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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ

JOO LUCAS IJINO SANTANA

O PAPEL DA PARADIPLOMACIA NAS RELAES INTERNACIONAIS: a ascenso das unidades subnacionais num contexto mundial globalizado

ILHUS BAHIA 2009

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ

JOO LUCAS IJINO SANTANA

O PAPEL DA PARADIPLOMACIA NAS RELAES INTERNACIONAIS: a ascenso das unidades subnacionais num contexto mundial globalizado

Monografia apresentada para obteno de ttulo de bacharel em Lnguas Estrangeiras Aplicadas s Negociaes Internacionais Universidade Estadual de Santa Cruz. rea de concentrao: Relaes Internacionais Orientador: Prof. Ms Clodoaldo Silva da Anunciao

ILHUS BAHIA 2009

JOO LUCAS IJINO SANTANA

O PAPEL DA PARADIPLOMACIA NAS RELAES INTERNACIONAIS: a ascenso das unidades subnacionais num contexto mundial globalizado

Ilhus BA,

/

/2009

_______________________________________________ Prof. Ms. Clodoaldo Silva da Anunciao (Orientador)

_______________________________________________ Prof. Ms. Cesrio Alvim Pereira Filho (Parecerista)

_______________________________________________ Prof. Ms. Samuel Leandro Oliveira de Mattos (Parecerista)

DEDICATRIA

Dedico este trabalho aos meus pais, Jos Carlos e Eunice, aos meus irmos, Mateus e Marcos e a todos aqueles que de alguma forma contriburam para a realizao deste sonho.

AGRADECIMENTO

A Deus pela fidelidade e infinitas bnos derramadas ao longo dos ltimos quatro anos e meio; A minha famlia pelo carinho e apoio incondicional de todas as horas, sem os quais no teria chegado at aqui; A Sara pela amizade, incentivo e companheirismo que marcaro para sempre a minha vida, o meu muitssimo obrigado e eterna admirao; Ao meu orientador professor Clodoaldo Anunciao que com muita disposio e entusiasmo dedicou parte do seu escasso tempo, incluindo finais de semana, para orientar-me na conduo deste trabalho. Aos professores Srgio de Cerqueda, Patrcia Argolo, Sylvie de Magalhes, Janana Soares, Eduardo Mielke, Reinaldo Soares, Samuel Mattos e Jorge Miguel, pelo aprendizado acadmico e de vida. Um agradecimento especial ao prof. Cesrio Alvim pela amizade constante e pelos conselhos sempre sinceros; Aos querido colegas e amigos, em especial aos membros da diretoria: Vincius, Juliana, Samara, Geraldo, Joildo, Ilana e Gabriela; A Ilka Menezes que, mais do que uma simples secretria, foi uma amiga sempre disposta a solucionar os problemas burocrticos, demonstrando competncia e

profissionalismo no exerccio de suas atribuies no Colegiado do LEA; Por fim, a todos os colegas e amigos que de alguma maneira passaram pela minha vida ao longo da caminhada acadmica, o meu muito obrigado.

Epgrafe

Mas o puro realismo no pode oferecer nada alm de uma luta nua pelo poder, que torna qualquer tipo de sociedade internacional impossvel. Tendo demolido a utopia atual com as armas do realismo, ainda necessitamos construir uma nova utopia para ns mesmos, que um dia haver de sucumbir diante das mesmas armas. (...) aqui, portanto, est a complexidade, o fascnio e a tragdia de toda vida poltica. A poltica composta de dois elementos utopia e realidade pertencentes a dois planos diferentes que jamais se encontram. Edgar Carr, Vinte Anos de Crise

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABM AFEPA CNM DIP EUROCITIES FNP MERCOCIDADES MRE OEA ONU SCI UE UNALE

Associao Brasileira de Municpios Assessoria Especial de Assuntos Federativos e Parlamentares Confederao Nacional de Municpios Direito Internacional Pblico Rede de cidades europias Frente Nacional de Prefeitos Rede de cidades do Mercosul Ministrio das Relaes Exteriores Organizao dos Estados Americanos Organizao das Naes Unidas Sister Cities International Unio Europia Unio Nacional dos Legislativos Estaduais

SUMRIO

Resumo.................................................................................................................................. viii Abstract................................................................................................................................. xix INTRODUO.................................................................................................................... 10 1. ESTADO E SOBERANIA............................................................................................... 12 1.1 Elementos Constitutivos do Estado.................................................................................. 15 1.2 Origem e Evoluo do Estado.......................................................................................... 17 2. A SOBERANIA NA ATUALIDADE............................................................................. 24 2.1 Soberania e Globalizao.................................................................................................. 24 2.2 Soberania e Diplomacia.................................................................................................... 30 3. PARADIPLOMACIA...................................................................................................... 37 3.1 Paradiplomacia: definies e elementos conceituais....................................................... 37 3.2 Paradiplomacia: uma viso dialtica............................................................................... 41 3.2.1 Aspectos cooperativos da paradiplomacia................................................................. 43 3.2.2 Aspectos conflitivos da paradiplomacia..................................................................... 44 3.3. A Paradiplomacia no Brasil............................................................................................. 48 CONSIDERAES FINAIS.............................................................................................. 53

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O PAPEL DA PARADIPLOMACIA NAS RELAES INTERNACIONAIS: a ascenso das unidades subnacionais num contexto mundial globalizado

RESUMO

As novas tecnologias da comunicao e do transporte transcontinental modificaram radicalmente no apenas o modo como vemos ao outro, mas tambm a percepo que temos de ns mesmos, alterando profundamente nossa viso de mundo. Em funo destas transformaes, vivencia-se na atualidade uma revoluo epistemolgica que alcana todas as reas do conhecimento humano. Nesta perspectiva, as Relaes Internacionais assistem ao surgimento de um novo e dinmico fenmeno, nominado paradiplomacia, qual seja, o conjunto de relaes estabelecidas entre unidades subnacionais (estados, regies, departamentos, provncias, municpios, etc.) em mbito regional, internacional e global. A participao ativa destes novos atores no cenrio internacional requer uma reviso do conceito clssico de soberania, uma vez que a atuao das unidades subnacionais, grosso modo, carece de embasamento e regulamentao jurdica, tanto do Direito Internacional quanto das legislaes internas de cada pas. Diante da atualidade e relevncia acadmica que o tema encerra, este trabalho objetiva analisar o papel da paradiplomacia nas Relaes Internacionais a partir de um estudo que procura sistematizar a literatura existente sobre o assunto, fazendo uma retrospectiva histrica da origem e evoluo do fenmeno. Este estudo que leva em conta os aspectos cooperativos e conflitivos da paradiplomacia por meio de uma abordagem histrico-dialtica, visa tambm apresentar um panorama do atual estgio de desenvolvimento da paradiplomacia no Brasil e prope uma reflexo acerca dos avanos e desafios impostos sua expanso e consolidao no cenrio nacional e internacional.

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THE ROLE OF PARADIPLOMACY IN INTERNATIONAL RELATIONS: The emergency of subnational units in a globalized world context

ABSTRACT

The new technologies of communication and transcontinental transports have changed radically not only the way we see other people, but also how we understand ourselves, changing deeply our perception of the world. As a result of those changes there is an epistemologic revolution nowadays that reachs all human knowledges fields. In this regard, it is possible to identify the emergency of a new and dynamic phenomenon called paradiplomacy, which means the relations established among the subnational units (states, departaments, cities, etc.) in the regional, international and global stage. The proactive participation of those new players in the international scenario demands a review of the classical concept of sovereignty, because the initiatives of the subnational units do not have the support of the International Law nor the legislations of the countries either. Since it is an up to date important subject, this paper aims to do an analysis of the role of paradiplomacy in the International Relations. In order to do so, it does a bibliografic review performing a historical reconstitution of the origin and evolution of the phenomenon taking into account the elements of tension and co-operation of the paradiplomacy through a historic-dialetic approach. It also seeks to give a briefing of the current level of paradiplomacy development in Brazil. Finally, it proposes a discussion about the gains and challenges to the expansion and consolidation of paradiplomacy in the national and international scenario.

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INTRODUO

O aprofundamento do processo de globalizao ocorrido com a quebra do paradigma bipolar da Guerra Fria, que norteou as Relaes Internacionais por quase meio sculo, e a consequente configurao de um mundo multipolar, abriu novas perspectivas para a atuao dos Estados nacionais no concerto das naes, sobretudo entre os ditos pases emergentes ou em desenvolvimento. Se por um lado, este novo cenrio multipolar e participativo favorece a atuao dos Estados nacionais, por outro, constitui-se em espao aberto para a atuao de novos atores, os quais se constituem objeto desta pesquisa. A mundializao da economia capitalista, a interdependncia dos mercados financeiros, a expanso exponencial do mercado mundial, a criao de zonas de livre comrcio e blocos econmicos e a proliferao de ONGs e organismos internacionais, entre outros, demonstram claramente o grau de complexidade e polifonia por que passam as Relaes Internacionais contemporneas, estas, j no mais restritas a atuao exclusiva dos Estados nacionais. No bojo deste conjunto de mudanas, surge a paradiplomacia, fenmeno poltico-social relativamente recente e ainda pouco estudado em mbito acadmico que, diante do contexto atual de interdependncia das Relaes Internacionais, tende a observar um notvel crescimento durante as prximas dcadas. O objeto de estudo desta pesquisa analisar o papel exercido pela paradiplomacia nas Relaes Internacionais, a partir da constatao de que as unidades subnacionais (estados federados, municpios, cantes, departamentos, provncias, landers etc.) vem assumindo um papel mais participativo na conduo da poltica externa dos Estados, fato que tem provocado uma revoluo paradigmtica na poltica internacional tradicional. O objetivo deste trabalho discutir o fenmeno paradiplomtico, analisar sua gnese e evoluo e buscar compreender sua dinmica na atualidade. Os objetivos especficos so: definir a paradiplomacia luz da literatura especializada; avaliar seus aspectos cooperativos e conflitivos; e traar o panorama atual da atividades paradiplomticas em curso no Brasil.

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As principais referncias tericas utilizadas para a realizao desta pesquisa foram os estudos pioneiros de SOLDATOS (1990) e DUCHACEK (1990). Nos anos 80, os referidos autores deram o ponta p inicial nos estudos acadmicos sobre a temtica paradiplomtica, tomando como base a experincia canadense no Quebc. Logo, os pressupostos tericos elaborados em seus escritos constituem ponto de partida da maioria dos trabalhos sobre sobre o tema realizados no Brasil e em outros pases. Tambm foram utilizados trabalhos de autores nacionais, a exemplo de SALOMN & NUNES (2007), SILVA (2006) e GAMBINI (2007), entre outros. Alm dos autores supracitados, foram consultadas obras de autores clssicos da Cincia Poltica, como Rousseau, Maquiavel, Hobbes e Locke. Lanou-se mo, igualmente, de estudiosos nacionais da Teoria Geral do Estado, como FIGUEIREDO (2001), MALUF (2008) e AZAMBUJA (1995). Ademais, procedeu-se a coleta de dados primrios e secundrios em stios institucionais na internet. Para a estruturao do trabalho, utilizou-se o mtodo dialtico, com enfoque no aspecto terico-conceitual. O trabalho est estruturado em trs captulos. No primeiro deles, revisitamos os conceitos clssicos de Estado e soberania a partir da perspectiva histrica da formao e evoluo dos Estados. Esta contextualizao histrica acerca da evoluo da noo de Estado e de soberania fundamental para se compreender o modo como o Estado moderno foi estruturado e como se encontra nos dias atuais. No segundo, debatemos a relativizao do conceito de soberania estatal frente s mudanas introduzidas pela globalizao e refletimos acerca dos processos de reconfigurao das Relaes Internacionais a partir da atuao dos chamados novos atores globais. No terceiro e ltimo captulo, estudamos o fenmeno paradiplomtico e suas implicaes. Este captulo subdivide-se em trs partes: na primeira, analisamos a

paradiplomacia do ponto de vista terico-conceitual com base na literatura existente. Na segunda, analisamos os aspectos de cooperao e de conflito que secundam as relaes paradiplomticas. Na terceira, apresentarmos um panorama dessas relaes no Brasil, estudando sua gnese, evoluo e estgio atual, para ento apresentarmos as consideraes finais. A paradiplomacia, por tratar-se de fenmeno em pleno desenvolvimento, constitui assunto de grande relevncia para a compreenso das novas dinmicas presentes nas Relaes Internacionais. Logo, este trabalho visa a contribuir para a discusso acadmica sobre o tema e avaliar seus reflexos e implicaes para as Relaes Internacionais na atualidade.

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1. ESTADO E SOBERANIA

Neste captulo sintetizaremos os processos de formao e evoluo, bem como as formas de classificao do Estado, ou da sociedade poltica. Para tanto, mister revisar alguns conceitos que so caros compreenso do fenmeno estatal e do feixe de relaes que se estabelecem entre o Estado e a coletividade dos indivduos. Inicialmente cabe procedermos distino entre as noes de Estado e nao, posto que, no raras vezes, ambos os termos so utilizados de modo inadequado e em sentidos diametralmente opostos. Maluf (2008) afirma que, se por um lado, a nao compreende uma realidade sociolgica, por outro, o Estado representa uma realidade jurdica. Para ele A nao anterior ao Estado. Alis, pode ser definida como a substncia humana do Estado1. Neste sentido, a palavra nao pode ser substituda por Povo, sem qualquer prejuzo semntico ou conceitual. No entender de Clvis Bevilqua, citado por Maluf (2008, p. 21), o Estado a sociedade que se coage; e para poder coagir que ela se organiza tomando a forma pela qual o poder coativo social se exercita de um modo certo e regular; em uma palavra, a organizao das foras coativas sociais. Para Montesquieu, um Estado (civitas) a unificao de uma multiplicidade de homens sob leis jurdicas (MONTESQUIEU apud RUSS, 1991, p. 93). Figueiredo (2001, p.44), por sua vez, defende que o Estado[...] a pessoa poltica e jurdica, fenmeno que pode ser estudado sociologicamente ou juridicamente. O Estado o poder institucionalizado que deve sempre garantir a liberdade do homem, de acordo com seus desejos legtimos, mediante regras preestabelecidas pelo homem. igualmente centro de decises e de comportamentos ou impulsos, visando realizao das finalidades humanas. Deve sobretudo ser controlado pelo homem e no ao contrrio. Em sua dinmica deve procurar o equilbrio entre o desenvolvimento e a paz, a tecnologia e o humanismo, sem prevalncia da burocracia.

1

Ibid., p.16.

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Devemos ter em mente que o Estado, antes de tudo, se constri socialmente, porquanto obra da inteligncia e da vontade dos membros do grupo social, ou dos que nele exercem o governo e influncia (AZAMBUJA, 1995, p. 3). Ao contrrio de outras formas de organizao social como a famlia e a igreja a sociedade poltica inescapvel, uma vez que todos os indivduos esto sujeitos s leis, independente de sua vontade. Azambuja corrobora esse conceito ao declarar que da tutela do Estado, o homem no se emancipa jamais. O Estado o envolve na teia de laos inflexveis, que comeam antes de seu nascimento, com a proteo dos direitos do nascituro, e se prolongam at depois da morte, na execuo de suas ltimas vontades2. Para melhor apreendermos o conceito de Estado cabe elucidar o conceito de soberania, uma vez que este se confunde com a prpria idia de Estado. Para tanto, tomemos como base o que tratam alguns autores a respeito do tema. Accioly (1978) conceitua soberania como sendo a autoridade que possui o Estado para decidir sobre questes de sua competncia. Para Maluf (2008, p.29), o Estado definido como a autoridade superior que no pode ser limitada por nenhum outro poder. J a soberania traduz-se por poder de imprio, ou seja, a capacidade que possui o Estado de coagir e constranger o cidado para o cumprimento das regras, leis e princpios estabelecidos na esfera social e no ordenamento jurdico. Santos (2008), por sua vez, define a concepo clssica de soberania onipresente no pensamento de Jean Bodin como absoluta, perptua, indivisvel, inalienvel e imprescritvel. A concepo de soberania est ligada a idia de uso da fora enquanto instrumento de legitimao do poder do Estado. Em outras palavras, a capacidade de o Estado fazer valer a sua vontade. Vale salientar que a doutrina da soberania surge da luta travada, nos sculos XVII e XVIII, entre a monarquia francesa, o papado e as foras feudais pela proeminncia poltica (FIGUEIREDO, 2001). Assim, a afirmao da idia de soberania na acepo clssica do termo est intimamente ligada ao surgimento do absolutismo na Europa e a consequente perda de poder relativo da igreja no plano temporal.

2

Ibid., p. 4.

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No obstante, a viso rousseauniana considera a soberania como o exerccio da volont gnral3, ou seja, a materializao da vontade da maioria dos membros da sociedade organizada politicamente. Em sntese, Rousseau introduz o conceito de soberania popular, em contraposio a idia de soberania estatal. Cabe aqui uma distino feita pelo autor entre a vontade de todos e a vontade geral. A vontade de todos, nada mais que a soma dos interesses particulares, ao passo que a vontade geral tem como alvo a satisfao dos anseios da coletividade, ou seja; a busca do bem comum, sendo esta a que deve nortear as aes do Estado. A Constituio brasileira de 1988 utiliza o princpio roausseauniano de soberania popular, expresso em seu Art. 1, pargrafo nico, ao declarar que: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente.... Na carta magna, a soberania popular vista como um dos princpios fundamentais do Estado brasileiro. A soberania4 ou summa potestas pode ser vista sob dois aspectos: o da autonomia e o da independncia ou igualdade dos Estados. O primeiro aspecto se d no plano interno, enquanto poder de imprio. a capacidade que possui o Estado de gerir os negcios internos sem qualquer interveno aliengena. O segundo aspecto reflete-se nas relaes que se estabelecem entre diferentes soberanias. Logo, entre dois ou mais Estados. Segundo o Direito Internacional, todos os Estados so formalmente iguais, assim como, segundo a constituio brasileira, todos os cidados so iguais perante a lei. Vale salientar que tal igualdade encontra-se exclusivamente no plano terico-normativo, j que os Estados, em sendo entidades soberanas, decidem submeter-se ou no s resolues internacionais, segundo seus prprios interesses e circunstncias. Ademais, o poderio econmico e militar, e a preponderncia poltica, alm de outros fatores, fazem com que pases iguais, in juris, na prtica, recebam tratamento diferenciado segundo o seu grau de importncia. A esse respeito, reflete Ferrajoli (apud SANTOS, 2008, p. 49, 50):

Vontade geral (traduo livre). Jos Incio de Freitas Filho, em artigo intitulado A Relativizao da Soberania Estatal, elenca as seguintes caractersticas da soberania: una e indivisvel; prpria e indelegvel; irrevogvel; suprema e independente. Disponvel em: . Acesso em: 22 abr. 2009.4

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Aps a descolonizao promovida pelas Naes Unidas, o paradigma do Estado soberano estendeu-se no mundo todo. E, todavia, o antigo princpio vitoriano da igual soberania dos Estados, sancionado pelo artigo 2 da Carta, hoje, mais do que nunca, desmentido pela concreta desigualdade entre eles, fruto inevitvel da prevalncia do mais forte e, portanto, pela existncia de soberanias limitadas... (grifo de Santos).

Segundo Ferrrajoli (2002), o Estado constitucional, pelo qual o direito regula-se a si prprio, funciona como dispositivo limitador da soberania interna. A soberania externa, por sua vez, s passa a sofrer limitao, com a adoo da Carta da ONU de 1945 que, nas palavras do prprio Ferrajoli equivale a um contrato social internacional, e a Declarao Universal dos Direitos do Homem de 1948. Por estes dois instrumentos jurdicos os Estados so retirados, ao menos em tese, do estado de natureza, sendo introduzidos no convvio social da comunidade internacional, convvio este que regido pelos princpios de manuteno da paz e respeito aos direitos humanos. Feitas as considerao iniciais acerca das noes de Estado e de soberania, passemos a anlise de seu surgimento e evoluo ao longo dos sculos.

1.1 Elementos Constitutivos do Estado

Segundo os tericos o Estado constitudo por trs elementos: populao, territrio e governo. O primeiro termo enumerado apresenta grande controvrsia conceitual entre os doutrinadores. Para alguns estudiosos da Teoria Geral do Estado, a exemplo de Marcelo Figueiredo, o termo mais adequado seria povo ao invs de populao, ao passo que autores como Sahid Maluf preferem o termo populao. O conceito, grosso modo, circunscreve-se ao campo semntico. Isto , da forma como o autor classifica o primeiro elemento constitutivo do Estado. Segundo Kant, povo pressupe nao, pois entendido como (...) a massa dos homens reunidos numa determinada regio, desde que constituam um todo. Esta massa, ou os elementos desta massa, a quem uma origem comum permite reconhecer-se como unida numa totalidade civil, chama-se nao (gens) (KANT apud RUSS, p. 193, 1991).

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Pelo exposto, denota-se que a palavra povo expressa uma realidade subjetivavalorativa, ao passo que populao encerra um conceito objetivo e quantificvel. Neste caso, tomaremos o termo populao, por ajustar-se conceitualmente aos objetivos do nosso trabalho. Tal como apontado por Maluf (2008, p. 17), populao a expresso que envolve um conceito aritmtico, quantitativo, demogrfico, pois designa a massa total dos indivduos que vivem dentro das fronteiras e sob o imprio das leis de um determinado pas. O territrio segundo elemento constituinte concebido por Figueiredo (2001) como a base fsica do Estado. Segundo GROPPALI (1953, p. 150), territrio o limite espacial dentro do qual o Estado exerce de modo efetivo e exclusivo o poder de imprio sobre pessoas. Sem territrio no h Estado possvel, ainda que haja nao. A ttulo de exemplo, consideremos o caso do povo judeu. O sionismo movimento nacionalista que congregou judeus de todo o mundo foi a base ideolgica que legitimou a reivindicao dos judeus pela constituio do Estado de Israel. A nao hebraica, desprovida de territrio, no possua um Estado, at que, com o fim da II Guerra Mundial, criou-se o Estado de Israel com capital em Tel-Aviv. O governo terceiro elemento constituinte entendido por Foucault (apud RUSS, p.125, 1991) como o conjunto de tcnicas e procedimentos destinados a dirigir a conduta dos homens. Nos regimes democrticos (parlamentares ou presidencialistas) o governo formado pela populao, a qual detentora da soberania nacional. Isto implica na delegao de poderes a um partido ou grupo de partidos para que este promova o bem comum, j que a titularidade da soberania, em ltima instncia, pertence ao povo, isto , a populao, ou a parte da populao possuidora de direitos polticos e civis: os votantes e a sociedade civil organizada.

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1.2 Origem e evoluo do Estado

Em Cincia Poltica, a discusso acerca da origem do Estado , sem dvida, das mais controversas, dada a multiplicidade de teorias e hipteses levantadas, no intuito de elucidar tal conceito. Estas teorias classificam-se do seguinte modo: teorias da origem familial do Estado; teorias da origem violenta do Estado e teorias da origem contratual do Estado. Os Estados tambm podem ser classificados a partir do modo como surgiram: formao natural; formao histrica e formao jurdica. Consideremos o que prepem cada uma destas hipteses. As teorias da origem familial teoria patriarcal ou patriarcalista, pater familias, e teoria matriarcal ou matriarcalista partem do princpio de que o Estado uma extenso da famlia, pois, assim como essa a unidade nuclear da sociedade, seria igualmente o ponto de partida para o surgimento do Estado. Segundo as teorias da origem familial, as relaes endogmicas, responsveis pela expanso do ncleo familiar, teriam ampliado o poder do lder patriarca ou matriarca dando origem s primeiras reas de ocupao que, aglomerando-se umas s outras, originaram os primeiros povoamentos e, por conseguinte, as primeiras experincias de organizao social. As teorias da origem violenta do Estado partem da premissa de que as guerras de conquista forjaram toda a evoluo da humanidade e, como no poderia ser diferente, esto no cerne da criao e consolidao das primeiras formas de Estado. Nos estgios iniciais da civilizao os vencedores costumavam sacrificar os povos vencidos em rituais antropofgicos. Com o passar do tempo, descobriram que ao invs de sacrific-los, poderiam escraviz-los. Assim, os povos vencedores passaram a explorar economicamente os povos vencidos em benefcio prprio, dando origem a vrios Estados. A terceira grande corrente epistemolgica corresponde s teorias contratuais, segundo as quais, o Estado surgiu de um acordo de vontades entre os membros da sociedade, atravs do estabelecimento de um contrato subjetivo.

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A idia da existncia de um contrato social antiga e remonta aos pensadores da Grcia antiga. , porm, com Rousseau e Hobbes que tal concepo ir atingir o seu pice, constituindo a base da construo do Estado moderno. Para Rousseau, o Estado est a servio do cidado, ou da volont gnral e resulta do livre acordo entre os membros da sociedade. Por esse contrato, cada indivduo decide ceder parte de sua autonomia em prol do bem comum. , por assim dizer, do livre consentimento dos cidados que surge o Estado. Este nada mais do que mero instrumento de promoo da liberdade e da igualdade entre os homens. Em contrapartida, Hobbes afirma que o contrato social no resultou da aquiescncia dos indivduos, mas da necessidade premente de controle e organizao social. A tese hobbesiana parte do princpio de que o homem, ao viver em estado de natureza, precisava criar condies mnimas para o convvio em sociedade, j que este mesmo homem originariamente egosta e competitivo Homo homine lupus . Dito em outras palavras, o contrato social, pelo qual os cidados cedem ao Leviat (o Estado, deus mortal) a Soberania antes uma contingncia que uma livre eleio. Se para Rousseau a Soberania reside no povo, para Hobbes ela o prprio Leviat, absoluto e soberano. Segundo a teoria da formao natural, o Estado teria surgido da prpria evoluo da civilizao, a partir do momento em que o homem abandonou o nomadismo e se estabeleceu definitivamente em dado territrio. As novas atividades resultantes da fixao do homem na terra teriam criado per si as condies para o surgimento do Estado. Azambuja (1995) parece compartilhar da teoria da formao natural ao afirmar que o Estado surge quando os homens atingem o estgio de civilizao, fato que ocorre com a transformao das sociedades nmades em sociedades sedentrias. A teoria da formao histrica, por sua vez, aponta trs modos bsicos de formao dos Estados, quais sejam: a) formao originria quando um Estado surge sem derivar de outro preexistente; b) formao secundria esta decorre da unio de vrios Estados ou da diviso de um Estado anterior e; c) formao derivada quando foras exteriores atuam na constituio de um novo Estado.

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Por fim, h que se mencionar a teoria da formao jurdica. Esta teoria dicotmica, uma vez que os doutrinadores se dividem entre aqueles que identificam o nascimento de um Estado a partir do momento em que o mesmo dotado de constituio, e aqueles que acreditam ter o Estado o seu nascimento no momento em que recebe o reconhecimento da comunidade internacional. Contudo, essa uma questo menor, j que tal divergncia no afasta uma corrente da outra, posto que ambas identificam o surgimento do Estado sob o aspecto jurdico. O crivo da histria nos mostra que as concepes de Estado mudaram bastante ao longo dos sculos, atendendo aos imperativos sociais de cada poca. Na antiguidade, o Estado forjado dentro da religio e vice-versa. Prova disto a formao de inmeros Estados teocrticos, a exemplo do Egito e do Estado hebreu. recorrente nesse perodo, a divinizao da pessoa do monarca. Neste perodo ele prprio era a personificao do Estado, pois era dotado de prerrogativas temporais e espirituais, tornando-se o representante direto de Deus na terra, quando no o prprio Deus. Neste tempo histrico, os Estados eram, via de regra, divididos em castas e a mobilidade social era praticamente inexistente. O Estado era, antes de tudo, um meio de conteno das tenses sociais e visava manuteno do status quo. , contudo, na polis grega e na civitas romana onde se encontram os primeiros ensaios de organizao scio-estatal que serviro de modelo para os Estados ocidentais das eras seguintes. As cidades-estado gregas, as quais constituam micro repblicas, regiam-se sob o princpio da democracia e da cidadania, muito embora grande parte da populao vivesse a margem da vida poltica da polis. J as civitas, centro poltico do Imprio Romano, forneceram-nos instituies scio-jurdicas ainda latentes na sociedade contempornea. O direito romano e a prpria noo de repblica res publica ou coisa pblica so exemplos desse legado. Com a desagregao do Imprio Romano, o direito e o Estado passam por um longo perodo de retrao. A insegurana e a instabilidade social, ocasionadas pelas invases dos povos germanos, ensejam um retorno forado a formas genricas de aglomerao tribal, do qual os feudos so o maior expoente.

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Neste perodo, nominado Idade Mdia, a igreja romana exerce a proeminncia poltica no mundo ocidental, atravs da teoria da investidura divina e da indivisibilidade dos poderes espiritual e temporal. Eram os papas quem coroavam e destituam os reis, declaravam guerra, selavam a paz e extinguiam ou criavam reinos, segundo o alvitre e a convenincia poltica de cada um. Vive-se, ento, a era da personificao do Estado na pessoa do soberano, dentre os quais, o chefe da igreja era o sumo sacerdote e rbitro inconteste das disputas polticas. No obstante, com o advento do absolutismo na Europa continental, este poder aparentemente inabalvel, passa a ser contestado. Inmeros pensadores, dos quais Nicolau Maquiavel, Jean Bodin e Thomas Hobbes, so os mais clebres expoentes, questionaram a subordinao do Estado Igreja e advogaram em favor da soberania estatal atravs de seus escritos. O iderio absolutista que pode ser sintetizado na clebre frase atribuda a Luis XIV: o Estado sou eu foi fundamental no processo de secularizao da vida poltica na Europa, uma vez que se contrapunha ao poder da Igreja. Ainda a propsito do absolutismo, vale mencionar a importncia do pensamento maquiavelista para sua legitimao e justificao. A teoria de Maquiavel parte de uma viso pessimista do ser humano, na qual todos os homens so maus por natureza. Dos homens, em realidade, pode-se dizer genericamente que eles so ingratos, volveis, fementidos e dissimulados, fugidios quando h perigo, e cobiosos (MAQUIAVEL, 2007, p. 80). Em sua filosofia finalstica, Maquiavel prega que, se preciso for, o soberano deve-se utilizar de meios moralmente reprovveis para obter os resultados polticos desejados. Sua concepo vulgarizou-se como a teoria dos fins justificam os meios. O referido autor explica que:[...] a experincia nos faz ver que, nestes nossos tempos, os prncipes que mais se destacaram pouco se preocuparam em honrar as suas promessas; que, alm disso, eles souberam, com astcia, ludibriar a opinio pblica; e que, por fim, ainda lograram vantagens sobre aqueles que basearam as suas condutas na lealdade (MAQUIAVEL, 2007, p. 84).

E prossegue afirmandoAssim, devemos saber que h dois modos de combater: um, com as leis; o outro, com a fora. O primeiro modo prprio do homem; o segundo, dos animais. Porm, como o primeiro muitas vezes mostra-se insuficiente, impem-se um recurso ao segundo. Por conseguinte, a um prncipe necessrio valer-se dos seus atributos de animal e de homem (MAQUIAVEL, 2007, p. 84).

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Para Maquiavel a poltica essencialmente exerccio de poder que, s vezes, ocorre por meio da fora. Neste sentido afirma que o prncipe deve fazer por onde alcanar e sustentar o poder: os meios sero sempre julgados honrosos e por todos elogiados [...] (MAQUIAVEL, 2007, p. 87). Seu pensamento crivado de idiossincrasias sustenta a personificao do soberano, este, depositrio da soberania estatal. Em sntese, no se pode dizer que sua filosofia poltica seja imoral, mas sim amoral. Uma teoria finalstica que tem como princpio basilar o divrcio entre a poltica e a moral. Neste universo gravita a obra de Maquiavel, sempre citada e criticada por inmeros pensadores ao longo dos ltimos quinhentos anos. A superao do Estado absolutista ocorre graas a um conjunto de modificaes polticas, econmicas e sociais nominado liberalismo que nasce e consolida-se ao longo dos sculos XVII e XVIII. Com base neste novo paradigma funda-se o chamado Estado Moderno, o qual tem como uma de suas principais caractersticas a supremacia da soberania estatal em contraposio ao poder desptico e ilimitado dos reis. A reao antiabsolutista desencadeada pelo liberalismo desestabilizou o ancien rgime5, deixando marcas profundas na sociedade ocidental. A doutrina liberal forjada no pensamento dos contratualistas John Lock, Rousseau e Montesquieu tem na defesa incondicional das liberdades individuais seu principal corolrio. Este princpio fundamental em muito contribuiu para as Revolues Liberais como as Revolues Francesa e Americana , delineando as bases que moldaram a moderna democracia. Ademais, o liberalismo econmico dos pensadores clssicos, a exemplo de Adam Smith e David Ricardo, bem como o advento da Revoluo Industrial, contriburam para a extino definitiva do regime monrquico absolutista europeu. No obstante, com a vitria do liberalismo sobre o absolutismo observou-se, no incio do sculo XX, o surgimento de vrios projetos alternativos e antagnicos ao modelo liberal, numa aspiral dialtica que levou a novas formas de organizao estatal, a exemplo do socialismo. Enquanto o termo liberal remete-nos a idias como individualismo e livre iniciativa, o socialismo que vem da raiz social tem como inspirao a construo do bem comum de maneira coletiva, visando mitigar as desigualdades existentes no mundo real. Estas desigualdades, por sua vez, no so levadas em conta na filosofia liberal, a qual coloca todos5

Antigo regime (traduo livre)

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os homens em p de igualdade no plano formal. Vale salientar que, ao contrrio do Estado comunista-marxista, o Estado socialista, no necessariamente anti-capitalista. O Estado social toma pra si a incumbncia de atender s presses sociais, a prestar servios de toda ordem, a interferir na realidade social e econmica a fim de distribuir ou atingir a justia social (FIGUEIREDO, 2001, p. 77). O Estado socialista objetiva a promoo do bem estar social, sem, contudo, comprometer as liberdades individuais ou contestar as bases do sistema econmico liberal. O modelo de Estado comunista, por sua vez, prope uma soluo radical. Este o cerne do totalitarismo, o qual se apresenta sob as mais variadas formas, tais como o fascismo, o nazismo e o comunismo. Ainda que apresentem orientaes poltico-ideolgicas distintas, o eixo que une esses modelos tericos a elevao do Estado condio de protagonista na vida poltica, sendo o individuo absorvido por ele. luz de tais concepes, o cidado deixa de ser servido pelo Estado, passando a servi-lo. Tudo pelo Estado, atravs do Estado e para o Estado. Sobre isso, Figueiredo designa que Estado totalitrio toda e qualquer organizao de poder em que o autoritarismo e a centralizao esto fortemente presentes6. Durante o sculo XX o mundo assistiu a um grande embate ideolgico, travado entre duas propostas de Estado opostas e excludentes. De um lado, o Estado liberal democrticoburgus, representado pelos Estados Unidos, e de outro, o modelo estatal comunista-marxista, capitaneado pela extinta Unio Sovitica. Vale ressaltar que, alm das inconciliveis divergncias ideolgicas, ambos os Estados apresentavam propostas diferenciadas do ponto de vista do papel do Estado na economia. O primeiro, propugnando o Estado gendarme, o segundo, pregando a interveno do Estado na economia, atravs de um projeto desenvolvimentista que tinha como eixo o intervencionismo estatal. Com a expanso da globalizao e a desagregao da Unio Sovitica, fato que ps fim a dicotomia Estado liberal versus Estado comunista, instaurou-se um novo momento histrico na evoluo do Estado. A vitria da ideologia democrtica e do modelo capitalista de produo geraram uma onda de otimismo na sociedade mundial que levou muitos a acreditarem na configurao de um mundo multipolar, no fim definitivo dos grandes embates ideolgicos e no nascimento de uma era de paz duradoura e prosperidade mundial.

6

Ibid., p, 69.

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A elevao dos Estados Unidos a categoria de super-potncia mundial e o avano tecnolgico advindo da revoluo telemtica contriburam para a mundializao da economia e das finanas mundiais. Neste contexto de reformulao das estruturas de produo e de acumulao de riquezas, forjou-se o neoliberalismo, o qual fora consagrado pelo Consenso de Washington. A partir da a filosofia neoliberal se expandiu para quase todos os cantos do planeta, levando a globalizao a um estgio de avano e desenvolvimento inditos. Este turbilho de transformaes desatado com a queda do muro de Berlim teve como conseqncia inevitvel o enfraquecimento do poder do Estado. A predominncia da economia sobre a poltica, o crescimento vertiginoso das grandes corporaes multinacionais, o avano do crime organizado e de prticas delitivas em nvel mundial, as recentes correntes migratrias e o surgimento de novas formas de organizao poltica e social constituem alguns dos grandes desafios do Estado moderno, demandando, portanto, uma releitura do conceito clssico de soberania estatal. Neste sentido, o capitulo seguinte discute a Soberania sob dois aspectos: o da globalizao e o da diplomacia.

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2. A SOBERANIA NA ATUALIDADE

2.1 Soberania e Globalizao

Neste captulo discutiremos de que forma e em que profundidade as mudanas do mundo ps-moderno, introduzidas pela globalizao, tem afetado ou modificado a concepo clssica de soberania do Estado-nao. Para tanto, vejamos o que diz Mller (2009, p.1) acerca do tema:A questo da soberania hoje inseparvel de uma anlise das transformaes profundas que a figura do Estado e a da soberania sofreram nos ltimos trinta anos, principalmente com a mundializao da produo capitalista, com o surgimento das empresas transnacionais, da internacionalizao dos circuitos financeiros e o esboo de formao de uma sociedade civil transnacional, que provocam uma eroso do poder pblico e a fragmentao das atribuies da soberania estatal, quando no o seu desmantelamento, freqentemente executado, alis, por um poder pblico obediente s injunes da concorrncia capitalista, da diviso internacional do trabalho e do monitoramento das agncias financiadoras internacionais.

Diante dos fatos contemporneos e da anlise de Mller (2009) acerca da evoluo do sistema capitalista de produo, com a internacionalizao dos circuitos financeiros e a formao de uma sociedade civil transnacional, percebe-se a descentralizao e a instabilidade do Estado, devido quebra das hierarquias e fundamentos que o caracterizavam. Esta tendncia descentralizadora emerge num contexto de continua globalizao por que passa a sociedade hodierna. Para Bauman (1999, p.67), o significado mais profundo transmitido pela idia da globalizao o do carter indeterminado, indisciplinado e de autopropulso dos assuntos mundiais; a ausncia de um centro, de um painel de controle, de uma comisso diretora, de um gabinete administrativo.

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Pode-se definir a globalizao como um conjunto de estruturas e processos econmicos e sociais, tecnolgicos, polticos e culturais suscitados pela evoluo da produo, do consumo e do comrcio de produtos e de bens que esto base da economia poltica internacional cujo movimento tem como essncia a tentativa de dissoluo dos espaos nacionais (RIBEIRO, 2008, p. 40, 41). Sendo assim, a globalizao constitui um elemento de contestao e relativizao da soberania dos Estados. A principal face, mas no a nica, da globalizao a economia capitalista, que tem na expanso dos mercados financeiros seu principal veculo de disseminao. Este fator leva a uma situao de preeminncia da economia em relao poltica, resultando em menor presena do Estado nas questes de ordem econmica, mesmo quando essas possam ter reflexos na esfera social. Por esta razo, Bauman (1999, p. 63) afirma que o capital [...] move-se rpido; rpido o bastante para se manter permanentemente um passo adiante de qualquer Estado [...] que possa tentar conter e redirecionar suas viagens. A perda da autonomia estatal no tocante conduo de polticas econmicas autnomas sintomtica do aspecto extraterritorial do capital (financeiro, comercial e industrial), fato que resulta na eroso da prpria soberania do Estado. Neste sentido, Ribeiro (2008, p. 51) declara que mesmo quando no plenamente aceita como tal, a globalizao transformou certamente o papel do Estado na gesto econmica nacional, vez que a economia liberalizada est acompanhada de uma eroso, freqentemente desejada, aceita e organizada pelo Estado da soberania poltica. Ainda segundo a autora, a falncia do Estado conduz [...] a uma apropriao parcial da sua soberania pelas organizaes internacionais [...] a exemplo do Banco Mundial que refora no seu discurso a primazia dada ao mercado7. Logo, observase que a globalizao impe um grande desafio a primazia do Estado, uma vez que sua expanso implica na relativizao do conceito de soberania. Outro grande desafio do Estado contemporneo diz respeito ao seu poder de polcia. A porosidade das fronteiras resultado do avano tecnolgico dos meios de transporte e comunicao propicia a disseminao de prticas delitivas em escala mundial. Por esta razo, a conteno do crime organizado transnacional nas suas mais variadas formas: trfico de drogas, trfico de rgos, trfico de pessoas, prostituio e o contrabando de armas, entre outros. Tais fatos desafiam a manuteno do Estado de direito, a exemplo do que ocorre na Colmbia no combate ao trfico de drogas e na Itlia no enfrentamento das mfias.

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Ibid., p, 48.

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No obstante, Arnaud e Capeller (2005, p. 229) acreditam no fortalecimento do poder do Estado frente s ameaas e desafios impostos pelo crime organizado. Afirmam eles que os efeitos perversos da globalizao, como o caso da criminalidade transnacional, acabam por determinar novas posies do Estado. Este, ao invs de enfraquecer-se [...] parece aumentar sua fora quando confrontado ao ataque de sua soberania e sua autodeterminao. Se por um lado o crime organizado representa uma ameaa ao Estado de direito, ele vem sendo constantemente confrontado por meio de aes conjuntas dos Estados. Neste sentido, diversos pases e grupos de pases, a exemplo dos Estados Unidos e da Unio Europia, vem estabelecendo estratgias supranacionais de controle e monitoramento de atividades delitivas no intuito de conter o avano do crime organizado transnacional. Apesar dos fluxos e refluxos, a cooperao entre Espanha e Frana no combate ao grupo ETA, constitui exemplo de exitosa cooperao internacional em nvel institucional, uma vez que envolve no somente os respectivos governos, mas tambm as polcias e agncias de inteligncia dos dois pases. As recentes correntes migratrias sentido sul-norte fruto do agravamento do processo de empobrecimento das naes de menor desenvolvimento relativo tambm tem contribudo para o questionamento da autonomia do Estado no tocante ao controle de suas fronteiras. Neste contexto a globalizao revela seu carter falacioso e contraditrio, pois, ao contrrio do que pensam alguns, o avano da globalizao tem contribudo para o aumento da concentrao de riqueza e o agravamento das desigualdades entre ricos e pobres. Neste cenrio de pobreza e excluso, milhares de pessoas tentam migrar, diariamente, para pases onde acreditam dispor de melhores condies de vida. Entretanto, vale salientar que reduzir o fenmeno migratrio ao aspecto puramente econmico seria um erro grave e inconsistente, haja vista que a imigrao possui diversos elementos causadores, os quais no podem ser reduzidos exclusivamente a fatores de ordem econmica. Os processos de integrao regional desencadeados na segunda metade do sculo XX constituem verdadeiro divisor de guas para a Teoria Geral do Estado, medida que impem maior ou menor relativizao do conceito de Soberania, conforme o modelo de integrao adotado. Todo processo de integrao, seja ela econmica e/ou poltica, implica em cesso de parte da soberania dos Estados membros em prol do alcance dos objetivos traados pelo bloco. mister distinguir dois modelos estruturais bsicos de integrao regional, quais

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sejam: a integrao regional supranacional, e a integrao regional interestatal ou intergovernamental. No primeiro caso:A noo de supranacionalidade, do ponto de vista prtico, vincula-se a transferncia de parcelas de soberania por parte dos Estados-Membros em benefcio de um organismo que, ao funcionar, avoca-se desse poder, que opera por cima das unidades que o compe, na qualidade de titular absoluto (KERBER apud SANTOS, 2008, p. 51).

No segundo caso:Atravs do ponto de vista da organizao intergovernamental, os Estados envolvidos em uma integrao, embora desprenda de esforos que beneficiem o bloco como um todo, prioriza a resoluo dos interesses internos [...] Percebe-se, portanto, que em uma viso intergovernamental de integrao prioriza-se a preservao da soberania nacional... (SANTOS, 2008, p. 52).

Destarte, a diferena fundamental entre o modelo de integrao regional supranacional e o modelo interestatal ou intergovernamental o grau de autonomia conferido ao organismo internacional representativo, o que implica na maior ou menor cesso de parcelas da Soberania estatal para o organismo regional. O MERCOSUL um exemplo de estrutura intergovernamental de alcance regional, vis--vis seu baixo nvel de institucionalizao. A Unio Europia, por sua vez, optou pelo modelo supranacional de integrao, levado a termo pelo fortalecimento dos seus rgos constitutivos, tais como o Parlamento Europeu e o Banco Central Europeu. Este, responsvel pela conduo da poltica monetria de todo o bloco. A respeito da constituio de blocos econmicos, Figueiredo (2001, p. 33) afirma que o desenrolar dos mercados comuns em todo o mundo nos leva a crer em uma nova concepo de Estado, onde o carter nacionalista ceda espao, ou mesmo seja mitigado, cooperao internacional. Consoante Font e Rufi (2006, apud RIBEIRO, 2008, p. 52) o Estado tende a ceder parte de sua soberania a dois tipos de instncias: as instncias superiores constitudas por organizaes paraestatais, transnacionais e demais agentes de globalizao e as instncias inferiores constitudas por regies e cidades. [...] a dupla cesso de soberania [...] ocorre porque o novo sistema mundial outorga aos Estados menor capacidade de intermediao do que em pocas anteriores, apesar do Estado continuar sendo imprescindvel, em muitos sentidos, inclusive para a prpria globalizao. Assim, Ribeiro (2008, p. 52, 53) afirma que:

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Diante da inegvel realidade contempornea, constata-se de fato que a expanso dos processos de globalizao e a interdependncia crescente acabam erodindo ainda mais as fronteiras entre o que domstico e o que internacional, tornando cada vez mais difusas as discusses acerca da validade e da extenso do princpio de soberania nacional.

Santos (2008, p.54), por sua vez, advoga a plena compatibilidade entre o conceito de soberania e integrao ao afirmar queO fenmeno de globalizao tem se mostrado de forma a desconsiderar as barreiras e os limites impostos pela soberania, sobretudo no que concerne ao avano de inovaes tecnolgicas e econmicas. Entretanto, no devido a essa desconsiderao da soberania por parte da globalizao que seja possvel afirmar a incompatibilidade entre a integrao e a soberania.

Para Locateli (apud SANTOS, 2008, p 55), preciso rediscutir o conceito de Soberania estatal, uma vez quea viso do conceito de soberania como um dogma poltico intocvel est descaracterizada devido a sua interao com a necessidade de adotar normas de carter internacional em favor do benefcio da nao, pressuposto que rejeita o carter absoluto da soberania, sem que estas modificaes sejam traumticas ou esvaziem seu contedo...

Cabe ainda ressaltar o papel de destaque exercido pela defesa dos direitos humanos na discusso sobre a inalienabilidade da soberania estatal. Santos (2008) afirma que a tendncia atual de integrao dos direitos humanos na ordem internacional. Segundo o referido autor, cada vez mais forte o discurso em torno da possibilidade de que organismos, como a ONU, interfiram no mbito do Estado para a resoluo de conflitos ou problemas dessa natureza 8. A Declarao Universal dos Direitos do Homem e as dezenas de convenes e acordos internacionais em defesa do tema so uma prova inconteste do forte apelo exercido pela defesa dos direitos humanos junto sociedade civil mundial. Deste modo, torna-se imperativo aos Estados o respeito s liberdades fundamentais e a integridade fsica e moral de seus cidados.

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Ibid., p, 26.

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Destarte, os Estados que se opuserem ao princpio da prevalncia dos direitos humanos tendem a sofrer com o isolamento da comunidade internacional, alm de arcar com sanes diplomticas e embargos comerciais9. Tais sanes tem o efeito prtico de limitar ou cercear a soberania do Estado dito infrator. Entretanto, preciso esclarecer que a deciso de punir ou no determinado Estado menos humanitria que poltica, posto que a soberania, mais alm de um princpio formal, tambm um campo poltico de conflitualidades e negociaes entre sociedades do Norte e do Sul, entre Estados mais poderosos e perifricos do sistema internacional (RIBEIRO, 2008, p. 47). Esta constatao revela que o princpio da igualdade entre os Estados positivado pelo direito internacional no se aplica ipsis litteris na prtica da conduta dos Estados. Igualmente, sanes a possveis violadores dos direitos humanos no so isentas de interferncia poltica. Velasco e Cruz (2004, apud RIBEIRO, 2008, p. 50) prope um modelo que engloba trs estgios distintos de soberania. No primeiro deles, chamado pelo autor de ordem internacional clssica, os Estados soberanos prevaleciam com total poder de mando e liberdade de ao em detrimento dos direitos humanos. No segundo estgio, a integridade da pessoa humana ganha relevo em relao ao poder outrora ilimitado dos Estados. A partir desse momento, a condio humana j no mais pode ser suprimida em nome da raison dtat (razo de Estado). No ltimo estgio, hipottico, os princpios normativos que garantizam os direitos humanos sero universalmente compartilhados pelos membros da comunidade internacional. O modelo explicativo de Velasco e Cruz, ainda que no se possa comprovar de modo exato no campo prtico, possui o mrito de elucidar a evoluo da defesa dos direitos humanos ao longo do tempo, muito embora este processo no seja linear, porquanto apresente avanos e retrocessos, os quais so impulsionados pela participao ativa da opinio pblica mundial e contidos, por vezes, por fatores de ordem interna dos Estados. Mediante tais reflexes, percebe-se a necessidade de rediscutir e reformular o conceito de soberania luz dos desafios e da realidade do mundo contemporneo, uma vez que a concepo de Estado-soberano, enquanto ente inflexvel e onipotente, j no mais corresponde realidade scio-poltica dos tempos atuais.

Cuba, Coria do Norte e Mianmar so exemplos de Estados que sofrem o isolamento da comunidade internacional devido aos constantes desrespeitos aos Direitos Humanos. Tais aes, contudo, no esto isentas de questes de ordem poltica e estratgica, sobretudo no que concerne a Cuba, pas que desde 1959 mantm relaes conflituosas com os Estados Unidos da Amrica.

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Neste cenrio de crescente interdependncia e de reconfigurao das Relaes Internacionais, torna-se cada vez mais complexo conciliar interesses e encontrar solues para as disputas entre os Estados. Destarte, o exerccio da diplomacia de grande importncia, medida que se torna ferramenta essencial para a convivncia entre os membros da comunidade internacional. Por esta razo, estudaremos a seguir como se d a relao entre Soberania e diplomacia, a partir da anlise do surgimento da diplomacia e da evoluo de seus institutos ao longo do tempo.

2.2 Soberania e Diplomacia

O reconhecimento internacional de valores universais relacionados pessoa humana, tais como os direitos humanos e as liberdades individuais, alm da consolidao de parmetros reguladores das relaes interestatais, a exemplo dos princpios da no interveno, da no ingerncia e da auto-determinao dos povos, devem-se a um longo e rduo processo diplomtico, o qual fora exercitado continuamente ao longo de dcadas. Tais princpios, gestados a partir do final do sculo XVIII ganham impulso no PsSegunda Guerra Mundial. Com o fim do conflito, a diplomacia passa a exercer papel de destaque nas relaes internacionais, medida que os pases receosos da ecloso de um novo conflito mundial, desta vez de propores apocalpticas, haja vista o destrutivo potencial nuclear demonstrado pelos Estados Unidos no lanamento das bombas atmicas sobre Hiroshima e Nagasaki substituem a lgica belicista por esforos diplomticos, no sentido de arquitetar uma sociedade internacional menos anrquica, tendo como princpio basilar o Direito Internacional. Por esta razo, pode-se afirmar que a diplomacia implica, em certa medida, elemento de flexibilizao da Soberania, uma vez que as diversas convenes e acordos celebrados, tanto em nvel bilateral quanto multilateral, vinculavam os Estados contratantes a obrigaes internacionais pacta sunt servanda as quais se constituem, grosso modo, em limitao do poder discricionrio dos Estados signatrios.

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Situados esses aspectos, convm analisar o percurso percorrido pela diplomacia para compreender como esta arte desenvolveu-se e consolidou-se ao longo dos sculos, atingindo o seu estgio atual. Segundo Biancheri (2005, p.17), a diplomacia inconstante e difcil de definir na essncia [...]. Ao contrrio do que possa parecer, o autor no afirma a impossibilidade de apreender cognitivamente a diplomacia, mas sim a sua dificuldade de delimitao, dada a abrangncia e a multiplicidade de conotaes que o termo encerra. Contudo, o prprio Biancheri aponta que diplomacia a forma como um dado pas entre vrias opes possveis procede a suas escolhas nas relaes internacionais e assevera que o objetivo da diplomacia a busca do acordo. Por sua vez, para o Houaiss (2008), a diplomacia consiste na conduo dos negcios estrangeiros de uma nao, seja diretamente por seus governantes, seja por seus representantes acreditados em outro pas ou rgo internacional, ou, cincia ou arte de negociar, visando defesa dos direitos e interesses de um pas perante governos estrangeiros. O termo embaixador do latim ambactiare designa o cargo de mais alta distino dentro da hierarquia diplomtica, sendo superado apenas pelo de chanceler, que equivale a ministro das Relaes Exteriores. Embaixada, palavra de mesma raiz etimolgica, designa tanto o local de residncia e trabalho do embaixador, quanto a comitiva que o acompanha em misso. Os primeiros registros de atividades diplomticas substanciais e sistemticas ocorrem na Grcia antiga. Durante a Guerra do Peloponeso, que ops os persas aos atenieneses e espartanos, houve uma intensa atividade diplomtica que culminou com a aliana militar celebrada entre a Liga do Peloponeso, sob a liderana de Esparta e a Liga de Delos, tendo a frente Atenas. A partir do sculo XIV a diplomacia vive um perodo de grande florescimento com as atividades das repblicas italianas no mediterrneo. No sculo XV as embaixadas extraordinrias so substitudas por misses residentes10 e no centenrio seguinte a atividade diplomtica j se encontrava largamente difundida por toda a Europa. Entretanto, atribui-se ao cardeal Richelieu, a primeira grande iniciativa de sistematizao da atividade diplomtica dentro de uma estrutura burocrtica centralizada. Isto ocorre com a inaugurao do Ministrio

Francesco Sforza, duque de Milo, foi o primeiro chefe de misso diplomtica permanente, com sede em Gnova no ano de 1455.

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das Relaes Exteriores da Frana, no ano de 1626, considerado por muitos o pioneiro dos ministrios nos moldes modernos. As negociaes da Paz de Westeflia podem ser consideradas uma espcie de prvia das conferncias internacionais da atualidade. Para Biancheri (2005), a Paz de Westeflia marca o incio da diplomacia em sentido prprio. As funes do diplomata consistiam em negociar, informar, representar e proteger os compatriotas, num contexto marcado pelo equilbrio da balana de poder na Europa continental, formando o que se convencionou chamar de diplomacia clssica. A bem da verdade, ao longo de pouco mais de trs sculos, as atribuies bsicas do diplomata permaneceram as mesmas. Representar o seu pas, negociar em nome do seu governo, manter o Estado emitente atualizado acerca dos acontecimentos e conjuntura do pas acreditado e zelar pelo bem estar dos seus compatriotas, continuam sendo as atribuies dirias do diplomata. Pode-se dizer que as maiores mudanas ocorreram no ambiente de atuao, devido grande quantidade de objetos possveis, que vo desde negociaes polticas clssicas, at temas como imigrao ilegal, narcotrfico e proteo ambiental. Neste sentido, o diplomata hodierno v-se obrigado a desenvolver mltiplas competncias e demonstrar alta capacidade de adaptao e reciclagem, alm de preservar as caractersticas tradicionais do ofcio, tais como o cosmopolitismo e o ecletismo intelectual. Desde os primrdios, a atividade diplomtica caracterizou-se pelo formalismo e seletividade de seus quadros, dando origem a uma classe homognea, corporativa e de difcil penetrao por pessoas de fora do ciclo. Antes da introduo dos critrios de isonomia e meritocracia to caros burocracia contempornea exigia-se, para o exerccio da carreira diplomtica, que o candidato fosse oriundo de classes sociais mais elevadas e gozasse de alto poder aquisitivo, condio sine qua non para o ingresso na carreira, disto resulta o carter altamente aristocrtico da profisso. Isto era vlido no s no Brasil, mas em quase todo o mundo. Atualmente, a maioria dos pases realiza o recrutamento de seus quadros atravs de concursos pblicos e outras formas de seleo. No Brasil, o Instituto Rio Branco o rgo responsvel pelo recrutamento e aperfeioamento do corpo diplomtico brasileiro, rgo de excelncia internacionalmente reconhecida, graas ao virtuosismo intelectual e slida formao de seus recursos humanos.

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Com o fim da Segunda Grande Guerra, a vida internacional passou por um longo processo de multilateralizao que se iniciou com a constituio das Naes Unidas, a que se seguiu o surgimento de inmeras agncias internacionais reguladoras as chamadas agncias ou organismos da famlia da ONU . No obstante, a tendncia de multilateralizar as relaes internacionais sofreu um longo interstcio, devido ao antagonismo que ops a Unio Sovitica aos Estados Unidos. Com a quebra da bipolaridade, a sociedade internacional volta a se configurar de forma multilateral, malgrado o unilateralismo protagonizado pelos Estados Unidos na defesa de seus interesses. A consequncia prtica do avano do multilateralismo a crescente demanda de recursos humanos por que passam a maioria dos pases membros da comunidade internacional. A crescente institucionalizao de todas as reas da vida internacional resultou no surgimento de um exrcito de profissionais que, de alguma maneira fazem diplomacia, ainda que no sejam diplomatas de formao. Assim, se identifica, atualmente, no mundo diplomtico dos organismos internacionais, dois tipos de profissionais em atuao. De um lado, o diplomata de carreira diplomata clssico aquele profissional generalista que atua, notadamente, em temas polticos e nas tomadas de deciso. E de outro, o especialista: militares, tcnicos, burocratas, estudiosos de reconhecido saber, etc., os quais tem atuao pontual sob determinadas questes e trabalham formalmente para organismos internacionais ou exercem funes ad hoc em temas sobre os quais seu know how requisitado. Assim,todo indivduo que participar de uma deciso entre Estados, seja ela sobre a concesso de canais de televiso, sobre os nveis de emisso de gases nocivos ou sobre os destinos da paz ou da guerra no Oriente Mdio, representar os interesses do seu pas e, portanto, desenvolver atividade diplomtica e, desta forma, no que diz respeito, far poltica externa (BIANCHERI, 2005, p. 126).

Apesar do catastrofismo de alguns e do excessivo conservadorismo de outros, a crescente participao de no-diplomatas na vida poltica internacional no supe o fim da carreira de diplomata, ou sequer, sua perda de importncia e prestgio. No complexo e conflituoso mundo em que vivemos, a atuao do diplomata ser sempre necessria e imprescindvel, prova disso, a importncia que os Estados do a suas respectivas chancelarias. Importncia essa, observada no cuidadoso e exigente processo de recrutamento de seus quadros.

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Em contrapartida, a proliferao de temas e objetos possveis atividade diplomtica demanda de forma crescente a atuao de especialistas, quer seja na anlise de situaes reais, quer seja na prospeco de cenrios futuros, atravs de observaes e proposies tcnicas. Portanto, alm do olhar poltico do diplomata, necessita-se atualmente do olhar tcnicoadministrativo dos funcionrios internacionais, os quais tem como principal atribuio, munir os negociadores de dados precisos e confiveis necessrios s tomadas de deciso. No mundo contemporneo, marcado por um alto grau de complexidade, a diplomacia torna-se ferramenta imprescindvel, j que os conflitos de interesse e as disputas tendem a se intensificar em funo da maior interdependncia existente entre os atores da comunidade internacional (Estados, Organismos Internacionais e No Governamentais, empresas, etc.). , portanto, neste cenrio de polifonia e instabilidade que a diplomacia exerce seu papel de mediao, contribuindo para a construo de um mundo menos instvel e mais inclusivo. Na discusso sobre o papel da diplomacia no mundo contemporneo, cabe analisar a diplomacia multilateral das Naes Unidas. A ONU organismo criado em 1945 constitui a maior experincia de organizao supranacional da histria da humanidade. Concebida como instrumento de promoo da paz e da segurana internacional, sua atuao controvertida e tem sido alvo de duras crticas, sobretudo durante os primeiros anos deste sculo. Em que pesem as crticas dirigidas organizao, os progressos alcanados na esfera diplomtica so notrios, vis-a-vis as dezenas de misses de manuteno da paz realizadas ao longo de mais de cinco dcadas de existncia. Igualmente no se pode obliterar a importncia da ONU para a promoo do multilateralismo e da convivncia pacfica entre os povos. Notese que a referida organizao foi o mecanismo pelo qual os novos Estados-nacionais, surgidos das guerras de independncia dos anos 50, 60 e 70, ingressaram na comunidade internacional. Ademais, o avano na discusso de inmeros temas da agenda internacional deve-se, em grande medida, a atuao engajada da diplomacia multilateral onusiana. Neste sentido, podem-se citar como exemplos as conferncias temticas ocorridas a partir da dcada de noventa do sculo passado, dentre as quais merecem destaque a II Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Humano conhecida como Rio 92 , a Conferncia Mundial sobre Direitos Humanos, realizada em Viena em 1993 e o Protocolo de Kioto, assinado em 1997.

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Se por um lado houve acertos, sobretudo no que diz respeito promoo do multilateralismo e do Direito Internacional, vrias foram as ocasies nas quais a diplomacia multilateral onusiana mostrou sua fragilidade, a exemplo da omisso da ONU com relao ao genocdio de Ruanda, fato que constitui a maior mcula da histria da organizao. Recentemente a crtica situao do Oriente Mdio, agravada pela guerra do Afeganisto e pela invaso do Iraque, ambas ocasionadas por atitudes unilaterais dos Estados Unidos, gerou imenso constrangimento a organizao, uma vez que tais medidas foram tomadas em detrimento das suas resolues e contra as admoestaes e apelos de toda a comunidade internacional. Diante do desprestgio da ONU e do questionamento acerca da sua real capacidade de promover e garantir a paz cabe indagar as razes diretas e indiretas de seu aparente fracasso. Uma das principais causas diagnosticadas a necessidade de reformulao do organismo, para que suas aes gozem de maior legitimidade e eficcia. importante perceber que a ONU foi criada num contexto poltico marcado pelo fim da II Guerra Mundial e pelo incio da Guerra Fria e que tal contexto reflete-se na estrutura organizacional e no modus operandi da organizao. Com a exausto do paradigma bipolar capitalista-socialista e o avano da globalizao, tal modelo j no mais reflete a correlao de foras no mundo real. Sendo assim, faz-se necessria uma reformulao do organismo, de modo a promover uma participao mais ativa e democrtica dos seus membros. A esse respeito comenta Amorim que o projeto de reforma [ ] [da ONU] deve [...] buscar um equilbrio satisfatrio entre a preservao da essncia do sistema multilateral, conforme os preceitos da Carta de So Francisco, e sua adequao a condicionantes novas do mundo contemporneo.11 As condicionantes novas a que o ministro se refere seriam os pases emergentes, dentre os quais o Brasil. A diplomacia brasileira, por sua vez, tem atuado intensamente a fim de impulsionar o processo de reforma da organizao e, mais especificamente, do Conselho de Segurana, tendo declarado seu interesse em fazer parte do rgo na qualidade de membro permanente. Consoante o ministro Celso Amorim, a candidatura brasileira deve-se ao peso poltico, econmico e demogrfico do pas e a suas credenciais diplomticas. Tais atributos, na sua viso, credenciariam o pas no pleito por um assento permanente num conselho ampliado. O conjunto de mudanas scio-polticas percebidas nas Relaes Internacionais, o surgimento de novas demandas sociais em escala local e transnacional e a ineficcia das11

AMORIM, Celso L. N. Conferncia proferida no IEA em 2 de abril de 1998.

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polticas pblicas dos governos centrais voltadas para a promoo do bem estar das comunidades locais, aliada a forte influncia exercida pela revoluo telemtica, concorrem para a reconfigurao interna do Estado e das formas de exerccio da diplomacia. Este novo cenrio encerra uma tendncia de descentralizao e democratizao das esferas de poder. Destarte, o monoplio poltico dos Estados-centrais passa a ser questionado, abrindo-se terreno a experimentaes de toda a ordem. Uma destas experimentaes diz respeito a paradiplomacia: o crescente envolvimento de governos no-centrais nas Relaes Internacionais, fenmeno polmico que tem se intensificado ao longo das ltimas dcadas, fornecendo um novo elemento de anlise do Estado e das Relaes Internacionais. Vale ressaltar que tal fenmeno sintomtico do processo de reestruturao e redistribuio de competncias por que passa o Estado moderno. A seguir, sistematizaremos alguns conceitos de paradiplomacia luz de alguns autores e analisaremos os elementos de cooperao e conflito da paradiplomacia a partir de uma viso dialtica, avaliando suas repercusses no Brasil.

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3. PARADIPLOMACIA

3.1. Paradiplomacia: definies e elementos conceituais

O primeiro passo para a compreenso do fenmeno paradiplomtico e suas implicaes est na correta apreenso conceitual do termo. Para tanto, tomaremos suas definies por parte de alguns autores. Consoante Zabala (2000 apud RIBEIRO, 2008, p. 73),

[...] o neologismo paradiplomacia surgiu nos anos 1980 de forma inocente e emprica no campo da poltica comparada de estados federados e da teoria renovada do federalismo, especificamente na literatura norte-americana, onde o prefixo para designaria alm de algo paralelo, algo associado a uma capacidade acessria ou subsidiria, referindo-se atuao diplomtica dos governos subnacionais.

Para Gambini (2007) paradiplomacia consiste na possibilidade de unidades subnacionais (estados-membros, provncias, regies, cidades e demais unidades polticoadministrativas) formularem e executarem uma poltica externa prpria, independentemente do auxlio da Unio. Conforme (MOREIRA, SENHORAS & VITTE, s/d, p. 2).

A paradiplomacia um tema de crescente importncia na rea das relaes internacionais que se refere aos processos da extroverso de atores subnacionais como governos locais e regionais, empresas, organizaes no governamentais que procuram praticar atos e acordos internacionais a fim de se obterem recursos e resolverem problemas especficos de cada rea com maior rapidez e facilidade sem a interveno dos governos centrais.

Segundo Mariana de Barros e Silva (2006), consiste em qualquer participao supranacional de sujeitos desprovidos de personalidade jurdica internacional, ou seja, unidades subnacionais (estados, municpios, etc.). Para ela, o fenmeno paradiplomtico

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encerra uma relativizao do conceito hobbesiano de soberania dos Estados12, refletindo a tendncia do mundo ps-moderno de reinventar novas formas de lidar com as relaes de poder. neste contexto que as unidades subnacionais passam a reivindicar maior autonomia na conduo de polticas de alcance internacional, bem como participao ativa na formulao da poltica externa estatal. o chamado movimento paradiplomtico centrfugo (KUGELMAS E BRANCO, 2004). Uma das mais difundidas definies de paradiplomacia afirma ser esta

o envolvimento de governos no centrais nas relaes internacionais, mediante o estabelecimento de contatos permanentes e ad hoc, com entidades pblicas ou privadas estrangeiras, com o objetivo de promoo socioeconmico (sic) e cultural, bem como de qualquer outra dimenso exterior nos limites de sua competncia constitucional. (PIETRO apud RODRIGUES, 1998, p.443).

Pode-se ainda encontrar termos genricos referidos, tais como: a) Diplomacia Federativa expresso oficialmente utilizada pelo Ministrio das Relaes Exteriores MRE ; b) Poltica Externa Federativa. Rodrigues (1998) faz distino entre esses dois termos. Segundo ele, a Diplomacia Federativa refletiria a perspectiva do governo federal, ao passo que a Poltica Externa Federativa, ilustraria a viso descentralizada dos governos subnacionais; c) Micro-diplomacia, termo encontrado na literatura anglo-sax; d) Poltica Externa de Cidades terminologia exclusiva para cidades -; e) Protodiplomacia caso particular do Quebec13 e f) Diplomacia Empresarial, que no se aplica esfera de atuao do poder pblico, muito embora possa exercer influncia sobre ela. Alm dos conceitos supracitados, h outros que nos auxiliam na compreenso do termo paradiplomacia, a saber: relaes transgovernamentais as que vinculam os atores de diferentes estruturas de governos que estabelecem relaes diretamente com representantes de estruturas similares em outros pases com organismos internacionais e com atores no governamentais (SALOMN; NUNES, 2007, p. 102); Novos atores ou new voices que so unidades subnacionais ou subestatais (estados, municpios), sociedade civil organizada e12

Thomas Hobbes tinha uma viso bipolar da sociedade. Concentrava num plo a figura do indivduo (ou da infinidade generalizada dos mesmos) e no outro, a do Leviat (Estado). Nem a famlia nem geraes e geraes marcadas por uma potncia hereditria, enfim nada, era considerado relevante na estrutura de uma organizao social que no as duas partes do contrato social (SILVA, 2006).

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O Quebec uma regio autnoma, localizada no sudeste do Canad, que possui lngua, costumes e legislao diversa do restante do pas, constituindo exemplo suis generis de ao paradiplomtica.

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corporaes multinacionais; Unidades subnacionais - tambm chamadas de unidades subestatais, entes federados, agentes de segmentao e unidades constituintes dizem respeito s prefeituras, estados-federados, provncias, departamentos, cantes, regies, etc., segundo a designao que dada em cada pas; Sovereignty-bound atores condicionados pela soberania: governos centrais dos Estados-nacionais e; Sovereignty-free atores livres de soberania: unidades subnacionais (ROSENAU apud SALOMN; NUNES, 2007). A respeito dos atores livres de soberania Sovereignty-free e dos atores condicionados pela soberania Sovereignty-bound, Salomn e Nunes (2007, p. 103) afirmam que os

atores condicionados pela soberania (basicamente os governos centrais) esto obrigados por suas responsabilidades soberanas a prestar ateno s mltiplas questes includas na agenda global e a distribuir seus recursos entre elas, enquanto os atores livres de soberania, com responsabilidades menos dispersas, tm liberdade para buscar objetivos mais limitados e concretos.

O surgimento de new voices ou novos atores globais, compreende o conceito de segmentao. Consoante Soldatos (1990), h dois tipos de segmentao: A segmentao territorial ou vertical, que ocorre quando os diversos nveis da administrao (federal, estadual, municipal) exercem atividades internacionais e participam do processo de elaborao da poltica externa do Estado. E a segmentao funcional ou horizontal, quando dentro de um mesmo nvel administrativo, diversas agncias, secretarias, departamentos ou ministrios participam da elaborao e conduo da poltica externa. Os dois tipos de segmentao no so competitivos ou excludentes. Pelo contrrio, o que se observa uma grande interao entre ambos, compondo uma terceira forma de segmentao - hbrida e dinmica com benefcios mtuos para os dois nveis da burocracia. Por sua vez, Salomn e Nunes (2007) propem uma diviso segundo as dimenses de atuao dos entes paradiplomticos. A primeira, dimenso institucional, compreendendo a estrutura paradiplomtica per si. A segunda, dimenso substancial, abrangendo a agenda e os instrumentos utilizados. Logo, qualquer administrao, seja ela local ou regional, que se proponha a desenvolver aes no plano internacional, deve levar em considerao essas duas dimenses no planejamento de suas aes.

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Tratando sobre os diversos nveis de relaes paradiplomticas, Lessa (apud BRANCO, 2007, p. 57, 58) prope uma classificao a partir dos conceitos de microdiplomacia regional, microdiplomacia fronteiria, microdiplomacia transregional e paradiplomacia global, significando, respectivamente:

contatos entre unidades no centrais fronteirias em diferentes Estados, contatos entre unidades no centrais sem fronteiras comuns, mas cujos Estados nacionais so limtrofes, e contatos polticos entre unidades pertencentes a Estados distantes, que estabelecem ligaes no apenas entre centros comerciais, industriais e culturais em outros continentes, mas tambm com os vrios ramos ou agncias de governos nacionais estrangeiros.

Os exemplos supracitados certamente no exaurem toda a taxonomia relacionada ao fenmeno paradiplomtico, servindo apenas para demonstrar a riqueza terminolgica e conceitual produzida pela literatura especializada. O esforo de apreenso e a diversidade de terminologias adotadas pelos estudiosos demonstram que a paradiplomacia no um fenmeno estanque, porquanto apresente vrias nuances, segundo o contexto de cada regio ou localidade. O ponto de convergncia entre todas estas formas de atuao paradiplomtica a tendncia de descentralizao e compartilhamento de responsabilidades na conduo da poltica externa dos Estados. Seja qual for a designao dada a estas atividades (relaes transgovernamentais, microdiplomacia, paradiplomacia, etc.), todas tem como objetivo fundamental a articulao de polticas externas mais participativas que levem em conta as peculiaridades e necessidades regionais e locais .

3.2 Paradiplomacia: uma viso dialtica

O carter dialtico da paradiplomacia , antes de tudo, reflexo da dinmica do mundo contemporneo, causada pelo aprofundamento do processo de globalizao. A quebra da barreira espao-tempo e a flexibilizao das fronteiras propiciada pela expanso dos mercados, remodelou a forma de interao dos agentes sociais em todas as partes do mundo. Neste cenrio, a dicotomia local-global torna-se cada vez mais ilegvel, uma vez que os elementos de um e de outro se confundem, formando um todo complexo e homogneo.

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Exemplo indelvel de tal afirmativa o processo de elaborao da poltica externa dos Estados. Num contexto onde a nova lgica internacional apresenta-se marcada pela ascenso das localidades [...] (RIBEIRO, 2008, p. 59), em funo da nova configurao do sistema internacional, a qual favorece e estimula a participao direta do poder local nas relaes internacionais (RODRIGUESb, 2004 apud RIBEIRO, 2008, p. 120), a poltica domstica encontra-se de tal modo presente na formulao e conduo da poltica externa que, por vezes confunde-se com aquela. Alm disso, a poltica externa, no raras vezes, um meio de perseguir objetivos de poltica domstica, atendendo a demandas e presses de grupos internos. Por esta razo, Silva (2006, p. 76) declara ser [...] infrutfero debater se a poltica domstica que influencia as relaes internacionais, ou vice-versa. A resposta bvia: ambas, s vezes. Logo, as perguntas mais pertinentes seriam em que momento e como (traduo nossa)14. Considerando esta reflexo, percebe-se a correlao de elementos endgenos e exgenos nas aes dos Estados na seara internacional. Neste sentido, Brigago (apud CEZRIO; ANDRADE, 2005, p. 5) afirma que a dinmica complexa da globalizao aponta para o fortalecimento do poder local, que em muitas circunstncias se revela um espao de mediao eficaz entre as demandas dos cidados e o carter transnacional. Se para o autor a globalizao indica o fortalecimento do poder local e este representa um espao privilegiado de mediao, podemos dizer, a partir disso, que se torna vivel uma associao direta entre globalizao e paradiplomacia. A onda pacifista do mundo ps II Guerra Mundial e o iderio de cooperao entre as naes para o progresso da humanidade, expressa na criao da ONU e diversos organismos internacionais, formaram o cimento sobre o qual a cooperao internacional se desenvolveu em escala global e regional. Coube ao continente europeu, devastado pela guerra, o papel de vanguarda, com a criao em 1951 do Conselho de Municipalidades e Regies Europias. A idia da criao das redes de cidades est vinculada com a de irmanamento de cidades, a qual teve sua origem na Segunda Guerra Mundial, quando as cidades europias resolveram promover aIt is really fruitless to debate whether domestic politics really determine international relations , or the reverse. The answer is clearly Both, sometimes. The more interesting questions are When? and How?14. Op. Cit. (p,76).14

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integrao entre si para evitar o renascimento do revanchismo que poderia causar novos conflitos (GAMBINI, 2007, p 9). Vale salientar que a existncia de um sistema democrtico condio sine qua non para o desenvolvimento da paradiplomcia, haja vista o carter centralizador e noparticipativo dos regimes autocrticos, independentemente de sua orientao ideolgica. Este fator inviabiliza o fortalecimento do poder local, suprimindo a diversidade de vozes e pensamentos, em nome do pseudo-interesse nacional. Acreditamos que sistemas federativos flexveis so positivamente predispostos a lidar com problemas de interdependncia global e regional de maneira mais efetiva que sistemas autoritrios ou unitrios (DUCHACEK, 1990, p. 4)15. Em seu trabalho, Duchaceck (1990) observa que as experincias paradiplomticas mais avanadas e exitosas no mundo encontram-se em pases democrticos altamente industrializados, a exemplo da Sua, da Alemanha e do Canad.

3.3. Aspectos cooperativos da paradiplomacia

As redes de cidades16 - tendncia crescente no mundo contemporneo - so dispositivos eficazes na promoo da cooperao internacional e do desenvolvimento regional/local sustentvel, pois constituem foros privilegiados para a discusso de alternativas e troca de experincias em reas afins, tais como: urbanismo, infra-estrutura, habitao e polticas pblicas voltadas para o combate pobreza e a violncia. Outro elemento positivo a proximidade entre o poder pblico local e a populao na formulao de polticas de interesse comum, o que torna os entes subnacionais interlocutores privilegiados das populaes locais no debate internacional, medida que captam mais facilmente as demandas da populao, transformando-as em polticas concretas e compartilhadas. Dito de outro modo, os entes subnacionais, com seus tentculos e ramificaes, vo onde os governos centrais no conseguem alcanar, quebrando o distanciamento entre a poltica externa e os reais anseios da populao.We may tentatively suggest the flexible federal systems are positively predisposed to handle the problems of global and regional interdependence more effectively than unitary or authoritarian systems16

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Exemplos de redes de cidades: Sister Cities, European Sustainable Cities, Eurocities, International Network for Urban Development, World Association of Major Metropolises, World Federations of United Cities, International Union of Local Authorities, Organization of Islamic Capitals and Cities, Mercocidades, etc.

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Um dos principais aspectos da paradiplomacia a cooperao, uma vez que[...] a insero internacional das unidades subnacionais, em especial de cunho econmico, pode contribuir para a diminuio de desigualdades regionais e ser benfica para a Nao como um todo, devendo para tal, serem preservadas as diretrizes da poltica externa brasileira e haver coordenao entre os estadosfederados (FARIAS, 2000 apud RIBEIRO, 2008, p.75).

Apesar dos notrios benefcios das atividades paradiplomticas, mister fazer distino entre high politics17 e low politics18. A primeira, ligada a temas tradicionais como integridade territorial, patrulhamento de fronteiras e monoplio sobre paz e guerra, deve, de fato, ficar a cargo dos governos centrais, os quais, como detentores absolutos da soberania estatal e titulares de personalidade jurdica plena, tem o direito e o dever de tratar de tais questes. Quanto segunda, diretamente relacionada a questes de interesse local, poderiam ser conduzidas por entes subestatais no caso brasileiro estados e municpios. Outro aspecto, no menos relevante, da cooperao internacional descentralizada a construo de uma imagem internacional dos estados e municpios. Exemplo concreto a cidade de Porto Alegre que aps o Frum Social Mundial, realizado em 2001, passou a ser referncia mundial. Neste sentido, a participao de estados e municpios em organismos internacionais, como a rede Mercocidades, pode contribuir para a divulgao e promoo das respectivas localidades, como verificado em cidades tursticas como Salvador e Rio de Janeiro. Finalmente, a cooperao tcnica internacional, a captao de recursos e a promoo comercial direta constituem potencialidades a serem desenvolvidas por estados e municpios que estejam engajados em aes internacionais. Isto pode ocorrer sob vrias formas, como por exemplo, a apresentao de projetos de desenvolvimento local, para apreciao de organismos internacionais, visando o financiamento externo, a organizao de comitivas compostas por gestores pblicos e empresrios a outros pases com o objetivo de promover os atrativos tursticos e comerciais das localidades representadas, como mostra o quadro sintico, anexo I.

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Alta poltica (traduo livre) baixa poltica (traduo livre)

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3.4. Aspectos conflitivos da paradiplomacia O surgimento de new voices enseja um questionamento de ordem jurdica de grande importncia: o enquadramento dos novos atores no ordenamento jurdico internacional. Ao tratar da questo, a maioria dos doutrinadores advoga, em consonncia com a escola realista19, que apenas o Estado-nao sujeito de DIP, e, portanto, apto a celebrar tratados, assumindo responsabilidades e gozando de direitos. Nesta afirmao est implcita a recusa em reconhecer as unidades subnacionais enquanto sujeitos de DIP, devido a suas especificidades. Na anlise desta temtica, o Direito Comparado nos fornece valiosas ferramentas de anlise. Em alguns pases, a constitucionalizao da paradiplomacia encontra-se em estgio avanado, como se pode constatar na Constituio argentina, a qual prev em seu artigo 124 que:As provncias podero criar regies para o desenvolvimento econmico-social e estabelecer rgos com competncias para o cumprimento de seus fins, com o conhecimento do Congresso Nacional. Podero tambm celebrar convnios internacionais, desde que estes no sejam incompatveis com a poltica exterior da Nao e no afetem as competncias delegadas ao Governo Federal e ao crdito pblico...20 (traduo nossa)

Contrariamente Constituio argentina, a Constituio brasileira, em seu artigo 21, outorga a Unio a competncia para manter relaes com Estados estrangeiros e participar de organizaes internacionais, omitindo-se quanto possvel participao de entes subnacionais na esfera internacional. Visando preencher esse vcuo jurdico, o diplomata de carreira e ex-deputado federal Andr Costa fez uma proposta de emenda constitucional a PEC 475/2005 tambm chamada PEC da Paradiplomacia - que visa positivar a atuao internacional dos estados e municpios brasileiros. De acordo com essa proposta, municpios, estados e o Distrito Federal podero celebrar tratados e convnios com unidades subnacionais

A escola realista aborda as Relaes Internacionais a partir da perspectiva estatal, outorgando aos Estados soberanos total protagonismo, demonstrando uma viso ctica quanto a atuao dos novos atores OIGs, ONGs e unidades subnacionais. 20 Las provincias podrn crear regiones para el desarrollo econmico - social y establecer rganos con facultades para el cumplimiento de sus fines y podrn tambin celebrar convenios internacionales en tanto no sean incompatibles con la poltica exterior de la Nacin y no afecten las facultades delegadas al Gobierno Federal o el crdito pblico de la Nacin; con conocimiento del Congreso Nacional...20

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de outros pases21. Esta tentativa de constitucionalizao da ao dos entes paradiplomticos, por ser uma iniciativa sem precedente, contribui para o debate sobre os rumos da paradiplomacia no Brasil. Conforme Paquin (apud RIBEIRO, 2008, p.76):[...] com o desenvolvimento da paradiplomacia, os monoplios estatais sobre os quais repousa o sistema internacional westfaliano so colocados em xeque pelas entidades subnacionais. O Estado territorial j no mais o nico ator capaz de se engajar contratualmente com atores internacionais, e no mais o nico a ter acesso s organizaes internacionais. Alm disso, ele no detm mais o monoplio e a exclusividade da ao internacional.

A resistncia e o temor dos governos centrais em perder poder relativo frente s unidades subnacionais um dos grandes entraves ao estabelecimento de polticas e prticas paradiplomticas no Brasil e no mundo. Hobbes (apud SILVA, 2006), ao comentar a interferncia de atores no soberanos22 na conduo de polticas pblicas, argumenta que estes se assemelham a pequenas repblicas nos intestinos de uma maior, como vermes nas entranhas de um homem natural. Esta alegoria ilustra com propriedade a viso tradicionalista que enxerga nas aes paradiplomticas uma grande ameaa ao pacto federalista e integridade do Estado constitudo. Logo, a convico hobbesiana colide com a tica

descentralizada e participativa da paradiplomacia, opondo progressistas e tradicionalistas no debate sobre a reformulao do Estado. Ribeiro (2008, p. 77), por sua vez, apresenta uma viso bastante realista e equilibrada a respeito do tema, ao afirmar que:De um lado, nota-se que a entrada em cena das entidades subnacionais provoca uma atomizao da ordem internacional complicando ainda mais o funcionamento do sistema internacional, porquanto os Estados centrais no vm com bons olhos a perda progressiva de soberania exclusiva em matria de poltica externa e a ao internacional das regies pode ser vista como um atentado soberania nacional e integridade territorial. Por outro lado, o Estado central consciente de que sua poltica estrangeira lhe escapa cada vez mais com os diversos fenmenos da mundializao, da internacionalizao e da segmentao crescente das suas atividades, das burocracias e das redes profissionais.

Os Estados, Distrito Federal e municpios, no mbito de suas competncias, podero promover atos e celebrar acordos ou convnios com entes subnacionais estrangeiros, mediante prvia autorizao da Unio, observado o art. 49, I, e na forma da lei.22

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Terminolog