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    Programa performativo: o corpo-em-experinciaEleonora Fabio

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    PROGRAMA PERFORMATIVO1: O CORPO-EM-EXPERINCIA2

    Eleonora Fabio (UFRJ) 3

    ResumoPrograma Performativo: o corpo-em-experincia trata de teoria e composio de

    performance e suas relaes com a criao teatral contempornea. Aqui descrevoe discuto performances realizadas por William Pope.L para propor um

    procedimento composicional especfico: o programa performativo. Nesta reflexo anoo de Corpo-sem-rgos desenvolvida por Gilles Deleuze e Flix Guattari a

    partir da obra de Antonin Artaud referente fundamental. O programa compreendido como motor da experimentao enunciado que norteia, move e

    possibilita a experincia. Tratar do programa performativo no mbito da criaoteatral ainda evocar temas como cena expandida, corpo-em-experincia,experincia de criao de corpo e dramaturgia de ensaio.

    Palavras-chave : Performance, Programa Performativo, Experimentao, Corpo-sem-rgos,Dramaturgia do Ensaio.

    Abstract Performative program: the body-on-experience reffers to performance theory andcomposition and its relationship to contemporary theatrical creation. Here, I describeand discuss performances made by William Pope.L to propose a specific compositionalprocedure: the performative program. In this paper the notion of "body-without-organs"developed by Gilles Deleuze and Flix Guattari from the work of Antonin Artaud isessential referent. The program is understood as "motor of the experimentation" statement that guides, moves and allows the experience. Treating the performativeprogram within the theatrical creation is still evoke themes as expanded scene, body-on-experience, experience of body creation and rehearsal dramaturgy.

    Keywords : Performance; Performative Program; Experimentation; Body-without-organs; Rehearsal Dramaturgy.

    1 Nota do Editor: as notaes de referencia so da prpria autora.

    2 Este texto uma verso ampliada do artigo Performance: modos de pertencer e criar mundo In: BienalInternacional de Dana do Cear_Um Percurso de Intensidades (Fortaleza: Expresso Grfica e Editora,2011). Aqui foco no tema da mesa em que participei no II Simpsio Internacional Reflexes CnicasContemporneas: Conduo de trabalho: pedagogias, treinamentos e processos criativos.

    3 Eleonora Fabio performer e terica da performance. Professora do Curso de Direo Teatral e daPs-Graduao em Artes da Cena da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Estudos daPerformance (New York University). Fabio tem realizado performances e publicado no Brasil, Europa e

    Amricas. Instituies onde lecionou recentemente incluem Departamento de Estudos da Performance(NYU), Departamento de Teatro da Freie Universitt Berlin, Norwegian Theater Academy, Departamentode Artes do Movimento da IUNA (Buenos Aires) e SP Escola de Teatro. Em 2011 recebeu o prmioFUNARTE Artes na Rua com o projeto Aes Cariocas.

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    Se tivesse que dar outro nome ao que fao,se no chamasse de performance,

    chamaria de prtica.

    William Pope.L, O Artista Negro Mais Amigvel da Amrica

    1. A prtica da performance

    Trajando palet e gravata pretos, camisa branca, e levando na mo um vasinhocom pequenas flores amarelas, William Pope.L rasteja pelas ruas de Nova Iorque. Estaperformance Rastejamento na Tompkins Square (Tompkins Square Crawl 1991) parte de uma srie de rastejamentos iniciada no final dos anos 1970. A operao mnima: ao invs do caminhar civil, civilizado, bpede, Pope.L desiste da verticalidade ese arrasta como um bicho rasteiro ou um soldado em campo de batalha. Ao invs deevitar sujar o palet e movimentar-se de modo eficiente e discreto como bom senso esenso comum recomendam, o performer emporcalha-se, executando uma aoextenuante e de forte impacto visual em sua dissonncia comportamental. Ao invs de

    otimizar gasto e benefcio, utiliza o mximo de energia para realizar deslocamentomnimo. Ou seja, perde tempo ao invs de ganhar tempo na cidade capital do capital.Fato que William Pope.L, homem afro-americano de origem humilde, atravs de umaao de simplicidade atroz, radicaliza seu atrito (contato) com o corpo do mundo eliteraliza seu atrito (resistncia) s normas de boa conduta neste mundo. O vasinho deflores amarelas o toque-lrico? Absurdo? Humorado? Ridculo? Potico? Pattico?Sublime? Pueril? Triste? Indispensvel para que a ao ganhe mais camadas designificao e assim vibre mais; ou ainda, para que torne-se mais descabida qualquertentativa de fechar uma interpretao da pea. Em geral, performers no pretendemcomunicar um contedo determinado a ser decodificado pelo pblico mas promover umaexperincia atravs da qual contedo s sero elaborados. Pope.L: Artistas no fazem

    arte, eles fazem conversas. Eles fazem coisas acontecerem. Eles modificam o mundo.4

    Pois no caso desta performance, uma das conversas instigadas pelo artistaaconteceu no momento mesmo do rastejamento. Um passante negro indignou-se com oamigvel Pope.L, suas florezinhas amarelas e o cinegrafista branco contratado peloartista. Voc pagou esse cara para te filmar rastejando na rua irmo? Eu visto umterno como esse para ir trabalhar ! Voc no tempermisso para fazer isso disse otranseunte na tentativa de persuadi-lo a levantar-se 5. Pope.L no parou; solicitou a seu

    4 Pope L. citado por BESSIRE, Mark H.C.. The Friendliest Black Artist in Amrica In: William Pope.L,The Friendliest Black Artist in America, Mark H. C. Bessire (ed.) (Cambridge and London: MIT Press,2002), p. 22.

    5 Op. Cit. p. 174-175. (grifos meus)

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    interlocutor que o deixasse trabalhar ; props que conversassem uma vez concluda aperformance. O passante retirou-se e foi chamar a polcia.

    A Pope.L interessa gerar zonas de desconforto6 como diz, realizar aes quetragam desconforto fresco para um problema antigo7 e apenas aparentementeresolvido. Na Pea ATM ( ATM Piece 1997)8, por saber da existncia de uma lei queprobe pedintes de posicionarem-se a menos de 3 metros da porta de bancos e caixaseletrnicas, Pope.L demarca a distncia entre seu corpo e uma agncia do ChaseManhattan Bank com uma corda de linguias da mesma medida amarra umaextremidade em seu pulso e outra na porta do banco para que, com a demarcaoclaramente estabelecida, se mantenha dentro da lei. Sem camisa, vestindo uma saia at

    a metade das coxas feita com cdulas de 1 dlar, botinas marrons e culos de grau, oamigvel performer adere comicamente lei. Seu objetivo no pedir mas dar aosclientes que adentrem o banco, uma a uma, as cerca de 80 cdulas que compem suasaia. Porm a strip-tease dura apenas os segundos que antecedem a chegada de umsegurana que se comunica com seu superior por walkie-talkie: H aqui um homemnegro amarrado porta com uma corda de linguias9. Pea ATM cena-no-cena queinclui walkie-talkies, atos de fala, fardas, palets, cidados, calada, cmeras, dinheiro,cor, raa, gnero, classe, leis e tudo o mais que for engolfado pelo performer, sua ao,sua saia e suas linguias. Porm, apesar das aes custicas que performa, Pope.L nose considera nem um revolucionrio, nem um militante, mas um lembrete: sou maisprovocador que ativista10.

    Em Levitando Leite de Magnsia (Levitating Magnesia Milk , 1992) o provocadorcomplicador copyright veste pijamas e gorro de Papai Noel. Numa galeria, senta-senuma poltrona e coloca diante de si, sobre um engradado de bebidas branco virado delado, um frasco de leite de magnsia. Fixa na vitrine do espao um pster virado para arua com o enunciado do programa em andamento: Vou sentar numa poltrona por 3 dias(de quinta sbado) e tentar fazer levitar um frasco de leite de magnsia. No sbado s17:30 me levantarei11. Ao lado da poltrona, garrafas dgua, comida, papel higinico euma comadre. Pope.L passa ento os 3 dias dedicado a fazer flutuar o branco caldolaxativo que, como se sabe, faz descer fezes marrons seja de homens brancos, azuis,verdes, pretos ou amarelos. Pope.L diz: Meu trabalho, de certa maneira, perguntaraos americanos que auto-imagem eles querem para si. Queremos uma imagem demedo e obedincia, ou de aventura e democracia? 12 6 Ver CARR, C. In the Disconfort Zone In: Op. Cit. p. 48-53.

    7 Pope L. citado por WILSON, Martha. Limited Warranty In: Op. Cit. p. 45.

    8 Nos Estados Unidos, Automatic Teller Machine (ATM) caixa eletrnica ou banco automtico.

    9 Pope L. citado por WILSON, Martha. Limited Warranty In: Op. Cit. p. 45.

    10 Pope.L citado por BESSIRE, Mark H. C.. In: Op. Cit. p. 23.

    11 Op Cit. p. 213.

    12 William Pope L. entrevistado por Chris Thompson:

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    Levitando Leite de Magnsia ativa misturas bizarras: extra-sensorialidade e ultra-organicidade, deboche e tenacidade, cara-de-pau e lirismo, piada e solido, utopia efingimento, poltica de identidade e idiotia de delirante, ritual e circo, mgica e merda.Trata-se de dramaturgia feita de contradies la Pope.L, misto de xam e palhaocomo se descreve. O perfomer comenta a pulso paradoxal de sua cena-no-cena:Esta arte no faz sentido. Eu suspeito das coisas que fazem sentido. Talvez eu tenhamedo de falsa segurana. Entretanto contradio faz sentido para mim. Quando euconsegui aceitar que algo era verdadeiro e no verdadeiro, me senti em casa. 13

    2. Programa performativo

    Sugiro que a desconstruo da representao, to fundamental na arte daperformance, operada atravs de um procedimento composicional especfico: oprograma performativo . Chamo este procedimento de programa inspirada pela usoda palavra por Gilles Deleuze e Flix Guattari no famoso 28 de novembro de 1947como criar para si um Corpo sem rgos. Neste texto os autores sugerem que oprograma o motor da experimentao14. Programa motor de experimentaoporque a prtica do programa cria corpo e relaes entre corpos; deflagra negociaesde pertencimento; ativa circulaes afetivas impensveis antes da formulao eexecuo do programa. Programa motor de experimentao psicofsica e poltica. Ou,para citar palavra cara ao projeto poltico e terico de Hanna Arendt, programas soiniciativas .

    Muito objetivamente, o programa o enunciado da performance: um conjunto deaes previamente estipuladas, claramente articuladas e conceitualmente polidas a serrealizado pelo artista, pelo pblico ou por ambos sem ensaio prvio. Ou seja, atemporalidade do programa muito diferente daquela do espetculo, do ensaio, daimprovisao, da coreografia. Vou sentar numa poltrona por 3 dias e tentar fazer levitarum frasco de leite de magnsia. No sbado s 17:30 me levantarei. esteprograma/enunciado que possibilita , norteia e move a experimentao. Proponho quequanto mais claro e conciso for o enunciadosem adjetivos e com verbos no infinitivomais fluida ser a experimentao. Enunciados rocambolescos turvam e restringem,enquanto enunciados claros e sucintos garantem preciso e flexibilidade. Outro exemplode programa performado por William Pope.L: dispor vidros de maionese numa calada etentar vender cada colherada por 100 dlares (Vendendo Maionese, SellingMayonnaise 1991) ao para performer negro, calada cinza e produto branco comvalor ofuscante. Outro: sobre a bandeira americana esticada na calada, comer o WallStreet Journal (Comendo o Wall Street Journal , Eating The Wall Street Journal 1991).

    http://muse.jhu.edu/journals/paj/summary/v024/24.3thompson.html (consulta realizada em 11/7/2013).

    13 Pope.L citado por WILSON, Martha. Op. Cit. p. 45.

    14 DELEUZE, Gilles e Flix GUATTARI 28 de novembro de 1947 como criar para si um Corpo semrgos In: Mil Plats: Capitalismo e Esquizofrenia vol.3 (So Paulo: Editora 34, 1999), p. 12.

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    Humor negro e indigesto certa sobre calada cinza com bandeira branca, azul evermelha.

    Atravs da realizao do programa, o performer suspende o que h deautomatismo, hbito, mecnica e passividade no ato de pertencer pertencer aomundo, pertencer ao mundo da arte e pertencer ao mundo estritamente como arte. Umperformer resiste , acima de tudo e antes de mais nada, ao torpor da aderncia e dopertencimento passivos. Mas adere , acima de tudo e antes de mais nada, ao contextomaterial, social, poltico e histrico para a articulao de suas iniciativas performativas.Este pertencer performativo ato trplice: de mapeamento, de negociao e dereinveno atravs do corpo-em-experincia. Reconhecimento, negociao e reinveno

    no apenas do meio, nem apenas do performer, do espectador ou da arte, mas danoo mesma de pertencer como ato psicofsico, potico e poltico de aderncia-resistncia crticos.

    3. O corpo-em-experincia e a experincia de criao de corpo

    Desarticulador de processos ditos naturais, o performer e suas prticas criam,sugiro, o que Deleuze e Guattari chamam de Corpo sem rgos. Como propem, oCorpo sem rgos no uma noo, um conceito, mas antes uma prtica, um conjuntode prticas

    15. Explicam que a criao de um CsO sempre envolve a elaborao de umprograma e o seu desenvolvimento em duas fases: Uma para a fabricao do CsO, a

    outra para fazer a circular, passar algo 16. Nesta prtica, enfatizam a indissociabilidadeentre Corpus e Socius, poltica e experimentao17. E convocam invenopsicofsica: Por que no caminhar com a cabea, cantar com o sinus, ver com a pele,respirar com o ventre, Coisa simples, Entidade, Corpo pleno, Viagem imvel, Anorexia,Viso cutnea, Yoga, Krishna, Love, Experimentao. Onde a psicanlise diz: Pare,reencontre o seu eu, seria preciso dizer: vamos mais longe, no encontramos aindanosso CsO, no desfizemos ainda suficientemente nosso eu 18. Por que no desistir daverticalidade, tentar fazer levitar um frasco de leite de magnsia, pagar 100 dlares poruma colherada de maionese ou comer o jornal de economia mais consistente de suanao? Onde bom senso e senso comum dizem: seja funcional e produtivo, seriapreciso dizer: vamos mais longe, no encontramos ainda nosso CsO, no desfizemosainda suficientemente nossos hbitos, convenes, padres.

    Atravs da realizao de programas, o artista desprograma a si e ao meio. Atravsde sua prtica acelera circulaes e intensidades, deflagra encontros, reconfiguraes,conversas, como diz Pope.L, faz coisas acontecerem. Atravs do corpo-em- 15 Ibid. p. 9.

    16 Ibid. p. 12.

    17 Ibid. p. 10.

    18 Ibid. p. 11.

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    experincia cria relaes, associaes, agenciamentos, modos e afetos extra-ordinrios.Performances so composies atpicas de velocidades e operaes afetivas extra-ordinrias que enfatizam a politicidade corprea do mundo e das relaes. O performerage como um complicador, um desorganizador; cria para si um Corpo sem rgos aorecusar a organizao dita natural, organizao esta evidentemente cultural,ideolgica, poltica, econmica. Um performer pergunta sobre capacidades epossibilidades do corpo; sobre pertencimento, excluso, mobilidade, mobilizao;pergunta: de quem esse corpo? a quem pertence o meu corpo? e o seu? umdesestabilizador profissional do que Deleuze e Guattari chamam de:

    Os trs grandes estratos relacionados a ns, quer dizer, aqueles que nosamarram mais diretamente: o organismo, a significncia e a subjetivao.[...] Voc ser organizado, voc ser um organismo, articular seu corpo,seno voc ser um depravado. Voc ser significante e significado,intrprete e interpretado, seno ser desviante. Voc ser sujeito e, comotal, fixado, sujeito de enunciao rebatido sobre um sujeito de enunciado,seno voc ser apenas um vagabundo 19.

    Para um performer, organismo, sentido e sujeito soatos nem algo, nemdados, nem plenos, nem prontos, nem repetveis, mas atos, atos performativos e,como tal, configuraes momentneas de aderncias-resistncias, modos relacionaisem devir.

    Os autores enfatizam uma regra imanente experimentao: as injees deprudncia20. Advertem:

    No se atinge o CsO e seu plano de consistncia desestratificandogrosseiramente. [...] o CsO no pra de oscilar entre as superfcies que oestratificam e o plano que o libera. Liberem-no com um gesto demasiadoviolento, faam saltar os estratos sem prudncia e vocs mesmos semataro, encravados num buraco negro, ou mesmo envolvidos numacatstrofe, ao invs de traar o plano. O pior no permanecerestratificado organizado, significado, sujeitado mas precipitar os

    estratos numa queda suicida ou demente, que os faz recair sobre ns,mais pesados do que nunca 21.

    Da mesma forma, no se atinge o corpo performativo grosseiramente. O corpoperformativo no pra de oscilar entre a cena e a no-cena, entre arte e no-arte, e justamente na vibrao paradoxal que se cria e se fortalece.

    19 Ibid. p. 22. (grifo meu)20 Ibid. p. 11.

    21 Ibid. p. 23-24.

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    Proponho que a filosofia prtica articulada em Como criar para si um Corpo semrgos, apesar de e justamente por no tratar do fazer artstico, enderea questesimportantes para a teorizao e a prtica da performance. A partir da noo de CsO possvel imaginar o vigia do Chase Manhattan Bank complementando sua descrio dohomem negro amarrado porta com uma corda de linguias. Pelo radinho ele diria:H aqui um depravado, desviante, vagabundo subvertendo a relao entre pedintes epossuidores, ricos e pobres, entre classificados e desclassificados. Imagine que ele querdar dinheiro aos nossos clientes! E diz que artista! Artista?!? O elemento umarruaceiro utilizando nossas caixas automticas, leis, hierarquias, smbolos, valores,marca, lgica e discurso para ativar um Corpo sem rgos, para suspender

    organizao, valorao, sentido e identidade. Pensa que pode sacudir significantes esignificados, estratos, demarcaes, fronteiras, leis e costumes como se fossemchocalhos? E o subversor usa linguias! Uma corrente de fedorentas, gordurosas eobscenas linguias! Sou vigia de banco, no estou aqui para ser engolfado numprograma performativo e fazer corpo com este pervertido que se faz de ingnuo!

    4. Programa performativo e criao teatral

    Interessam-me as relaes entre performance e teatro. Aqui, por questo derecorte, tratarei das maneiras como venho trabalhando e vendo ser trabalhada estaproposta de programa performativo no mbito da criao teatral.

    Primeiramente preciso dizer que a lida com programas se inclui em discussesamplas em torno da noo de cena expandida (ou campo ampliado citando RosalindKrauss22) investigada por tantos artistas hoje. Esta expanso no diz respeito somente aabsoro de qualquer matria e questo do mundo em processos de criao artstica os mais diversos materiais, metodologias, dispositivos, suportes, espaos, duraes,agentes mas tambm a experimentao com a prpria noo de arte. 23

    Em livro publicado recentemente Living as Form: socially engaged art from 1991-2011 (2012) Nato Thompson discute este movimento e diagnostica a seguinteoperao: Assim como Duchamp colocou o urinol no museu no comeo do sculo XX,talvez no seja surpresa alguma encontrar artistas retornando o urinol para o real nocomeo do sculo XXI24. Porm, o curador alerta: Esta manobra pode ser facilmente

    22 Ver KRAUSS, Rosalind. Sculpture in the Expanded Field (1978) In: The Originality of the Avant-Gardeand Other Modernist Myths (Cambridge and London: MIT Press, 1999).

    23 Interessados em dialogar sobre a noo de cena ampliada, promovemos no Curso de Direo Teatralda Escola de Comunicao da UFRJ em novembro de 2011, o simpsio Cenas Transversais: Artes emTrnsito. Reunimos cerca de 25 artistas e pesquisadores independentes ou ligados a diversas instituies

    UFMG, UFF, UERJ, PUC-RJ, UFRRJ, UNI-RIO, University of Roehampton/UK, McGillUniversity/Canada, New York University/USApara apresentar trabalhos, debater, palestrar. Este simpsioorganizado pelas professoras Adriana Schneider, Carmem Gadelha, Gabriela Lrio, Lvia Flores e por mim, parte do movimento de implantao do Programa de Ps-Graduao em Artes da Cena da UFRJ.24 THOMPSON, Nato. Living as Form: socially engaged art from 1991-2011 (Massachusetts and London:

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    interpretada como mais uma referncia na histria da arte. Entretanto, suspeito que ainterpretao mais importante seja que esta manobra reflete uma recalibragemnecessria do meio cultural no mundo de hoje25. Quando a arte entra na vida, dizThompson, a questo motivadora, muito mais do que o que arte?, ser o que vida?. Este novo deslocamento do urinol, desta vez para o real como articula o autor,no uma simples devoluo do objeto para seu habitat natural mas parte de umavontade performativa de desnaturalizao dos habitats, de seus habitantes e dasrelaes entre gente, meio, coisa, tradio. O urinol no museu tornou-se, depois dequase um sculo de maturao, um re-educador dos sentidos, da sensibilidade, dapercepo. Sua potncia fora esttica, vigor crtico, capacidade de disparar

    pensamento, relaes, devires, economias, lgicas foi incrementada ao longo dequase cem anos de digesto, reaes e desdobramentos. Cabe ao criador interessadoem continuar investigando possibilidades de arte, de pensamento, de materialidade, demundo atravs do seu trabalho (como fez Duchamp), seguir desfamiliarizando o familiare gerando espao para que outras formas de vida, de instituio, de produo erecepo possam ser articuladas, propostas, vividas. A ampliao da cena exige umpermanente questionamento sobre a razo de ser da cena em fluxo histrico.

    Pois venho acompanhando como esta investigao sobre cena ampliada e sobre ofazer performativo da arte e da vida atravs da prtica da performance e de intervenesurbanas, vem crescendo no cotidiano de grupos brasileiros de teatro. So casos, cadaum a seu jeito e tempo, o Teatro de Narradores, os Argonautas, os Inominveis, a

    Cia. Senhas, o Coletivo Bruto, os Irmo Guimares, a ciateatroautnomo, paracitar apenas alguns exemplos. Neste movimento, tanto o campo da performance ampliado pela perspectiva de artistas com formao em teatro, como espetculosteatrais ganham em vibrao performativa. Aqui, especificamente, interessa refletir sobremodos como o programa performativo vem informando a Conduo de trabalho:pedagogias, treinamentos e processos criativos, tema da mesa na qual participei comSrgio Carvalho no II Simpsio Internacional Reflexes Cnicas Contemporneas,organizado pelo Grupo LUME em fevereiro de 2013 na UNICAMP.

    Sugiro que atravs da prtica de programas performativos, o ator poder ampliarseu campo de experincia e conhecer outras temporalidades, materialidades,metafisicalidades; experimentar mudanas de hbitos psicofsicos, registros deraciocnio e circulaes energticas; acessar dimenses pessoais, polticas e relacionaisdiferentes daquelas elaboradas no treinamento, ensaio ou palco. Tal prtica conduzir oartista pelas campinas da desconstruo da fico e da narrativa; pelos sertes daquebra da moldura; pelas imensides do desmanche da representao. Conduzir realizao de aes fsicas cujo objetivo a experincia do espao-tempo no aqui-agorados encontros; cujo super-objetivo o embate com a matria-mundo. A concepo erealizao de programas possibilita, para alm de gneros ou tcnicas especficas,pesquisar capacidades, propriedades, especificidades do corpo , investigar dramaturgias do corpo . Programas tonificam o artista do corpo e o corpo do artista.

    MIT Press, 2012), p. 33.25 Ibid. Idem.

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    Tenho experimentado programas como vias de encontro e agenciamento, comoelementos de troca e dilogo dentro de grupos, entre grupos e entre artistas. Programaspodem ser dados, ofertados, presenteados. Podem ser armas, escudos, geradores deconflito, elementos disruptivos. Criam-se programas para serem realizados individualou coletivamente; oferecemos programas uns aos outros; concebemos aquele umespecfico, destinado quela determinada pessoa, naquele exato momento; criamosprogramas para a elaborao de novos programas. E claro, h tambm a possibilidadede insero de programas na malha do espetculo aumentando sua vibraoperformativa. Depende. Depende das aventuras de significncia , subjetivao eorganizao que queiramos proporcionar uns aos outros; que queiramos proporcionar a

    ns mesmos e aos espectadores, participantes, colaboradores, coautores, cmplices outestemunhas dos trabalhos. Depende das temperaturas relacionais, dos tipos de contatoque queiramos vivenciar. Depende. Depende das poticas e ticas em questo. Tudodepende.

    Porm, fao aqui uma ressalva que me parece necessria: penso ser descabidorealizar programas cujo objetivo seja levantar material para uma futura cena maneirade uma improvisao ou laboratrio. O que a performance possibilita uma ampliaoda pesquisa sobre cena e sobre presena justamente por ser cena-no-cena .Transforma-la num mtodo para levantamento de material esvazia-la de suaimediatidade, de sua urgncia; enquadra-la numa funcionalidade que a descaracterizae enfraquece esta seria a arte de no fazer performance. Em outras palavras: assim

    como uma performance no ensaivel, no faz sentido transforma-la em ensaio.Porm, desdobrar a performance realizada em novas experimentaes experinciasde escrita, de criao dramatrgica, de teatro, de vida isto sim me parece condizente epotente. Assim como percebo, uma performance um disparador de performances .O presente texto, por exemplo, nasce como um desdobramento das prticas de WilliamPope.L. Os msculos que acionam esta escrita vem sendo desenvolvidos emperformances que realizo desde 2008 em ruas e praas de centros urbanos. Ou seja,entendo que escrever sobre a obra deste artista uma das dimenses da minha prticaperformativa.

    Outra questo que a performance energiza no mbito dos processos de criaoteatral diz respeito aos modos de ensaiar : como ensaiamos? porque ensaiamos?porque ensaiamos como ensaiamos? Considerando-se que dramaturgia de ensaio edramaturgia do espetculo so dois lados da mesma moeda, me pergunto: que modo de ensaiar ser preciso para gerar tais ou quais qualidades de relao (entre osatuantes, entre atuantes e os demais presentes, entre os demais presentes); e quemodos de ensaiar sero adequados para gerar tais ou quais qualidades de presena (dos atuantes e dos demais presentes)? Seria o ensaio a preparao de algo por vir ouo trabalho em si num de seus muitos momentos e modos de apario? Porque ensaiarna coxia? Seria frtil combinar procedimentos abertos e fechados, pblicos e privados?Depende. Depende das necessidades e dos interesses. Talvez esta pea precise serensaiada na praia e no numa sala de ensaio; talvez precise ser ensaiada na rua, o maislonge possvel de tetos e paredes; talvez aquela outra deva ser montada a partir,exclusivamente, de ensaios de mesa; e esta aqui de ensaios maneira do Teatro de Arte de Moscou, ipsis litteris; talvez esta cena no deva ser ensaiada, apenas

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    combinada e realizada. Depende. Depende das dramaturgias de ensaio que se inventepara ativar as dramaturgias de cena que se almeja. Depende. Depende dasdramaturgias de ensaio que se inerve para que o corpo necessrio possa sedesenvolver. Tudo depende. O que a prtica da performance sugere : suspender a prioris composicionais, ontolgicos, institucionais, mercadolgicos; inventar, a cada vez,o programa de ao mais condizente com as questes em pauta.

    Finalizo retornando epgrafe deste texto. Disse Pope.L numa entrevista: Setivesse que dar outro nome ao que fao, se no chamasse de performance, chamaria de prtica. Uma prtica. Uma prtica de criao de corpo que s pode acontecer noconfronto direto com o mundo; e ainda, uma prtica de criao de mundo que s pode

    nascer do confronto direto com o corpo. Uma prtica acutilante e humorada quechacoalha a separao entre arte e no-arte. Que lana o corpo do artista na urgnciado mundo e a urgncia do mundo no regime de ateno artstico. Uma prtica do noensaio. Um elogio determinao do agente e indeterminao da vida. Uma prticaque exige tnus e flexibilidade, planejamento e abertura, disciplina e presena deesprito . Mas ento, como preparar-se para performar? Ouso uma resposta: vivendo avida. a vida vivida at aquele momento que possibilita a concepo de cadaprograma e sua realizao. Escreveu a poetisa Wislawa Zymborska: Cada comeo scontinuao, e o livro dos eventos est sempre aberto no meio 26.

    Bibliografia

    BESSIRE, Mark H. C. William Pope.L, the friendliest black artist in America .Cambridge and London: MIT Press, 2002.

    DELEUZE, G.; GUATTARI, F.Mil plats: capitalismo e esquizofrenia. vol. 3. So Paulo:Editora 34, 1999.

    KRAUSS, Rosalind.The originality of the avant-guard and other modernista Myths .Cambridge and London: MIT Press, 1999.

    THOMPSON, Nato. Living as form : socially engaged art from 1991-2011.Massachusetts and London: MIT Press, 2012.

    SZYMBORSKA, Wislawa.[Poemas] . Trad. Regina Przybycien. So Paulo: Companhiadas Letras, 2012.

    Entrevistas

    26 SZYMBORSKA, Wislawa. [poemas] traduo Regina Przybycien (So Paulo: Companhia das Letras,2012), p. 97.

  • 8/11/2019 40 PROGRAMA PERFORMATIVO: O CORPO-EM-EXPERINCIA

    11/11

    Programa performativo: o corpo-em-experinciaEleonora Fabio

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    William Pope.L entrevistado por Chris Thompson : Disponvel em:http://muse.jhu.edu/journals/paj/summary/v024/24.3thompson.html Acesso em 11 jul.2013.