficou só com el-rei Perion,

Ungan, o Picardo, falou-lhe assim:

— Ora vos posso dizer, senhor, o que en-

cobris: amais e já vossa vontade cumpristes. O

sonho do coração deitado ao rio, quere dizer que na

água~ será achado um filho que haveis de ter.

Agora sabei que o donzel que em casa de

Gandales se criava, e ao qual chamavam o Donzel

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do Mar, em tanta formosura crescia, que a todos

maravilhava.

Uma vez, indo Gandales seu caminho,

apareceu-lhe uma donzela que lhe disse:

— Ai, Gandales! Se muitos altos senhores

soubessem o que eu sei, cortavam-te a cabeça...

Pasmou o bom cavaleiro.

Acrescentou aquela:

[25] — Porque em tua casa guardas a morte

deles.

— Donzela, por Deus rogo vos expliqueis!

Então ouviu Gandales tais palavras maravilhosas:

— Digo-te que aquele que achaste no mar será

a flor da Cavalaria: fará tremer os fortes, humilhará

os soberbos, defenderá os agravados, e tudo obrará

com honra. E será também o cavaleiro que com mais

bela lealdade há de manter seu amor!

— Ah! senhora, dizei-me quem sois!

— Sou Urganda, a Desconhecida, mas não me

busques que me não acharias.

E, ao passo que assim dizia, de moça formosa

se mudou em velha trôpega. Isto vendo, teve

Gandales a Urganda por uma daquelas mulheres que

possuem saber de sortes e encantamentos, conhecem

a virtude das palavras, das águas e das ervas e guar-

dam o segredo de manter mocidade, beleza e

poderio.

Voltando ao castelo, tomou Gandales nos

braços o Donzel e beijou-o, com lágrimas nos olhos.

E o menino, que tinha três anos e era formoso

à maravilha, quis enxugar o pranto do bom senhor,

do que este se alegrou, pensando que na velhice lhe

seria doce.

Quando o Donzel fez cinco anos, deu-lhe

Gandales um arco à sua altura, e outro a seu filho

Gandalim, com os quais os fazia atirar.

[26] E assim o foi criando até que ele fez sete

anos.

A este tempo el-rei Languines, de jornada no

seu reino, albergou-se com a rainha no castelo de

Gandales, que lhe ficava em caminho.

Mas os donzéis mandou-os Gandales para um

pátio, no propósito de que olhos alheios não vissem

o que, cioso, guardava. Ora, a rainha, olhando de um

eirado, viu-os embaixo jogando e, entre eles, o

Donzel do Mar, de cuja formosura tanto se

maravilhou, que chamou as aias para que o

admirassem também:

— Vinde cá e vereis a mais linda criatura que

nunca foi vista!

Estavam a rainha e as aias debruçadas a

admirar o que viam, enquanto os donzéis iam

atirando ao arco.

O donzel formoso, que parecia senhor dos

outros, não só por lindeza e garbo, senão porque

trazia vestes mais ricas, foi-se a uma bica de água

beber e, enquanto se arredou, um, mais crescido,

quis atirar a Gandalim o arco com que este atirava.

— Acode-me, Donzel do Mar! — gritou

Gandalim.

Logo o mais pequeno se foi ao maior e, como

o visse lutar com Gandalim, bateu-lhe com o arco na

cabeça e derribou-o. Saiu o donzel ferido, a fim de

se queixar ao aio; e, vindo este com as correias para

dar castigo, ajoelhou o Donzel do Mar e disse:

[27] — Mais quero que me castiguem que ver

padecer meu irmão.

Do eirado onde estava, a rainha viu tudo. E

tanto se agradou do rasgo do Donzel como se

admirou do seu nome e maravilhou de sua

formosura. Neste ponto chegava el-rei,

acompanhado de Gandales; e perguntou a rainha:

— Dizei-me, Gandales, é vosso filho aquele

formoso donzel a quem chamam o Donzel do Mar?

Sobressaltou-se o coração do bom senhor,

vendo já descoberto o que ele, por acautelado,

escondera. E respondeu pouco seguro, como quem

nunca mentia:

— Senhora, sim...

Continuou a rainha, curiosa:

— E por que tem tal nome?

— Porque no mar nasceu, quando eu tornava

da Pequena Bretanha.

— Pois, amigo, não se parece convosco —

disse a rainha, sorrindo e pensando que o seu vassalo

Gandales, se era muito abastado em bondades,

pouco devia à formosura.

— Chamai-o para que eu o veja — prosseguiu

ela.

Dissimulando a nenhuma vontade com que o

fazia, mandou Gandales chamar o Donzel do Mar.

Logo que ele veio e ajoelhou diante da rainha,

disse esta a Gandales:

— Sou eu que o quero criar!

[28] Dorido no coração e escondendo as lá-

grimas, perguntou Gandales ao Donzel:

— Queres ir com a rainha, meu filho?

Pôs este os olhos em seu senhor e respondeu,

com firmeza de varão:

— Irei onde me mandardes, mas vá meu

irmão comigo.

— Nem eu o deixaria! — acrescentou Gan-

dalim, que o acompanhava.

— Senhor — disse Gandales a el-rei —, tão

amigos são um do outro, que haveis de os levar aos

dois.

Chamou el-rei Languines seu filho Agrajes e,

mostrando-lhe os donzéis, recomendou-lhe:

— Filho, quero que sejas muito amigo destes,

pois que muito o sou eu do pai deles.

Mas, vendo el-rei os olhos de Gandales rasos

de água, sorriu do seu vassalo:

— Amigo, nunca eu cuidei que tão louco

fôsseis!

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— Senhor, não o sou tanto quanto cuidais.

Então, a sós com seus senhores, pediu

Gandales lhe perdoassem o haver encoberto a

verdade, ao que o levara o mimoso amor que votava

àquele que havia criado e amava como a filho. E

contou-lhes a história do Donzel: de como o tinha

achado boiando no mar com uma espada formosa, de

como julgava que ele vinha de grande linhagem e o

que havia profetizado Urganda, que o bom senhor

tinha por fada.

[29] Com cativado respeito, como quem ouvia

coisas em que a vontade do Céu se entremostrava,

iam os senhores escutando o que lhes contava o bom

vassalo. Também seus corações movia ao amor a

história do menino deitado às ondas.

— Por meu o quero, se vos apraz — disse a

rainha. — E, pois Deus tanto cuidado teve em o

guardar, razão é para lhe querermos mais.

Porém Gandales é que se não consolava de

saber que o Donzel se iria de sua casa, na real

companhia.

— Filho formoso — pensava ele —, que tão

cedo começaste a correr perigo e aventura, a quem

logo amei quando te vi na arca, deitadinho ao lado

da espada, e agora vais servir quem talvez devera

servir-te, Deus te abençoe e eu chegue a ver as

maravilhas que te prometidas são!

Passados dias, partiram.

Criava a rainha o Donzel do Mar como a seu

próprio filho Agrajes, e afeiçoara-se-lhe Mabília

como terna irmã.

De tão bom engenho era ele, que tudo

aprendia melhor e mais depressa que os outros: tão

certeiro cravava uma seta como lia direito umas

horas ou cantava uma canção. A caça do monte tanto

lhe aprazia, que, se pudera, nunca a deixara.

E a rainha queria-lhe tão grande bem, que

sempre a par de si o havia.

[31] VI. Oriana, a Sem-Par

Soube el-rei Perion, por carta de Elisena, que

el-rei Garinter morrera, e, como em cada dia a

lembrava com fiel amor, logo partiu ansioso de a

esposar. Não a esquecera Perion um só dia, ainda

que um tempo tardara; nem o juramento lhe saíra da

memória, como cumpria a quem tanto zelava sua

honra. Mas haviam-no demorado promessas antigas

de cavaleiro, e só queria partir para receber,

conforme a lei de Cristo, aquela que esposara já no

seu coração, depois de pagar tais promessas, a fim

de levar a alma segura. Concertados os negócios do

reino e feitas as festas das bodas, vieram ao reino de

Gaula, onde depressa a rainha foi querida. E de

Perion houve dois filhos, que se chamaram Galaor e

Melícia.

Mas quantas vezes pensava Elisena naquele

menino formoso que a força das coisas lhe fizera

enjeitar! Padecia de o haver perdido, mal o chegara a

ter. Temia que [32] Deus lhe não perdoasse o feito,

inda que o Senhor bem vira como ela sofrera em seu

coração. Doía-lhe a maldade de haver exposto

aquela vida às ondas do mar, em cujo deserto

escumoso havia perecido, por força, a tenra criatura.

Via-o deitadinho na arca, sorrindo a quem lhe estava

preparando a morte, e tão esperto e lindo como

quem vinha viver para em tudo vencer e brilhar! E,

muitas vezes, rodeada de seus filhos, entristecia a

rainha com saudades do outro.

Enquanto estes casos se passavam, Lisuarte,

grande cavaleiro e rei da Grã Bretanha, aportava ao

reino de Escócia, com sua mulher Brisena, e de el-

rei Languines e da rainha eram recebidos com muita

honra.

Traziam consigo sua filha Oriana.

Ah!, senhores, dizendo este nome, bate-me o

coração mais apressado!

É que, toda esta história que se vos conta, por

amor dela se pôde contar. E, entre todas as bem-

amadas, nenhuma foi mais bem-amada. Nem

Genevra, a quem tanto amou Lançarote do Lago;

nem Brancaflor, a quem tanto quis Flores, nem a

própria loira Iseu, por quem morreu Tristão de

Leonis, foram mais adoradas que Oriana.

E, sobretudo, em nenhum desses amores

houve a candura deste e sua graça de mocidade em

flor.

A infanta ia nos dez anos e era a mais linda

criatura da Terra — tão linda, que foi [33] chamada

a Sem-Par. Ora, como Oriana andasse enjoada do

mar, el-rei Lisuarte, que navegava para o seu reino,

deixou-a entregue a el-rei Languines e à rainha,

dizendo-lhes que a mandaria buscar quando ela ti-

vesse cobrado mais forças.

A este tempo o Donzel do Mar tinha doze

anos e, em altura e força, mostrava quinze. Servia a

rainha, mas, pois chegara Oriana, deu-lho a rainha

para que a servisse.

E ela disse que o Donzel lhe agradava, e ele

guardou no coração tais palavras.

De como as guardaria, esta história vo-lo

mostra, porque o mais belo amor aqui deles se conta.

Mas o Donzel do Mar, não sabendo o que a

infantinha sentia, tinha-se por ousado em pensar

nela, vista sua grandeza e formosura. E Oriana, que

tanto lhe queria, não falava ao Donzel mais que a

outro, por já temer que a suspeitassem. Assim

viviam encobertos, e um para o outro viviam.

Ora, o Donzel do Mar, pensando em sua

senhora, e que esta mais lhe viria a querer se em seu

serviço praticasse grandes feitos, ou por ela

morresse a praticá-los, desejou ser armado cavaleiro

e de isto deu parte a el-rei Languines.

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Sorriu el-rei do desejo do Donzel:

— A Cavalaria é leve de ter e pesada de

manter!

E prometeu-lhe que o armaria quando azado

ensejo houvesse.

[34] Ao mesmo tempo enviou el-rei

Languines recado a Gandales, a quem estas novas

muito alegraram. E o bom senhor, que havia guar-

dado como a um tesouro o anel, o pergaminho e a

espada, mandou-os a el-rei, contente de saber que o

Donzel tanto merecia a estima de seus senhores e

desejoso de que ele sempre crescesse de bem em

melhor.

Em breve chegou à corte o mensageiro de

Gandales, trazendo as coisas em que se continham

todos os haveres do que ia recebê-las.

— Senhor Donzel do Mar — disse o men-

sageiro —, vosso amo vos saúda como àquele a

quem muito quere e envia-vos este anel, esta carta e

esta espada, pedindo-vos que a espada useis sempre

pela grande amizade que vos ele tem.

Descobriu Q Donzel a espada, tirando-a do

pano que a envolvia e admirado de que a não

encerrasse bainha. E, tomando-a na mão, sorriu

àquela luminosa nudez.

— Donzel — disse-lhe el-rei Languines, de-

pois que com ele se apartou —, querei ser cavaleiro

e vossa mesma história ignorais. Há doze anos vi eu

essa espada, assim nua e formosa; e, pois hoje a

tendes por vossa, vos convém saber como a haveis.

Contou-lhe então como ele havia sido achado

no mar, com o anel ao pescoço e aquela espada ao

lado.

— Senhor, já entendo por que meu amo

Gandales me não mandou tratar por filho...

[35] Mas agora mais me convém a Cavalaria,

para ganhar honra e preço como aquele que não sabe

donde vem!

Ora, el-rei Perion veio neste comenos àcorte

de el-rei Languines, para pedir-lhe ajuda contra el-

rei Abies de Irlanda, que o guerreava e lhe andava

tomando terras e senhorios. Prometeu el-rei

Languines ajudá-lo como pudesse; e Agrajes, que já

era cavaleiro, rogou ao pai o deixasse ir também.

Olhava o Donzel do Mar a el-rei Perion e nele

admirava a grande fama que el-rei havia.

Olhava-o: e, à vista de el-rei, crescia-lhe a

vontade de ser ilustre, mantendo-se virtuoso; de ser

famoso, guardando a honra com tal apuro que

nenhum bafo pudesse jamais embaciar-lha. Cismava

em sua origem misteriosa, que mais o estava

obrigando a ir servir, em nome de Deus, as causas da

virtude perseguida, da inocência desamparada. Entre

estes pensamentos que lhe vinham, não tirava de

Oriana o seu melhor cuidado, e como o tiraria, se

por ela, afinal, é que tudo era?

E pensava que da mão de el-rei Perion, mais

que de outra nenhuma, gostaria de receber as armas.

Lembrou então que por Qriana poderia

alcançar o seu grande desejo. Procurou a infanta,

esperando que estivesse apartada dos mais, ajoelhou-

se-lhe aos pés e disselhe, tremente:

[36] — Senhora, muito queria eu pedir-vos

uma mercê...

Qriana, que via ali diante quem mais que a si

própria amava, sorriu-lhe graciosa e respondeu de

alvoroçado coração:

— Donzel, dizei!

— Mas não sou tão ousado que pedir-vo-la

possa, senão digno de fazer quanto por vós me for

mandado.

— Pois tão fraco é o vosso coração, que se

não atreva a pedir?

Ao ver o sorriso que o convidava a falar,

ganhou ânimo o Donzel:

— Senhora, pois el-rei, meu senhor, me não

quis armar cavaleiro, nunca tão bem o poderia eu ser

como por mão de el-rei Perion, a vosso rogo.

Sentiu-se Oriana encantada com o desejo que

animava o seu encoberto amigo. E, com o aguçado

sentido que torna adivinhos os corações das

mulheres, entendia que era por ela que o Donzel

aspirava ao lustre e à fama:

— E a primeira coisa que me pedis, Donzel do

Mar, e fazer-vo-la quero de boa mente.

Combinou Oriana com Mabília que o Donzel

viria à capela da rainha, à hora em que todos

estivessem recolhidos; e ficaram de mandar recado a

el-rei Perion, quando este se levantasse para partir,

antes da alva. Encontrando-se com Gandalim, disse-

lhe o

Donzel:

[37] — Irmão, espero receber as armas esta

noite. Ora dize-me se, quando eu abalar, queres ir

comigo onde eu for.

— Mas eu — respondeu Gandalim — nunca

vos deixarei!

Beijou-o o Donzel do Mar na face, e, en-

caminhando-se para a capela, quedou-se ante o altar,

rezando. Pedia a Deus, pois lhe fora o Criador tão

benigno salvando-o, destinando-lhe por amos tão

bons senhores e mandando que ali tivesse vindo

aquela por quem o seu coração batia, que no amor de

Oriana e na glória das armas lhe desse mercês de

vitória.

Depois que a rainha foi dormir, Oriana,

Mabília e outras donzelas vieram acompanhá-lo. E,

quando chegou el-rei Perion, a quem Mabília tinha

enviado aviso, disse-lhe esta:

— Senhor, fazei o que vos pedir Oriana, filha

de el-rei Lisuarte.

Perion olhou Oriana e achou-a formosa sem

par.

Sorrindo com graça a el-rei, a infanta rogou-

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lhe:

— Senhor, o dom que vos peço é que façais

cavaleiro o meu donzel.

Viu então el-rei Perion o Donzel do Mar, que

aos pés do altar estava ajoelhado. Viu-o e

maravilhou-se de sua formosura.

— Senhora — disse el-rei a Oriana —, de boa

mente vos farei tal dom, primeiro porque vós o

desejais, depois porque para este [38] o pedis. E

pesar-me-ia de não ser mais rica a cerimônia, se não

estivésseis presente, enriquecendo-a tanto.

Acercou-se el-rei Perion do altar e perguntou:

— Donzel, quereis receber a Ordem da

Cavalaria?

— Senhor, eu o quero.

— Em nome de Deus, e que o Senhor Deus

mande que tão bem empregada seja quanto vos fez

formoso!

Calçou-lhe a espora direita e disse-lhe:

— Ora cavaleiro sois. Tomai a espada!

E, entregando-lha, mal cuidava que era a sua,

que por perdida houvera quando se despedira de

Elisena.

Oriana sorria. El-rei Perion partiu.

[39] VII. Amadis de Gaula

Armado cavaleiro, quis o Donzel do Mar

partir na mesma noite. Tardava-lhe empregar aquela

espada que de tão boas mãos tinha recebido e com

que havia sido achado no mar.

E olhava Oriana, a desperdir-se... Olhava-a

muito, a dizer-lhe adeus até não sabia quando! Ela

sentia o coração aos saltos, e os seus olhos

respondiam aos dele, e tudo um ao outro

descobriam.

Despedindo-se, disse-lhe Oriana:

— Donzel, por tão bom vos tenho, que vos

não creio filho de Gandales...

— Senhora, no mar fui achado e vivo para vos

servir!

Então Oriana encomendou-o a Deus. E

Mabília, que já era e sempre havia de ser tão doce

amiga dele, disse-lhe adeus também.

À saída dos paços esperava-o Gandalim, com

os cavalos e as armas.

[40] E, sem que de ninguém fossem vistos,

cavalgaram e abalaram.

Pouco adiante amanheceu-lhes e, como era no

mês de abril, estavam as árvores em flor e cantavam

as aves à porfia. Lembrando-se da sua amiga, ia o

Donzel do Mar pensando:

— Pobre Donzel sem linhagem nem bem,

como ousaste escolher aquela que em linhagem e

formosura todas as outras vale? Mais formosa é que

o mais belo cavaleiro armado, brilha mais sua

bondade que a riqueza dos maiores tesouros — e tu,

pobre Donzel, não sabes sequer quem és, e só te

cabe calar o amor, morrer de amor antes de o

confessar!

E, com estes e outros pensamentos, cavaleiro

e escudeiro meteram-se a caminho de aventuras.

Senhores, não nos demoraremos nos primeiros

feitos do Donzel do Mar. Se eu vos contasse, agora

ou mais tarde, todas as ações do herói, a história

alongar-se-ia e encurtava-se a vontade de a ouvir.

Quando me decidi a contá-la, logo pensei em

a não fazer comprida, a fim de que a escutásseis de

boa mente.

Mas sabei que sem demora praticou belas

proezas o moço cavaleiro, e que aquela

desconhecida Urganda, que havia aparecido a

Gandales para profetizar a glória do menino, lhe

apareceu também a ele e lhe fez dom de uma lança.

[41] Embarcando para a Pequena Bretanha

tempos depois foi o Donzel ter a um castelo em

torno do qual se pelejava bravamente. E viu que

eram muitos contra um só, que já mal se guardava de

tantos golpes. Mandado por íntima força que lhe

nascia do amor da lealdade, e quem sabe de que

outra origem proviria, correu logo o Donzel a

defender o cavaleiro cercado, derribando à sua volta

muitos que o acometiam. E no cavaleiro reconheceu

el-rei Perion de Gaula. Vendo-se socorrido, el-rei

Perion cobrou novo ânimo, e o Donzel e ele

desbarataram os covardes que haviam feito a traição

e eram por el-rei Abies de Irlanda.

Quando o Donzel do Mar tirou o elmo, por

muito lho pedir el-rei Perion, este reconheceu no seu

salvador o moço a quem, tempos antes, dera as

armas.

— Amigo, louvo a Deus de por vós haver

feito o que fiz!

— Senhor, logo vos reconheci. Se vos

aprouver, servir-vos-ei na guerra de Gaula e até lá

não quisera eu dar-me a conhecer.

— Amigo, parece pura maravilha o que

acontece!

Juntos seguiram para palácio, onde o Donzel

foi agasalhado com muita honra e curado das feridas

que recebera.

E logo se aperceberam para a guerra que el-rei

Abies fazia àquele reino, estando já com sua hoste às

portas do burgo.

[42] Travada a batalha, por três dias pelejaram

com sanha os de um e outro campo. Aos senhores de

Gaula tinham vindo juntar-se os de Normandia

contra os de Irlanda, e a estes levava-os el-rei Abies.

Era este rei de tão desmarcada estatura, que excedia

um palmo os mais altos cavaleiros. No seu escudo

figurava, em campo azul, uma cabeça de gigante

decepada, em memória da que el-rei decepara àquele

com quem combatera. E, enorme no seu grande

cavalo, coberto com o escudo sangrento, el-rei Abies

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era medonho.

Num passo da batalha, quando os de Irlanda

carregavam os de Normandia e Gaula e estes já

recuavam, encontraram-se frente a frente o Donzel

do Mar e aquele rei: e entre o fragor da peleja

requereram-se os dois ao combate.

À pesada pujança de el-rei Abies respondia a

esbelteza forte do Donzel, e carregavam-se ambos

de golpes que amolgavam os elmos, cortavam os

escudos, desguarneciam os arneses.

Resfolegando furioso sob os golpes que

recebia e vendo que os que dava não derribavam

aquele inimigo fino e de aço, el-rei Abies gritara-lhe:

— Tanto te desamo quanto te prezo!

Prosseguia entanto a batalha, e os de Gaula

com os de Normandia carregavam agora os de

Irlanda, aos quais minguava o esforço do seu rei.

[43] Mais furiosos que antes, atacaram-se o

Donzel do Mar e el-rei Abies. Desconcertava-se a

rude força com tanta móbil destreza que a acometia.

Rachou-se de um golpe o escudo sangrento, e Abies

recuou furibundo e envergonhado, dando-se já por

perdido. Enfim, um golpe o lançou do cavalo, e,

vendo-o por terra, bradou-lhe o Donzel:

— Abies, dá-me a tua espada ou morres!

— Morro, mas é de vergonha! — tornou-lhe

ele, rendendo a alma.

Já os de Irlanda viam perdidos os seus

melhores cavaleiros, e os de Normandia e Gaula

haviam desbaratado os invasores.

Ao lado de el-rei Perion, entrou o Donzel do

Mar na cidade em festa.

Os moradores tinham enfeitado as janelas, e

as ruas estavam juncadas de cheirosa verdura.

Ao ver passar o moço, salvava-o o povo e

dizia:

— Mantenha-vos Deus, Donzel!

E exclamava, maravilhado:

— Deus! Como é formoso! O Senhor lhe dê

ajuda e honra para que sempre como hoje batalhe!

Enquanto o Donzel do Mar livrava a terra de

Gaula, depois de haver mantido a vida do rei dela,

chegavam à corte de el-rei Languines cem cavaleiros

de el-rei Lisuarte e muitas donas e donzelas, que iam

buscar Oriana.

[44] Partiu a infanta, acompanhada também

de Mabília. Mas, antes, vira o pergaminho enviado

por Gandales e alegrou-se de saber que o Donzel era

filho de rei e se chamava Amadis.

Ora, senhores, decerto vos lembrais daquele

anel que Perion deu a Elisena, no tempo dos seus

amores. E, como Elisena se pejara de contar a el-rei

Perion que tinha tido um filho e o deitara ao mar,

desculpara-se com dizer que havia perdido esse anel.

Uma vez, passando o Donzel do Mar por uma sala

dos paços, viu Melícia chorando e perguntou-lhe o

que tinha. A menina respondeu-lhe que perdera o

anel que seu pai lhe tinha dado a guardar enquanto

dormia a sesta.

Tirou o Donzel do Mar o que trazia no dedo e

deu-lho para a consolar da pena em que a via.

— Mas esse é o que eu perdi!

— Não é; mas, se tanto se assemelha, melhor

vos remediará.

Quando el-rei Perion quis o anel, Melícia deu-

lho e calou-se. Mas Perion achou o outro, que era,

como sabeis, igualzinho. Chamando à parte a

menina, mostrou-lhe os dois anéis, ordenando lhe

explicasse como houvera o outro e olhando-a com

tão carregado cenho, que ela, temendo castigo, con-

tou-lhe logo como houvera um deles. Então teve

Perion um mau pensamento, quanto injusto e cruel

para Elisena! Com o [45] sem|blante mudado,

buscou a rainha e, dando-lhe mostras do que

suspeitava, ameaçou-a de morte.

Ouvindo Elisena a horrenda suspeita, feriu

com as mãos o rosto e, chorando, não podendo mais,

contou-lhe que tivera um filho e o deitara ao mar,

com a espada ao lado e aquele anel ao pescoço.

— Por Santa Maria! — disse el-rei Perion. —

Creio que este é o nosso filho.

Num súbito recordo, veio-lhe à memória o

sonho que tivera aquela noite, quando esperava

Elisena e ela viera a ele. Lembrou-se do coração

deitado ao rio e viu como certo saía o que Ungan, o

Picardo, havia futurado.

Foram-se logo à câmara onde o Donzel do

Mar ficava; e o Donzel dormia. Mas, enquanto

dormia, chorava, do que eles se maravilharam —

sabei, senhores, que eram saudades de Oriana.

Olhou Perion a espada pendida à cabeceira e

logo a reconheceu por sua, que nunca outra tão boa

houvera.

Neste ponto acordou o Donzel do Mar, que se

ergueu e ficou turbado de os ver.

— Ai!, senhor! — bradou a rainha —, acudi-

me na dor que tenho!

— Senhora, se o meu serviço vos pode re-

mediar, explicai-vos, que o farei até a morte!

— Dizei-me: de quem sois filho?

— Senhora, por Deus que o não sei. Acharam-

me no mar por grã ventura...

[46] Então exclamou a rainha, chorando:

— Vês aqui teu pai e mãe!

E, ajoelhada ante Amadis, a mãe beijou-lhe as

mãos, dando graças a Deus.

El-rei Perion fez cortes e apresentou-lhes

Amadis de Gaula.

Depois seguiram-se grandes festas em louvor

daquele milagre que Nosso Senhor obrara, e ordenou

el-rei Perion muitos jogos e alegrias e concedeu

muitos dons. Sentia o povo a boa ventura que lhe

viera com tal herdeiro do reino. Mas Amadis só

pensava em partir. Bem fizeram pai e mãe por o

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guardar, tão felizes se achavam de ali ter o filho que

lhes lembrava aquele amor que súbito os unira. Mas

Amadis pensava em Oriana — senhores, com que

saudades!

E, acompanhado do fiel Gandalim, embarcou

para a Grã Bretanha.

[47] VIII. Na corte de el-rei Lisuarte

Ia Amadis a caminho da corte de el-rei

Lisuarte e de longada praticava belos feitos, de sorte

que, por onde o Namorado passava, ficava

melhorada a justiça e remediada a fraqueza.

Ora, uma noite, não achando pousada, e vindo

de atravessar uma floresta, foi bater a um castelo que

tinha luz e de onde saía alarido de festa, com rija

matinada de quem ia bebendo.

Era o castelo de Dardan, o Soberbo, o mais

fero cavaleiro da Grã Bretanha, e tão mau homem

quanto esforçado em batalha. Pediu Amadis

pousada, como quem, à lei da cortês hospitalidade,

pretendia ali recolher-se. Porém o próprio Soberbo,

respondendo das altas ameias com a soberba voz,

negou-se a albergar a quem lho estava pedindo.

Enfureceu-se o moço cavaleiro, que era flor

de cortesia; e a Dardan prometeu que inda em outro

lugar se haviam de ver.

[48] Ao romper de alva, e depois que passou a

noite na floresta, veio Amadis a saber, por umas

donzelas com quem foi de caminho, a feia história

de Dardan, o Soberbo.

Amava Dardan uma dona daquela terra, a

qual, resistindo ao desejo do que a requeria e

valendo-se da fama de bravo que ele tinha, lhe fizera

prometer ruim serviço. Porque esta dona tanto

desamava a sua madrasta viúva, que queria haver

por seus os bens que eram daquela. E ao Soberbo

dissera a sua amiga que só dele havia de ser no dia

em que a levasse à corte de ei-rei Lisuarte, aí

dissesse que a ela pertenciam os bens de sua

madrasta e o provasse em batalha a quem dissesse o

contrário. E Dardan assim o prometera fazer no

seguinte dia.

Mas — prosseguiam, com lástima, as don-

zelas a quem Amadis ouvia estas coisas — a dona

viúva não viria a ter quem combatesse por ela, pois a

todos Dardan metia respeito. Alegrou-se Amadis

com tais novas, e logo determinou combater com o

Soberbo. E sorria de pensar que a batalha se daria

diante de Oriana!

Assim foi andando até chegar a Vindilisora,

que era onde estava el-rei Lisuarte. Torneando a

cidade, sem que o houvessem descoberto, subiu a

um outeiro; e de aí, sentado à sombra de uma árvore,

via embaixo o castelo e ficava-se a olhar, com lá-

grimas nos olhos.

Era ali que estava Oriana: e o Namorado tanto

a queria ver, que se arreceava também de a

encontrar. Só por ela viera, como só por ela vivia; e

agora, sabendo-a tão perto, quase quisera partir,

morrendo de a não ter visto...

Mas Dardan, o Soberbo, chegara à corte para

dar sua batalha.

El-rei Lisuarte, com a companhia de homens-

bons, encaminhou-se para o campo cerrado. E

Dardan entrou, trazendo à rédea o cavalo da sua

amiga, que vinha soberba também.

— Senhor — disse ele a el-rei —, mandai

entregar a esta dona o que outra guarda e lhe não

pertence. E, se houver quem diga o contrário,

comigo combaterá!

Perguntou el-rei Lisuarte à viúva:

— Dona, haveis quem combata por vós?

— Senhor, não — tornou-lhe ela, chorando

que el-rei houve pena, porque era boa dona.

Olhava Dardan em roda e não via quem

combatesse com ele. Todos lhe queriam mal, mas

todos o temiam. E, seguro de sua esperava o juízo de

el-rei, dado contorme o costume.

Então, da orla da floresta um cavaleiro

Cavalgava um formoso corcel branco,

resplandecia-lhe o elmo, e as armas brilhavam-lhe à

luz. À sua vista todos se [50] maravi|lhavam e

diziam que jamais haviam posto os olhos em

cavaleiro tão belo.

O cavaleiro foi direito a Dardan, a que dava

surpresa e gosto este inimigo: surpresa porque a sua

força não admitia contrário gosto porque era bravo e

apetecia lidar.

— Dardan, defendo quem tu acusas! E ora

cumpro a promessa que te fiz.

Perguntou el-rei Lisuarte à dona viúva se

outorgava seu direito àquele defensor.

— Senhor, sim! E que Deus o ajude!

El-rei mandou que pelejassem.

Arremessando-se de espaço um contra o

outro, Amadis e Dardan quebram as primeiras

lanças. Depois, como os cavalos já cansam,

acometem-se à espada e dão tão feros golpes, que o

aço dos elmos faísca e parece que as cabeças ardem!

Começa Dardan a deter-se, e Amadis carrega-o de

golpes.

— Mas quem será o cavaleiro — pensava o

povo, seguindo a luta — que à força soberba de

Dardan opõe tanta força gentil?

E, a alguns que o estavam vendo e reparavam

no que Amadis tinha a modo de resplandecente,

afigurava-se que ele seria da Cavalaria do Céu.

Sob os golpes que Lhe chovem e Lhe cegam a

sanha, vai Dardan recuando até debaixo das janelas

onde as damas assistem ao combate.

E eis que, erguendo os olhos, Amadis vê

Oriana!

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[51] Ah!, senhores, podeis sentir tudo o que

estas palavras guardam?

Amadis viu Oriana! Não a havia ele olhado

desde a noite em que recebera as armas e em que,

por causa dela e para ir merecendo o dom do seu

amor, tinha partido a caminho de aventuras,

cavaleiro pobre e sem nome. E voltava agora a vê-la

e, de olhá-la, esquecia o fero inimigo que tinha ali

diante, naquele campo cerrado.

Já Amadis fere poucas vezes, e cresce Dardan

na sezão do furor! Cuida o Soberbo que a vitória é

sua e a espertar-lhe a sanha, pensa que da vitória

depende o haver o corpo da sua amiga, por que viera

ali a manter dolo e mentira.

El-rei e o povo, que olham a batalha, por

momentos descoroçoam de que ela acabe como no

íntimo o estão pedindo a Deus.

É que o Namorado ergueu os olhos e não os

pode despregar de onde os tem...

— Se eu morrer — pensava ele —, morro por

ela e a vê-la!

Mas, ah! senhores, assim como Oriana o ia

perdendo, Oriana o salvou: porque Amadis lembrou

que a fraqueza podia ser julgada covardia. Então,

como acordado de sonho, sente que lhe aflui ao

sangue uma força invencível. Cresce para Dardan,

que recua temente; arranca-lhe o elmo de um golpe,

a espada cintila ao Sol, e o Soberbo rolou morto no

chão!

[52] Quando o combate acabou, com grande

alegria de todos, disse Oriana a Mabília:

— Adivinha-me o coração que este cavaleiro

é Amadis, pois tempo é de me ele buscar!

— Assim o cuido também — respondeu

Mabília, contente de ver contente a sua amiga e por

ser tão amiga de Amadis, que o era tanto ou mais

que de Agrajes, seu irmão.

— Não vistes como parou, em meio do

combate, a olhar para a vossa banda?

— Se vi! — tornou-lhe Oriana. — E batia-me

o coração que perdia quase o acordo!

— Pois, se ele é Amadis, não tardará com

recado.

Ao mesmo tempo, Amadis, descansando na

floresta, dizia a Gandalim:

— Amigo, vai a palácio sem que te veja

ninguém: que Oriana saiba que estou aqui e me diga

que farei.

Gandalim, a furto, falou a Mabília, que o

levou em segredo à infanta:

— Onde está teu senhor? Que é feito dele?

— Senhora, dele será o que quiserdes, pois

por vós morre de amor!

Então Oriana ensinou-lhe que nessa noite viria

Amadis ao vergel para onde deitava a câmara em

que ela dormia, e que a uma janela de rexas de ferro

se poderiam falar.

Quando a noite caiu, penetrou Amadis no

vergel, seguido de Gandalim, que ficou de esculca,

vigiando. Olhou por todos os [53] baixos do alcáçar,

buscando a lucerna prometida, e em breve lobrigou a

janela onde ela luzia e o chamava. Acercou-se e,

através da grades, viu Oriana!

Vestia a infanta um brial de seda azul com

flores de ouro e estava formosa sem par.

— Meu senhor, sede bem-vindo... Ele olhava-

a, e o coração não o deixava falar.

— Meu senhor, sede bem-vindo e sabei que

alegria tive com as boas novas que da vossa fortuna

me chegaram.

Disse-lhe então Amadis:

— A mercê que vos peço não é para meu

descanso: é que me deixeis servir-vos e viver só para

vós!

Oriana tornou-lhe:

— Mas de mim não hajais tal cuidado que eu

vos dê tristeza e dor.

— Senhora, em tudo obedeço, nisso não

posso...

Com os seus olhos formosos, os mais

formosos da Terra, olhava-o Oriana, revendo-se no

perfeito Namorado.

— Meu senhor, e que vos impede? Beijando

aquelas mãos, as mais lindas mãos que havia, e

estavam fora das grades a falar também para ele no

fino gesto dos dedos, Amadis respondeu:

— O meu coração!

E, levando as mãos de Oriana aos próprios

olhos, Amadis banhou-as de lágrimas, feliz de tanto

sofrer o gozo do seu desejo.

[54] Neste ponto apareceu Gandalim e disse

que a alva não tardava.

No outro dia entrou Amadis em Vindilisora, e

todos o salvavam ledos e diziam:

— E o cavaleiro que venceu Dardan! Saiu el-

rei Lisuarte a recebê-lo com honra, acompanhado de

muitos homens-bons.

— Amigo, sede bem-vindo!

— Senhor, Deus vos dê alegria!

E, como Oriana o quisera, ficou Amadis na

corte para servir a rainha — senhores, para a servir a

ela!

[55] IX. Arcalaus

Determinou el-rei Lisuarte fazer cortes, a fim

de bem ordenar as coisas do seu reino, por grande

honra e proveito de todo aquele senhorio. Mandou

el-rei aperceber os homens-bons, para que com ele

fossem em Londres, no dia de Santa Maria de

Setembro, e a rainha enviou recado às donas e

donzelas.

Ora, sabei que havia na Grã Bretanha um arte-

mágico, votado às malas-artes e em más obras

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useiro. Enredado uma vez em suas manhas, tinha

Amadis derrotado o poder do encantador. E

Arcalaus, que assim se chamava o feiticeiro, jurara

vingar-se dele e perder el-rei Lisuarte, a quem

grande ódio havia. Ouvide a traição que ele fez, e

que a graça do Senhor seja conosco.

A fim de melhor tecer a trama que fazia,

procurou Arcalaus a Barsinan, senhor de Sansonha,

convencendo-o a que se levantasse contra o poder de

el-rei. Ao cabo de muito falar, dissera Arcalaus, em

segredo:

[56] — Barsinan, senhor, queira-lo tu e serás

rei da Grã Bretanha!

Respondeu Barsinan que lhe convinha, porque

era homem afeito à deslealdade a seu senhor; e quis

saber como faria naquele tredo negócio.

Mas, para lhe espertar a sanha da traição,

Arcalaus só lhe dissera mais:

— E terás Oriana por mulher!

Estava el-rei Lisuarte na sua corte, aper-

cebendo-se para partir para Londres, quando chegou

um rico mercador que muito lhe queria falar.

Ajoelhando diante de el-rei, disse o mercador:

— Senhor, eu vos trago aqui o que a um

grande rei como vós convém!

E, abrindo uma arquinha que trazia, tirou uma

coroa tão esplendente, que a el-rei foram-se-lhe os

olhos nela.

A coroa era bela à maravilha. No seu ouro

finamente lavrado resplandeciam as pedras mais

formosas.

— Senhor — disse o mercador —, crede que

esta obra é tal, que nenhum dos que hoje lavram

ouro e cravam pedras a poderia fazer de suas mãos.

A rainha, que estava olhando, atalhou logo:

— Certo, senhor, esta formosa coroa vos

convém!

Continuou o mercador:

[57] — E para vós, senhora, trago este manto!

Isto dizendo, tirou da arquinha um manto tão

bem obrado como a coroa e formoso como outro

jamais fora visto. Era orvalhado de aljôfares e nele

se viam brilhar todas as aves do mundo, bordadas na

mais rica pedraria.

A rainha não se pôde ter que não confessasse:

— Assim Deus me valha, amigo, que este

manto parece que o bordou a mão daquele Senhor

que tudo pode!

Contente do que ouvia, e ofertando à cobiça

dos olhos a deslumbrante fazenda, sorriu-se o

mercador e respondeu:

— Senhora, bem podeis crer que a este manto

o bordou mão da Terra, porém outro não há assim

formoso e, por o eu saber, vo-lo trouxe.

Tornou logo a rainha a el-rei:

— Certo, senhor, este formoso manto me

convém!

E, assim como el-rei Lisuarte e a rainha

Brisena admiravam o manto e a coroa, assim os

cavaleiros e as damas os admiravam também,

encandeados todos no brilho das pedras e no fulgor

dos bordados.

Disse então o mercador, falando a el-rei diante

de toda a companhia:

— Senhor, não sei eu quanto valem estes dons

nem tempo tenho para me agora deter. Mas levai-os

às cortes de Londres, que eles vos darão mor alteza.

Basta-me a vossa [58] palavra, cujo preço, senhor, se

conhece. E por isto me dareis o que vos eu lá pedir,

ou, não mo querendo dar, a coroa e o manto me

restituireis.

Disse el-rei que aceitava — foi o brilho das

pedras que o cegou! E, pelo haver aceitado, vereis

que dores lhe hão de vir.

[59] X. O primeiro beijo

Fizeram-se as cortes em um grande campo

bem plantado de árvores, e a cadeira real, em meio

do campo, estava coberta com um pano de sirgo,

semeado de tantas estrelas quantas nele podiam

caber. Em redor havia muitos panos ricamente

lavrados com variadas histórias e lavores. Quando

todos se acharam ali juntos, el-rei Lisuarte falou aos

homens-bons:

— Senhores, assim como Deus me fez rei,

assim eu devo, para seu santo serviço, fazer coisas

mais louváveis que nenhum outro, em prol do

comum e proveito da terra. Dizei-me, pois, o que os

vossos juízos alcançarem, para, por mim e por vós,

senhores, ganhar mais honra.

Na tenda onde el-rei se achava, estavam com

ele Amadis, seu irmão Dom Galaor —que Amadis

trouxera àquela corte, depois de o haver socorrido

em muitos perigos —, e estava também Barsinan,

senhor de Sansonha e homem tredo.

[60] Mas el-rei, que falava seguro, tinha no

coração grande cuidado. Havia ele trazido às cortes

o manto e a coroa esplendentes, e bem guardados os

tivera, como era de razão com coisas tão preciosas.

Porém, naquela manhã, quando fora abrir a arquinha

para tirar manto e coroa, achara a arqulnha vazia,

inda que cerrada estava.

Depois que el-rei falou, começaram a falar os

homens-bons. Ele a todos ouvia, e resolviam-se os

pleitos. Já porém sobre o rei, tão gracioso e leal, e

sobre os seus, a quem muito queria, pesa a traição de

Arcalaus, que tece o fio da trama. Assim foi que

uma donzela, em pranto e toda coberta de dó, se foi

queixar a el-rei de males que lhe faziam. Contou

como seu pai fora preso no castelo de Guldenada,

ele sem culpa e sem defesa ela.

Vendo ali aqueles senhores a inocência

desamparada e mostrando-lhes lágrimas de aflição, a

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todos moveu à piedade e à vontade de a servir.

— Escolhei destes cavaleiros — disse el-rei

— quais hão de ir em serviço vosso.

— Senhor, sou de terra estranha e escolhê-los

não sei; mas peço à rainha mos dê, que bem os

conhece por seus.

A rainha, que houve piedade, escolheu

Amadis e Dom Galaor.

Começa Arcalaus a vencer, porque Amadis

deixa as cortes e Oriana fica só!

[61] Ora, ao quarto dia da partida de Amadis,

estando el-rei Lisuarte com muitos homens-bons e

donas e donzelas, adiantou-se o mercador, que

ajoelhou e lhe disse:

— Senhor, por que não trouxestes a coroa e o

manto que vos entreguei?

Calou-se el-rei, turbado.

— Senhor — continuou o mercador —, apraz-

me que mos pagueis ou mos tomeis a dar, à fé do

que tratamos.

Para encurtar razões, e como quem ia direito à

verdade, atalhou el-rei Lisuarte:

— Amigo, não vo-los posso dar porque os

perdi.

Fingiu logo o tredo Arcalaus que lhe doía a

nova como indo nisso a sua mesma vida!

Dando-se por perdido, maldizia a sua sorte e

arrepelava os cabelos, com dor:

— Senhor, que me desgraçastes! Em má hora

vos confiei meus tesouros! E, se me não valeis,

morro mesquinho!

Tornou-lhe el-rei:

— Mas dizei-me já seu preço, que vo-lo

pagarei de contado.

Recolheu-se a pensar consigo o afligido

mercador, ao tempo que já uma dor surda ralava os

corações dos que se ali achavam. Ao cabo de haver

avaliado a sua fazenda, disse o traidor a el-rei:

— Senhor, bem me custa alegar-vos quanto

me a mim deveis: mas sabei que só salvarei a vida se

me derdes o manto e a coroa, ou, por escambo de

eles, a vossa filha Oriana!

[62] À roda os homens-bons, as donas, as

donzelas, tinham agora os corações cheios de

lástima. E, havendo escutado tal despropósito,

alguns iam arrancar das espadas, quando el-rei, com

um sinal, ordenou que estivessem quedos.

Então, ao mercador que esperava, e refreando

a dor do coração e a sanha do logro, el-rei Lisuarte

respondeu:

— Amigo, demais me pedis! Mas antes eu

perca a filha que a palavra. Porque, perdendo a filha,

perco o que a mim e a mais alguns custa e dói:

porém, perdendo a palavra, a todos faria dano, dando

exemplo com que ninguém doravante respeitasse as

leis da honra.

E, mostrando-lhe Oriana, que desfalecera, el-

rei disse a Arcalaus:

— Eis o preço que requereis! Podeis levá-la!

Arcalaus tomou a infanta nos braços e,

seguido de cinco cavaleiros, entre o pasmo de

quantos ali estavam, cavalgou e desapareceu.

Entretanto Amadis e Galaor sofriam traição

no castelo de Guldenada e, com a ajuda de Deus,

escapavam às tramas do encantador. Já a caminho de

Londres, recebeu Amadis o ansioso recado de

Mabília e por ele soube que Oriana era roubada.

— Ai! Santa Maria, valei-me!

Corre Amadis em busca do seu bem.

[63] Interroga no chão o rasto dos cavalos,

uma traça e corre, e perde-a e descoroçoa, e cuida

mais adiante ir já por ela...

Mas o Senhor Deus não deixa sem amparo as

almas puras nem sem ajuda contra as malas-artes os

bons filhos seus que elas enredam.

Ao fim de muito andar, encontrou Amadis um

lenhador que tinha a cabana à borda do caminho.

Como era noite fechada, ali se recolheu e deitou o

cavalo a pastar. Contou-lhe aquele homem que vira

passar de longada cinco cavaleiros armados, com um

à frente que levava uma donzela.

— Amigo, e como era a donzela?

— Senhor, formosa sem par!

Mais lhe disse que tinham atalhado ao

caminho do castelo de Grumen, um primo de

Dardan, o que fora morto em casa de el-rei Lisuarte.

Neste passo a alva rompia. Amadis cavalgou e

partiu a caminho do castelo de Grumen. Enchia-lhe

agora esperança nova o coração. De toda a sua alma,

elevava para o Céu a mais acesa prece, e sentia que

o Senhor lhe advogava a pura causa.

Escondido na espessura de uma cerrada mata,

espiava Amadis desde as árvores o castelo, torvo nos

muros grossos. Estando assim em desvelada vigia,

não tardou muito em ver um cavaleiro que a uma

torre viera mirar o campo em roda. Depois a porta

do castelo abriu-se, saíram cinco cavaleiros [64]

bem armados, e Amadis viu Oriana nos braços do

encantador.

— Ai! Santa Maria, valei-me!

Ora julgai como seriam os golpes de Amadis!

Ao primeiro, que era Grumen, o senhor do

castelo, trespassou-o com a lança, de sorte que ferro

e fuste lhe saíram a outra parte; tomando a espada

que lhe fora companheira no mar, fendeu ao segundo

a cabeça traidora; ao terceiro, que resistir-lhe queria,

derribou-o com sanha pelos peitos; e aos outros dois,

que já desandavam, acutilou-os pelas espáduas

refeces.

Deste modo ficaram os cinco semeando o

caminho, com bravas feridas abertas.

A Arcalaus não o pode Amadis ferir como

aqueles, porque ele foge e leva consigo — Senhor!

— todo o seu bem!

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Mas persegue-o, ladeia-o, envolve-o e, como

o tredo se teme da espada cristã que rebrilha,

Amadis arrebata-lhe dos braços Oriana — Oriana, a

Sem-Par!...

Diante dos maus cavaleiros, mortos por terra

com disformes gestos, Oriana estremeceu; e Amadis,

ajoelhado a seus pés, disse-lhe com doçura:

— Quanto mais custa morrer de amor!

— Fazei como quiserdes — respondeu-lhe a

infanta —, que bem fareis; e, se parecer pecado, não

o será para Deus.

[65] Eis, aí vai Amadis gozando, pela vez

primeira, este bem sem igual de se achar só com a

bem-amada.

Ali com ela, tendo-a salvo do horrendo a que

a arrastara mal precavida promessa e conquistando-a

em batalha no momento em que ia perder o seu bem,

sentia Amadis no coração tão bela ventura, que esta

quase o empecia de a gozar, tamanha era.

E ainda ali Amadis amava a furto, se não já

por temor dos homens, por temor do amor.

Assim foram andando até a orla da mata,

levando Amadis à rédea o cavalo em que a infanta

havia montado. Mas sentia-se Oriana tão cansada,

como quem não dormira a passada noite, que

Amadis se encaminhou para um vale onde corria um

ribeiro, entre a erva viçosa.

— Passai aqui a calma; descansai nesta

frescura.

Enquanto Amadis se desarmava, Oriana

adormeceu à sombra das árvores.

Chegou-se Amadis devagarinho e, vendo-a

tão linda e ali sozinha, ficou-se a olhá-la.

Com os cotovelos fincados no macio chão da

ribeira, o rosto encostado nas mãos, gozando o

fresco repouso após tão ásperos dias, ia Amadis

olhando a bem-amada, serena dormindo sob a

guarda adoradora dos seus olhos.

Oriana, acordando, sorriu.

[66] E, então, mais por ela o querer que por

ele o ousar, a donzela se fez dona sobre aquela cama

verde.

Bem abraçados se tinham, e do amor o amor

crescia — puro amor, amor sem fim!

[67] XI. Briolanja

Oriana voltou logo à casa de seus pais, salva

de tantos perigos e traições.

El-rei Lisuarte, contra quem Barsinan tramara

aleivosia, retomou seu senhorio com maior alteza e

honra e castigou o tredo senhor de Sansonha.

Junto da sua amiga, goza Amadis com ela o

bem do amor escondido. Porém a Cavalaria é oficio

que sempre está obrigando a quem o pratica, e que a

Amadis obriga mais que a outro nenhum. Assim a

honra da palavra dada lhe manda que se aparte do

seu bem — senhores, com que saudades!

Porque — sabei-o — um dia Amadis fora ter

ao castelo de Grononesa e aí soubera a triste história

da linda princesinha Briolanja.

Havia esta sido esbulhada do seu reino por

horrenda felonia, quando tivera o pai morto às mãos

de um próprio irmão que cobiçava a coroa. E, como

não havia mais filhos, ali ficara a linda princesinha

sem [68] de|fensão nem amparo. Para memória

daquela traição, tinham alguns vassalos fiéis levanta-

do no castelo uma figura de pedra que representava

o rei morto, coroado e de espada na mão. Bem

estava requerendo desagravo a alma alçada naquela

imagem. Mas ainda ali não viera cavaleiro que

pelejasse pela princesinha. E esta, tão triste em

tenros anos, vivia esperando por ele, olhando a

estátua de pedra.

Tinha então dito Amadis que havia de ser ele

o cavaleiro desejado; e prometeu a Briolanja voltar,

para lhe reaver o reino de seu pai.

Ah!, em má hora fora prometer estes leais

serviços Amadis. E, quando a Oriana rogou lhe

deixasse ir fazê-los, mal sabia que dor lhe viria, e

quanto injusta, Senhor!

Vai Amadis nos vinte anos. A formosura que

tem realçam-na agora os nobres sinais das armas,

que lavram para lembrança os momentos de glória.

E é já sua fama tão grande, que com ele resplandece.

Desde que o havia olhado, sendo tão menina,

quis-lhe Briolanja com perdido amor; e agora,

tornando a vê-lo, sente que lhe quere mais.

Junto dela, servindo-a na guerra, guarda

Amadis a fé do seu amor.

E nem um breve momento, à luz do Sol ou da

Lua, deixa de só viver para Oriana, a Sem-Par.

Mas ao amor depressa vem o enredo, até ao

amor de Amadis, fiel como outro não há. Assim foi

que um pajem contou na cor~e de el-rei Lisuarte —

e não o dissera por mal, mas porque certo o julgava

— que seu senhor Amadis amava a linda princesinha

Briolanja e por amor se fora a reaver-lhe o reino.

Quando a Qriana chegaram estes dizeres do

pajem, sentiu no coração queixa mortal. Em vão

Mabília, a de fiel conselho, lhe apontava a razão e a

verdade.

Debalde com palavras de claro entendimento

lhe mostrava o que tão certo era:

— Pois podeis crer em tão feia coisa e tão

impossível como essa? Como vos trocaria, se vive

de vós?

Porém Oriana crera na traição e não ouvia

conselho nem a razões atendia.

Ora, enquanto Oriana padece e guarda no

coração injusta sanha, ouvide como Amadis padecia

por lhe ficar fiel até a morte.

O amor de Briolanja, que ele não quere,

quere-o a ele com mais amor, a que se acresce a

gratidão que lhe tem, senhora do seu reino como é

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já. E tanto se dói de lhe querer, que o senhor infante

Dom Afonso de Portugal — filho do Rei-trovador, e

que depois foi tão belo cavaleiro no Salado — se

amerceou da linda princesinha e, por piedade dela,

até queria pôr no Romance um passo de sua feição.

[70] E bem podemos cuidar que ao trovador

de Amadis dissera o bravo infante, dando mostras de

fino coração, o mesmo que, mais tarde, havia de

sangrar ao ter de ser cruel para o Colo de Garça:

— Amigo, hei grande sabor dos feitos de

Amadis e de tudo o que haveis bem contado. Mas

por minha fé juro que, por sua grande bondade e

formosura, não há de ser Briolanja tratada de tal

guisa!

— Senhor — tornara-lhe sério o cavaleiro-

poeta —, mas vossa mercê bem sabe que até a morte

será fiel Amadis à sua senhora Oriana!

— Pois, amigo, cobremos o remédio, e isto

mudai na história que vos fará sempre louvado dos

homens-bons que vos agora lêem e lerão adiante.

Queria o senhor infante que Amadis, preso em

uma torre até que a Briolanja aceitasse por amiga,

enviasse recado a Qriana, pedindo-lhe licença para

se resgatar.

E que Qriana, outro modo não vendo de o

livrar, desse a licença requerida, do que Briolanja

haveria dois filhos de um só ventre.

Remediava desta guisa a ambos o senhor

infante Dom Afonso de Portugal: a Amadis, por não

quebrar fé jurada; a Briolanja, por a servir no desejo.

Mas, ah! senhores, é outra a verdade.

Não entendeu neste ponto o infante ao tro-

vador. Se tal coisa se pusesse na história, ir-[71] se-

nos-ia grande encanto dela. A verdade éque Amadis,

preso em uma torre pelo que ouvistes, perdeu o

comer e o dormir e perto estava da morte.

Então, temendo matá-lo, Briolanja soltou-o.

E Amadis foi fiel a Oriana, a Sem-Par!

[73] XII. As penas de Amadis

Aconselhada pela sem-razão e escondendo a

Mabília o que fazia, escreveu Oriana a Amadis.

Chamou Durim — irmão de uma boa donzela

da Dinamarca que na corte havia muito morava — e

ordenou-lhe que levasse a carta ao reino de

Briolanja, a entregasse, mas lhe não trouxesse

resposta.

Entretanto Amadis, com seus irmãos Galaor e

Florestan, com Agrajes e outros belos cavaleiros,

ganhara a Ilha Firme, que fora de Apolidon, ali

outrora arribado, vindo das ilhas da Grécia, e dela

tomara senhorio com seus palácios e tesouros.

Partiu Durim e, chegado que foi à Ilha Firme,

chamou Amadis a furto, onde não fossem vistos, e

deu-lhe a carta.

Quando o Namorado acabou de a ler —tão

crua era! —, sentou-se nas ervas do chão, perdida a

cor e a firmeza.

— Amigo, mandaram-me outro recado?

[74] — Senhor, não.

— Mas levareis meu mandado?

— Senhor, não o levarei.

Releu Amadis a regra que dizia:

“Não vos quero ver mais, nem me busqueis,

nem me deis novas”.

Então suspirou assim o Namorado:

— Senhor Deus! Por que vos apraz matar-me?

Ao fiel, caro Gandalim, que chorava de o ver

chorar, Amadis, despedindo-se, dissera:

— Gandalim amigo! Criou-nos o mesmo leite,

e teus pais me quiseram como a filho, desde que

recolheram aquele pobre menino achado a boiar nas

ondas. Agora, que vou morrer, ouve a minha

vontade: esta Ilha Firme, que eu ganhei, a ti a dou

para que a ela tragas como senhores teu pai e mãe.

De ti me despeço com pena, pois tão leal me foste.

Mas sabe que já não tenho cabeça, nem coração,

nem nada! Tudo perdi ao perder o amor de quem

amo. Amigo, não me procures, que não nos veremos

mais!

E Gandalim, transido de dor, viu-o partir sem

elmo, nem escudo, nem lança, nem espada! Segue-o

com os olhos e a própria dor o segura, tão súbita o

feria. E, quando busca partir, Amadis já vai longe.

Vai Amadis andando e não sabe aonde. É o

cavalo sem governo que o guia.

[75] Amadis não tem rumo porque o perdeu

com o amor.

Descem dos montes, lentas, as sombras e

deitam-se ao comprido na terra solitária. Amadis

caminha e alonga no meio delas a aparência do seu

vulto.

— O meu amor — pensava ele, ao passo que

a luz desfalecia — é como a sombra:

quanto vai sendo mais tarde tanto vai sendo

maior!

O cavalo endireitou a uma floresta e penetrou

na funda espessura.

Deixa-se ir Amadis ao sabor das suas penas.

Anoiteceu. Assim vagueia metade da noite na

rumorosa escuridão das árvores.

E desta noite em que vai, mais cerrada que a

outra que o cerca, só acorda quando um ramo lhe

bate rijo nos olhos.

Apeia-se, deita-se, e no escuro a voz mistura-

se ao pranto que chora à maravilha:

— Ó meu senhor Gandales, bom, leal ca-

valeiro meu amo! Por que te aprouve recolher aquela

pequena coisa que lá ia sobre as águas do mar?

Ao outro dia, caminhando à ventura por uma

verde campina, encontrou Amadis um ermitão que

descansava ao pé de uma fonte, onde dera de beber

ao seu asno.

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Cobria-o um pobre hábito tecido de lã de

cabra, e espalhavam-se-lhe nos peitos as cãs mui

alvas.

[76] Perguntou-lhe Amadis se ele era monge,

e, como o bom velho lhe tornasse que ha, via

quarenta anos o era, apeou-se o cavaleiro e, de

joelhos, beijou os pés do homem de Deus.

Doeu-se o velho monge da pena que via em

tão moço e formoso senhor:

— Meu filho, se de arrependido chorais por

pecados que hajais cometido, boas as lágrimas são.

Pediu-lhe Amadis que o ouvisse de confissão

e consolava-se de contar ao servo

Deus os passos da sua vida, agora tão mes-

quinha, e que tão boa fora quando o amor lhe

mostrava a razão de viver e vencer. Narrou-lhe como

o haviam recolhido no mar, no que o monge entreviu

sinal de favor divino. E, vindo do que há mais tempo

sucedera até ao que mais próximo soara, ali lhe

contou da sua vida assim o bem como a dor.

Ao cabo da confissão, disse-lhe o monge:

— Meu filho, se os bens temporais são fumo

que o vento semeia, que serão prazeres de mulheres

senão um fumo mais vão?

E foi-o admoestando com palavras sisudas,

que lhe a idade e estado aconselhavam, mas também

com o jeito brando que rende almas queixosas.

Disse-lhe que cuidados tais os reprovava ele por

desgarrados; que a mocidade e o valoroso rasgo o

deviam de consolar de semelhantes males, os quais,

em verdade, provinham de coisas [77] que não

acrescentavam o serviço de Deus; que o pecado

começa por fazer doce o que depois com seu travor

tão amargoso torna. E mais lhe disse que não havia

no mundo mulher nenhuma merecedora de que por

ela se viesse a perder um homem como ele.

— Meu pai, nessa parte não vos peço eu

conselho; só vos peço que cureis da minha alma.

Rogou-lhe então Amadis que o levasse

consigo onde fosse, pois, sentindo-se a ponto de

morrer, precisava do socorro divino.

— Meu filho, moro em lugar esquivo e

trabalhoso em uma ermida posta em alta penha que

se adianta sete léguas no mar. Para se lá viver, é

mister despedirmo-nos do mundo, dos prazeres e

vícios que tem. Como quereis acompanhar-me em

tal lugar da penitência, vós, mimoso da corte,

costumado a brilhar na paz e na guerra? Aquela terra

é deserta e, do lado da água, só em tempo macio de

verão se logra desembarcar. E eu vivo de esmolas...

Respondeu Amadis que muito lhe aprazia

quanto escutava, pois para si se acabara o mundo. E

tornou a rogar-lhe que o levasse, ou iria morrer nos

algares dos montes, desesperado e sozinho,

perdendo a alma. Movido de tais razões, conveio por

fim o monge em o levar; e, erguendo a mão, aben-

çoou-o.

Rezou o ermitão as vésperas e, ao cabo, tirou

de um alforje uma escassa merenda, [78] que

repartiu com Amadis. Não comia este havia dois

dias, mas recusou o bocado, do que o santo homem

lhe ralhou, fazendo-o comer um pouco:

— Filho, comei para cobrardes forças, pois

muito temos que andar até chegarmos ao ermo.

Sabei que o vosso desespero não édo agrado do

Senhor, antes receio que a seu juízo altíssimo venha

a parecer ingratidão.

Anoitecia entrementes, O ermitão deitou-se a

dormir no seu manto, e Amadis, a seus pés,

adormeceu também. E Amadis teve um sonho.

Sonhou que estava encerrado em câmara tão

negra, que não entrava nela alguma lembrança do

dia; e, não achando por onde saísse, arquejava-lhe o

coração, às pancadas na arca do peito! Do meio da

temerosa escuridade, parecia-lhe que vinham a ele

sua prima Mabília e a Donzela da Dinamarca, e que

um raio de Sol bailava diante delas... Tomavam-lhe

elas as mãos e diziam-lhe:

— Senhor, saí e buscai a luz!

E, saindo, vira Oriana, que estava cercada de

fogo... E, passando através do fogo, sem sentir que

ele o queimasse, tomara Onana nos braços e a levara

a um formoso vergel...

Com aflitos brados, acordou; o ermitão

despertou com eles, e, como a alva vinha rompente,

dispôs-se a ir de longada.

Queria Amadis deixar ali o cavalo, para

seguir, apeado e humilde, o seu virtuoso [79]

companheiro. Mas não lho consentiu o ermitão.

— Meu pai — disse—lhe Amadis — , mais

uma coisa vos peço: que a ninguém digais quem sou

nem me chameis por meu nome.

Sorriu-se o santo homem e tornou-lhe que a

tão moço e formoso senhor, carregado de tanta pena,

daria nome que quadras-se à gentileza e à dor.

E pôs-lhe o nome de Beltenebros.

Então, indo o monge no asno e no corcel o

cavaleiro triste, tomaram ambos o caminho da

soledade.

[81] XIII. Beltenebros

Enquanto Beltenebros e o ermitão iam de

longada, chegava à corte de el-rei Lisuarte um nobre

senhor que andava jomadeando naquele reino.

Acompanhado de dez escudeiros, anunciou-se a el-

rei o poderoso cavaleiro e deu-se a conhecer como o

príncipe de Roma, filho do Imperador e herdeiro do

Império, que de seu velho pai receberia.

Acolheu-o el-rei Lisuarte como requeria a

alteza deste hóspede; e, abraçando-o, rogou-lhe se

albergasse na corte, do que el-rei e os seus haveriam

prazer.

Achando-se todos juntos para comer, viu o

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príncipe romano Oriana, a Sem-Par, e tão espantado

foi de sua formosura, que se não pôde ter que não

dissesse a el-rei Lisuarte:

— Senhor, muitas belezas vi e admirei no

mundo e muito ouvira eu louvar a formosura da

princesa Oriana, vossa filha: porém, agora que a

vejo com meus olhos, por mesquinhos tenho os

louvores.

[82] Sorriu el-rei Lisuarte, satisfeito do que o

príncipe dizia. Mas Oriana, que, apesar da crueza

com que tratara Amadis, não pensava senão nele e

morria por novas, fingiu não ter visto esse olhar

lisonjeador.

Nos dias que esteve na corte, não buscava o

príncipe senão servir a infanta, por mais que esta lhe

mostrasse uma esquivança que aquele parecia não

alcançar, pois, como era soberboso, avaliava em

grande conta o serviço próprio.

E Oriana, a quem o cuidado do amor tornava

triste, tinha por castigo as finezas do romano e

suspirava por vê-Lo abalar.

Também o príncipe não aprouve aos ca-

valeiros que com ele tratavam; e todos o julgavam

mais bravo em polir as palavras que em praticar os

feitos.

Antes de deixar a corte, dissera o príncipe a

el-rei Lisuarte, encobrindo nas palavras um claro

pensamento:

— Senhor, de vossa corte não me poderei eu

esquecer. E, um dia, espero mandar-vos de Roma

novas minhas...

Chegados que foram à Penha Pobre o ermitão

e Beltenebros, aos marinheiros que os passaram na

barca deu este as vestes e o cavalo, recebendo um

tabardo de lã meirinha, com que se cobriu.

Agradou-se Beltenebros da braveza de tais

lugares.

— Filho — disse-lhe o ermitão —, eis aqui a

Penha Pobre, e esta é a ermida onde a [83] Vir|gem

Nossa Senhora vai ter mais um servidor, do que

pagado sereis por sua fina bondade. Assim muitas

vezes socorre aos navegantes a Senhora da Penha,

quando dessas ondas, achando-se eles em perigo, por

ela bradam e lhe rezam com devoção. Para aqui me

passei, deixando sem saudade os enganos do mundo,

depois de haver gastado a flor da idade em desvairos

de mancebo. E aqui me acompanhou, sempre fiel, a

solidão destes sítios, a qual em trinta anos só uma

vez deixei, e agora foi, para ir ao enterro de uma

irmã.

E ali começou Beltenebros a fazer penitência,

para que Oriana, um dia, o quisesse.

Entretanto Durim, correndo a galope de-

sapoderado, voltara em dez dias à corte de el-rei

Lisuarte.

Ardia Oriana por novas e, encerrando-se com

ele, perguntou-lhe logo o que dissera Amadis e que

fazia, e se Durim vira Briolanja e a achara tão

formosa como era fama.

Mas Purim respondeu-lhe, com tristeza:

—. Senhora, tudo direi. Mas sabei antes que,

crueza como a vossa, nunca no mundo se viu!

E, depois de lhe contar os feitos de Amadis,

que havia ganhado o rico senhorio da Ilha Firme, e

de gabar a formosura de Briolanja — a qual, tirante

Oriana, a Sem-Par, era a mais formosa que jamais

vira —, contoulhe de como Amadis ficara dorido e

triste da cruel sem-razão; de como propusera [84]

en|viar resposta àquela mensagem, durante a leitura

da qual havia perdido as forças; e como desesperado

tinha abalado ou morrido, sem se saber onde parava,

se acaso ainda vivia...

Quando isto ouviu, Oriana sentiu que a ira

quebrava e que, no lugar onde ela ardera, estava

agora piedade que a derretia em amor.

Vendo-a chorar grossas lágrimas, Durim

compadeceu-se e chamou Mabília e a irmã para que

confortassem a infanta. Como sucede com corações

de mulher, que vão de extrema a extrema sem mais

guarte, tudo nela era chorar, arrepender-se e doer-sé,

desafogando-se em vozes de aflição:

— Ai! coitada sem ventura, que matei o que

mais amava! E a morte de meu senhoi mal vingada

será com a minha!

Foram-na as duas boas donzelas sossegando, e

com isto lhe davam prova do mais fino bem-querer,

pois ambas haviam por cru o que ela em segredo

fizera, sem olhar aos perigos da crueza. E aconselha-

ram-na a que a Amadis enviasse doce recado sem

detença — ponto era saber-se onde ele estava!

Concertaram que, a seu tempo, Oriana o iria

esperar no castelo de Miraflores, para onde Mabília

seguiria com ela. E que a Donzela da Dinamarca

partiria, acompanhada de Durim, para o reino de

Escócia, em demanda do castelo de Gandales, onde

Amadis talvez se houvesse recolhido, a buscar

consolação.

Uma vez, na soledade da Penha Pobre, fez o

ermitão sentar a Beltenebros no poial da ermida e

perguntou-lhe:

— Bom filho, que sonho tivestes quando ao

pé da fonte dormíamos e me acordastes com brados?

Muitas vezes cismara Beltenebros naquele

sonho que Amadis tivera, sem que alcançasse o que

ele dizia: se lhe era aviso de novos males ou vinha

por esperança de remédio. E, alegrando-se de que o

ermitão lhe falasse do sonho, contou-lho sem lhe

esquecer nenhum passo, tão certo se lembrava de

tudo pelo rebate que lhe dera. E foi dizendo de como

naquela câmara negra entrara um raio do Sol, e as

donzelas que lhe haviam falado, e o fogo que vira

ardente, e o vergel onde fora ter, levando nos braços

Oriana... Ia o ermitão ouvindo, com os olhos

estendidos àquele grande ermo vivo do mar que

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tinham diante, e ali era toda a companhia.

Respondia o marulho das águas à voz de um e

ao silêncio do outro; e, quando Beltenebros acabou

de o contar, pediu ao santo homem lho explicasse,

ainda que a seu juízo fosse o sonho prenúncio de

outras penas.

Pensou o ermitão um bocado, como quem

soletrava sua leitura naquelas imaginações que, em

verdade, ficavam da outra banda da vida.

[86] E, ao cabo, disse-lhe, contente:

— Beltenebros, bom filho, muito me haveis

alegrado; e, se, contra meu costume, vos falo de

semelhantes coisas, é porque julgo melhor serviço

de Deus o dizer-vos palavra certa que vos ajude a

alar-vos desta tristeza, que o deixar-vos correr à

morte desesperada.

Caiu Beltenebros de joelhos aos pés do

ermitão, regando-lhe as mãos de lágrimas e achando

que doce lhe era, em dor tão áspera, ter o mimo

daquele companheiro.

E o santo homem, que muita amizade votava a

Beltenebros, continuou, sorrindo:

— Bom filho, ainda que as idéias do mundo

não devam de andar-me na mente, ora ouvireis como

entendo o que diz esse sonho: era a câmara negra o

cuidado; as donzelas, amigas vossas que trabalham

por vosso bem; aquele raio do Sol, bom mandado

que recebereis; e o fogo que cercava a vossa amiga é

a pena em que ela vive por vos.

Partiram em demanda de Amadis, para o reino

de Escócia, a Donzela da Dinamarca e seu irmão

Durim. Levavam consigo uma carta, mas, a esta,

Oriana fizera-a tão doce quanto a outra era crua.

Navegaram com ventos fagueiros e, ao cabo

de sete dias, arribaram a Peligez, de onde foram

seguindo ao castelo de Gandales.

[87] Voltava da caça o bom senhor e, mal

soube de onde chegavam, com grande amizade e

alegria falou do seu criado Amadis:

— Que novas dele me dais, pois tanto me

alegram sempre?

Por onde logo conheceram, com tristeza, que

Amadis ali não fora.

A este tempo, Dom Guilan, o Cuidador, que

estivera na Ilha Firme, trouxe piedosamente a el-rei

Lisuarte as armas de Amadis, que achara ao

abandono.

Tendo Amadis por morto, choraram-no todos.

E Oriana, encerrada em uma câmara, maldizia

como doida a sua ventura e quena morrer.

Mas a boa Mabília consolava-a e, com

palavras que sabia, tão doces, convencia-a de que

Amadis não morrera, de que haviam de saber novas

dele. Não havia Deus de permitir mal tão grande. O

Senhor o teria em sua santa guarda!

Ora, um dia aportou à Penha Pobre uma nau

em que vinha a condessa Corisanda, acompanhada

de suas damas e cavaleiros.

Correndo o tempo macio, quiseram de-

sembarcar para folgar uns dias, e ao ermitão pediu a

nobre dama aposento para se albergar. Como na cela

do santo homem jamais este consentiria que entrasse

mulher, ofereceu Beltenebros a sua, para onde Cori-

sanda fez levar a cama em que dormia. E [88] ele

entanto ficava ao relento, como muitas vezes

costumava.

Alegrou-se então com a leda companhia

aquela solidão da Penha Pobre.

Trazia luzidos cavaleiros e formosas damas a

nobre Corisanda, donairosos de suas armas eles,

garridas elas de mocidade e lindeza. E, nesses dias

em que todos descansavam das fadigas da viagem,

espalhavam-se pela praia ou pelas rocas, folgando

em jogos, tangendo música.

E Beltenebros, olhando na ribeira do mar os

cavaleiros e as damas, cismava em tudo o que fora,

em tudo o que perdera, e remirava de longe as

armas, com saudades!

Uma vez, estava ele a remirá-las do adro da

capela, onde o ermitão entrara para rezar as

vésperas; e, como este deixara encostado ao muro o

cajado a que se arrimava, pegou Beltenebros no

bordão e floreou-o no ar como uma espada.

Ao sair da ermida, viu o monge aquela ação,

sem que o houvesse pressentido Beltenebros; e,

como do coração desejava que o seu bom filho

abalasse daquele deserto, pondo cobro à penitência,

sorriu satisfeito e teve por bom agouro que em tais

mãos se houvesse feito espada um bordão de pobre

velho.

À missa, que o ermitão dizia, Corisanda e os

seus repararam naquele homem moço, tão triste e

choroso, que ajoelhava como penitente aos pés da

Virgem Maria.

[89] — Quem será — pensavam os cavaleiros

— este que desdenha dos gostos do amor e das

alegrias da guerra?

— Não haveriam sido penas de amor —

cismavam as damas — que para aqui o trouxeram?

E, uma noite, ouviram que Beltenebros

cantava uma canção tão saudosa, que nao mais lhes

esqueceu.

Passados dias, de novo se embarcaram.

E a Penha Pobre ficou mais triste e só.

Mas Corisanda navegava com rumo a corte de

el-rei Lisuarte. Chegada que foi aí, contou a Mabília,

quando conversavam a respeito da viagem, que

havia encontrado na Penha Pobre um penitente cuja

dor lhe cortara o coraçao.

Era moço e tão triste, que muitas vezes lhe

vira lágrimas; tinha maneiras corteses; decerto fora

formoso; como quem desesperara do mundo,

arredava-se de toda a companhia.

E, como ainda lhe soava aos ouvidos a voz de

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Beltenebros, contou que o ouvira cantar uma canção

saudosa, que não mais lhe esquecia.

Ouvindo falar daquele penitente, deu rebate o

fiel coração de Mabília, e, enquanto Corisanda

continuava, ia pensando a boa donzela:

— E se aquele penitente fosse Amadis, a

penar penas tão duras por pecados que não fez?

[90] Seguindo o rasto do pensamento que lhe

viera, disse Mabília a Corisanda:

— Senhora, mal cuidais como me prende o

que me dizeis; e, se vos lembrais da canção, muito

quisera eu ouvi-la.

Vendo quanto a Mabília cativava o que ia

contando, adivinhou Corisanda haver ali mágoa de

amor de que a infanta de Escócia sabia.

E, para satisfazer Mabília, cantou a saudosa

canção de Beltenebros.

Escutando-a, com o coração a saltar-lhe,

conheceu-a Mabília por uma canção de amor que

Amadis fizera a Oriana.

Então correu à infanta e disse-lhe de um

fôlego:

— Amadis vive e está na Penha Pobre! E

Oriana e Mabília, abraçadas, confundiam as

lágrimas, sorrindo.

[91] XIV. A senhora da Penha

No reino de Escócia, descoroçoados com seu

despacho, embarcaram Durim e a boa Donzela da

Dinamarca. Da corte de el-rei Languines traziam

para Mabília as lembranças da rainha, sua mãe.

Traziam também os recados do bom cavaleiro

Gandales.

Mas o que mais queriam trazer, que eram

novas de Amadis, não o traziam eles.

Agora ouvireis como o Senhor dispõe

graciosamente as coisas, quando tem piedade das

suas pobres criaturas.

No mar levantou-se uma grande tormenta, e

ficou a nau rota, sem aparelho, e já não sabiam

caminho nem carreira. Jogados iam ao gosto das

vagas, altas como serras de água, e davam-lhes em

cima os borbotões do vento.

Cuidando já todos que morreriam, faziam

promessas a Nossa Senhora e rezavam em coro —

Virgem Madre de Deus, rogai por nós!

[92] Apertando ao peito a carta de Oriana, a

Donzela da Dinamarca chorava e pensava consigo:

— Ai, coitada! De que serviu minha amizade

a minha senhora, que lá ficou curtindo suas penas,

mas esperançada no remédio que eu viria a dar-lhes?

Não encontrei Amadis e agora morro, levando

comigo a carta que salvaria o melhor cavaleiro do

mundo!

— Destino cru! — ia pensando Durim, à sua

parte. — Foi por minha mão que Amadis recebeu

aquela carta que o perdeu. Se lha entreguei sem

suspeitar que desespero lhe daria, para que obedeci

no mais, não lhe aceitando a resposta? E vou morrer

sem poder resgatar esta maldade!

O bom Durim recordava aquele dia da Ilha

Firme e revia Amadis como este havia ficado após a

leitura da carta: sentado nas ervas do chão e muito

branco.

Assim os dois leais servidores se lastimavam,

enquanto a flor do escarcéu fazia peninha da nau.

Mas, passados dias, o mar e o vento

amainaram e, na torna da manhã, avistaram terra.

Então conheceram de bordo a ermida da

Penha Pobre. Logo determinaram os mareantes

desembarcar, a fim de ouvirem missa e renderem

suas graças à Senhora, pela milagrosa salvação que

lhes dera.

Ordenados em procissão desde a praia,

seguiam os marinheiros a cruz que um [93]

gru|mete, vestido em uma sobrepeliz, levava alçada;

atrás da cruz ia uma folia e uma dança, por festejar o

escape da perdição, e no coice da procissão ia o

monge da. Penha Pobre, com o Santíssimo

Sacramento e os cantores.

Desembarcaram também a Donzela e Durim.

E, depois que o ermitão disse a missa, encontraram-

se no adro com Amadis e não o reconheceram, tão

dessemelhado e descarnado estava, com cabelos e

barba ao desdém.

Mas ele, quando os encarou, caiu como morto

no chão!

É que a surpresa de tal encontro lhe dera no

coração com o ímpeto mais grave das lembranças.

Achar ali aqueles amigos era de alguma sorte ver

Oriana, pois quem ama respira o amor em tudo o que

toca ao objeto dele.

Vendo o ermitão a Beltenebros por terra,

cuidou que para este soara a derradeira hora, e

corriam-lhe os prantos pelas cãs:

— Senhor poderoso, por que vos não

amerceastes de quem por vosso serviço tanto ainda

poderia fazer?

E pediu aos mareantes que o ajudassem a

levar ao catre aquele penitente.

Apiedada do que via, perguntou a Donzela ao

ermitão quem aquele homem era.

Ao que o monge, fiel à promessa que havia

feito, apenas respondeu, dorido como estava:

[94] — É um cavaleiro que aqui faz

penitência...

— Se tão áspero lugar buscou, grandes devem

de ser seus pecados! — tornou-lhe a mensageira de

Oriana. — Mas, pois é um valeiro, deixai-me falar

com ele, e das coisas que trago em a nau o poderei

remediar.

Entrou a Donzela na cela do penitente, e,

quando a viu ao pé do seu catre, Amadis tão turbado

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foi, que não sabia que fizesse: porque, se se lhe

desse a conhecer, rompia a vontade de sua senhora

cruel, e, se a deixasse partir, com ela se lhe ia a

esperança.

Entretanto a Donzela falava piedosa ao que ali

jazia:

— Bom homem, pelo ermitão soube eu que

sois cavaleiro, e, como nos cumpre servir quem a

nós outras serve em tantos perigos, dizei-me que

farei por vossa saúde.

Chorando, calava-se Amadis, para que o som

da voz lhe não traísse o segredo. Bem lhe estava o

coração pedindo desfizesse o engano daquela que a

Providência lhe enviava. Porém como se atreveria a

nomear-se, se Oriana lhe havia ordenado que lhe não

desse novas nem mandados?

Suspeitou a Donzela que o penitente estaria

morto. Havendo pouca luz na cela, abriu uma fresta

para ver melhor.

Mas, então, afirmando-se em Beltenebros,

conheceu-lhe no rosto o sinal de uma lançada — e

caiu de joelhos, soluçando e beijando as mãos de

Amadis!

[95] XV. No castelo de Miraflores

Ao deixar a Penha Pobre, despediu-se Amadis

do santo ermitão, beijando aquelas mãos que na má

ventura lhe haviam sido amparo. E rogou-lhe com

muita amizade que fosse à Ilha Firme, a fim de

reformar um convento de monges que em suas terras

mandara edificar.

Sorria satisfeito o bom velho, pois já sabeis

como tinha criado afeição àquele que, por mando da

Providência, havia colhido à beirinha do desespero:

satisfeito de o ver, enfim, sair desses lugares, onde

só alma embebida em pensamentos de Deus poderia

achar o cristão contentamento das agruras.

Depois, passando na barca, meteu-se Amadis

a caminho com a Donzela e Durim. Tão fraco,

porém, se sentia, que não pôde ir muito além. E,

achando eles um lugar que bom lhes pareceu para

cobrar a saúde com o descanso, ali ficou Amadis,

servido pela Donzela, enquanto Durim partia a [96]

le|var recado a Oriana. Era, em verdade, deleitoso o

sítio, com árvores de meiga sombra e claras águas

correntes. Ali falavam os dois do muito que

sucedera, das dores padecidas, dos cuidados que

todos tinham sofrido quando Amadis se sumira.

Contava-lhe a boa Donzela de como Galaor,

Florestan e Agrajes haviam partido a buscá-lo por

longes terras; a dor do fiel Gandalim, que voltara

chorando à corte, como doido, e a de Durim, que a

custo obedecera à ordem que levava e tanto se la-

mentara de a haver cumprido.

Mas era de Oriana que os dois falavam sem

fim. Contava-lhe a Donzela como se ela arrependera

logo da sem-razão e crueza e como quisera ter

morrido, julgando perdido o seu senhor. Para mais

lhe mostrar o arrependimento de Oriana, referia a

Donzela a palidez da infanta, mortificada de pena,

ralada de remorso, e tendo de esconder quanto

sofria, lágrimas e cuidados.

E dizia-lhe de como Oriana agora partiria para

o castelo de Miraflores, ansiosa do seu perdão,

ansiosa do seu amor! Lá no lindo castelo — ia

dizendo a Donzela — esperava-o Oriana, que com

Mabília aí fora, para a bom recato receber a quem

sempre quisera, até quando fora mais crua. Porque,

pensando bem, que havia sido tal crueza, senão sinal

do amor mais fino? Deitado à sombra gostosa,

ouvindo o tom da água que chalreava brincando, ia

Amadis relendo a carta de [97] Oria|na, em que a

bem-amada lhe pedia perdão e ainda duvidava de

que ele lho desse. Beijando as doces palavras,

sentindo o que a bem-amada padecera, padecia o

Namorado por ela, sem mais lembrar a dor que lhe

tinha vindo e a ponto estivera de matá-lo.

E, pensando no castelo de Miraflores, pedia a

Deus lhe tornasse a saúde, para depressa partir e

viver!

Com tão quieto descanso e, mais que tudo,

com certeza tão deleitosa, cobrara Amadis as forças.

Já não podia com mais esperas: o desejo aguçava-lhe

a saúde e estavam-lhe os braços pedindo o peso

glorioso das armas. A Donzela da Dinamarca, vendo

como ele melhorara, disse-lhe adeus até Miraflores.

Partiu de ali Amadis e, na primeira vila, por

dinheiro que lhe emprestara a boa Donzela, teve

armas e um cavalo.

E então foi o cavaleiro Beltenebros.

Ficava o castelo de Miraflores a duas léguas

de Londres e, sendo pequeno, era o mais lindo que

havia para uma saborosa morada.

Rodeado de vergéis, assentava numa encosta

toda coberta de árvores tão boas, que todo o ano

davam fruto e flor. Dentro, tinha câmaras de rico

lavor e pátios onde as fontes murmuravam.

Uma vez que el-rei Lisuarte ali fora caçar e

havia levado a rainha e Oriana, esta, [98] ain|da

tamanina, tanto se agradou do castelo que el-rei lho

deu de presente.

E ali viera agora Oriana, sentida das dores que

sofrera, trazendo no rosto formoso o sinal descorado

das penas.

Com a fiel Mabília, sentava-se a infanta num

patiozinho ensombrado de frondosas árvores,

debaixo das quais uma fonte cantava por bica

melodiosa.

Aí confessava Oriana o seu temor de lhe não

perdoar Amadis a crueza com que fora tratado; e

contava-lhe de como o amava mais, depois que tanto

o havia feito penar. Sorria Mabília e dizia que, se ela

duvidava do perdão do seu amigo, é que ainda lhe

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não conhecia o maravilhoso amor. E explicava-lhe

de como ele mais a amaria, depois que tanto havia

penado por ela.

Animava-se Oriana com tais doces palavras. E

as duas amigas, Oriana ainda magoada, Mabília com

jeito brando, passeavam os vergéis de Miraflores,

floridos de moitas de rosas e borbulhantes de fontes.

Voltava ao rosto de Oriana a cor viçosa, pois

já dentro do corpo formoso a fé do amor derramara a

graça. E, como cuidavam não tardaria Amadis,

combinavam ledas de que modo entraria a furto o

cavaleiro que vinha da amorosa penitência:

— Esta varanda é alta — dizia Oriana —, e

não poderá subir!

— Sim, subirá — tornava Mabília, rindo —,

porque nós lhe daremos as mãos!

[99] Entrementes, e para que todos fossem

mais alegres, chegaram ao castelo os amigos fiéis: a

Donzela da Dinamarca, Gandalim e Durim.

Havia Gandalim chegado depois dos outros e,

como o porteiro o viera anunciar àinfanta, logo esta

ordenou:

— Que entre o bom amigo que tão bom

escudeiro é e foi criado conosco, para mais irmão de

leite de Amadis, a quem Deus guarde!

— Senhora — disse o porteiro —, sim, a

quem Deus guarde, pois grande perda seria se tão

bom senhor se perdesse.

— Não vedes — disse Oriana a Mabília,

quando o porteiro saiu — como a Amadis amam

todos, até os mais simples como este? E como o não

amaria eu?

Fechados com segurança no patiozinho da

fonte formosa, falavam todos de Amadis, em breve

dia esperado, segundo as novas trazidas pela

Donzela da Dinamarca.

— Gandalim amigo — disse uma vez Orla-na

ao escudeiro fiel —, ainda me queres mal pelo mal

que eu fiz, sem saber?

— Senhora — respondeu Gandalim —, que-

ro-vos grande bem por meu senhor, inda que mal

vos quis quando perdido o julguei. E vós, para o

receberdes, tomai ora todo o brilho e cor!

— Tão feia te pareço? — tornou Oriana,

rindo. — Foi por me achar feia, amigo, depois de

tanto sofrer, que eu vim a este [100] cas|telo esperar

a Amadis, meu senhor, de soi que, vendo-me ele,

não possa fugir de mina

Uma tarde, penetrando na floresta, foi-se

Amadis acostando à parte de Miraflores; e deixando

o cavalo pastar, esperava que anoitecesse.

Tão perto estava agora da ventura, que as

dores passadas lhe semelhavam sonho que tivera.

Lembrava como tantas vezes quisera ter morrido e

agradecia a Deus qu~ lhe fora tão cortês e benigno

senhor.

Entretanto a noite caía, e com a sombra vinha

o segredo propício ao desejo dos namorados.

Quando anoiteceu, Amadis saltou o mu~ ro,

caminhou pelo vergel e, vendo Gandalim, chamou-o

baixinho.

Correu o amigo e foi avisar Oriana, que veio à

varanda com as suas fiéis.

Então, sustido por Gandalim e Durim, que o

tinham posto nos ombros, e ajudado de cima pelas

mãos de Oriana, de Mabília e da Donzela, entrou

Amadis no castelo — e fi~ cou preso num beijo à

boca da bem-amada!

[101] XVI. A espada e a guirlanda

Amadis, que todos julgavam perdido ou

tinham por morto, fizera a el-rei Lisuarte serviços

assinalados, combatendo por sua glória. Tamanha

fama havia ganho, que já diziam alguns que, a fama

de Amadis, Beltenebros a ofuscava. Mas, como não

tirara o elmo e ninguém lhe pudera ver o rosto,

guardava o nome de Beltenebros.

Entretanto, quando a noite descia, entrava em

Miraflores.

Ora, estando ele aí uma vez junto da bem-

amada, veio da corte Gandalim com grandes novas.

Um velho escudeiro grego, por nome

Macandon, mostrara a el-rei Lisuarte maravilhosas

coisas, as quais trouxera à corte da Grã Bretanha por

ser afamada em gentileza.

E, depois que el-rei disse lhe aprazia que à sua

corte a buscassem por gentil, mostrara-lhe o

escudeiro uma espada como outra jamais fora vista.

Encerrava-a uma bainha [102] transparente, cor de

esmeralda, e a folha de aço era, até metade, tão

limpa como água cristalina, e na outra metade tão

ardente e vermelha como de fogo.

Depois que esta espada havia mostrado,

descobrira o escudeiro uma guirlanda tão

maravilhosa como aquela: metade das flores que a

entreteciam estavam frescas como se acabassem de

abrir, e na outra metade tão murchas que parecia que

se iam desfolhar.

— Senhor — dissera Macandon —, há ses-

senta anos ando eu vagamundo, em cata daqueles

cujo Perfeito Amor logrará vencer o encanto do que

vos mostro. Desses só, de mais ninguém, por mando

de altos desígnios, poderei receber as armas e, enfim

armado cavaleiro, subir neste cabo da vida ao trono

que há tanto me espera. Mas, como a esses não

achei, nem nos remos distantes nem nas ilhas do

mar, à vossa corte vim para que nela ordeneis uma

prova, e, se me prometeis que a ordenais, direi o

mais que não disse.

Ouvindo tais maravilhosas palavras, arderam

todos por saber o mais que Macandon calava.

— Senhor — disseram a el-rei os cavaleiros,

que olhavam a espada encantada —, ordenai, pois,

essa prova, e tentemo-la todos, não sendo contra a

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lei de Cristo.

E as damas, que remiravam curiosas a

encantada guirlanda, disseram à rainha:

[103] — Senhora, pois que esta guirlanda nos

respeita como toucado de flores, ordene el-rei essa

prova para que a tentemos também.

De boa mente o prometera el-rei Lisuarte.

Continuou, então, o velho Macandon:

— Senhor, esta espada que vedes, ninguém

nunca a tirou da bainha, donde só poderá arrancá-la

aquele que à sua bem-amada quiser com Perfeito

Amor. E esta guirlanda, quando posta na cabeça

daquela que a seu amado quiser com amor igual,

então se verá que reverdece e ficará toda em flor.

Ouvira Amadis estas novas e quedara-se a

pensar nelas.

Contara depois Gandalim que, tendo ei-rei já

marcado o dia da prova, todos os cavaleiros fariam

por desembainhar a espada, do mesmo modo que a

guirlanda seria posta em cabeças de donas e

donzelas. E, como então estivessem na corte os

melhores cavaleiros da Pequena e Grã Bretanha e a

rainha Briolanja — que Oriana queria ver mais que a

ninguém no mundo! — ali havia chegado, coberta de

luto por Amadis, a grande prova respeitava a todos e

todos queriam tentá-la.

Disse então Amadis à bem-amada:

— À prova iremos também!

Pasmou Oriana do que ouviu, tão impossível

lhe pareceu por perigoso e louco.

Respondendo ao espanto que lia nos formosos

olhos da sua amiga, beijou-lhe Amadis as mãos e

explicou seu pensamento:

[104] — Mas ireis rebuçada de guisa que nin-

guém saiba quem sois. Comigo sereis diante de

vosso pai, e faremos a prova da Espada e da

Guirlanda!

Na véspera da prova na corte enviou Oriana

recado a el-rei, dizendo que, por estar doente,

naquele dia ficava deitada.

E, depois, Mabília e a Donzela da Dinamarca

disfarçaram a infanta à maravilha.

Tão bem disfarçada ficou, vestida em uma

capa mui rica, mas desusada no reitio, e com a cara

encoberta com um rebuço, que Amadis, sorrindo,

disse quando a viu:

— Nunca eu cuidei que tanto folgaria de vos

não conhecer!

E, antes da alva do dia, saíram de Mira-flores

e cavalgaram para a corte em festa. Levava Amadis

as mais formosas armas, pusera Oriana as mais

formosas jóias, e eram ambos o Perfeito Par:

Na sala grande dos paços, e depois d~ ouvida

missa, el-rei Lisuarte e ~ rainha Brisena vão presidir

à prova. Todos os cavaleiros cercam o trono, e,

sorrindo para eles, estão presentes todas as donas e

donzelas.

Guardadas numa arqueta de jaspe chapeada de

ouro, vêem-se a meio da sala a Espada e a

Guirlanda.

Quando el-rei Lisuarte soube que Beltenebros

ali chegava para concorrer à prova, alegrou-se e

recebeu-o com honra.

[105] E o cavaleiro Beltenebros, que não

havia tirado o elmo, foi saudar el-rei, levando pela

mão a dama rebuçada...

(Ah! senhores, como Oriana tremia!)

Dado sinal, a prova começou.

Primeiro tentou-a el-rei e, pegando na espada,

não a pôde tirar da bainha, Seguiram-se Dom

Galaor, que amava Briolanja, e Brunéu de Bonamar,

que amava Melícia, e Arban de Norgales, que amava

Grindalaia: e não desembainharam a espada. Depois

foi Florestan, o outro irmão de Amadis, tão leal e

gentil, que amava Corisanda: e a espada não saiu da

bainha de esmeralda.

Seguiram-se Galvanes Sem-Terra, e Bran-

doivas, e Grumedan, e Ladasim, que todos tinham

amores: e a espada ficou-se na bainha. Logo a

provou Guilan, o Cuidador, que amava Brandaía,

depois de a haver provado Agrajes, que amava

Olinda: e não saiu da bainha aquela espada.

E assim foi com Polomir, com Dragonis, com

todos que a provaram: pois, se todos, uns mais,

outros menos, arrancaram da espada algum tanto,

nenhum pôde arrancar a espada toda.

Então adiantou-se Beltenebros, levando pela

mão a bem-amada: e, pegando na espada, arrancou-a

da bainha!

Fez-se depois a prova da guirlanda.

A rainha, primeiro, pôs na cabeça as flores: e

as flores não refloriram. Seguiu-se-lhe [106]

Briolanja, formosa no seu luto — e para quem

Oriana olhava muito —, e não floriu a guirlanda.

Depois foram Estreleta e Brandaía, e foi Aldeva, e

foi Olinda, e Grindalaia, e foram todas: e as flores

não refloriam. Quando postas naquelas cabeças,

mais em umas, noutras menos, refloriam algumas

flores, mas nunca toda a guirlanda.

Então adiantou-se a Dama de Beltenebros,

levada pela mão do seu amado: e, quando a pôs na

cabeça, toda a guirlanda floriu!

[107] XVII. A canção de Leonoreta

Acabada a prova da espada e da guirlanda, foi

o velho Macandon armado cavaleiro por

Beltenebros, e, bendizendo o Perfeito Par cujo

Perfeito Amor lhe havia enfim quebrado o fadário,

recebeu as armas das mãos daquela dama rebuçada.

Muito festejou a rainha a Dama de Beltenebros, e el-

rei Lisuarte, para fazer mais honra ao cavaleiro e à

bem-amada, saiu a despedi-los, levando à rédea o

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cavalo daquela em cuja cabeça florescia a guirlanda,

assim como na mão de Beltenebros rebrilhava a

espada.

Voltando a palácio, quis el-rei Lisuarte ofertar

aos cavaleiros e às donas e donzelas um mimo

gracioso e que a todos deu prazer. Depois que

Amadis se havia perdido — e alguns dos que ali

estavam bem o tinham buscado por longes terras —,

era a primeira vez que se davam mostras de alegria.

Chamou el-rei Leonoreta, sua filha ainda

menina, e pediu-lhe que viesse cantar e [108]

dançar, com seu coro de donzelinhas, aquela canção

que Amadis, sendo seu cavaleiro, havia feito por

amor dela.

Fora o caso que uma vez, estando Amadis a

falar com el-rei e a rainha, convenceram Oriana,

Mabília e Olinda a Leonoreta a que escolhesse

Amadis por seu cavaleiro, para que ele mui bem a

servisse, sem olhar para mais nenhuma dama.

Riram-se os reis e Amadis; e este, pegando ao colo

na infantinha, sentara-a no estrado e dissera-lhe,

muito sério:

— Pois para cavaleiro me quereis, bem éme

deis uma jóia, a fim de me eu ter por vosso.

E a infantinha, tirando dos cabelos um alfinete

de ouro cravado de pedras preciosas, dera-lho por

amoroso penhor.

Tendo el-rei Lisuarte contado esta lembrança

engraçada, todos sorriram ouvindo-a.t

Mas o que el-rei não sabia era que essa canção

a fizera Amadis para Oriana e que, enquanto falava a

Leonoreta, brincando com ela no estribilho, em

verdade dizia como amava a furto a Sem-Par.

Entrementes entrou Leonoreta, e seguiam-na

doze damizelas. Vinham todas vestidas por igual, de

telas ricas, e traziam grinaldas nas cabeças.

E Leonoreta e o coro cantaram e dançaram a

formosa canção:

[109] Senhor genta,

min tormenta

voss’a mor en guisa tal,

que tormenta que eu senta,

outra non m’é ben nen mal,

mais la vossa m’é mortal.

Leonoreta, fin roseta,

bela sobre toda fror,

fin roseta, non me meta

en tal coita vosso amor!

Das que vejo

non desejo

outra senhor se vós non.

E desejo

tan sobejo

mataria un leon,

senhor do meu coraçon!

Leonoreta, fin roseta,

bela sobre toda fror,

fin roseta,

non me meta

en tal coita vosso amor!

Mha ventura

en loucura

me meteu de vus amar.

[110] É loucura

que me dura,

que me non poss’én quitar.

Ai fremosura sem par!

Leonoreta, fin roseta,

bela sobre toda fror,

fin roseta,

non me meta

en tal coita vosso amor!

[111] XVII. As sete partidas

Depressa foge ao amor a alegria, e deste modo

fugiram ligeiros os dias de Miraflores. Conheceu

Amadis que não podia encontrar-se aí mais com a

adorada, por tão perigoso ser. Então se despediu de

sua boa ventura.

Doces horas vividas a furto entre os amigos

fiéis, no coração dos quais demorava o segredo

escondido e amado; doces horas de tanto sabor na

câmara de Oriana, ao tomar rijo nos braços a

esbelteza do corpo de ouro; doces horas em que

ambos passeavam à sombra rescendente dos vergéis:

adeus!

Dera-se então Amadis a conhecer a el-rei

Lisuarte e a todos, e em batalha o fizera, salvando

el-rei da perdição em que estava e mantendo-lhe a

vida com a vitória.

Não mostrara, porém, el-rei Lisuarte tão

agradecido coração como devera, fosse que já

invejasse glória que tanto brilhava, fosse que a seus

ouvidos ousassem segredar [112] bo|cas enredadoras

que Amadis lhe cobiçava a coroa.

Saudoso de Miraflores, desgostoso da cone, e

não, como todos cuidavam, por desejo de andar

terras estranhas e ver várias gentes e leis, foi Amadis

correr as sete partidas do mundo.

— Amiga adorada — dissera ele a Oriana,

falando a furto com ela uma última vez —, pois el-

rei assim o quere, assim me convém fazê-lo e vou-

me para que a glória, que por ti só ganhei, se não

perca com minha honra. Amiga, como sou mais teu

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que meu, não me mandes ficar, inda que eu morra de

dizer-te adeus!

— Amigo — respondera-lhe Oriana, a quem o

coração também se partia —, a mim era, e não a el-

rei, meu pai, que tu servias. Mas pois da tua honra

me falas — até um dia e até sempre!

Nesses remos distantes, para onde se fora

depois de visitar o seu bom senhor Gandales e a

corte de Gaula, praticou Amadis grandes feitos, para

glória de Deus e da bem-amada.

Um dia, navegando diante de uma ilha que lhe

pareceu bem vestida de arvoredo, apeteceu a Amadis

desembarcar, por descansar um pouco em sombra

mansa.

— Senhor — disse-lhe mestre Elisabat, que

era o patrão da galera, homem sábio em experiência

e conselho —, esta é a Ilha Triste e de nela

desembarcar nos guardemos nós.

[113] E contou-lhe mestre Elisabat de como

ali reinava Madarque, o gigante cruel de cuja ira lhe

foi narrando os malefícios, contra a lei de Cristo

praticados, e em cujos cárceres penavam cativos que

Madarque pusera a ferros.

Mas a Amadis respeitava limpar o mundo de

traição, de maldade e de erro; e, alcançando terra em

um batei onde levava o cavalo, foi subindo um

escarpado monte, coroado no cimo por um castelo.

Logo de uma torre do alcáçar deu sinal o fero som

de uma buzina, cujo clangor foi tangendo o

recôncavo das furnas. Não tardou Madarque em

descer a terreiro, e viu-o Amadis vestido de aço no

possante ginete, trazendo a cabeça coberta com uma

capelina coruscante e na mão um venábulo de

guerra.

— Ora me valha aqui, minha senhora Oriana!

— rezou Amadis no íntimo do coração.

E mestre Elisabat ouvira, desde a galera

ancorada, o estrupido da batalha, que atemorizava os

ecos. Enfim, roto dos golpes se abatera por terra o

gigante Madarque, e, vencido e repeso, prometera ao

vencedot abraçar a lei de Cristo. Então libertara

Amadis dos cárceres do castelo os cativos que neles

penavam, e agora bendiziam o salvador!

Outra vez, indo com rumo a Constantinopla, e

depois de uma tormenta que lhes dera, passaram a

certa ilha que, por tão despovoada e agreste,

entristecia os olhos [114] que a abrangiam. E mestre

Elisabat contara que aquela era a Ilha do Diabo,

ainda mais temerosa que a Ilha Triste, porque ali

havia senhorio, não já criatura com forma humana,

mas uma alimária horrenda, em cuja fábrica metera

mão o Demônio e a quem o pavor das gentes

nomeava por Endriago.

Tinha o corpo veloso e escamoso, a modo de

rocha felpuda; corria voante como touro alado em

asas de morcego, chamejando pela goela peçonha de

vapores; e todo o seu prazer era devorar gente, da

qual pouca restava naquela ilha.

Ouvia Amadis tais temerosas coisas, e,

enquanto olhava a ilha renegada, pensava que em

combater o próprio poder do Demônio daria grande

lustre ao seu amor.

— Gandalim amigo — disse Amadis ao es-

cudeiro fiel, quando saiu a combater o monstro —,

uma coisa te rogo muito: e é que, se eu aqui morrer,

leves à minha senhora Oriana o que eu trago e dela é

— o meu coração!

Ficara-se Gandalim em lastimoso pranto,

porque a grande afeição que a Amadis votava

sobrelevava nele ao desejo de ver o seu senhor

colher mais glória. E temia ter de cumprir tão

doloroso mandado, levando a Oriana a flor dos

corações!

Fora-se Amadis a desafiar a medonha besta-

fera no seu fojo de rochas taciturnas, dando vozes

com que eia saiu a terreiro mais sanhuda.

[115] Como a Endriago assistia o poder do

Demônio e como este via que o cavaleiro invocava,

antes do nome de Deus, o nome da bem-amada, já

festejava raivoso o desbarate do inimigo.

Mas o nome de Oriana, junto ao nome de

Deus, ainda ali salvara o que o invocava em batalha.

E, após o combate, destroçado o monstro,

recolhera Gandalim a Amadis meio morto à galera,

onde mestre Elisabat, com sutis medicinas, lhe foi

curando as feridas e a peçonha.

E, por memória do grande feito, se ficou

chamando aquela ilha — Ilha de Santa Maria.

Depois, em Constantinopla, que era naquele

tempo a cabeça da Cristandade, recebera-o o

Imperador fazendo-lhe muitas honras — e quanto

desejara que em suas terras ficasse demorando o

Paladim!

Mas tanto se lembrava sempre Amadis da

bem-amada, que, vendo entrar a infanta, linda à

maravilha, se recordou do tempo em que Oriana era

da idade dela e ele o Donzel do Mar — e chegaram-

lhe as lágrimas aos olhos. Repararam todos naquele

pranto represo, admirados de verem lágrimas nos

olhos do vencedor de Endriago. Porém todos

calaram por cortesia a estranheza.

O Imperador, a quem Amadis mais agradava

que nenhum outro senhor que até então tivesse

conhecido, falou à puridade com mestre Elisabat:

[116] — Mestre, por que razão choraria o amo

a quem bem servis?

— Senhor, como o saberei? Só sei que mais

formoso e esforçado cavaleiro não há!

— Seria por esconder mágoa de amor?

— Senhor, se ele a esconde, bem encerrada a

tem, pois só quando dorme suspira, inda que às

vezes as cismas o tragam por longe.

Mas a princesa, a quem mais que a todos

aquelas lágrimas haviam chegado ao coração,

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perguntou a Amadis, piedosamente, uma vez que

junto ao seu estrado não estava por então mais

ninguém:

— Senhor, por que haveis chorado?

Recobrou-se Amadis do enleio em que o

deixara a pergunta e, não sabendo mentir nem

querendo passar além, disfarçou com alegre

semblante:

— Foi porque me lembrei de um tempo

saboroso!

Ao despedir-se Amadis da corte, juntaram-se

na sala grande dos paços, que era toda forrada de

ouro, com figuras mui ricas de embrechados, os

altos senhores do Império, e o Imperador ofertou a

Amadis muitas pedras preciosas que provinham dos

tesouros dos reis da Judéia. Mas Amadis escusou-se

a aceitá-las.

A infanta, a quem aquele adeus custava,

trouxe duas coroas do mais rico lavor e pedraria:

— Dois dons vos peço, senhor — disse a bela

princesa —, que a coroa em que [117] alvore|ce este

branco rubim a deis à donzela mais linda que

conhecerdes e estoutra em que esplende um rubim

vermelho à mais formosa dona a oferteis.

Então pusera Amadis a coroa do branco rubim

na cabeça da infanta de Constantinopla, e a coroa do

rubim vermelho guardou-a para Oriana, a Sem-Par.

Assim por espaço de três anos andou Amadis

de terra em terra e de glória em glória, em

Alemanha, em Romania, em Grécia, protegendo os

fracos, abatendo os soberbos, reparando agravos,

emendando erros, aprendendo as linguagens dos

povos, conhecendo peregrinos costumes.

Às vezes, quando mais lhe pesava o lembrar-

se, fugia aos louvores — pois nunca lhe agradava

que o louvassem — e ao saudar de príncipes e

senhores, e buscava solidão de floresta, para aí, a sós

com o seu coração, sozinho com Gandalim, pensar

em Miraflores. Como é sina e magia de saudosos

irem ante si figurando o que adoram, assim via

Amadis os olhos de Qriana, a boca de Oriana, suas

mãos, seus cabelos, seus pés mimosos nos chapins

pontiagudos, todo o seu corpo de ouro, que ele ti-

vera. E, como o que via estava animado daquela luz

de dentro que é a alma, via também a alma de

Oriana, tão finamente trajada no vestido do seu

corpo e formosa como ele.

[118] Quantas vezes, no albergue dos castelos

ou na riqueza das cortes, sentira Amadis que o

buscavam o sorriso de muitas bocas formosas e a luz

de muitos olhos lindos!

Mas, se os olhava, nem bem os via, pois tão

cerrado guardava o segredo do seu amor, como

mantinha fiéis corpo e alma à bem-amada.

E, sem nunca ter novas de Oriana, teve-a

sempre presente na sua alma, porque sempre houve

nela — a Saudade.

[119] XIX. Imperatriz de Roma

Mas não fora esquecida Oriana em Roma, e o

novo Imperador que aí reinava mandou a el-rei

Lisuarte uma poderosa embaixada, a pedir-lhe a mão

desta infanta, sua filha.

Assim, desde que partira da corte da Grã

Bretanha, não havia esquecido aquele príncipe a

formosa Sem-Par, cuja arredia esquivança lhe não

dera algum azo a determinar-se de tal modo.

Logo que subiu ao trono, o seu primeiro

cuidado foi pedi-la, fiado na boa menção que el-rei

fizera às palavras da sua despedida e, mais que tudo,

fiado na soberba de crer que nenhuma princesa da

Cristandade recusaria sentar-se à sua ilharga, no

sólio daquele Império. Arribaram à Grã Bretanha as

naves romanas, aparelhadas com grande riqueza, e

delas desembarcaram grandes senhores.

Agasalhou el-rei Lisuarte com muita honra os

nobres embaixadores, entre os quais [120] mandara

o Imperador a rainha Sardamira de Sardenha — a

fim de acompanhar a Imperatriz a Roma —, o

príncipe Salustanquídio, senhor de Calábria,

Brondajel de Roca e o bispo de Tulância.

E, quando eles lhe pediram para o Imperador

de Roma a mão da infanta Qriana, ficou el-rei

Lisuarte de dar a resposta ao cabo de um mês.

Mas logo teve el-rei por graciosa fortuna que

o Imperador mais poderoso da Terra lhe mandasse

pedir uma filha.

E, antes que ouvisse conselho, prometeu a si

mesmo que a daria.

Quando Oriana soube que os romanos vinham

com tal recado e sua mãe lhe disse que el-rei se

inclinava a dar-lhes favorável despacho, ficou

tolhida de espanto e dor! Jamais lhe havia lembrado

que sucesso semelhante se poderia armar, para vir

pôr em tanto risco a fidelidade do seu juramento.

Não sabia a fiel Mabília defender agora Oriana

contra perigo que era maior por tão traiçoeiro ser.

Apartadas de todos na câmara da infanta,

desafogavam-se em palavras, já de furor, logo

descoroçoadas, do que ambas iam sofrendo, cada

uma de seu mal, que ao mesmo ia dar. E lembravam

com sanha e desdém o príncipe néscio e inchado,

que em má hora tinha vindo à corte da Grã Bretanha.

— Ai! — gemia Qriana. — Por que se foi

Amadis e me deixou sozinha, ele, o lume das

coitadas?

[121] Não podendo mais calar a angústia que

a trespassava e esperançada em que atalharia o mal

acudindo-lhe com remédio, foi Oriana ter com seu

pai, ajoelhou-se-lhe aos pés e disse-lhe, chorando:

— Havei piedade desta filha!

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Levantou-a el-rei a ponto que Oriana lhe ia

beijar os pés:

— Filha, a tudo que disserdes ouvirei com

amor de pai.

— Meu pai e senhor, se é vossa vontade

mandar-me ao Imperador de Roma, apartando-me de

vós, de minha mãe e da terra onde nasci, sabei que

tal vontade se não poderá cumprir, porque antes

morrerei ou me darei a morte!

Isto dizendo, ficara Oriana aos pés do pai,

aguardando, chorosa, o requerido conforto.

Porém el-rei não tomou tão grave dor por

sentimento assim fundo como era.

Tornou-lhe que forte loucura seria não subir

ao trono mais poderoso da Terra, não fruir as

grandezas do Império, desdenhar de seu senhorio e

enjeitar reis e rainhas por vassalos. Em ela chegando

a Roma, logo aprovaria o que el-rei desejava para

bem de sua filha, a quem muito queria, e para bem

da sua coroa, a que muito lustre dava.

Junto de sua mãe recebia Oriana piedade e

carinho. Mas que podia a rainha senão acompanhá-la

na dor?

[122] E, porque el-rei cuidou que a seus fins

convinha, mandou Oriana para o castelo de

Miraflores, onde a rainha Sardam ira a foi

acompanhar.

No castelo das lembranças caras, mais

padeceu Oriana a grande pena em que se via. Tudo

ali lhe espertava a memória dos dias encantados,

tudo, desde o mavioso chalreio das fontes até ao

aceno das árvores que aos dois haviam coberto. Em

tudo lia Oriana os sinais do seu amor, surgia de cada

canto o vulto de Amadis, a todo o sítio o marcava

lembrança de afago ou beijo. E, à noite, sozinha em

sua câmara, via a seu lado no leito o lugar do seu

amado.

Falava-lhe a rainha Sardamira das grandezas

de Roma e do senhorio imperial. Com palavras

copiosas, e sem suspeitar que afligia aquela a quem

as estava dizendo, encarecia a soberba da cidade,

contava a riqueza da corte. Mas, enquanto a rainha

falava, ia Oriana cismando em seu amigo, que

saudoso andava por longes terras; pensava na

fidelidade de Amadis, no que havia por ela penado

— e sentia no corpo formoso derreter-se-lhe a alma

por ele.

Louvava-lhe a rainha Sardamira o belo amor

do Imperador, que tanto lhe queria desde que a vira

na corte, nunca a pudera esquecer e dela fazia a

senhora mais poderosa do mundo, soberana dos

príncipes da Cristandade

[123] Mas Oriana, olhando o vergel,

lembrava-se da noite em que Amadis havia entrado

no castelo — e tinha ficado preso à sua boca!

Quis el-rei Lisuarte ouvir os homens-bons e a

palácio os chamou, com o conde Argamon, seu tio, a

fim de receber juízos avisados.

Era o velho conde senhor de mente arguta e

tinha muito mundo.

Ainda que se achava doente de gota, não

quisera faltar ao chamamento; e, sabedor do que a

todos constava, vendo os modos de el-rei, logo o

teve por já determinado e por pouco inclinado a

escutar razões. Como havia conhecido muitas cortes

e servido a bastos senhores, bem sabia que aos reis

não apraz que os atalhem nos intentos, até por serem

de humana condição.

Mas o conde Argamon vinha seguro de sua

causa e, depois, já por tão velho ser, desapegado das

coisas do mundo, não se lhe dava dizer aos mais o

que tinha por direita verdade.

Juntos que foram nos paços, falou el-rei

Lisuarte aos homens-bons. Disse-lhes que havia

aquele casamento por coisa louvável e da qual

poderiam todos ter aprazimento; que o Imperador,

escolhendo Oriana entre as princesas da Cristandade,

dera mostras de honrar a coroa da Grã Bretanha,

aliando o esplendor do Império ao da Cavalaria

deste reino; e que esperava, em seu coração de rei

[124] e de pai, que a infanta, sua filha, fosse ditosa

em Roma, alçada ao trono por Imperatriz.

Ouvira o velho conde as razões de el-rei e

fora-o olhando com finos olhos em cuja chama, que

a idade tinha amortecido, brilhava ainda a luz das

mentes claras. Quando el-rei acabou, começou ele:

— Sobrinho e senhor, custoso é dar conselho

em casos tais, pois, se por vossa vontade formos, a

nós mesmos podemos enganar, e, se contra ela nos

pusermos, vos agastar-vos-eis.

E foi advertindo que semelhante casamento

não era de razão se o não desejava Oriana, e que ele

suspeitava que a infanta se não sentia leda de se

alçar por Imperatriz; que por esse casamento

perderia o reino de que era herdeira e de direito lhe

pertencia, de sorte que, mandando-a ao Imperador,

el-rei Lisuarte a deserdava e dava a coroa a

Leonoreta; que também tal casamento viria a pôr o

reino em perigo, pois o Imperador, por morte de sua

mulher, acaso se julgaria com direitos a esta coroa,

acontecendo que os teria deveras; e que, sendo o

Imperador poderoso como era, sem grande trabalho

o reino viria tomar.

Todas estas avisadas coisas as dissera o conde

Argamon por amor da verdade e também porque

sabia que Oriana padecia e chorava de casar, e o

discreto senhor sentia pela formosa infanta um afeto

que se revia em sua beleza dela.

[125] Doeu-se el-rei Lisuarte com o arrazoado

do seu velho tio. Retrucou que a mocidade, pelo ser,

não sabe o que mais convém ao bem próprio e que a

muita crescença dos anos, com escurecer o mundo,

levanta perigos onde se eles não acham.

E, assim como não atendera aos homens-bons,

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por cujas bocas tinha falado o conde, não atendia el-

rei Lisuarte a sua mulher, a rainha Brisena, que

chorava de saber que Oriana partia e contra vontade

casava.

O conde Argamon, com quem el-rei se

mostrava agastado, retirou-se para as suas terras.

Já nos corações dos mais leais cavaleiros

lavrava a tristeza de tal noivado. E Dom Galaor, que,

além de ser dos mais leais, suspeitava que Amadis e

Oriana se amavam, falou por todos a el-rei.

— Senhor, amanhã, se Deus quiser, sairemos

deste reino, que em vossa corte nos não apraz mais

servir.

Perguntou el-rei Lisuarte a razão por que o

queriam deixar.

— Senhor, porque a vossa filha fazeis o que

não devíeis fazer à mais miseranda mulher.

E Galaor, Florestan, Agrajes, e com eles todos

os leais, deixaram a corte de el-rei Lisuarte e

passaram-se à Ilha Firme.

Ao cabo do prazo marcado, chamou el-rei a

Brondajel de Roca e deu-lhe a sua resposta:

[126] — Amigo, sabei que este casamento não

édo agrado de alguns, que, por muito estimarem

minha filha, a custo a vêem partir. Mas, pois eu

julgo que a faço feliz, muito me apraz a mim; e, em

ela chegando a Roma, logo me aprovará. Aparelhai,

pois, vossas naus, para levardes a Imperatriz ao Im-

perador.

Então, no a perto de tão duro transe, e por

conselho da fiel Mabília, mandou Oriana por Durim

à Ilha Firme o seu recado de dor, pedindo aos

cavaleiros de Amadis que lhe acudissem na aflição.

E, enquanto se aparelham as naves da

embaixada, que já balouçam no porto ansiosas da

partida, roga Oriana a Deus lhe traga o seu amigo a

tempo de a salvar!

[127] XX. A Ilha Firme

Quando Amadis entrou no mar Oceano,

palpitou-lhe com ânsia o coração! Vindo de tão

longe, e de tão variadas terras, lembrava que,

entrando a navegar naquelas águas, voltava aos

caros lugares onde ficara Oriana. E mais viva se lhe

acendia no coração a saudade da bem-amada. Agora

que a idade verde fugira, fazendo amor mais

pensado, apetecia Amadis a bênção da Igreja, que,

diante de Deus e dos homens, juntaria o seu coração

ao de Oriana, senhora da Ilha Firme — a qual, por

alta proeza, ele havia ganho — e futura rainha de

Gaula.

Cuidava que, não por merecimentos próprios,

senão porque lho permitira a divina bondade, havia

merecido Oriana desde aquela manhã de abril em

flor em que tinha abalado, a caminho de aventuras,

tão pobre que nem nome tinha, levando a alma tão

cheia de amor tal a sentia agora.

[128] Assim vinha Amadis imaginando, en-

quanto a nau singrava ligeira, e ele olhava,

entrevendo-as a distância, as costas dos reinos e as

areias das praias.

Nas horas de folgança, com o vento a

acompanhar nas enxárcias as vozes, os marinheiros

cantavam:

Lá no meio desse mar

ouvi cantar, escuitei:

saiu-me a senhora sereia

lá no palácio de el-rei.

Ouvindo-os cantar, acudiam-lhe as lem-

branças e as saudades cresciam.

Lembrava-se dos amigos fiéis cujo amparo

tivera em horas de tanta dor: da sua doce prima

Mabília, de tão fina amizade, es-pena sempre em

bem-querer; da donzela da Dinamarca, a qual, pela

mão de Nossa Senhora, o tinha ido buscar à

penitência; do certo amigo Durim. Como em névoa

de sonho, revia a soledade da Penha Pobre, em cujos

rigores se havia apurado; recordava o ermitão que

lhe fora abrigo e santo companheiro. E, por cima das

ondas, mandava um pensamento de terna afeição ao

seu querido senhor Gandales.

Um dia, encontraram uma fusta e chegaram à

fala com uns mercadores da Grã Bretanha, que

partiam para traficar em outras terras. Como lhes

pedissem novas do reino, e sendo a maior delas o

casamento de [129] Oria|na,contaram os mercadores

o despacho que el-rei Lisuarte dera à embaixada,

contra a vontade de muitos e, ao que eles tinham

ouvido, contra a vontade da infanta. Por todo o reino

ia azáfama festiva. Houvera belos torneios para

celebrar os esponsais. E os soberbos romanos

aparelhavam as naus para levar a Imperatriz...

Ouvindo Amadis que a Oriana já a tratavam por

Imperatriz de Roma, ficou um tempo sem acordo

nos braços de Gandalim.

Ao ver desfalecido o mais forte cavaleiro, a

quem apenas derribava o cuidado da bem-amada,

considerava o escudeiro, com pranto enternecido, o

maravilhoso amor de seu senhor e amigo.

— Este que vai aqui desacordado — pensava

Gandalim — aquele é que venceu Dardan, o

Soberbo, desbaratou Abies de Irlanda, converteu o

gigante Madarque, matou o demoníaco Endriago!

Tornando em si, sentiu Amadis crescerlhe. a

sanha contra el-rei Lisuarte e mais se doeu de ele tão

ingrato haver sido à leal companhia de armas que o

servira, dando ouvidos a vozes de traição, nascidas

só da inveja. Recordou que a el-rei tinha prestado

serviços tão grandes, que destes proviera nova honra

e glória à Grã Bretanha, e que o próprio rei lhe devia

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a vida, que lhe ele salvara em arriscado perigo.

Porém, mais pungente que todas, uma idéia

lhe atravessava a mente: Oriana! [130] Oria|na a

padecer na pura fidelidade do seu coração, forçada a

dar-se por noiva, calando o amor que lhe tinha,

decerto apetecendo a morte!

E da sua alma, que a angústia agora toda

revolvia, ergueu-se prece fervorosíssima: que o

vento lhe inchasse as velas, para a tempo chegar!

O mar era chão, sopravam os ventos fagueiros

e, ao cabo de alguns dias, gritou um gajeiro que

subira ao tope real:

— Alvíssaras, alvíssaras! Já vejo a Ilha

Firme!...

Receberam os da Ilha Firme com grande

glória a seu senhor, aclamando quem tão desejado e

amado era. E, depois de ter agradecido a Deus o

haver-lhe permitido que a tempo viesse, juntou

Amadis seus irmãos e pares e cavaleiros e assim lhes

falou:

— Bons senhores e amigos, depois que de vós

me apartei, muitas terras estranhas andei e muitas

aventuras corri. Passei grandes perigos e trabalhos,

dos quais saí com a ajuda de Deus. Porém, aqueles

em que o meu coração mais folgou, eu os passei

levando socorro a donas e donzelas a quem agravo e

sem-razão se faziam, e a que elas respondiam com

lágrimas e suspiros, que são as armas das mulheres.

Ora, sabeis que sem-razão e agravo faz el-rei

Lisuarte à sua filha Oriana, deserdando-a do reino da

Grã Bretanha e mandando-a, contra seu mesmo

querer, ao [131] Imperador de Roma. Se el-rei

Lisuarte comete esta crueza contra Deus e contra

seus naturais, digo-vos que a nós compete remediá--

la. Agora diga cada um seu parecer, que o meu,

amigos, já vo-lo dei!

Ouviram com grande louvor todos os leais as

palavras de Amadis: acendia-se-lhes nos olhos a

chama do valor que brada — avante! — e ansiavam

em cada bainha as espadas por verem a luz.

Pediram os cavaleiros a Agrajes que, em

nome de todos, respondesse:

— Bom senhor e primo, sabei que, ainda que

com a vossa presença se nos dobrassem as forças,

até sem vós, que por apartado tínhamos,

determinados éramos ao remédio!

E Agrajes, assim falando, por seu próprio

coração também falava, porque o príncipe

Salustanquídio, senhor de Calábria, movera el-rei

Lisuarte a que mandasse Olinda para Roma, a fim de

casar com ela.

Quando chegou o dia aprazado e aborrecido,

desceu Oriana à praia, entre o grande cortejo que a

levava. Ordenara el-rei Lisuarte que naquela

despedida concorresse grande brilho, já por honrar

ledamente a noiva, já porque às grandezas do

Imperador queria ele responder com as próprias.

Vestia Oriana panos de ouro, bordados de

pedraria e pérolas, e assentava-lhe nos formosos

cabelos uma coroa que cintilava. Alegravam a

marcha do cortejo as cores [132] de|senroladas dos

pendões, e o clangor das trombetas varava o ar, do

burgo à praia. As damas, montadas em finos

palafréns, iam levadas à rédea pelos pajens;

revestiam os cavaleiros as suas armas mais ricas, e

toda esta companhia luzia de esplendor.

Ia a infanta a par de el-rei e montava um

soberbo palafrém ricamente ajaezado, com freio,

peitoral e estribo de ouro a martelo, cravejado de

pedras finas, presente de seu pai, e em que devia

fazer a sua entrada em Roma.

E já a aguardavam os nobres embaixadores,

ora mais orgulhosos com o despacho.

Mostrava el-rei Lisuarte bom semblante, posto

que em seu coração pesava nuvem grossa: não

estava ali a flor dos seus cavaleiros, e havia muitos

olhos rasos de água. Doía uma pena escondida nos

corações dos homens-bons, e a arraia-miúda

murmurava de ver partir a infanta.

— Contra vontade vai ela — pensavam as

mulheres do povo, a quem a vista de Oriana movia a

doce piedade —, e que lhe faz a riqueza, à Bela mal

mandada?

— Também se nos vai com ela a segurança do

reino — pensavam outros, a quem a formosura da

infanta tocava o coração — e em má hora vieram os

romanos para levar-nos quem nos pertencia!

Com Oriana quisera ir Mabília, a sempre doce

e fiel; a Donzela da Dinamarca não deixara também

a pobre de sua senhora; e Olinda, toda chorosa,

embarcava com elas.

[133] Abraçou-se Oriana em sua mãe, ambas

confundindo as lágrimas:

— Filha, eu me fio em Deus de que isto que te

manda el-rei é por teu bem!

Receberam enfim os embaixadores a formosa

Sem-Par.

E, dando ao vento as velas, alongam-se as

naus da vista — e todos os olhos as seguem, e os

corações todos choram!

Já as proas romanas fendem as ondas, e

navegam soberbas as naves.

Dispostas vão de maneira que, no meio delas,

guardam a mais soberba, em cujo tope se desfralda a

insígnia do Imperador. Fechada a cadeado em uma

câmara rica, nessa vai Oriana a caminho de Roma.

Mas à frente da frota roubadora surge outra

que o amor comanda e guia.

— Gaula, Gaula! Aqui vai Amadis!...

Rompe fera a batalha entre as naus abordadas.

Combatem pelos da Ilha Firme os nobres

aliados, e Briolanja mandou os seus melhores

cavaleiros. Ao cabo de brava peleja, rendem-se as

naves romanas.

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Então sobe Amadis àquela em cujo tope flutua

a insígnia imperial e onde Oriana, dando graças a

Deus, posta em joelhos, tinha ouvido, sorrindo, a

voz do seu amado!

E Amadis liberta e leva para a Ilha Firme

— Oriana, Oriana, a Sem-Par!...

TEATRO DE GIL VICENTE

VICENTE, Gil. OBRAS-PRIMAS do teatro vicentino; ed. organizada, prefaciada e comentada pelo Segismundo Spi-

na. 4. ed. São Paulo: DIFEL, 1983. 329p.

51 - AUTO DA BARCA DO INFERNO

[107]

Diabo. À barca, à barca, hou-lá!

que temos gentil maré!

— Ora venha a caro29

a ré!

Comp. Feito, feito!

Diabo. Bem está! 5

Vai tu muitieramá30

,

e atesa [estica] aquele palanco [corda]

e despeja aquele banco,

para a gente que virá.

À barca, à barca, uuh!

Asinha [depressa], que se quer ir! 10

Oh, que tempo de partir,

louvores a Berzebu!

— Ora, sus! que fazes tu?

Despeja todo esse leito!

[108]

Comp. Em bonora! Feito, feito! 15

Diabo. Abaixa aramá [em má hora] esse cu!

Faze aquela poja lesta

e alija aquela driça31

.

Comp. Oh caça! Oh! iça! Iça!

Diabo. Oh, que caravela esta! 20

Põe bandeiras, que é festa.

Verga alta! Âncora a pique!

— Ó preciso dom Anrique,

cá vindes vós?... Que cousa é esta?...

Vem o Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz:

Fidal. Esta barca onde vai ora, 25

que assi‟stá apercebida?

Diabo. Vai para a ilha perdida [inferno],

e há-de partir logo ess‟ora.

Fidal. Para lá vai a senhora?

Diabo. Senhor, a vosso serviço. 30

29

a caro: expressão enigmática. Seria o mesmo que a

carom, termo náutico, com o valor de em frente? 30

muitieramá: em hora muito má. 31

poja: corda que serve para virar a vela; driça: corda

para levantar a vela.

Fidal. Parece-me isso cortiço...

Diabo. Porque a vedes lá de fora.

Fidal. Porém, a que terra passais?

Diabo. Para o inferno, senhor.

Fidal. Terra é bem sem-sabor. 35

Diabo. Quê?... E também cá zombais?

Fidal. E passageiros achais

para tal habitação?

Diabo. Vejo-vos eu em feição

para ir ao nosso cais... 40

Fidal. Parece-te a ti assi!...

Diabo Em que esperas ter guarida?

Fidal. Que deixo na outra vida

quem reze sempre por mi.

Diabo. Quem reze sempre por ti?!.. 45

Hi! Hi! Hi! Hi! Hi! Hi! Hi! Hi!...

E tu viveste a teu prazer,

cuidando cá guarecer

por que rezam lá por ti?!...

[109]

Embarca — ou embarcai... 50

que haveis de ir à derradeira [afinal]!

Mandai meter a cadeira,

que assi passou vosso pai.

Fidal. Quê? Quê? Quê? Assi lhe vai?!

Diabo. Vai ou vem! Embarcai prestes! 55

Segundo lá escolhestes,

assi cá vos contentai.

Pois que já a morte passastes,

haveis de passar o rio.

Fidal. Não há aqui outro navio? 60

Diabo. Não, senhor, que este fretastes,

e primeiro que expirastes

me destes logo sinal.

Fidal. Que sinal foi esse tal?

Diabo. Do que vós vos contentastes. 65

Fidal. A estoutra barca me vou.

— Hou da barca! Para onde is?

Ah, barqueiros! Não me ouvis?

Respondei-me! Hou-lá! Hou!...

— Por Deus, aviado estou! 70

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Quanto a isto é já pior.

Que gericocins, salvanor!

Cuidam cá que são eu grou?

Anjo. Que quereis?

Fidal. Que me digais,

pois parti tão sem aviso, 75

se a barca do Paraíso

é esta em que navegais.

Anjo. Esta é; que demandais?

Fidal. Que me deixeis embarcar.

sou fidalgo de solar, 80

é bem que me recolhais.

Anjo. Não se embarca tirania

neste batel divinal.

Fidal. Não sei porque haveis por mal

que entre a minha senhoria... 85

Anjo. Pra vossa fantasia

mui estreita é esta barca.

Fidal. Para senhor de tal marca

não há aqui mais cortesia?

Venha a prancha e atavio! 90

Levai-me desta ribeira!

Anjo. Não vindes vós de maneira

para entrar neste navio.

Essoutro vai mais vazio:

a cadeira entrará 95

e o rabo [cauda] caberá

e todo vosso senhorio.

Ireis lá mais espaçoso,

vós e vossa senhoria,

cuidando na tirania 100

do pobre povo queixoso;

e porque, de generoso,

desprezastes os pequenos,

achar-vos-eis tanto menos

quanto mais fostes fumoso. 105

Diabo. À barca, à barca, senhores!

Oh! que maré tão de prata!

Um ventozinho que mata

e valentes remadores!

(cant.): Vós me veniredes a la mano; 110

a la mano me veniredes,

e vos veredes

peixes nas redes.

Fidal. Ao Inferno, todavia!

Inferno há aí para mi?!

Ó triste! Enquanto vivi 115

não cuidei que o aí havia:

Tive que era fantasia!

Folgava ser adorado,

confiei em meu estado

e não vi que me perdia. 120

Venha essa prancha e veremos

esta barca de tristura.

Diabo. Embarque vossa doçura,

que cá nos entenderemos...

Tomareis um par de remos, 130

veremos como remais;

e, chegando ao nosso cais,

todos bem vos desembarcaremos.

Fidal. Mas esperai-me aqui:

tornarei à outra vida, 135

ver minha dama querida

que se quer matar por mi.

Diabo. Que se quer matar por ti?!...

Fidal. Isto bem certo o sei eu.

Diabo. Ó namorado sandeu, 140

o maior que nunca vi!...

Fidal. Era tanto seu querer [amor]

que me escrevia mil dias?

Diabo. Quantas mentiras que lias,

e tu... morto de prazer!... 145

Fidal. Para que é escarnecer,

que não havia mal nem bem?

Diabo. Assim vivas tu, amém,

como te tinha querer!

Fidal. Isto quanto ao que eu conheço... 150

Diabo. Pois, estando tu expirando,

se estava ela requebrando

com outro de menos preço.

Fidal. Dá-me licença, te peço,

que vá ver minha mulher. 155

Diabo. E ela, por não te ver,

despenhar-se-á dum cabeço [cume]!

Quanto ela hoje rezou,

entre seus gritos e gritas,

foi dar graças infinitas

a quem na desassombrou. 160

[112]

Fidal. Quanto a ela, bem chorou!

Diabo. Não há aí choro de alegria?!

Fidal. E as lástimas que dizia?

Diabo. Sua mãe lhas ensinou... 165

Entrai, meu senhor, entrai!

— Venha a prancha! — Ponde o pé!

Fidal. Entremos, pois que assim é...

Diabo. Ora, senhor, descansai,

passeai e suspirai; 170

Em tanto virá mais gente.

Fidal. Ó barca, como és ardente!

Maldito quem em ti vai!

Diz o Diabo.. ao Moço da cadeira:

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Diabo. Não entras cá! Vai-te daí,

que a cadeira é cá sobeja. 175

Cousa que esteve na igreja

não se há-de embarcar aqui.

Cá lha darão de marfi,

marchetada de dolores,

com tais modos de lavores, 180

que estará fora de si...

— À barca, à barca, boa gente,

que queremos dar à vela!

Chegar a ela! Chegar a ela!

Muitos e de boa mente! 185

Oh! que barca tão valente!

Vem um Onzeneiro, e pergunta ao Arrais do Inferno,

dizendo:

Onzen. Para onde caminhais?

Diabo. Oh! que má-hora venhais,

onzeneiro, meu parente!

Como tardastes vós tanto? 190

Onz. Mais quisera eu lá tardar.

Na safra do apanhar

me deu saturno quebranto.

Diabo. Ora mui muito me espanto

não vos livrar o dinheiro!... 195

[113]

Onz. Nem tão só para o barqueiro

não me deixaram nem tanto.

Diabo. Ora entrai, entrai aqui!

Onz. Não hei eu i de embarcar!

Diabo. Oh! que gentil recear, 200

e que cousas para mi!...

Onz. Inda agora faleci,

deixa-me buscar batel!

Diabo. Pesar de João Pimentel!

Porque não irás aqui? 205

Onz. E para onde é a viagem?

Diabo. Para onde tu hás-de ir;

estamos para partir,

não cures de mais linguagem.

Onz. Mas pra onde é a passagem? 210

Diabo. Pera a infernal comarca.

Onz. Disse, não vou em tal barca.

Estoutra tem avantagem.

Vai-se à barca do Anjo., e diz:

Hou da barca! Hou-lá! Hou!

Haveis logo de partir? 215

Anjo. E onde queres tu ir?

Onz. Eu pra o Paraíso vou.

Anjo. Pois quanto eu bem fora estou

de te levar para lá.

Essoutra te levará. 220

Vai para quem te enganou!

Onz. Por que?

Anjo. Porque esse bolsão

tomará todo o navio.

Onz. Juro a Deus que vai vazio!

Anjo. Não já no teu coração. 225

Onz. Lá me ficam de roldão

vinte e seis milhões nũa arca.

Diabo. Pois que onzena tanto abarca

não lhe deis embarcação.

[114]

Torna o Onzeneiro à barca do Inferno e diz:

Onz. Hou-lá! Hou Demo barqueiro! 230

Sabeis vós no que me fundo?

Quero lá tornar ao mundo

e trazê-lo meu dinheiro;

que aqueloutro marinheiro,

porque me vê vir sem nada, 235

dá-me tanta borregada [pancada]

como arrais lá do Barreiro.

Diabo. Entra, entra e remarás!

Não percamos mais maré!

Onz. Todavia...

Diabo. Per força é! 240

Que te pês [custe], cá entrarás!

Irás servir Satanás,

pois que sempre te ajudou.

Onz. Oh! Triste, quem me cegou?

Diabo. Cal‟te, que cá chorarás. 245

Entrando o Onzeneiro no batel, onde achou o Fidal-

go embarcado, diz tirando o barrete:

Onz. Santa Joana de Valdês!

Cá é vossa senhoria?

Fidal. Dá ao demo a cortesia!

Diabo. Ouvis? Falai vós cortês!

Vós, fidalgo, cuidarês 250

que estais na vossa pousada?

Dar-vos-ei tanta pancada

c‟um um remo que arreneguês!

Vem Joane, o Parvo, e diz ao Arrais do Inferno:

Parvo. Hou daquela!

Diabo. Quem é?

Parvo. Eu sô.

É esta a naviarra nossa? 255

Diabo. De quem?

Parvo. Dos tolos.

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[115]

Diabo. Vossa,

entrai.

Parvo. De pulo ou de vôo?

Oh! Pesar de meu avô!

Soma [em suma]: vim a adoecer

e fui má-hora morrer; 260

e nela, pera mim só.

Diabo. De que morreste?

Parvo. De quê?

Samicas [talvez] de caganeira.

Diabo. De quê?

Parvo. De caga merdeira!

Má rabugem que te dê! 265

Diabo. Entra! Põe aqui o pé!

Parvo. Hou-lá! Não tombe o zambuco [batel]!

Diabo. Entra, tolaço eunuco,

que se nos vai a maré!

Parvo. Aguardai, aguardai, hou-lá! 270

E onde havemos nós de ir ter?

Diabo. Ao porto de Lucifer.

Parvo. Hã?

Diabo. Ao inferno, entra cá.

Parvo. Ao inferno, ieramá?!

Hiu! Hiu! Barca do cornudo, 275

Pêro Vinagre, beiçudo,

rachador de Alverca, huhá!

Sapateiro da Candosa!

Entrecosto de carrapato!

Hiu! Hiu! Caga no sapato, 280

filho da grande aleivosa!

Tua mulher é tinhosa

e há-de parir um sapo

chantado [pregado] no guardanapo!

Neto de cagarrinhosa! 285

Furta cebolas! Hiu! Hiu!

‟xcomungado nas igrejas!

[116]

Burrela, cornudo sejas!

Toma o pão que te caiu!

a mulher que te fugiu 290

para a Ilha da Madeira!

Ratinho da Giesteira,

o demo que te pariu!

Hiu! Hiu! Lanço-te uma pulha!

De pica naquela! 295

Hiu! Hiu! Caga na vela,

ó dom Cabeça-de-grulha!

Perna de cigarra velha,

caganita de coelha,

pelourinho da Pampulha! 300

rabo de forno de telha!

Chega o Parvo ao batel do Anjo. e diz:

Parvo. Hou da barca!

Anjo. Tu que queres?

Parvo. Queres-me passar além?

Anjo. Quem és tu?

Parvo. Não sou ninguém.

Anjo. Tu passarás, se quiseres; 305

porque em todos teus fazeres

por malícia não erraste.

Tua simpleza te baste

para gozar dos prazeres.

Espera entanto por aí: 310

veremos se vem alguém,

merecedor de tal bem,

que deva de entrar aqui.

Vem um Sapateiro com seu avental e carregado de

formas, e chega ao batel infernal e diz:

Sapat. Hou da barca!

Diabo. Quem vem aí?

— Santo sapateiro honrado, 315

como vens tão carregado?

Sapat. Mandaram-me vir assi...

[117]

E para onde é a viagem?

Diabo. Para a terra dos danados.

Sapat. E os que morrem confessados 320

onde têm sua passagem?

Diabo. Não cures de mais linguagem,

que esta é a tua barca, esta!

Sapat. Renegaria eu da festa

e da barca e da barcagem! 325

Como poderá isso ser,

confessado e comungado?!

Diabo. Tu morreste excomungado:

Não no quiseste dizer.

Esperavas de viver, 330

calaste dez mil enganos,

tu roubaste bem trinta anos

o povo com teu mester.

Embarca, eramá para ti,

que há já muito que te espero! 335

Sapat. Digo-te que re-não quero!

Diabo. Digo que si, re-si!

Sapat. Quantas missas eu ouvi,

não me hão elas de prestar? 340

Diabo. Ouvir missa, então roubar —

é caminho para aqui.

Sapat. E as ofertas que darão?

E as horas dos finados?

Diabo. E os dinheiros mal levados — 345

que foi da satisfação?

Sapat. Oh! Não praza ao cordovão [couro],

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nem à puta da badana [couro mole],

se é esta boa traquitana [trapalhada?]

em que se vê João Antão! 350

Ora juro a Deus que é graça!

Vai-se à barca do Anjo e diz:

Hou da santa caravela,

podereis levar-me nela?

Anjo. A cárrega [carga] te embaraça.

Sapat. Não há mercê que me Deus faça? 355

Isto onde quer irá.

Anjo. Essa barca que lá está

Leva quem rouba de praça.

Ó almas embaraçadas!

Sapat. Ora eu me maravilho 360

haverdes por grão peguilho [estorvo]

quatro forminhas cagadas

que podem bem ir chentadas [metidas]

num cantinho desse leito!

Anjo. Se tu viveras direito, 365

elas foram cá escusadas.

Sapat. Assim que determinais

que vá cozer ao inferno?

Anjo. Escrito estás no caderno

das ementas infernais. 370

Torna-se à barca dos danados e diz o Sapateiro:

Sapat. Pois, diabos, que aguardais?

Vamos, venha a prancha logo

e levai-me àquele fogo!

Para que é aguardar mais?

Vem um Frade com ũa Moça pela mão e um broquel

e a espada na outra, e um casco debaixo do cape-

lo; e, ele mesmo fazendo a baixa começou de dan-

çar, dizendo:

Frade. Tai-rai-rai-ra-rã; taririrã; 375

tarai-rai-rai-rã; tairirirã:

tã-tã; ta-ri-rim-rim-rã. Huhã!

Diabo. Que é isso, padre?! Que vai lá?

Frade. Deo gratias! Sou cortesão.

Diabo. Sabeis também o tordião [dança]? 380

Frade. É mal que me esquecerá.

Diabo. Essa dama há-de entrar cá

Frade. Não sei onde embarcarei.

Diabo. Ela é vossa?

Frade. Não sei; 385

por minha a trago eu cá.

[119]

Diabo. E vos punham lá grosa [censura]

nesse convento sagrado?

Frade. Assim fui bem açoitado.

Diabo. Que coisa tão preciosa! 390

Entrai, padre reverendo.

Frade. Para onde levais gente?

Diabo. Para aquele fogo ardente

que não temestes vivendo.

Frade. Juro a Deus que não te entendo! 395

E este hábito no me val‟?

Diabo. Gentil padre mundanal,

a Belzebu vos encomendo!

Frade. Corpo de Deus consagrado!

Pela fé de Jesus Cristo, 400

que eu não posso entender isto!

Eu hei-de ser condenado?!...

Um padre tão namorado

e tanto dado à virtude?

Assim Deus me dê saúde, 405

que estou maravilhado!

Diabo. Não façamos mais detença.

Embarcai e partiremos:

tomareis um par de ramos.

Frade. Não ficou isso na avença. 410

Diabo. Pois dada está já a sentença!

Frade. Por Deus! Essa seria ela?

Não vai em tal caravela

minha senhora Florença.

Como?! Por ser namorado 415

e folgar com uma mulher

se há um frade de perder,

com tanto salmo rezado?!...

Diabo. Ora estás bem aviado!

Frade. Mais estás bem corrigido! 420

Diabo. Devoto padre e marido,

haveis de ser cá pingado...

[120]

Descobriu o Frade a cabeça tirando o capelo e apa-

receu o casco, e diz o Frade:

Frade. Mantenha Deus esta c‟oroa!

Diabo. Ó padre frei-capacete!

Cuidei que tínheis barrete... 425

Frade. Sabei que fui da pessoa [importante]!

Esta espada é roloa

e este broquel rolão32

.

Diabo. Dê Vossa Reverença lição

de esgrima, que é cousa boa! 430

32

Os termos rolão e roloa parecem aludir a Rolando,

personagem da gesta francesa, cuja arma (a Durindana) se

tornou famosa.

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Começou o frade a dar lição de esgrima com a es-

pada e broquel que eram de esgrimir e diz desta

maneira:

Frade. Que me praz! Demos caçada [assalto]!

Então logo um contra, sus!

Um fendente [golpe], ora sus!

Esta é a primeira levada [bote].

Alevantai a espada! — 435

— Metei o diabo na cruz

como o eu agora pus...

— Sai coa espada rasgada

e fique anteparada.

Talho largo, um revés [golpe], 440

e logo colher os pés,

que todo o al no é nada!

Quando o recolher se tarda

o ferir não é prudente.

Eia, sus! Mui largamente, 445

cortai na segunda guarda!

— Guarde-me Deus de espingarda

ou de varão denodado

mais aqui estou guardado

como a palha na albarda. 450

[121]

Saio com meia espada...

Hou-lá! Guardai as queixadas!

Diabo. Oh que valentes levadas!

Frade. Inda isto não é nada...

Demos outra vez caçada: 455

Contra, sus! Ora um fendente!

E, cortando largamente,

eis aqui sexta guarda.

Daqui saio c‟uma guia

e um revés da primeira. 460

Esta é a quinta verdadeira.

— Oh! quantos daqui feria!...

Padre que tal aprendia

no inferno há-de haver pingos?!

Ah! Não praza a São Domingos 465

com tanta descortesia!

Tornou a tomar a Moça pela mão, dizendo:

Frade. Prossigamos nossa história,

não façamos mais detença.

Daí cá a mão, senhora Florença:

vamos à barca da Glória! 470

Começou o Frade a fazer o tordião e foram dançan-

do até o batel do Anjo desta maneira:

Frade. Tarararairão, tariririrão,

tairairão, taririrão, taririrão,

huhá!

Deo gratias! Há lugar cá

para minha reverença?

E a senhora Florença 475

pelo meu entrará lá!

Parvo. Andar, muitieramá!

Furtaste esse trinchão [facão], frade?

[122]

Frade. Senhora, dá-me à vontade

que este feito mal está... 480

Vamos onde havemos de ir,

não praza a Deus coa a ribeira!

Eu não vejo aqui maneira

senão, enfim... concrudir [aceitar].

Diabo. Padre, haveis logo de vir? 485

Frade. Sim, tomai-me lá Florença,

e cumpramos a sentença:

ordenemos de partir.

Tanto que o Frade foi embarcado, veio uma Alcovi-

teira, per nome Brísida Vaz, a qual chegando à bar-

ca infernal diz desta maneira:

Brís. Hou-lá da barca, hou-lá!

Diabo. Quem chama?

Brís. Brísida Vaz. 490

Diabo. Eia! Aguarda-me, rapaz!

Por que não vem ela já?

Comp. Diz que não há de vir cá

sem Joana de Valdeis.

Diabo. Entrai vós, e remareis. 495

Brís. Não quero eu entrar lá.

Diabo. Que saboroso arrecear!...

Brís. Não é essa barca a que eu cato.

Diabo. E trazeis vós muito fato?

Brís. O que me convém levar. 500

Diabo. Que é o que haveis de embarcar?

Brís. Seiscentos virgos [himens] postiços

e três arcas de feitiços

que não podem mais levar.

Três armários de mentir, 505

e cinco cofres de enleios,

e alguns furtos alheios,

assi em jóias de vestir;

guarda-roupa de encobrir,

enfim — casa movediça; 510

um estrado de cortiça

com dez coxins de embair.

[123]

A mor cárrega que é:

essas moças que vendia.

Daquesta mercadoria 515

trago eu muita, à bofé!

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Diabo. Ora ponde aqui o pé.

Brís. Hui! E eu vou para o paraíso!

Diabo. E quem te disse a ti isso?

Brís. Lá hei-de ir desta maré. 520

Eu sou a mártir tal,

açoites tenho eu levados

e tormentos suportados

que ninguém me foi igual.

Se eu fosse ao fogo infernal, 525

lá iria todo o mundo!

A estoutra barca cá em fundo,

me vou eu, que é mais real.

E chegando à barca da glória diz ao Anjo.:

Brís. Barqueiro mano, meus olhos,

prancha a Brísida Vaz. 530

Anjo. Eu não sei quem te cá traz...

Brís. Peço-vo-lo de giolhos!

Cuidais que trago piolhos,

anjo de Deus, minha rosa?

Eu sou Brísida, a preciosa 535

que dava as moças a molhos.

A que criava as meninas

para os cônegos da Sé...

Passai-me, por vossa fé,

meu amor, minhas boninas, 540

olho de perlinhas finas!

E eu sou apostolada,

angelada e martelada [martirizada],

e fiz obras mui divinas.

Santa Úrsula não converteu 545

tantas cachopas como eu:

todas salvas pelo meu

que nenhuma se perdeu.

E prouve àquele do Céu

que todas acharam dono. 550

[123] Cuidais que dormia eu sono?

Nem ponta!... E não se perdeu!

Anjo. Ora vai lá embarcar,

não estês importunando.

Brís. Pois estou-vos alegando 555

o porque me haveis de levar.

Anjo. Não cures de importunar,

que não podes vir aqui.

Brís. E que má-hora eu servi,

pois não me há-de aproveitar! 560

Torna-se Brísida Vaz à barca do inferno dizendo:

Brís. Hou barqueiros da má-hora,

ponde a prancha, que eis me vou,

e tal fada me fadou

e pareço mal cá de fora.

Diabo. Ora entrai, minha senhora, 565

e sereis bem recebida...

Se vivestes santa vida,

vós o sentireis agora...

Tanto que Brísida Vaz se embarcou veio um Judeu

com um bode às costas; e chegando ao batel dos

danados, diz:

Judeu. Que vai lá, hou marinheiro!

Diabo. Oh! que má-hora vieste! 570

Judeu. Cuja [de quem] é esta barca que preste?

Diabo. Esta barca é do barqueiro.

Judeu. Passai-me por meu dinheiro.

Diabo. E esse bode há cá de vir?

Judeu. O bode também há-de ir. 575

Diabo. Oh! Que honrado passageiro!

Judeu. Sem bode, como irei lá?

Diabo. Pois eu não passo cá cabrões.

Judeu. Eis aqui quatro tostões

e mais se vos pagará.

Por vida do semifará 580

que me passeis o cabrão!

Quereis mais outro tostão?

Diabo. Nem tu não hás-de vir cá.

[125]

Judeu. Porque não irá o judeu

onde vai Brísida Vaz? 585

(Fala ao Fidalgo)

Ao senhor meirinho apraz?

Senhor meirinho, irei eu?

Diabo. E ao fidalgo quem lhe deu...

o mando, dizeis, do batel?

Judeu. Corregedor, coronel, 590

castigai este sandeu!

Azará, pedra miúda,

lodo, chanto, fogo, lenha,

caganeira que te venha!

Má corrença que te acuda! 595

Par el deu, que te sacuda

com a barca nos focinhos!

Fazes burla dos meirinhos?

Dize, filho da cornuda!

Parvo. Furtaste a chiba [cabra], cabrão? 600

Pareceis-me vós a mim

carrapato de Alcoutim

enxertado em camarão.

Diabo. Judeu, lá te levarão,

porque hão-de ir descarregados. 605

Parvo. E ele se mijou nos finados

no adro de São Gião!

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E comia a carne da panela

no dia de Nosso Senhor!

E mais ele, salvanor, 610

cada vez mija naquela!

Diabo. Ora, sus! Demos à vela!

Vós, judeu, ireis à toa [sem rumo],

que sois mui ruim pessoa.

Levai o cabrão na trela! 615

Vem um Corregedor carregado de feitos, com sua

vara na mão, e chegando à barca do inferno diz:

[126]

Corr. Hou da barca!

Diabo. Que quereis?

Corr. ‟Stá aqui o senhor juiz?

Diabo. Ó amador de perdiz,

quantos feitos que trazeis!

Corr. No meu ar conhecereis 620

que eles não vêm de meu jeito..

Diabo. Como vai lá o direito?

Corr. Nestes feitos o vereis.

Diabo. Ora, pois, entrai, veremos

que diz i nesse papel. 625

Corr. E onde vai o batel?

Diabo. No inferno vos poremos.

Corr. Como?! À terra dos demos

há-de ir um corregedor?

Diabo. Santo descorregedor, 630

embarcai, e remaremos!

Ora, entrai, pois que viestes!

Corr. Non est de regulae juris, não!

Diabo. Ita, Ita! Dai cá a mão!

Remaremos um remo destes.

Fazei conta que nascestes 635

para nosso companheiro.

— Que fazes tu, barzoneiro [vadio]?

Faze-lhe essa prancha prestes!

Corr. Oh! Renego da viagem

e de quem me há-de levar! 640

Há aqui meirinho do mar?

Diabo. Não há tal costumagem.

Corr. Não entendo esta barcagem,

nem hoc nom potest esse {Isto não pode

ser].

Diabo. Se ora vos parecesse 645

que não sei mais que linguagem [portu-

guês]!...

Entrai, entrai, corregedor!

Corr. Hou! Videtis qui petatis!

[127] Super jure majestatis

tem vosso mando vigor33

? 650

Diabo. Quando éreis ouvidor

non ne accepistis rapina? 34

Pois ireis pela bolina

onde nossa mercê for. 35

Oh! que isca esse papel 655

para um fogo que eu sei!

Correg. Domine, memento mei! 36

Diabo. Non es tempus, bacharel!

Imbarquemini in batel

quia judicastis malitia.37

660

Correg. Sempre ego in justitia

fecit, e bem por nível.38

Diabo. E as peitas dos judeus

que a vossa mulher levava?

Correg. Isso eu não no tomava 665

eram lá percalços seus.

Nom sunt pecatus meus,

peccavit uxore mea.39

Diabo. Et vobis quoque cum ea,

nemo temuistis Deus.40

670

A largo modo adquiristis

sanguinis laboratorum

ignorantis peccatorum.

Ut quid eos non audistis?41

Correg. Vós, arrais, non legistis 675

que o dar quebra os penedos?

[128] Os direitos estão quedos,

sed aliquid tradidistis...

Diabo. Ora entrai, nos negros fados!

Ireis ao lago dos cães 680

e vereis os escrivães

como estão tão prosperados.

Correg. E na terra dos danados

estão os Evangelistas?

Diabo. Os mestres das bulras vistas 685

lá estão bem fragoados.

33

Vede o que reclamais! — Acaso o vosso poder está

acima do direito de majestade? 34

Acaso não recebeste rapina? 35

Para onde nós determinarmos. 36

Senhor: lembra-te de mim! 37

porque sentenciastes com malícia. 38

com justiça e eqüidade 39

Minha mulher é que pecava. 40

Tu pecavas com ela e não temias a Deus. Latim ma-

carrônico. 41

O Diabo diz que o Corregedor enriqueceu a valer, à

custa do sangue dos lavradores, pecadores ignorantes,

sem atendê-los sequer.

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Estando o Corregedor nesta prática com o Arrais

infernal, chegou um Procurador, carregado de li-

vros, e diz o Corregedor ao Procurador:

Correg. Ó senhor Procurador!

Procur. Beijo-vo-las mãos, juiz!

Que diz esse arrais? Que diz?

Diabo. Que sereis bom remador. 690

Entrai, bacharel doutor,

e ireis dando à bomba.

Procur. E este barqueiro zomba...

Jogatais [gracejais] de zombador?

E essa gente que aí está 695

para onde a levais?

Diabo. Para as penas infernais.

Procur. Disse, não vou eu para lá!

Outro navio está cá,

muito milhor assombrado. 700

Diabo. Ora estás bem aviado!

Entra, muitieramá!

Correg. Confessaste-vos, doutor?

Procur. Bacharel sou... — Dou-me ao demo!:

Não cuidei que era extremo, 705

nem de morte minha dor.

E vós, senhor Corregedor?

[129]

Correg. Eu mui bem me confessei,

mas tudo quanto roubei

encobri ao confessor... 710

Porque, se o não tornais,

não vos querem absolver,

e é mui mau de volver

depois que o apanhais.

Diabo. Pois porque não embarcais? 715

Procur. Quia speramus in Deo.42

Diabo. Imbarquemini in barco meo...

para que esperatis mais?

Vão-se ambos ao batel da glória, e chegando diz o

Corregedor ao Anjo:

Correg. Hou arrais dos gloriosos,

passai-nos nesse batel! 720

Anjo. Oh pragas para papel,

para as almas odiosos!

Como vindes preciosos,

sendo filhos da ciência!

Correg. Oh! Habeatis clemência 725

e passai-nos como vossos!

Parvo. Hou, homens dos breviários,

rapinastis coelhorum

et pernis perdigotorum43

42

Porque esperamos em Deus.

e mijais nos campanários! 730

Correg. Anjos, não nos sejais contrários,

pois não temos outra ponte!

Parvo. Belequinis ubi sunt?

Ego latinus macarios.44

Anjo. A justiça divinal 740

vos manda vir carregados

porque vades embarcados

nesse batel infernal.

[129]

Correg. Oh! não praza a São Marçal!

coa ribeira, nem co rio! 745

Cuidam lá [na terra] que é desvario

haver cá tamanho mal!

Procur. Que ribeira é esta tal!

Parvo. Pareceis-me vós a mi

como cagado nebri [falcão], 750

mandado no Sardoal.

Embarquetis in zambuquis!

Correg. Venha a negra prancha cá!

Vamos ver este segredo.

Procur. Diz um texto do degredo... 755

Diabo. Entrai, que cá se dirá!...

E tanto que foram dentro no batel dos condenados,

disse o Corregedor a Brísida Vaz, porque a conhe-

cia:

Correg. Esteis muito aramá,

senhora Brísida Vaz!

Brís. Já sequer estou em paz,

que não me deixáveis lá. 760

Cada hora encoroçada45

:

“Justiça que manda fazer...”

Correg. E vós... tornar a tecer

e urdir outra meada...

Brís. Dizede, juiz de alçada: 765

vem lá Pero de Lisboa?

Levá-lo-emos à toa

e irá nesta barcada.

Vem um homem que morreu enforcado e chegando

ao batel dos mal-aventurados disse o Arrais tanto

que chegou:

Diabo. Venhais embora, enforcado!

Que diz lá Garcia Moniz?46

770

43

Recebestes como propinas coelhos e pernas de perdi-

zes. 44

Onde estão os beleguins? 45

Com a carocha à cabeça, um barrete de papelão que a

justiça impunha como castigo às alcoviteiras.

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[131]

Enforc. Eu vos direi que ele diz:

— que fui bem-aventurado

que, pelos furtos que eu fiz,

sou santo canonizado,

pois morri dependurado 775

como o tordo na boiz.

Diabo. Entra cá, governarás

até às portas do Inferno.

Enforc. Não é essa a nau que eu governo.

Diabo. Entra, que inda caberás. 780

Enforc. Pesar de São Barrabás!

Se Garcia Moniz diz

que os que morrem como eu fiz

são livres de Satanás...

E disse que a Deus prouvera 785

que fora ele o enforcado;

e que fosse Deus louvado

que em boa-hora eu cá nascera;

e que o Senhor me escolhera;

e por bem vi beleguins; 790

e com isto mil latins,

como se eu latim soubera...

E no passo derradeiro

me disse nos meus ouvidos

que o lugar dos escolhidos 795

era a forca e o Limoeiro;

nem guardião do mosteiro

não tinha tão santa gente

como Afonso Valente

o que é agora carcereiro. 800

Diabo. Dava-te consolação

isso, ou algum esforço?

Enforc. Co o baraço [corda] no pescoço,

mui mal presta a pregação...

E ele leva a devoção 805

que há-de tornar a jantar...

Mas quem há-de estar no ar

aborrece-lhe o sermão.

[132]

Diabo. Entra, entra no batel,

que ao inferno hás-de ir! 810

Enforc. O Moniz há-de mentir?

Disse-me: — “Com São Miguel

jantaria pão e mel

como fores enforcado”.

Ora, já passei meu fado, 815

e já feito é o burel.

Agora não sei que é isso.

46

Funcionário da casa da moeda ao tempo de Gil Vicen-

te.

não me falou em ribeira,

nem barqueiro, nem barqueira,

senão — logo ao paraíso. 820

E isto muito em seu siso,

e que era santo o meu baraço.

Porém não sei que aqui faço,

ou se era mentira isso.

Diabo. Falou-te no Purgatório? 825

Enforc. Diz que foi o Limoeiro,

e ora por ele o salteiro

e o pregão vitatório [pena final];

e que era mui notório

que aqueles disciplinados 830

eram horas dos finados

e missas de São Gregório [Purgatório].

Diabo. Ora entra, pois hás-de entrar,

não esperes por teu pai...

Enforc. Entremos, pois que assim vai... 835

Diabo. Este foi bom embarcar!

— Eia! Todos apear,

que está em seco o batel!

Vós, doutor, bota batel!

Fidalgo, saltai ao mar! 840

Vêm Quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem

cada um a cruz de Cristo, pelo qual Senhor e acres-

centamento de [133] sua santa fé católica morreram

em poder dos mouros. Absoltos a culpa e pena per

privilégio que os que assim morrem têm dos misté-

rios da paixão daquele por quem padecem, outorga-

dos por todos os Presidentes Sumos Pontífices da

Madre Santa Igreja; e a cantiga que assim canta-

vam, quanto a palavra dela, é a seguinte:

À barca, à barca segura!

Guardar da barca perdida,

à barca, à barca da vida!

Senhores que trabalhais

pela vida transitória, 845

memória, por Deus, memória

deste temeroso cais!

À barca, à barca, mortais,

Barca bem guarnecida,

à barca, à barca da vida! 850

Vigiai-vos, pecadores,

que, depois da sepultura,

neste rio está a ventura

de prazeres ou dolores!

À barca, à barca, senhores, 855

barca mui nobrecida,

à barca, à barca da vida!

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E passando per diante da proa do batel dos danados

assim cantando, com suas espadas e escudos, disse

o Arrais da perdição desta maneira:

Diabo. Cavaleiros, vós passais

e não me dizeis para onde is?

Caval. Vós, Satanás, presumis? 860

Atentai com quem falais!

Outro Cav. Vós que nos demandais?

Sequer conheceis-nos bem:

morremos nas partes de Além,

e não queirais saber mais. 865

Diabo. Entrai cá! Que cousa é essa?

Eu não posso entender isto!

Caval. Quem morre por Jesus Cristo

não vai em tal barca como essa!

Tornaram a prosseguir, cantando, seu caminho

direito à barca da glória, e tanto que chegam diz o

Anjo.:

[134]

Anjo. Ó cavaleiros de Deus, 870

a vós estou esperando,

que morrestes pelejando

por Cristo, Senhor dos Céus!

Sois livres de todo mal,

santos por certo sem falha, 875

que quem morre em tal peleja

merece paz eternal.

E assim embarcam.

TEATRO DE GIL VICENTE

VICENTE, Gil. Auto de Inês Pereira. In: BERARDINELLI, Cleonice. Gil Vicente: autos. 4. ed. Rio de Janeiro:

Agir, 1974. p. 19-66.

52 - FARSA DE INES PEREIRA

Feita por Gil Vicente, representado ao muito

alto e mui poderoso Rei D. João, o terceiro, no seu

Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII.

O seu argumento é um exemplo comum que

dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que

me derrube.

As figuras são as seguintes: Inês Pereira, sua

Mãe; Lianor Vaz; Pero Marques; dous Judeus (um

chamado Latão, outro Vidal); um Escudeiro com um

seu Moço; um Ermitão; [Luzia e Fernando].

Entra logo Inês Pereira, e finge que está lavrando

só, em casa, e canta esta cantiga:

Inês (canta). Quien con veros pena y muere

que hará cuando no os viere?47

(fala). Renego deste lavrar

e do primeiro que o usou!

Ao diabo que o eu dou, 5

que tão mau é d‟aturar!

Ó Jesu! Que enfadamento,

e que raiva, e que tormento,

que cegueira, e que canseira!

Eu hei de buscar maneira 10

d‟algum outro aviamento.

Coitada, assi hei d‟estar

47

Quem, vendo-vos, sofre e morre, que fará quando não

vos vir?

encerrada nesta casa

como panela sem asa

que sempre está num lugar? 15

E assi hão de ser logrados

dous dias amargurados,

que eu posso durar viva?

E assi hei d‟estar cativa

em poder de desfiados? 20

Antes o darei ao diabo

que lavrar mais nem pontada.

Já tenho a vida cansada

de jazer sempre dum cabo.

Todas folgam, e eu não; 25

todas vêm e todas vão

onde querem, senão eu.

Hui! que pecado é o meu,

ou que dor de coração?

Esta vida é mais que morta. 30

São eu coruja ou corujo,

ou são algum caramujo

que não sai senão à porta?

E quando me dão algum dia

licença, como a bugia, 35

que possa estar à janela,

é já mais que a Madanela

quando achou a alelúia.

Vem a Mãe, da Igreja, e, não na achando lavrando,

diz:

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Mãe. Logo eu adivinhei,

lá na missa onde eu estava, 40

como a minha Inês lavrava

a tarefa que lhe eu dei...

Acaba esse travesseiro!

Hui! naceu-te algum unheiro?

ou cuidas que é dia santo? 45

Inês Praza à Deus que algum quebranto

me tire do cativeiro!

Mãe. Toda tu estás aquela...

Choram-te os filhos por pão?

Inês. Prouvesse a Deus! Que já é razão 50

de não estar tão singela.

Mãe. Olhade lá o mau pesar!

Como queres tu casar

com fama de preguiçosa?

Inês. Mas eu, mãe, sou aguçosa, 55

e vós dai-vos devagar.

Mãe. Ora espera, assim vejamos!

Inês. Quem já visse esse prazer!

Mãe. Cal‟-te, que poderá ser,

que “ante Páscoa vêm os Ramos.” 60

Não te apresses tu, Inês:

“maior é o ano que o mês.”

Quando te não precatares,

virão maridos a pares

e filhos de três em três. 65

Inês. Quero-m‟ ora alevantar.

Folgo mais de falar nisso,

— assi Deus me dê o Paraíso! —

Mil vezes que não lavrar.

Isto não sei que me faz... 70

Mãe. Aqui vem Lianor Vaz.

Inês. E ela vem-se benzendo.

Lianor. Jesus, que me eu encomendo!

Quanta cousa que se faz!

Mãe. Lianor Vaz, que é isso? 75

Lianor. Venho eu, mana, amarela?

Mãe. Mais ruiva que uma panela!

Não sei como tenho siso!

Lianor. Jesu! Jesu! Que farei?

Não sei se me vá a el-Rei, 80

se me vá ao Cardeal.

Mãe. E como? Tamanho é o mal?

Lianor. Tamanho? Eu to direi:

vinha agora por ali,

ò redor da minha vinha, 85

e um clérigo, mana minha,

pardeus!, lançou mão de mi.

Não me podia valer:

Diz que havia de saber

se era eu fêmea, se macho. 90

Mãe. Hui! Seria algum muchacho

que brincava por prazer?

Lianor. Si, muchacho sobejava...

Era um zote tamanhouço!...

E eu andava no retouço, 95

tão rouca que não falava.

Quando o vi pegar comigo,

que me achei naquele perigo:

— Assolverei! — Não assolverás

— Tomarei! — Não tomarás! 100

— Jesu! Homem! que hás contigo?

— Irmã, eu t‟assolverei

c‟o breviairo de Braga.

— Que breviairo, ou que praga!

Que não quero! Aque-d‟el-Rei! 105

Quando viu revolta a voda,

foi e esfarrapou-me toda

o cabeção da camisa.

Mãe. Assi me fez dessa guisa

outro, no tempo da poda. 110

Eu cuidei que era jogo

e ele... dai-o vós ò fogo!

Tomou-me tamanho riso,

riso em todo meu siso,

e ele leixou-me logo. 115

Lianor. Si, agora, ieramá!

Também eu me ria cá

das cousas que me dizia:

chamava-me “luz do dia”.

— “Nunca teu olho verá!” 120

Se estivera de maneira

sem ser rouca, bradara eu!

Mas logo o demo me deu

cadarrão e peitogueira,

cócegas e cor de rir, 125

e coxa pera fugir,

e fraca pera vencer.

Porém pude-me valer

sem me ninguém acudir...

O demo, e não pode al ser, 130

se chantou no corpo dele.

Mãe. Mana, conhecia-t‟ele?

Lianor. Mas queria-me conhecer!

Vistes vós tamanho mal?

Lianor. Eu me irei ao Cardeal, 135

e far-lhe-ei assi mesura

e contar-lhe-ei a aventura

que achei no meu olival.

Mãe. Não estás tu arranhada

de te carpir nas queixadas. 140

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Lianor. Eu tenho as unhas cortadas

e mais estou trosquiada.

E mais pera que era isso?

E mais pera que é o siso?

E mais, no meo da requesta, 145

veo um homem de a besta,

que em vê-lo vi o Paraíso.

E soltou-me, porque vinha,

bem contra sua vontade.

Porém, a falar verdade, 150

já eu andava cansadinha.

Não me valia rogar,

nem me valia chamar:

— “Aque de Vasco de Fóis!

Acudi-me, como sóis!” 155

E ele... senão pegar!

— Mais mansa, Lianor Vaz,

assi Deus te faça santa.

— Trama te dê na garganta!

Como! Isto assi se faz? 160

— Isto não releva nada...

— Tu não vês que são casada?

Mãe. Deras-lhe, maora, boa

e mordera-lo na coroa.

Lianor. Assi? Fora excomungada! 165

Não lhe dera um empuxão,

porque sou tão maviosa

que é cousa maravilhosa:

e esta é a concrusão.

Leixemos isto! Eu venho 170

com grande amor que vos tenho,

porque diz o exempro antigo

que “amiga e bô amigo

mais aquenta que o bom lenho”:

Inês está concertada 175

pera casar com alguém?

Mãe. Até‟gora com ninguém

não é ela embaraçada.

Lianor. Em nome do anjo bento,

eu vos trago um casamento. 180

Filha, não sei se vos praz.

Inês. E quando, Lianor Vaz?

Lianor. Já vos trago aviamento.

Inês. Porém, não hei de casar

senão com homem avisado; 185

ainda que pobre e pelado

seja discreto em falar,

que assi o tenho assentado.

Lianor. Eu vos trago um bom marido,

rico, honrado, conhecido; 190

diz que em camisa vos quer.

Inês. Primeiro eu hei de saber

se é parvo, se sabido.

Lianor. Nesta carta, que aqui vem

pera vós, filha, d‟amores, 195

veredes vós, minhas flores,

a descrição que ele tem.

Inês. Mostrai-ma cá, quero ver,

Lianor. Tomai. E sabedes vós ler?

Mãe. Hui! ela sabe latim, 200

e gramáteca, e alfaqui

e sabe quanto ela quer!

Lê Inês Pereira a carta, a qual diz assi:

Inês. “Senhora amiga Inês Pereira,

Pero Marques, vosso amigo,

que ora estou na nossa aldea, 205

mesmo na vossa mercea

me encomendo. E mais digo,

digo que benza-vos Deus,

que vos fez de tão bom jeito:

bom prazer e bom proveito 210

veja vossa mãe de vós

e de mi também assi,

ainda que eu vos vi,

estoutro dia de folgar,

e não quisestes bailar 215

nem cantar presente mi...”

Na voda de seu avô

ou onde me viu ora ele?

Lianor Vaz, este é ele?

Lionor. Lede a carta sem dó, 220

que ainda eu são contente dele.

Inês Pereira a prosseguir com a carta:

Inês. “... Nem cantar presente mi.

Pois Deus sabe a rebentinha

que me fizestes então.

Ora, Inês, que hajais benção 225

de vosso pai e a minha,

que venha isto a concrusão.

E rogo-vos como amiga,

que samicas vós sereis,

que de parte me faleis, 230

antes que outrem vo-lo diga.

E, se não fiais de mi,

esteja vossa mãe aí,

a Lianor Vaz de presente:

veremos se sois contente 235

que casemos na boa hora.”

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Inês Des que naci até agora

não vi tal vilão com‟este,

Nem tanto fora de mão!

Lianor. Não queiras ser tão senhora. 240

Casa, filha, que te preste,

não percas a ocasião.

Queres casar a prazer

no tempo d‟agora, Inês?

Antes casa em que te pês, 245

que não é tempo d‟escolher.

Sempre eu ouvi dizer:

“ou seja sapo ou sapinho,

ou marido ou maridinho,

tenha o que houver mister”. 250

Este é o certo caminho.

Mãe. Pardeus, amiga, essa é ela!

“Mata o cavalo de sela

e bô é o asno que me leva.”

Lianor. Filha, “no Chão do Couce 255

quem não poder andar, choute”.

E “mais quero eu quem me adore

que quem faça com que chore”.

Chamá-lo-ei, Inês?

Inês. Si.

Venha e veja-me a mi. 260

Quero ver, quando me vir,

se perderá o presumir

logo em chegando aqui,

pera me fartar de rir.

Mãe. Touca-te bem, se vier, 265

pois que pera casar anda.

Inês. Essa é boa demanda [= recomendação]!

Cerimônias há mister

homem que tal carta manda?

Eu o estou cá pintando... 270

sabeis, mãe, que eu adevinho?

Deve ser um vilãozinho...

Ei-lo se vem penteando:

será com algum ancinho?

Aqui vem Pero Marques, vestido como filho de

lavrador rico, com um gabão azul deitado ao ombro,

com o capelo por diante, e vem dizendo:

Pero. Homem que vai aonde eu vou 275

não se deve de correr [= envergonhar].

Ria embora quem quiser,

que eu em meu siso estou.

Não sei onde mora aqui...

olhai que me esquece a mi!... 280

eu creo qu‟é nesta rua...

Esta parreira é sua.

Já conheço que é aqui.

Chega Pero Marques aonde elas estão, e diz:

[Pero.] Digo que esteis muito embora.

Folguei ora de vir cá... 285

Eu vos escrevi de lá

Assi que... e de maneira...

Mãe. Tomai aquela cadeira.

Pero. E que val aqui a destas? 290

Inês [à parte]Ó Jesu! que Jão das Bestas [=

bobalhão]!

Olhai aquela canseira!

Assentou-se com as costas pera elas, e diz:

Pero. Eu cuido que não estou bem...

Mãe. Como vos chamam, amigo?

Pero. Eu Pero Marques me digo, 295

como meu pai, que Deus tem.

Faleceu, perdoe-lhe Deus!,

que fora bem escusado,

e ficamos dous heréus.

Perém meu é o mor gado. 300

Mãe. De morgado é vosso estado?

Isso veria dos céus.

Pero. Mais gado tenho eu já quanto,

e o mor de todo o gado,

digo maior algum tanto. 305

E desejo ser casado,

prouguesse ao Espírito Santo,

com Inês, que eu me espanto

quem me fez seu namorado.

Parece moça de bem, 310

e eu de bem, er também

Ora vós ide lá vendo

se lhe vem milhor ninguém,

e segundo o que eu entendo.

Cuido que lhe trago aqui 315

peras da minha pereira...

Hão d‟estar na derradeira.

Tende ora, Inês, per i.

Inês. E isso hei de ter na mão?

Pero. Deitai as peas no chão. 320

Inês. As perlas pera enfiar

Três chocalhos e um novelo,

e as peas no capelo...

E as peras? Onde estão?

Pero. Nunca tal me aconteceu! 325

Algum rapaz mas comeu...

que as meti no capelo,

e ficou aqui o novelo,

e o pentem não se perdeu.

Pois trazi‟-as de boa mente... 330

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Inês. Fresco vinha o presente,

com folhinhas borrifadas!

Pero. Não, que elas vinham chentadas

cá no fundo, no mais quente.

Vossa mãe foi-se? Ora bem... 335

Sós nos leixou ela assi?...

Cant‟eu quero-me ir daqui,

não diga algum demo alguém...

Inês. E vós que havies de fazer,

nem ninguém que há de dizer 340

[à parte]. O galante despejado!

Pero. Se eu fora já casado,

doutra arte havia de ser,

como homem de bom recado.

Inês. Quão desviado este está! 345

[à parte]. Todos andam por caçar

suas damas sem casar,

e este... tomade-o lá!

Pero. Vossa mãe é lá no muro?

Inês. Minha mãe eu vos seguro 350

que ela venha cá dormir.

Pero. Pois, senhora, quero-m’ir

antes que venha o escuro

Virá cá Lianor Vaz,

veremos que lhe dizeis...

Inês. Homem, não aporfieis, 355

que não quero, nem me praz.

Ide casar a Cascais!

Pero. Não vos anojarei mais,

ainda que saiba estalar;

e prometo não casar 360

até que vós não queirais.

[Pero vai-se, dizendo:]

[à parte] Estas vos são elas a vós!

Anda homem a gastar calçado,

e, quando cuida que é aviado, 365

escarnefucham de vós!

[a Inês] Não sei se fica lá a pea...

Pardeus! Bô ia eu à aldea!

Voltando atrás:

Senhora, cá fica o fato [= objetos pessoais]?

Inês. Olhai se o levou o gato... 370

Pero Inda não tendes candea?

Ponho per cajo [= suponhamos] que alguém

vem como eu vim agora,

e vos acha só a tal hora;

parece-vos que será bem? 375

Ficai-vos ora com Deus:

çarrai a porta sobre vós

com vossa candeazinha.

E siquais sereis vós minha:

entonces veremos nós... 380

[Vai-se Pero Marques e diz] Inês Pereira:

Inês. Pessoa conheço eu

que levara outro caminho...

Casai lá com um vilãozinho,

mais covarde que um judeu!

Se fora outro homem agora, 385

e me topara a tal hora,

estando assi às escuras,

falara-me mil doçuras,

ainda que mais não fora...

Vem a mãe e diz:

Mãe. Pero Marques foi-se já? 390

Inês. Pera que era ele aqui?

Mãe. Não te agrada ele a ti?

Inês. Vá-se muitieramá,

que sempre disse e direi

mãe, eu não me casarei 395

senão com homem discreto,

e assi vo-lo prometo;

ou antes o leixarei.

Que seja homem mal feito,

feo, pobre, sem feição, 400

como tiver descrição,

não lhe quero mais proveito.

E saiba tanger viola,

e coma eu pão e cebola.

Siquer a canteguinha! 405

Discreto, feito em farinha,

porque isto me degola.

Mãe. Sempre tu hás de bailar,

e sempre ele há de tanger?

Se não tiveres que comer, 410

o tanger te há de fartar?

Inês. “Cada louco com sua teima.”

Com «a borda de boleima

e a vez d‟água fria,

não quero mais cada dia. 415

Mãe. Como às vezes isso queima!

E que é desses escudeiros?

Inês. Eu falei ontem ali

que passarão por aqui

os Judeus casamenteiros 420

e hão de vir logo aqui.

Aqui entram os Judeus casamenteiros,

chamados, um, Latão, e, o outro, Vidal, e diz Latão:

Latão. Hou de cá!

Inês. Quem está lá?

Vidal. Nome dei Deu, aqui somos!

Latão. Não sabeis quão longe fomos.

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Vidal. Corremos a irama. 425

Este e eu.

Latão. Eu, e este...

[Vidal]. Pola lama e polo pó,

que era pera haver dó,

com chuiva, sol e nordeste.

Foi a coisa de maneira, 430

tal friura é tal canseira,

que trago as tripas macadas.

Assi me fadem boas fadas

que me saltou caganeira!

Pera vossa mercê ver 435

o que nos encomendou

Latão. O que nos encomendou

será se hoiver de ser.

Todo este mundo é fadiga....

Vós dissestes, filha amiga, 440

que vos buscássemos logo

Vidal. E logo pujemos fogo...

Latão Cal-te!

Vidal. Não queres que diga?

Não sou eu também do jogo?

Latão. Não fui eu também contigo? 445

Tu e eu não somos eu?

Tu judeu e eu judeu,

não somos massa dum trigo?

Vidal. Si, somos. Juro al Deu!

Latão. Leixa-me falar.

Vidal. Já calo. 450

Senhora, há já três dias...

Latão. Falas-lhe tu ou eu falo?

Ora dize o que dizias:

que forte, que fomos, que ias

buscá-lo, esgaravatá-lo... 455

Vidal. Vós, amor, quereis marido

discreto, e de viola?

Latão. Esta moça não é tola,

que quer casar per sentido...

Vidal. Judeu, queres-me leixar? 460

Latão. Leixo, não quero falar

Vidal. Buscamo-lo...

Latão. Demo foi logo!

Credo que vosso fogo

vencerá o Tejo e o mar.

Eu cuido que falo... e calo. 465

Calo eu agora ou não?

Ou falo, se vem à mão?

Não digas que não te falo...

Inês. Jesu! Guarde-me ora Deus!

Não falará um de vós? 470

Já queria saber isso.

Mãe. Que siso, Inês, que siso

tens debaixo desses véus...

Inês. Diz o exemplo da velha:

“o que não haveis de comer

leixai-o a outrem mexer”.

Mãe. Eu não sei quem t‟aconselha...

Inês. Enfim, que novas trazeis?

Vidal. O marido que quereis,

de viola e dessa sorte, 480

não no há senão na corte

que cá não no achareis.

Falamos a Badajoz,

músico, discreto, solteiro;

este fora o verdadeiro, 485

mas soltou-se-nos da noz.

Fomos a Vilhacastim

e... falou-nos em latim:

— Vinde cá daqui a a hora,

e trazei-me essa senhora.” 490

Inês. Tudo é nada, enfim?

Vidal. Esperai, aguardai ora!

Soubemos dum escudeiro,

de feição de atafoneiro

que virá logo essora,

que fala... e com‟ora fala! 495

estrugirá esta sala.

E tange... e com‟ora tange!

Alcança quanto abrange,

e se preza bem de gala. 500

Vem o Escudeiro com seu Moço, que lhe traz

a viola, e diz, falando só:

Escudeiro. Se esta senhora é tal

como os judeus ma gabaram,

certo os anjos a pintaram,

e não pode ser i al.

Diz que os olhos com que via 505

eram de Santa Luzia,

cabelos, da Madanela...

Se ela fosse donzela

tudo essoutro passaria...

Moça de vila será ela,

com sinalzinho postiço,

e sarnosa no toutiço

como burra de Castela.

eu, assi como chegar,

compre-se bem atentar 515

se é garrida, se honesta,

por que o melhor da festa

é achar siso e calar.

Mãe [falando para Inês]:

Mãe. Se este escudeiro há de vir

e é homem de discrição 520

hás-te de por em feição.

e falar pouco, e não rir.

E mais, Inês, não muito olhar,

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e muito chão o menear.

porque te julguem por muda, 525

porque a moça sesuda

é a pena pera amar.

Escudeiro [falando para o Criado]:

Escudeiro. Olha cá, Fernando, eu vou

ver a com que hei de casar.

Avisa-te que hás de estar 530

sem barrete onde eu estou.

Moço. Como a Rei! Corpo de mi!

[à parte] Mui bem vai isso assi...

Escudeiro. E se cuspir, pola ventura,

põe-lhe o pé e faze mesura. 535

Moço [à parte]. Ainda eu isso não vi!

Escudeiro. E se me vires mentir,

gabando-me de privado,

está tu dissimulado,

ou sai-te lá fora a rir; 540

isto te aviso daqui,

faze-o por amor de mi.

Moço. Porém, senhor, digo eu

que mau calçado é o meu

pera estas vistas assi.

Escudeiro. Que farei, que o sapateiro

não tem solas, nem tem pele?

Moço. Sapatos me daria ele,

se me vós désseis dinheiro...

Escudeiro. Eu o haverei agora. 550

E mais, calças te prometo.

Moço[à parte]Homem que não tem nem preto

[moeda de cobre]

casa muito na maora.

Chega o Escudeiro onde está Inês Pereira, e

alevantam-se todos, e fazem suas mesuras, e diz o

Escudeiro:

Escudeiro. Antes que mais diga agora,

Deus vos salve, fresca rosa, 555

e vos dê por minha esposa,

por mulher e por senhora.

Que bem vejo

nesse ar, nesse despejo,

mui graciosa donzela, 560

que vós sois, minha alma, aquela

que eu busco e que desejo.

Obrou bem a Natureza

em vos dar tal condição

que amais a discrição 565

muito mais que a riqueza.

Bem parece

que só discrição merece

gozar vossa fermosura,

que é tal que, de ventura, 570

outra tal não se acontece.

Senhora, eu me contento

receber-vos como estais:

se vós vos não contentais,

o vosso contentamento 575

pode falecer, nô mais.

Latão. Como fala!

Vidal. Mas ela como se cala!

Tem atento o ouvido...

Este há de ser seu marido, 580

segundo a coisa s‟abala.

Escudeiro. Eu não tenho mais de meu,

somente ser comprador

do Marichal meu senhor

e são escudeiro seu. 585

Sei bem ler

e muito bem escrever,

e bom jugador de bola,

e quanto a tanger viola,

logo me ouvireis tanger. 590

Moço, que estás lá olhando?

Moço. Que manda Vossa Mercê?

Escudeiro. Que venhas cá!

Moço. Pera quê?

Escudeiro. Pera fazeres o que mando!

Logo vou. 595

Moço. O diabo me tomou:

[à parte]. O diabo me tomou:

tirar-me de João Montês,

por servir um tavanês,

mor doudo que Deus criou!

Escudeiro. Fui despedir um rapaz, 600

que valia Perpinhão!,

por tomar este ladrão...

Moço! [Moço!]

Moço. Que vos praz?

Escudeiro. A viola!

Moço. Oh como ficará tola, 605

[à parte] se não fosse casar ante

c‟o mais sáfeo bargante

que cebola pão e cebola!

[ao escudeiro] Ei-la aqui bem temperada:

não tendes que temperar. 610

Escudeiro. Faria bem de ta quebrar

na cabeça, bem migada.

Moço [à parte].E se ela é emprestada,

quem na havia de pagar?

[ao escudeiro] Meu amo, eu quero-m‟ir. 615

E quando queres partir?

Moço. Ante que venha o inverno,

porque vós não dais governo

pera vos ninguém servir.

Escudeiro. Não dormes tu que te farte? 620

Moço. No chão... e o telhado por manta,

e çarra-se-m‟a garganta

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com fome...

Escudeiro. Isso tem arte...

Moço. Vós sempre zombais assi.

Escudeiro. Oh que boas vozes tem 625

esta viola aqui!

Leixa-me casar a mi,

depois eu te farei bem.

Mãe. Agora vos digo eu

que Inês está no paraíso. 630

Inês. Que tendes de ver com isso?

Todo o mal há de ser meu.

Mãe. Quanta doudice!

Inês. Como é seca a velhice!

Leixai-me ouvir e folgar, 635

que não me hei de contentar

e casar com parvoíce.

Pode ser maior riqueza

que um homem avisado?

Mãe. Muitas vezes, mal pecado!, 640

é melhor boa simpreza.

Latão. Ora oivi, e oivireis;

escudeiro, cantareis

alg a boa cantadela.

Namorai esta donzela, 645

Esta cantiga direis.

Canta o Judeu:

Canas do anuir, canas,

canas do amor.

Polo longo de um rio,

canaval vi florido, 650

canas do amor.

Canta o Escudeiro o romance de “Mal me

quieren en Castilla”, e diz Vidal:

Vidal. Latão, já o sono é comigo

como oivo cantar guaiado

que não vai esfandegado.

Latão. Esse é o demo q‟eu digo! 655

Viste cantar Dona Sol:

Pelo mar vai a vela,

vela vai pelo mar?

Vidal. Filha Inês, assi vivais,

que tomeis esse senhor, 660

escudeiro, cantador,

e caçador de pardais,

sabedor, rebolvedor,

falador, gracejador,

afoitado pela mão, 665

e sabe de gavião.

Tomai-o, por eu amor!

Podeis topar um rabugento,

desmazelado, baboso,

descancarrado [boçal], brigoso, 670

medroso, carrapatento.

Este escudeiro, a osadas!,

onde se derem pancadas,

ele as há de levar

boas: senão apanhar... 675

Nele tendes boas fadas.

Mãe. Quero rir, com toda a mágoa,

destes teus casamenteiros:

nunca vi judeus ferreiros

aturar tão bem a frágua. 680

Não te é melhor, mal por mal,

Inês, um bom oficial

que te ganhe nessa praça,

que é um escravo de graça?

E casarás com teu igual. 685

Latão. Senhora, perdei cuidado:

o que há de ser, há de ser,

e ninguém pode tolher

o que está determinado.

Vidal. Assi diz Rabi Zarão. 690

Inês, guar-te de rascão!

Escudeiro queres tu?

Inês. Jesu, nome de Jesu,

quão fora sois de feição!

Já, minha mãe adevinha, 695

houvestes por vaidade

casar à vossa vontade;

eu quero casar à minha.

Mãe. Casa, filha, muito embora!

Escudeiro. Dai-me essa mão, senhora. 700

Inês. Senhor, de mui boa mente.

Escudeiro. Per palavras de presente

vos recebo desd‟agora.

Nome de Deus, assi seja!

Eu, Brás da Mata, escudeiro, 705

recebo a vós, Inês Pereira,

por mulher e por parceira,

como manda a Santa Igreja.

Inês. Eu aqui, diante Deus,

Inês Pereira, recebo a vós, 710

Brás da Mata, sem demanda,

como a Santa Igreja manda.

Juro al Deu! Aí somos nós!

Os Judeus ambos:

Judeus. Alça manim, dona ò dono, ha!

Arrea espeçulá! 715

Bento o Deu de Jacob,

bento o Deu que a Faraó

espantou e espantará!

Bento o Deu de Abraão!

Benta a terra de Canão! 720

Pera bem sejais casados!

Vidal. Dai-nos cá senhos ducados!

Mãe. Amenhã vo-los darão.

Pois assi é, bem será

que não passe isto assi; 725

eu quero chegar ali,

chamar meus amigos cá,

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e cantarão de terreiro.

Escudeiro. Oh! quem me fora solteiro!

Inês. Já vós vos arrependeis! 730

Escudeiro. Oh, esposa, não faleis,

que casar é cativeiro.

Aqui vem a Mãe com certas Moças e Man-

cebos, pera fazerem a festa, e diz a delas, per

nome Luzia:

Luzia. Inês, por teu bem te seja!

Oh, que esposo e que alegria!

Inês. Venhas embora, Luzia, 735

e cedo te eu assi veja.

Mãe. Ora vai tu ali, Inês,

e bailareis três por três.

Fernando. Tu conosco, Luzia, aqui,

e a desposada ali: 740

ora vede qual dirês.

Cantam todos a cantiga que se segue:

Mal ferida va la garça

enamorada;

sola vá, y gritos dava.

A las orillas de um río 745

la garça tenía el nido;

ballestero la há herido

en el alma;

sola va, y gritos dava.

Fernando. Ora, senhores honrados, 750

ficai com vossa mercê,

E Nosso Senhor vos dê

com que vivais descansados.

Isto foi assi agora,

mas melhor será outrora; 755

perdoai pelo presente:

foi pouco e de boa mente...

Com vossa mercê, senhora.

Luzia. Ficai com Deus, desposados,

com prazer e com saúde, 760

e sempre Ele vos ajude

com que sejais bem logrados.

Mãe. Ficai com Deus, filha minha,

não virei cá tão asinha.

A minha benção hajais. 765

Esta casa em que ficais

vos dou, e vou-me à casinha.

Senhor filho e senhor meu,

pois que já Inês é vossa,

vossa mulher e esposa, 770

encomendo-vo-la eu.

E pois que, des que naceu,

a outrem não conheceu,

Inês. senão a vós, por senhor,

que lhe tenhais muito amor, 775

que amado sejais no Céu.

Ida a Mãe, fica Inês Pereira e o Escudeiro, e

senta-se Inês Pereira a lavrar, e canta esta cantiga:

Si no os huviera mirado,

no penara,

pero tampoco os mirara.

O Escudeiro, vendo cantar a Inês Pereira, mui

agastado lhe diz:

Escudeiro. Vós cantais, Inês Pereira? 780

Em vodas me andáveis vós?

Juro ao Corpo de Deus

que esta seja a derradeira!

Se vos eu vejo cantar,

eu vos farei assoviar... 785

Inês. Bofé, senhor meu marido,

se vós disso sois servido,

bem o posso eu escusar.

Escudeiro. Mas é bem que o escuseis,

e outras cousas que não digo, 790

Inês. Por que bradais vós comigo?

Escudeiro. Será bem que vos caleis.

E mais, sereis avisada

que não me respondais nada,

em que ponha fogo a tudo; 795

porque o homem sesudo

traz a mulher sopeada.

Vós não haveis de falar

com homem nem mulher que seja;

nem somente ir à igreja 800

não vos quero eu leixar.

Já vos preguei as janelas,

porque vos não ponhais nelas;

estareis aqui encerrada,

nesta casa tão fechada, 805

como freira d‟Oudivelas.

Inês. Que pecado foi o meu?

Por que me dais tal prisão?

Escudeiro. Vos buscastes discrição...

que culpa vos tenho eu? 810

Pode ser maior aviso,

maior discrição e siso,

que guardar eu meu tisouro?

Não sois vós, mulher, meu ouro?

Que mal faço em guardar isso? 815

Vós não haveis de mandar

em casa somente um pelo;

se eu disser: “Isto é novelo”,

havei-lo de confirmar.

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E mais, quando eu vier 820

de fora, haveis de tremer;

e cousa que vós digais

não vos há de valer mais

que aquilo que eu quiser.

— Moço, às partes d‟além 825

me vou fazer cavaleiro.

Moço.[parte. Se vós tivésseis dinheiro,

não seria senão bem.

Escudeiro. Tu hás de ficar aqui;

olha por amor de mi 830

o que faz tua senhora:

fecha-la-ás sempre de fora.

— Vós, lavrai, ficai per i.

Moço. Com o que me vós leixais

não comerei eu galinhas... 835

Escudeiro. Vai-te tu per essas vinhas,

que diabo queres mais?

Moço. Olhai, olhai, como rima!

E depois de ida a vendima?

Escudeiro. Apanha desse rabisco. 840

Moço. Pesar ora de São Pisco!

Convidarei minha prima...

E o rabisco acabado,

ir-m‟ei espojar às eiras?

Escudeiro. Vai-te per essas figueiras 845

e farta-te, desmazelado!

Moço. Assi!

Escudeiro. Conheces túbaras da terra?

Moço. (I-vos vós embora à guerra, 850

que eu vos guardarei oitavas...).

Senhora, o que ele mandou

não posso menos fazer.

Inês. Pois que te dá de comer,

faze o que te encomendou. 855

Moço. Vós fartai-vos de lavrar;

eu me vou desenfadar

com essas moças lá fora.

Vós perdoai-me, senhora,

porque vos hei de fechar. 860

Aqui fica Inês Pereira só, brechada, lavrando

e cantando esta cantiga:

Inês.

Inês. Quem bem tem e mal escolhe,

por mal que lhe venha, não s’anoje.

(falado) Renego da discrição,

comendo ao demo o aviso,

que sempre cuidei que nisso 865

estava a boa condição;

cuidei que fossem cavalheiros

fidalgos e escudeiros

não cheos de desvarios,

e em suas casas macios, 870

e na guerra lastimeiros.

Vede que cavalaria!

Vede já que mouros mata

quem sua mulher maltrata,

sem lhe dar de paz um dia! 875

E sempre ouvi dizer

que homem que isto fizer,

nunca mata drago em vaie,

nem mouro que chamem Ale,

e assim deve de ser. 880

Juro em todo meu sentido

que, se solteira me vejo,

assi como eu desejo,

que eu saiba escolher marido,

à boa fé, sem mal engano 885

pacifico todo o ano,

que ande a meu mandar...

Havia-me eu de vingar

deste mal e deste dano!

Entra o Moço com a carta de Arzila, e diz:

Esta carta vem d‟além, 890

creo que é de meu senhor.

Mostrai cá, meu guarda-mor,

veremos o que i vem.

Lê o sobrescrito.

“A mui prezada senhora

Inês Pereira de Grã, 895

à senhora minha irmã.”

Inês. De meu irmão! Venha embora!

Moço. Vosso irmão está em Arzila?

Apostarei que i vem

nova de meu senhor também. 900

Inês. Já ele partiu de Tavila?

Moço. Há três meses que é passado.

Inês. Aqui virá logo recado

se lhe vai bem ou que faz.

Moço. Bem pequena é a carta assaz! 905

Inês. Carta de homem avisado...

Lê Inês Pereira a carta, a qual diz:

“Muito honrada irmã,

esforçai o coração

e tomai por devação

de querer o que Deus quer.” 910

Inês. E isto que quer dizer?

(prossegue) “E não vos maravilheis

de causa que o mundo faça,

que sempre nos embaraça

com cousas. Sabei que, indo 915

vosso marido fugindo

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de batalha pera a vila,

a mea légua de Arzila,

o matou um mouro pastor.”

Moço. Oh meu amo e meu senhor! 920

Inês. Dai-me vós cá essa chave,

e i buscar vossa vida.

Moço. Oh que triste despedida!

Inês. Mas que nova tão suave!

Desatado é o nó! 925

Se eu por ele ponho dó,

o diabo m‟arrebente!

Pera mi era valente

e matou-o um mouro só!

Guardar de cavaleirão, 930

barbudo, repetenado,

que em figura d‟avisado

é malino e sotrancão.

Agora quero tomar,

pera boa vida gozar, 935

um muito manso marido;

não no quero já sabido,

pois tão caro há de custar.

Aqui vem Lianor Vaz, a finge Inês Pereira

estar chorando, e diz Lianor Vaz:

Lianor. Como estais, Inês Pereira?

Inês. Muito triste, Lianor Vaz. 940

Lianor. Que fareis ao que Deus faz?

Inês. Casei por minha canseira.

Lianor. Se ficastes prenhe, basta.

Inês. Bem quisera eu dele casta,

mas não quis minha ventura. 945

Lianor. Filha, não tomeis tristura,

que a morte a todos gasta.

O que havedes de fazer?

Casede-vos, minha filha.

Inês. Jesu, Jesu! Tão asinha! 950

Isso me haveis de dizer?

Quem perdeu um tal marido,

tão discreto e tão sabido,

e tão amigo de minha vida...

Lianor. Dai isso por esquecido 955

e buscai outra guarida.

Pero Marques tem que herdou

fazenda de mil cruzados;

mas vós quereis avisados...

Inês. Não, já esse tempo passou! 960

Sobre quantos mestres são,

a experiência dá lição.

Lianor. Pois tendes esse saber,

querei ora quem vos quer,

dai ò demo a opinião! 965

Vai Lianor Vaz por Pero Marques, e fica Inês

Pereira só, dizendo:

Inês. Andar! Pero Marques seja!

Quero tomar por esposo

quem se tenha por ditoso

de cada vez que me veja.

Por usar de siso mero, 970

asno que me leve quero,

e não cavalo folão;

antes lebre que leão,

antes lavrador que Nero.

Vem Lianor Vaz com Pero Marques, e diz

Lianor

Lianor. Nô mais cerimónias agora; 975

abraçai Inês Pereira

por mulher e por parceira.

Pero. Há homem empacho, maora!,

quant‟a dizer abraçar;

depois que a eu usar, 980

entonces poderá ser.

Inês. Não lhe quero mais saber;

já me quero contentar.

Lianor. Ora dai-me essa mão cá.

Sabeis as palavras, si? 985

Pero. Ensinaram-mas a mi,

perém esquecem-me já.

Lianor. Ora dizei como digo...

Pero. E tendes vós aqui trigo

pera nos jeitar por cima? 990

Lianor. Inda é cedo, como rima!

Pero. Soma, vós casais comigo

e eu convosco, pardelhas!

Não compre aqui mais falar,

e quando vos eu negar, 995

que me cortem as orelhas!

Lianor. Vou-me, ficai-vos embora.

Vai-se e diz Inês Pereira:

Inês. Marido, sairei eu agora,

que há muito que não sai?

Pero. Si, mulher, saí-vos i, 1000

que eu me irei para fora.

Inês. Marido, não digo disso.

Pero. Pois que dizeis vós, mulher?

Inês. Ir folgar onde eu quiser.

Pero. I onde quiserdes ir, 1005

vinde quando quiserdes vir,

estai quando quiserdes estar.

Com que podeis vós folgar

que eu não deva consentir?

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Vem um Ermitão a pedir esmola, que em

moço lhe quis bem, e diz:

Ermitão. Señores, por caridad, 1010

dad limosna al dolorido

ermitafio de Cupido,

para siempre en soledad,

pues su siervo soy nacido.

Por exemplo 1015

me meti en su santo templo

ermitaño en pobre ermita,

fabricada de infinita

tristeza en que contemplo;

adonde rezo mis horas, 1020

y mis dias y mis años,

mis servicios y mis daños;

donde tú, mi alma, lloras

ei fin de tantos engaños.

Y acabando 1025

las horas, todas llorando,

tomo las cuentas una a una,

con que tomo a la Fortuna

cuenta del mal en que ando,

sin esperar paga alguna. 1030

Y así, sin esperança

de cobrar lo merecido,

sirvo allí mis dias Cupido

com tanto amor sin mudança

que soy su santo escogido. 1035

O señores,

los que bien os va d‟amores,

dad limosna al sin holgura...

que habita en sierra escura,

uno de los amadores 1040

que tuvo menos ventura.

Yo rogaré al dios de mí,

en quien mis sentidos traigo,

que recibais mejor pago

de lo que yo recebí 1045

en esta vida que hago.

Y rezaré

con gran devoción y fe

que Dios os libre d‟engaño;

que eso rue hizo ermitaño, 1050

y para siempre seré,

pues para siempre es mi daño.

Olhai cá, marido amigo,

eu tenho por devação

dar esmola a um ermitão, 1055

e não vades vós comigo

Inês. I-vos embora, mulher,

não tenho lá que fazer.

Inês. Tomais a esmola, padre, lá,

pois que Deus vos trouxe aqui. 1060

Ermitão. Sea por amor de mí

vuestra buena caridad.

Deo gratias! mi señora,

la limosna mata el pecado;

pero vos tenéis cuidado 1065

de matarme cada hora.

Devéis saber,

para merced me hazer,

que por vos soy ermitaño.

Y aun más os desengaño, 1070

que esperanças de os ver

me rizieron vestir tal paño.

Inês. Jesu, Jesu! Manas minhas!

Sois vós aquele que, um dia,

em casa de minha tia, 1075

me mandastes camarinhas

e quando aprendia a lavrar,

mandáveis-me tanta cousinha?

Eu era ainda Inesinha,

não vos queria falar. 1080

Ermitão. Señora, tengoos servido

y vos a mi despreciado;

hazed que el tiempo pasado

no se cuente por perdido.

Inês. Padre, mui bem vos entendo 1085

ò demo vos encomendo!,

que bem sabeis vós pedir!

Eu determino lá d‟ir,

à ermida, Deus querendo.

Ermitão. Y quando?

Inês. I-vos, meu santo, 1090

que eu irei um dia destes,

muito cedo, muito prestes.

Ermitão. Señora, vo me voy eu tanto

Inês.[à parte].Em tudo é boa a concrusão.

Marido, aquele ermitão 1095

é um anjinho de Deus...

Pero. Corregê-vos esses véus

e ponde-vos em feição.

Inês. Sabei vós o que eu queria?

Pero. Que quereis, minha mulher? 1100

Que houvésseis por prazer

de irmos lá em romaria

Pero. Seja logo sem deter!

Inês. Este caminho é comprido;

contai a estória, marido 1105

Pero. Bofá que me praz, mulher.

Inês. Passemos primeiro o rio,

descalçai-vos

Pero. E pois como?

Inês. E levar-me-eis ao ombro,

não me corte a madre [útero] o frio. 1100

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Põe-se Inês Pereira às costas do marido, e

diz:

Inês. Marido, assi me levade!

Pero. Ides à vossa vontade?

Inês. Como estar no paraíso!

Pero. Muito folgo eu com isso.

Inês. Esperade ora, esperade! 1115

Olhai que lousas aquelas

pera poer as talhas nelas!

Pero. Quereis que as leve?

Inês. Si:

a aqui e outra aqui. 1120

Oh, como folgo com elas!

Cantemos, marido, quereis?

Pero. Eu não saberei entoar...

Inês. Pois eu hei só de cantar

e vós me respondereis,

cada vez que eu acabar: 1125

Pois assi se fazem as cousas.

Canta Inês Pereira:

Inês. Marido cuco me levades,

e mais duas lousas.

Pero. Pois assi se fazem as cousas.

Inês. Bem sabedes vós, marido, 1130

quanto vos amo;

sempre fostes percebido

pera gamo.

Carregado ides, noss’ amo,

com duas lousas. 1135

Pero. Pois assi se fazem as cousas.

Inês. Bem sabedes vós, marido,

quanto vos quero;

sempre fostes percebido

pera cervo. 1140

Agora vos tomou o demo

com duas Lousas.

Pero. Pois assi se fazem as cousas. 1143

E assi se vão, e se acaba o dito Auto.

LAUS DEO.