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4 O TEATRO EM DOMICÍLIO Tudo que sei aprendi com as crianças. Aprendi muito mais com elas do que com os livros. Só com os meus filhos tive dúzias de aulas magistrais. Tatiana Belinky Após traçarmos o percurso histórico da TV, em especial, a transmissão de programas infantis, de 1950 a 2000, neste capítulo nos limitaremos a resgatar parte dessa memória à medida que apresentaremos dados importantes com relação à produção e veiculação das primeiras adaptações de textos literários para a tecnologia do audiovisual, isto é, os teleteatros para o público infantil. Veremos que, semelhante ao telespectador adulto, esse segmento social em formação, desde os primeiros anos de experimentação da TV, também teve seu grande teatro, cujo mérito coube à TV Tupi, canal 3, o primeiro canal da América Latina a investir nessa experiência. A discussão nos servirá para compreendermos que o profissionalismo e a dedicação de dois ícones do teatro e da literatura infantil, Júlio Gouveia e Tatiana Belinky, foram imprescindíveis na caracterização de relevância do referido programa, visto como ‘cartão de visitas’ da grade infantil em, praticamente, todas as emissoras instaladas no contexto social brasileiro, após a metade do século XX. A proposta de inventariarmos a projeção dos teleteatros na TV Tupi- Difusora, de São Paulo, completa-se à proporção que evidenciamos também a participação significativa do maestro Francisco Dorce e seu elenco de atores- mirins na construção e divulgação desse gênero. Guardadas as diferenças estruturais, observaremos que tanto os Tatianas e o Grupo TESP como a família Dorce corresponderam à filosofia do audiovisual dos anos 50, provando à sociedade paulista que era possível dotar a nova mídia de uma programação de autoria nacional, caracterizada por um propósito educativo e cultural. Em virtude de a emissora Tupi-Difusora ter lançado as bases da produção artística da televisão brasileira, e tornar-se referência para os próximos canais inaugurados, TV Paulista (1952), TV Record (1953), por exemplo, esclarecemos que este capítulo se define como uma primeira abordagem da proposta deste estudo de Tese. Nos demais capítulos, 5 e 6, discorremos sobre a

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4 O TEATRO EM DOMICÍLIO

Tudo que sei aprendi com as crianças. Aprendi muito mais com elas do que

com os livros. Só com os meus filhos tive dúzias de aulas magistrais. Tatiana Belinky

Após traçarmos o percurso histórico da TV, em especial, a transmissão

de programas infantis, de 1950 a 2000, neste capítulo nos limitaremos a resgatar

parte dessa memória à medida que apresentaremos dados importantes com relação

à produção e veiculação das primeiras adaptações de textos literários para a

tecnologia do audiovisual, isto é, os teleteatros para o público infantil.

Veremos que, semelhante ao telespectador adulto, esse segmento social

em formação, desde os primeiros anos de experimentação da TV, também teve

seu grande teatro, cujo mérito coube à TV Tupi, canal 3, o primeiro canal da

América Latina a investir nessa experiência. A discussão nos servirá para

compreendermos que o profissionalismo e a dedicação de dois ícones do teatro e

da literatura infantil, Júlio Gouveia e Tatiana Belinky, foram imprescindíveis na

caracterização de relevância do referido programa, visto como ‘cartão de visitas’

da grade infantil em, praticamente, todas as emissoras instaladas no contexto

social brasileiro, após a metade do século XX.

A proposta de inventariarmos a projeção dos teleteatros na TV Tupi-

Difusora, de São Paulo, completa-se à proporção que evidenciamos também a

participação significativa do maestro Francisco Dorce e seu elenco de atores-

mirins na construção e divulgação desse gênero. Guardadas as diferenças

estruturais, observaremos que tanto os Tatianas e o Grupo TESP como a família

Dorce corresponderam à filosofia do audiovisual dos anos 50, provando à

sociedade paulista que era possível dotar a nova mídia de uma programação de

autoria nacional, caracterizada por um propósito educativo e cultural.

Em virtude de a emissora Tupi-Difusora ter lançado as bases da

produção artística da televisão brasileira, e tornar-se referência para os próximos

canais inaugurados, TV Paulista (1952), TV Record (1953), por exemplo,

esclarecemos que este capítulo se define como uma primeira abordagem da

proposta deste estudo de Tese. Nos demais capítulos, 5 e 6, discorremos sobre a

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trajetória do teatro em domicílio (teleteatro) nas demais emissoras de TV de São

Paulo, do Rio de Janeiro e, por fim, a de Minas Gerais.

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4.1 TV Tupi e teatro: um diálogo de sucesso

Inserida numa realidade em que o público assistia à expansão e ao

desenvolvimento do sistema radiofônico, ao prestígio da

arte teatral e à magia das imagens cinematográficas em

salas requintadas, a TV atingiu o status de grande

novidade tecnológica, um audiovisual que englobaria, a

princípio, as virtudes e até vícios dessas linguagens em

menor ou maior proporção.

Os primeiros passos dessa iniciativa, entendida

como símbolo da modernidade do país, couberam à

TV Tupi, PRF-3, pertencente ao grupo das cadeias

Associadas de Assis Chateaubriand, que, em 1950,

somava grande investimento em órgãos de comunicação impressa e radiofônica.

Às 19h, a inauguração oficial, divulgada em larga escala pelas rádios

Tupi e Difusora e jornais dos Diários Associados, contaria com a apresentação do

hino da televisão brasileira, na voz de Lolita

Rodrigues1. Logo depois, a participação de um coral e

da Grande Orquestra Tupi, discursos de autoridades e

as solenes bênçãos ao novo veículo marcaram a noite.

O primeiro programa a ser exibido foi Show na taba,

com pequenos quadros de humor, musicais e notícias

sobre esportes.

Outras comemorações, estampadas nas páginas do Diário da Noite e

Diário de São Paulo, realizaram-se concomitante ao evento. Chateaubriand chega

a receber homenagens dos grandes banqueiros, comerciantes, industriais e

proprietários de terra de São Paulo, pelo novo empreendimento.

Nas vitrines de lojas revendedoras do aparelho, em alguns bares e no

saguão do prédio dos Diários Associados, locais onde foram instalados 200

televisores, um variado público de telespectadores, embora reduzido, assistiu às

1 Segundo depoimento de Lolita Rodrigues, a letra era um verdadeiro pastiche, pois teria que fazer alusão ao indiozinho da Tupi, logotipo da emissora, e à bandeira de São Paulo, com sua infinidade de cores. Porém, devido ao arranjo da orquestra, o hino assumiu uma beleza musical.

Figura 5. Logomarca da emissora

Figura 4. Francisco Assis Chateaubriand. (Fonte:

http://www.memoriaviva. com.br)

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primeiras imagens transmitidas ao vivo e em preto e branco. Nos bastidores,

minutos antes do espetáculo, técnicos deparam com uma câmera quebrada. A

tensão nos corredores dos estúdios da Rádio

Tupi e Difusora aumentava, a cada instante,

pois toda a programação estava perfeitamente

ensaiada com um script que exigia três

câmeras para a exibição.2

Mesmo assim, devido à ousadia do

radialista brasileiro Cassiano Gabus

Mendes, a PRF-3 TV Tupi-difusora, com

atraso de 40 minutos, leva ao ar as cobiçadas imagens.

Como podemos observar, o veículo, desde o referido momento, deixa

transparecer sua dependência quanto ao caráter insipiente dos recursos técnicos,

como bem sublinha Maria Elvira Federico (1982, p. 83):

Esse primeiro espetáculo, que durou duas horas e meia e tinha sido previsto nos mínimos detalhes, foi ao ar no improviso e dependeu da garra de muita gente do rádio paulista e de filmes previamente preparados. A programação diária, propalada no encerramento, no entanto, não tinha sido cogitada.

Logo em seguida, a pesquisadora (Ibidem) completa:

Os primeiros passos foram difíceis, cheios de imperfeições, de falhas técnicas e humana e a imagem mais assídua então era a do cartão fixo: ‘Voltaremos logo’. Os programas estavam baseados em seqüências (sic) filmadas, interpretações musicais, cenas humorísticas transpostas do rádio, e teleteatro apresentado sem ritmo, com cenários pesados e tônica cênica teatral. Essa situação continuou praticamente até 1955, que é o ano em que se detectam algumas mudanças estruturais.

Nesta nova etapa, a TV brasileira já contava com instalações de novas

emissoras – TV Tupi (RJ), TV Paulista, Record, TV Rio – as quais vivenciariam a

realidade da experimentação e criatividade. Todavia, Rubens Furtado (Apud

FALCÃO; ALMEIDA, 1988) adverte que a abertura de mercados, a formação de

um grande empreendimento no setor econômico, cultural e do entretenimento,

2 No livro Chatô, o Rei do Brasil, publicado pela Companhia das Letras, em 1994, Fernando Morais descreve com minúcias os bastidores dessa inauguração.

Figura 6. TV Tupi e profissionais. (Fonte: http://www.microfone.jor.br)

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bem como o desdobramento satisfatório na área de publicidade deve-se à Tupi

paulista.

À base dessa aprendizagem, a programação na tevê começou a ser feita

sem que tivesse um resultado confiante da recepção do telespectador. Embora

existisse o veículo em território americano e europeu, as suas experiências se

tornavam impraticáveis em razão da realidade televisiva brasileira implicar

limitações de toda ordem, seja em recursos técnicos como câmeras pesadas com

lentes mecanicamente manipuladas, seja na estrutura física, estúdios pequenos e

improvisados, e também na profissionalização de pessoal, atores com postura

teatralizada etc. Como todos os programas eram ao vivo, não faltavam as gafes e

erros em momentos de transmissão das imagens. Prontamente, o técnico ou artista

precisava se valer da criatividade e de muito improviso para ganhar a simpatia do

telespectador. Público este que ainda se definia precariamente em função do preço

de aquisição da nova tecnologia.

Para a sofisticação da linguagem televisiva, o teleteatro fora

determinante. A princípio, verificou-se que não bastaria a prática de encenação

apenas render-se ao trabalho das câmeras, mas era preciso pensar nas adaptações

para atender à gramática do veículo. Dessa forma, aos poucos, o pessoal da telinha

– gestores, produtores, grupo de artistas e técnicos – foi adicionando novos

elementos, eliminando outros, para, assim, configurar a especificidade desse

gênero da categoria entretenimento.

Segundo Rubens Furtado (Ibidem), o formato inaugura a segunda fase da

TV: a fase visual, em que não se institui essencialmente a oralidade como código.

De forma esclarecedora, um dos pioneiros na história da tevê, Walter George

Dürst (Apud FEDERICO, 1982, p. 84), apontas as razões:

[...] primeiro, porque a narrativa tinha que ter uma decupagem e uma concatenação específica de TV, segundo, porque as técnicas de atuação teatral, questionadas e criticadas pelos novos produtores de TV, mostraram com o convívio (demorou menos cinco anos para que isso ocorresse), uma nova plêiade de atores formados para o novo veículo. Estavam assim abertos os caminhos para o teleteatro brasileiro.

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Apesar de todos os problemas surgidos e futuros, o canal 3, TV Tupi de

São Paulo, não deixou de ousar em suas experiências televisivas. O teleteatro é

um exemplo dessa particularidade. Toda a história do gênero começa com o TV

de Vanguarda, veiculado de 1952 a 1967.

A intenção de desvendar novas formas de

apresentação para o gênero teatral adaptado à tela fez

com que o programa se projetasse como um marco na

biografia da televisão dos anos 50. Ao ensinar como se

narrava uma história frente às câmeras, o programa se

transformara numa verdadeira escola para atores de TV.

Geralmente aos domingos ou às segundas-

feiras, entre os novos atores de formação televisiva e

os de sucesso do rádio, encontravam-se muitos atores

do teatro amador ou do profissional de São Paulo.

Num diálogo promissor, toda essa força

humana se dedicava a levar, sobretudo, o que

de melhor existia nos palcos da dramaturgia

estrangeira, já que se tratava de textos, em sua

grande maioria, desconhecidos pela sociedade

brasileira do pós-guerra.

De igual forma, no decorrer da

semana, havia outros teleteatros menores e

um de real importância: o Grande Teatro

Monções. Sua transmissão, na verdade,

acabou por revelar, no decorrer de sua existência, a total ausência de um veículo

cuja identidade ainda não se constituía pela instância comercial, mas, sobretudo,

cultural. Por conseguinte, a instabilidade da programação seria intensa e

preocupante. Como o título do programa tinha como referência o nome do

patrocinador – uma prática da tradição radiofônica – logo, na constante troca de

patrocinadores, muitos teleteatros receberam várias denominações. Grande

Teatro Monções, por exemplo, tornou-se Grande Teatro Três Leões, Grande

Teatro Nestlé, Grande Teatro Telespark. Na ausência de patrocínio, anunciava-

se Grande Teatro Tupi ou Grande Teatro.

Figura 7. Lima Duarte, no papel de Hamlet. (Fonte: http://www.diojacob.info)

Figura 8. Detalhe: iluminação, peça Hamlet, no TV de Vanguarda. (Fonte: http://www.diojacob.info)

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Mesmo diante dessas atribulações,

foi nos anos iniciais da televisão que uma

avalanche de teleteatros3 invadiu a

programação de todas as estações em

funcionamento, em diferentes dias e horários.

Segundo Cristina Brandão Faria (2005), os

teleteatros atendiam ao gosto do público e das

emissoras. Sendo assim, a experiência

artística se dividiu entre o teleteatro dos textos clássicos, como também teleteatro

do humor, do policial, do melodramático.

Nesse quadro, citamos o Grande Teatro Tupi do Rio de Janeiro (TV

Tupi)4, TV de Comédia (TV Tupi/SP), Teledrama e Teatro de Comédia (TV

Paulista), Teatro 63 e Cacilda Becker (TV Record) e tantos outros que

obtiveram justo respeito do público telespectador em expansão.

Logo, entendemos que a possibilidade de contar histórias também,

através da imagem de TV, fascinava a todos e

merecia, portanto, novos investimentos. Por se

constituírem como fórmula de sucesso na

audiência, os teleteatros também desejam fazer

história para e no público infantil. Ante

preocupações de seus produtores em formar

novos telespectadores, a criança passa a ser

privilegiada com uma série de gêneros originários

da arte circense ou radiofônica. Nestes tempos

iniciais, a telinha, apesar do amadorismo e das

dificuldades financeiras, busca sua legitimação ao estabelecer, como pilar,

concepções de caráter cultural-educativo.

Carente de iniciativas culturais na sociedade de então, os pequenos veem

na televisão uma forma de reconhecimento social e têm-na como ferramenta

3 Cf. Anexo 6. No livro Teleteatro Paulista nas décadas de 50 e 60, organizado por Flávio Luiz Porto e SILVA, há uma descrição minuciosa dessa produção artística. 4 Grandes sucessos foram televisionados, inclusive os do Teatro de Arena, cuja constituição pautava-se numa estética interpretativa que burlava textos clássicos, conferindo, assim, uma nova visão para a atuação da TV.

Figura 9. Uma das séries visuais de abertura do programa de teleteatros infantis. (Fonte: FANUCHI, 1996, p. 90)

Figura 10. Confusão com malas, do TV de Comédia. (Fonte: http://www.diojacob.info)

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importante no acréscimo de referências

saudáveis na sua construção afetiva, emocional,

cognitiva e, sobretudo, no enriquecimento da

imaginação.

Embora tivesse horário restrito na

programação, a criança era tomada pelo

fascínio das histórias do teatro em domicílio,

isto é, o teleteatro, cuja presença mais incisiva

se dera na tela da pioneira Tupi de São Paulo.

Nesta TV em construção, o trabalho de Tatiana

Belinky, de Júlio Gouveia e do grupo TESP se

constituiu como experiência balizadora que

oportunizou esse diálogo de sucesso entre TV e teatro para crianças.

4.2 Com vocês: os Tatianas

E quem quiser que conte outra. Júlio Gouveia

Ao pensarmos na história do teatro infantil brasileiro, dois nomes se

destacam devido os longos anos de inteira dedicação ao universo da criança: Júlio

Gouveia e Tatiana Belinky, os Tatianas como bem apelidara o amigo do casal,

Ruggero Jacobi.5 Além dos palcos da tradição teatral, cuja encenação se submetia,

até mesmo, em espaços improvisados das escolas, cinemas, clubes e hospitais da

cidade de São Paulo, o grupo também alcançou notoriedade pelo sério trabalho de

encenação nos palcos da TV.

Tudo começa quando “Era uma vez um médico” (Radiolândia,

31/07/54)6, Júlio Gouveia (1914-1988), que, depois de formado (1939), em

Ciências Médicas na Universidade de São Paulo (USP), decidiu se dedicar à causa

médica de uma forma totalmente nobre: uniu seus conhecimentos científicos à

5 O referido profissional italiano foi um dos estrangeiros contratados para assumir o cargo de diretor e cenógrafo no TBC (1948). Depois atuou como cenógrafo do Teatro Escola de São Paulo (TESP) e, posteriormente, diretor artístico da TV Paulista (1952). 6 Devido à dedicação de muitos órgãos da imprensa da época, como revistas e jornais, é possível encontrarmos uma série de dados reveladores da dimensão do trabalho artístico de Júlio Gouveia e Tatiana Belinky para o público infantil.

Figura 11. Em 1980, Tatiana Belinky e Júlio Gouveia. (Fonte: BELINKY

apud ROVERI, 2007, p. 86)

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arte teatral infantil. Nestes anos, conheceu uma jovem de origem russa, Tatiana

Belinky, com quem se casou e também abraçou a causa. Filho de uma família de

classe média da cidade de São Paulo, Júlio prosseguiu seus estudos e se

especializou em psicodrama. Sua escolha não seria isenta de intenções, pois tal

área do conhecimento lhe possibilitaria criar situações em que poderia analisar o

complexo e o fascinante universo do comportamento infantil. Para ele, o teatro, na

visão da Higiene Mental, seria uma das atividades mais importantes para o

desenvolvimento da personalidade da criança.

Desse interesse surge o desejo de colocar em prática tudo o que estudara,

visando abarcar um número maior de pessoas, independente de sua etnia, cor,

classe social e faixa etária. Para tanto, em 1948, funda a Sociedade de Amadores

do Teatro de Arte para crianças, cujo nome depois seria Teatro Escola de São

Paulo (TESP)7, um grupo de teatro amador que, por acreditar na concepção

educativa, ético e emocional da arte teatral, passa a realizar turnês de espetáculos,

sem fins lucrativos, para crianças e adolescentes da metrópole paulista.

Em depoimento à Associação dos Pioneiros do Rádio e da TV no Brasil

(Apud MATTOS, texto no prelo), Tatiana afirma que as encenações tinham como

palco de estreia o Teatro Municipal. Logo em seguida, o grupo se apresentava nas

casas de teatros como Teatro de Santana, Cultura Artística para, então, frequentar

os antigos teatros dos bairros, dentre eles o São Pedro, o São Paulo, o Colombo, o

São José de Belém.

Numa época em que o teatro, como vimos anteriormente, moderniza-se e

ganha a admiração da massa, pela sua capacidade de conscientização social, de

identificação humana, através da sensibilidade artística, os convites não paravam

por aí. O TESP levava ainda o espetáculo às escolas, aos hospitais, aos parques

infantis e, até mesmo, aos cinemas. Sob o patrocínio da Prefeitura de São Paulo,

responsável pela maquinista, pelo guarda-roupa e por toda a parafernália exigida

na montagem dos textos, o trabalho de encenação realizado, durante 3 anos, por

esta companhia amadorística contribuiu, assim como fizeram os inúmeros grupos

brasileiros de teatro direcionados ao adulto, para a formação de um público de

espectadores. Nesta prática de divulgação da cultura, as crianças paulistas, desde a

7 O nome possui duas origens: uma faz referência à Tepsis, musa do teatro, e a outra à aprendizagem dos pequenos assistentes e ao aprimoramento dos atores adultos.

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tenra idade, passariam a conhecer a magia do teatro, suas histórias de mundos

distantes ou possíveis no cotidiano.

Todo o sucesso de público, além da dedicação nos espetáculos, era

resultado também do princípio de organização do grupo, que contava até mesmo

com uma perua para divulgar a encenação, além da distribuição de panfletos sobre

a programação para facilitar a venda de ingressos (BELINKY apud MATTOS,

texto no prelo).

Ao jornalista Cláudio Vianinni, Júlio (Última Hora, 14/12/55, p. 10),

explica o diálogo entre ciência e arte:

A minha atividade teatral não está tão longe da medicina como parece à primeira vista. ‘Teatro para crianças’, como nós fazemos, é atividade ligada à ‘higiene mental’ da infância e da adolescência. Ramo importantíssimo da medicina, a medicina originária da literatura mundial.

Na tentativa de corroborar o desdobramento de linguagens artísticas,

sobretudo as de ordem televisiva, o TESP, nos anos 50, também oferecia cursos

para formação de diretores, atores e produtores de TV.8 Como o veículo

principiava suas atividades e carecia de profissionais qualificados, era preciso

apostar em novos projetos para a construção de sua própria identidade, a qual se

via sucumbida, desde os primeiros passos, à concepção de rádio de imagens. Para

aqueles desejosos de trabalhar na nova “indústria cultural” e até para profissionais

em atividade nas outras mídias, a tevê sinalizava um futuro promissor. Neste

sentido, seria bem-vinda a qualificação a ser oferecida pela escola do TESP.9

Salvo oportunidades como estas, o cotidiano televisivo estava subordinado a uma

aprendizagem constante, e “[...] as coisas funcionavam com truques, remendos,

ligações diretas, no tranco mesmo [...]” (HENRY apud SILVA JÚNIOR, 2001, p.

158).

A partir de sua dedicação à arte de palco, Júlio Gouveia, nos finais de

1949, é convidado pelo então diretor Décio de Almeida Prado para dirigir o grupo

8 Segundo Haydée Bittencourt (Apud MATTOS, 2002) foi Júlio Gouveia o primeiro brasileiro a estudar e ensinar o método de interpretação para atores de Constatin Stanislávski, um modelo famoso de representação de origem novaiorquina. Método este que, também, fora utilizado na primeira fase do Teatro de Oficina (1953), pela atuação do ucraniano Eugênio Kusnet. 9 Entre os anos 40 e 50, era muito comum artistas fundarem centros de profissionalização da arte, como, por exemplo, em São Paulo, a Escola de Arte Dramática (1948), de Alfredo Mesquita; no Rio de Janeiro, O Tablado (1952), de Maria Clara Machado e tantas outros espalhados pelo país.

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de teatro dos comerciários, Teatro do SESC. Em virtude de Júlio e sua esposa,

Tatiana Belinky, acompanharem, desde os anos 40, as atividades culturais e

artísticas dos imigrantes judaicos, do bairro paulista Bom Retiro, assume, logo

depois, o cargo de diretor do Teatro de amadores, do Instituto Cultural Israelita

Brasileiro (ICIB), mais conhecido como Casa do Povo (1953).10 Dessas

experiências, muitos de seus atores fariam carreira na televisão, dentre eles,

citamos José Mandel, Rafael Golombeck, Elias Gleiser, Filipe Wagner, Marcos

Rosembaum e José Selber.

Nesses anos, torna-se também membro da American Educacional Teatre

Association (AETA), do Instituto Internacional de Teatro da UNESCO11 e vice-

presidente do Instituto Brasileiro de Teatro Educacional. Por conseguinte, toda

essa série de mobilizações se somaria ao trabalho que, a partir de 1951,

desenvolveria no primeiro canal brasileiro de televisão: TV Tupi de São Paulo, a

PRF3, situada no bairro Sumaré. Nesta data, a criança, então, começa a sua

história de cumplicidade com a nova tecnologia.

Como podemos observar, a iniciativa de divulgar o teatro infantil que, a

princípio, se realizaria apenas nos momentos de folga, dimensionou-se numa série

de compromissos agendados. Concomitantemente às transmissões da Tupi, Júlio

Gouveia ministrava aulas de Psicologia Infantil e de Teatro Infantil da Secretaria

do Estado do São Paulo. Ainda, era preciso encontrar tempo para dedicar-se aos

dois filhos, André e Ricardo, que cresciam envoltos de toda a movimentação de

reuniões, de ensaios, de roteiros, de montagem e de toda sorte de dificuldades

envolvidas no fazer teatral em diálogo com a TV.

10 Nos anos 30, esse grupo teatral encena peças em língua iídiche, tendo atores com experiência profissional no país de origem. 11 Para apreciar e aplicar as últimas conclusões estipuladas pela Conferência Internacional de Teatro Infanto-juvenil, nas modalidades pedagógicas, didáticas e artísticas, realizada em Abril de 1952, em Paris, Júlio Gouveia recebe o convite para participar, em novembro do mesmo ano, da 1ª Conferência de Teatro para tal seguimento, realizada no Rio de Janeiro. Jornais da época noticiaram o fato, destacando ser este profissional do teatro infantil o único a comparecer na reunião e se inteirar das novas e importantes discussões que envolviam a arte da encenação. Na pauta, debateu-se, por exemplo, que o teatro voltado para esse público deveria ser encenado apenas por adultos, bem como ao Minstério da Educação caberia também criar uma emissora oficial de TV para fins educativos. Ainda, na conferência, pontuou-se que os problemas relacionados à produção de teatro para criança merceciam a devida atenção dos órgãos incentivadores e produtores desse gênero.

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Em função da qualidade de seu trabalho, cujo reconhecimento não se

restringiu apenas ao espaço interno da TV, haja vista os prêmios recebidos12,

ganhou o apelido de “Sacy Pererê” do teatro infantil, conforme escreveu o

jornalista Cavalheiro Lima (Diário da Noite, 14/06/52): “Júlio parece fazer um

redemoinho a sua volta. Mas um redemoinho infantilmente diabólico como

contam os caboclos que é do brejeiro Sacy Pererê (sic) nas horas em que todo

mundo cesteia.”

Esse sucesso deve-se também a sua prática como ator de teatro, através

da qual teve a oportunidade de atuar, no Teatro Brasileiro de Comédias, por

exemplo, ao lado de consagrados nomes do palco brasileiro, como Paulo Autran.

E nesse redemoinho teatral de Júlio Gouveia, muitos se juntaram. A

primeira integrante da lista, que anos depois se tornaria extensa, foi Tatiana

Belinky (1919), sua esposa. De origem russa, essa menina, cujo sobrenome em

sua língua significa “branquinha”, chega ao Brasil

em 1929, na companhia de seus pais e dois

irmãos, pelo transatlântico General Mitre.

Confessando ser apaixonada por teatro,

desde muito pequena, quando em companhia do

pai assistira a muitos espetáculos e, em alguns

momentos, arriscara escrever alguns diálogos,

Tatiana não encontraria dificuldades em levar o

universo fascinante das narrativas ficcionais para as telas de TV. Aprisionadas nas

páginas dos livros ou depositadas na memória cultural brasileira, as fábulas, os

contos maravilhosos ou de fadas, os episódios bíblicos e tantos outros textos

ganharam o espaço da linguagem audiovisual.

Ao lado de Júlio, Tatiana não teria mais dúvidas de que iria se dedicar ao

teatro, mas não representando, como no período de sua infância, e sim

escrevendo.

No início das apresentações de teleteatro na TV Tupi, os textos eram de

autoria do esposo. Porém, aos poucos, foi Tatiana quem demonstrou grande

talento na arte da pena. Decidiu que seria, então, a “escrevedora de história”,

12 Em 1956, ganhou o prêmio de melhor produtor de TV do ano. (Manchete, 7/1/56, p. 15). Em 1958, recebe o prêmio Roquete Pinto da AFEU, melhor produtor de TV, embora não se enquadrasse na categoria estipulada pelo concurso. (Diário da Noite, 25/10/58).

Figura 12. Tatiana Belinky (Fonte: Museu da TV Brasileira)

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como dizia Emília. Ao abraçar esse ideal, torna-se, ao longo de sua experiência,

autora de contos e livros infantis, roteirista de TV, tradutora nas línguas alemão e

russo e, nos últimos anos, jornalista da seção crítica de arte literária e teatral em

jornais paulistanos como Folha de São Paulo e O Estadão.

Junto a estas atividades, Tatiana, em meados da década de 60, vale notar,

participou da Comissão Estadual de Teatro, onde

teve a oportunidade de inaugurar o setor Infanto-

juvenil. Tal proposta ganhou mais sustentação a

partir do momento em que a autora, no decorrer de

3 anos de gestão, afora os compromissos agendados

(adaptação de textos para a TV, traduções, produção

de livros) criou e dirigiu a revista Teatro da

Juventude, cuja intenção era divulgar a linguagem

teatral, desde textos literários a críticos. Todavia,

Tatiana lamenta que o projeto, em função da

instabilidade da Imprensa Oficial, vivia, a duras penas, publicando, assim, poucos

exemplares. Ao desligar-se da comissão, em 1972, ela recebe um convite para

escrever no jornal Folha de São Paulo.

Em sua biografia, ... E quem quiser que conte outra13, da Coleção

Aplauso (2007), Tatiana descreve com detalhes toda a trajetória de seu

envolvimento com a arte cênica. Através do incentivo de seu pai, a menina e um

grupo de amigos de infância, entre eles Paulo Autran, inventaram “fazer teatro”,

ou melhor, “brincar de teatro”.

A ideia ganhou corpo quando esses atores de “garagem” conseguiram,

em São Paulo, um espaço para realizar os espetáculos no auditório de um clube

escandinavo, onde se localiza, hoje, o Teatro Cultura Artística. Na época

frequentava o respeitado colégio Mackenzie, onde se formou como secretária

executiva, apta na tradução de várias línguas. Por questões de ordem prática, isto

é, proximidade entre a localização do trabalho e faculdade, a pretensão de estudar

Direito se torna inviável e uma nova escolha privilegia-se: o curso de Filosofia do

Largo do São Bento.

13 Frase com a qual Júlio Gouveia encerrava o programa de Teleteatro: Teatro da Juventude (1955-1964).

Figura 13. (Fonte: Arquivo Museu da TV Brasileira)

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Nestes anos, casa-se com Júlio Gouveia, psiquiatra, educador e

admirador de teatro e, a partir de então, a atriz, amadora, nunca mais deixou o

palco até somar, em sua história de vida, a experiência de trabalho com o TESP.

Mas toda essa história de amor da autora com a arte cênica se dera bem

antes, quando, em uma de suas festas de aniversário, na terra natal, os pais

pediram a Tatiana para representar o papel de mosca, cuja grandeza maior da

experiência estava na impressão de que ela “estava andando pelo teto, de cabeça

para baixo” (Apud ROVERI, 2007, p. 47). Este foi o primeiro contato de Tatiana

com o teatro, o que logo se tornou referência no seu cotidiano em Petsburgo.

Mais adiante, vê-se que seu processo de criação, enquanto adaptadora e

até mesmo autora, não se dera de forma aleatória ou amadora, todavia surgira a

partir dos mais inocentes contatos com a referida arte. Neste sentido, Tatiana

(Idem) menciona que:

Não sei se foi esta experiência que despertou minha paixão pelo teatro. Teatro eu sempre vi. Meus primos, por exemplo, mais velhos do que eu, faziam teatro no nosso apartamento, no nosso quarto e no quarto de meus pais. Entre o meu quarto e dos meus pais havia uma porta larga, que abria para os lados. Meus primos penduravam lençóis e colchas no batente e faziam teatro. Meu quarto passava a ser o palco e, o quarto dos meus pais, a platéia (sic). Quando vim para o Brasil já estava como um saco de cultura até aqui. Eu sabia o que era teatro. Eu lia peças de teatro. Como eu conseguiria, mais tarde, escrever peças de teatro sem nunca ter tido aulas de dramaturgia? Eu sabia como se escreve teatro. Como se põe um personagem, as marcações, as rubricas, o cenário, eu sabia por que já tinha lido. E quando aconteceu de eu precisar fazer isso, eu sabia como fazer.

Logo adiante, ela (Ibidem, p. 70-73) adverte:

Minha experiência nos palcos, de verdade teve início em 1948, quando eu, o Júlio, então meu marido, e nosso grupo começamos a fazer teatro para a prefeitura de São Paulo. Começou como uma brincadeira. Naquele ano, inventamos de fazer um teatrinho para comemorar o aniversário de sete anos da filha de conhecido nossos... O Júlio, então, mais que depressa, escreveu um ato, uma cena de uns 20 minutos baseada na história de ‘Peter Pan’. E nós interpretamos. Estavam presentes umas senhoras de uma sociedade da leitura, alguma sociedade beneficente cultural. Elas gostaram da brincadeira e vieram pedir para o Júlio aumentar a cena. Chamamos alguns conhecidos que também gostavam de teatro amador e estreamos estrondosamente. Claro que aquelas senhoras conseguiram lotar

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o teatro, convidaram centenas de outras senhoras que vieram apinhadas de crianças.

De peça em peça encenada, somaram-se três anos de apresentações do

TESP na cidade de São Paulo e, por isso, Tatiana (Apud ROVERI, 2007, p. 75)

confessa que: “quando apareceu a televisão, em 50, 51, nós estávamos craques.”

Por estas e outras razões, era previsível o sucesso de público na TV,

ainda que tal meio não se definisse como um veículo de comunicação catalizador

de maior público. Essa realidade demandaria tempo. Para Júlio Gouveia, no

veículo estava a chance de ampliar e disseminar ainda mais a intenção de seu

“laboratório psicopedagógico”. Alerta também que, através do audiovisual, a

criança, de forma confortável, poderia assistir a encenações sem necessitar passar

por situações inconvenientes que poderiam predispô-la contra o espetáculo.

No intuito de democratização da arte, neste caso as adaptações, em

especial, as da literatura infantil, a TV, em seus primeiros anos, torna-se a maior

devedora do teatro e, concomitante, sua fiel incentivadora. Neste sentido, o

jornalista Accioly Netto (Diário da Noite, 21/04/51) esclarece que o veículo se

tornou um meio propício para despertar nos telespectadores a admiração também

pela arte cênica, ao contrário do que pensavam os “cassandras”, temerosos pela

morte do teatro brasileiro.

Logo, as imagens televisivas em domicílio não significariam uma

ameaça aos palcos e nem tampouco estariam dispostas a promover uma

concorrência, mas pretendiam estabelecer um diálogo promissor. Nesta

perspectiva, o teatro só teria a lucrar, já que buscava se consolidar numa

sociedade ainda, senão refratária, imatura com relação à causa infantil.

Para o diretor Júlio, a televisão viabilizaria uma montagem teatral com

mais qualidade estética, como também sanaria muitas das dificuldades do grupo

no momento dos espetáculos.

Assim, problemas como encontrar ou improvisar um palco, ter espaço

suficiente para acomodar todos os espectadores (crianças, jovens e adultos),

organizar convites e contatos com órgãos responsáveis pelas instituições, não

seriam mais as suas preocupações na experiência televisiva. Por outro lado, o

compromisso firmado com o audiovisual impossibilitava ao grupo de teatro e a

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seus idealizadores, Tatiana e Júlio, darem continuidade ao projeto inicial firmado

com a Prefeitura de São Paulo.

Suspensas as atividades do TESP, o teatro, sob novos códigos (imagen e

áudio) e técnicas televisivas ainda em reelaboração, requer, através da tela, lugar

cativo nos mais diversos bairros e instituições paulistanas.

Embora vivenciasse a limitação tecnológica, profissional e financeira,

definindo-se como meio de comunicação de transmissão essencialmente local, a

TV, através de sua linguagem narrativa, transformou-se em espaço de

experimentação e ressignificação de padrões culturais da cidade.

Nessa configuração, o teleteatro infantil dera a sua parcela de

contribuição, pois o seu desenvolvimento permitiu que novas experiências e

hábitos surgissem, independente de seu olhar provocar fascínio, manipulação

tendenciosa ou de mobilização crítica.

4.3 Os Tatianas fazem história na e para a TV

É na comemoração de Natal, em 14 de dezembro de 1951, que a

primeira emissora, TV Tupi de São Paulo, PRF3-TV, apresenta o universo da arte

teatral de Os Tatianas e os integrantes do grupo TESP.

O primeiro espetáculo a ser televisionado foi o texto Três Ursos, peça de

3 atos, cuja adaptação fora de Tatiana Belinky e direção de Júlio Gouveia.14 Neste

sentido, Tatiana (Apud MATTOS, texto no prelo) explica que devido ao fato de a

TV ter absorvido os artistas do rádio e, por estes não possuírem nenhuma

encenação infantil já montada para a comemoração do Natal e do Ano Novo, o

grupo TESP recebeu o convite da Tupi. Para a sorte da emissora, o grupo tinha

acabado de ensaiar a referida peça, em que apresentava uma cena com uma árvore

de Natal.

Em razão do sucesso da transmissão e da sólida carreira desses

profissionais na arte de representação, respeitados pela crítica e pelo público,

novos convites dali em diante adviriam, consolidando, assim, uma extensa

14 Nos Estados Unidos e em muitos países da Europa, os teleteatros infantis já eram uma expressão da alta cultura. As encenações chegaram a se pautar, por exemplo, em textos de Shakespeare e Molière.

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trajetória de programas infanto-juvenis (telenovelas e teleteatro) no sistema

televisivo brasileiro.

Depois da estreia na emissora de Chateaubriand, o casal recebe nova

proposta e, semanalmente, um teleteatro passa a frequentar a grade de horários da

Tupi paulista. Em 3 de abril de 1952, vai ao ar

Fábulas Animadas15, reconhecido como o

primeiro programa de teleteatro da TV

brasileira, direcionado ao público infantil. Em

um de seus depoimentos, Tatiana (Apud

ROVERI, 2007, p. 78) menciona: “Assim que

terminou a apresentação do nosso primeiro

programa, o público começou a telefonar para

elogiar. Eles estavam maravilhados, tudo era

novidade. E surgiram muitos patrocinadores

querendo anunciar.” Todavia, é nos estúdios

da TV Paulista que o teleteatro lança sua semente. Em entrevista concedida à

Revista É ([on-line]), Tatiana explica que “houve uma fase experimental para a

TV Paulista, canal 5, o diretor artístico, Ruggero Jacobi, nos pediu uma

apresentação de 15 minutos para estúdio, algo brasileiro”. Em 10 de janeiro de

1952, A pílula falante e O casamento da Emília foram as primeiras peças a

conhecer os estúdios da TV Paulista. Por trabalhar em teatro infantil, sobretudo

como cenógrafo no TESP, Ruggero reconhecia a importância de uma

programação televisiva para esse segmento e não encontrava alguma dificuldade

em levar o teatro para o estúdio da segunda emissora do país e o transmitir.

À Revista Radiolândia (31/07/54), Júlio explicou que, devido ao

sucesso na estreia, no dia 24 do mesmo mês também encenou O irmão de

Pinochio, porém outras apresentações seriam impossíveis, uma vez que a

emissora, em fase experimental, não teria condições para financiar um programa

de altos custos. Tal condição seria a primeira experiência em que o grupo

conheceria a TV de “pés descalços” (FARIA, 2005).

Mas foi na tela das Associadas, PRF3, que o teleteatro infantil dos

Tatianas e sua equipe obteve reconhecimento do público telespectador, que,

15 Fábulas Animadas (1952) também recebera, por um tempo, o título Fábulas Duchen, o qual atendia ao nome do patrocinador do momento.

Figura 14. Rubens Molino e Paulo Basco, em A pele de Urso, do Programa Fábulas Animadas. (Fonte: Arquivo Tatiana Belinky e Júlio Gouveia apud SILVA, 1981, p. 91)

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concomitantemente, sedimentava-se cada vez mais pela transmissão dos próprios

programas do casal.

Como o TESP estava em atividade constante, ensaios e apresentações, o

casal decidiu adaptar para a linguagem televisiva textos da literatura ocidental,

que, séculos após séculos, e sob novas realidades socioculturais, contribuíram

para (re) configurar o imaginário do telespectador. Rompendo fronteiras

territoriais e marcações temporais, tais textos, salvo as versões adulteradas,

imortalizaram-se e passaram a constituir repertório importante na prática da

leitura para crianças, embora não tenham sido produzidos, especialmente, para

este público leitor, como afirma Nely Novaes Coelho (1981).

Conhecedora deste acervo, Tatiana Belinky, na urgência do pedido feito

pela Tupi, buscou priorizar, a princípio, o contexto de uma das modalidades

literárias mais resistentes ao desgaste dos tempos: a fábula.16 De contorno

popular, por isso considerado por seus contemporâneos como literatura ‘menor’, o

referido gênero terá como divulgador maior Jean La Fontaine (1621-1692).

Assim, a cada transmissão, uma história diferente do fabulário russo,

europeu ou brasileiro, era teleteatralizada, o que acabava por exigir muita

criatividade, disposição e conhecimentos não só de seus idealizadores, mas de

toda a equipe. Os bastidores desse cenário de adaptações são detalhados por

Tatiana (Apud ROVERI, 2007, p. 79):

Como ainda estávamos tocando o projeto da prefeitura de levar teatro infantil para os bairros, o Júlio foi cauteloso. Ele veio conversar comigo, queria saber como a gente faria, assim de repente, para criar um programa de televisão. Eu disse: ‘Olha Júlio, acho que a gente pode fazer fábulas. Você tem atores bons lá no Sesc, não tem? Você dirige bem. A gente faz uma coisa simples. Fábulas, histórias brasileiras, fábulas russas. Pode deixar que eu escrevo. Eu faço um textinho e você dirige’. Chamamos o programa de Fábulas Animadas.17 E lá fomos nós para a TV Tupi […].

16 Dentre as peças de teleteatros desse programa, segundo Lara Maria (2000) estão: O macaco juiz, A assembléia dos ratos, O lobo e o cordeiro, A sentença, A onça e o bode, A pele do urso, O castigo da onça, O xale do leão, A raposa e as uvas, O saco de amendoim, Manequinho peralta, A sapa de pedra, O vizinho do padeiro, O noivado da coelhinha, O almoço da coelhinha, O feitiço do raposinho, O rato da cidade e O rato do campo, A coelhinha contadora, O queijo, O mata-barbeiros, A coelhinha contadeira. 17 Grifo nosso.

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Nos cinco ou seis mil aparelhos receptores da cidade paulistana e

cidades circunvizinhas, os telespectadores se envolvem com o universo das

pequenas histórias de animais, cuja expressividade textual, com o passar dos

séculos, mantém ainda viva sua particularidade de produção em que a cada

experiência encerra-se uma moral. Por outro lado, perdem, quase por completo, a

sua caracterização de texto cifrado e alegórico, denunciador das convenções e

mazelas sociais de seu tempo histórico.

Por se tratarem de textos ‘próprios’ para crianças, em função de sua

natureza instrutiva, as fábulas seriam bem-vindas no audiovisual, pois atendiam,

assim, à perspectiva cultural e educativa que se pretendia explorar no veículo em

seus primeiros anos. Perspectiva esta que, implicitamente, reproduzia os

princípios conservadores da sociedade burguesa e aristocrática. Ao ser

questionada sobre essa complexa abordagem, Tatiana (Apud ROVERI, 2007, p.

137) alega que:

Quando eu escrevia, não tinha a preocupação de ensinar uma mensagem. Eu me inspirava em Monteiro Lobato e em meu pai também, que era um grande contador de histórias. Eu, quando pequena, gostava de fábulas animadas, histórias de bichos que eram representações irônicas ou críticas. Eu odiava a moral da história, toda fábula que tivesse moral eu achava um desaforo. […] Me contem a história que eu entendo do meu jeito. Deixem a criança usar a própria cabeça. Mostrem as coisas e deixem o resto com elas. Claro que nós tínhamos nossas posições. Por exemplo, se não queríamos mostrar bebidas e cigarro.

O programa buscava contemplar uma orientação ética, sem o didatismo e

suas leituras maniqueístas, possíveis de serem encontradas em textos do gênero

fábula ou contos de fadas. Nas encenações, a preocupação do programa, segundo

a adaptadora, estava em instigar a emoção, a fantasia, o ludismo, fazer com que o

telespectador se maravilhasse com as cenas conectadas a um repertório criativo,

pautado em música, cenários, figurinos e maquiagem, e ainda teatralização

ajustada à gramática televisiva.

Junto a essas impressões, como se pode esperar, implicitamente,

projetava-se toda uma série de informações através do figurino, da ambientação,

da linguagem verbal, por exemplo. Nesse teatro, definido por Júlio Gouveia,

como teatro educacional formativo cultural, Tatiana (Ibidem, p. 138) adverte que:

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o público podia até se identificar com o vilão, se ele quisesse. Quando nós fazíamos o Peter Pan em teatros dos bairros centrais da cidade, em geral, a criançada torcia pelo Peter Pan. Na periferia, a maioria das crianças torcia pelo Capitão Gancho. Você quer sociologia mais nítida do que essa? Não precisa explicar nada. Não precisava mesmo.

Para Tatiana, a prova maior da qualidade deste trabalho na TV estava no

recebimento das inúmeras “cartas de entidades culturais, de padres, de políticos,

todo mundo achava que o programa era direcionado a eles. Era tudo tão

abrangente que cada setor da sociedade parecia sentir-se como destinatário do

programa” (Apud ROVERI, 2007, p. 139).

Todavia, não só de fábulas viveria a TV. A satisfação do público mirim

se completara pelas exibições de narrativas da tradição estrangeira e esparsos da

nacional.18 Nesta lista, estão os chamados contos de fadas ou de encantamento,

que, semelhante ao fabulário de bichos, viram-se marginalizados pela estética de

seu tempo, mas, com o decorrer dos séculos, ganharam novos olhares e passaram

a ser entendidos, através do aval de profissionais da área de Psicologia, da

Educação, da Psiquiatria e tantos outros, como histórias que devem fazer parte da

vida dos pequenos, mesmo antes destes estarem na condição de leitores

(COELHO, 1981).

Assim, em horário nobre e numa única vez por semana, às quintas-feiras,

às 19h30, o programa, à base do ao vivo, entre 1951 a 1956, transmitiu mais de

300 textos, dos quais 90%, aproximadamente, foram adaptados por Tatiana

Belinky. Fábulas Animadas, a principio, não ultrapassava 30 minutos de

apresentação, necessitando normalmente de dois a seis setores e de poucos

cenários.

À medida que um texto mais complexo e extenso era adaptado, a história

do teleteatro era veiculada em dois ou três capítulos, um procedimento já muito

comum nas exibições do Teleteatro de Vanguarda (1952-1967). Entre os

programas de teleteatro dos Tatianas, o Teatro da Juventude, sobretudo, foi

aquele que conviveu mais com essa experiência.

18 Na descrição da pesquisadora Lara Maria (2000), encontram-se João e Maria, Três porquinhos, Chapeuzinho vermelho, Pirata Simbita, Labakan, o alfaiate, As aventuras de Pinócchio, Peter Pan, Bidu, Heidi, Bimbim, A bruxa da floresta e O casaco encantado, da autoria de Lúcia Benadetti.

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Em razão da expressiva audiência de Fábulas Animadas, o referido

programa passou a ser o carro-chefe das editoras, como assinala Lara Maria

(2000). Muitas delas ofereciam propostas a Tatiana Belinky para a publicação de

livros, mas a autora se mostrava intransigente, às vezes. O casal não abria mão de

ter o poder de decidir o que era melhor para ele e para o elenco. Tinha ‘carta

branca’, esta era a condição para continuar na TV.

Diante dos saldos positivos dos Tatianas na cena televisiva com as

encenações das fábulas e dos contos de encantamentos, os quais alavancaram o

número de patrocinadores, bem como a participação do casal nas instâncias

promotoras da cultura, novamente, em

1952, a emissora pediu-lhes um novo

programa, porém com temática

brasileira. Exigência esta que,

visivelmente, atenderia, assim, à

proposta audaciosa da TV da época em

ter como eixo de sustentação na grade

de horários uma produção de essência

nacional. Logo, nada melhor do que

adaptar a produção do maior escritor da

literatura infantil brasileira, Monteiro

Lobato.

Figura 15. Cenário e figurino da encenação de Casaco Encantado (1952), de Lúcia Benedetti, do Programa Fábulas Animadas. (Fonte: Arquivo Tatiana Belinky e Júlio Gouveia apud SILVA, 1981, p. 91)

Figura 16. Felipe Wagner, em As aventruras de Pinócchio, do Programa Fábulas Animadas. (Fonte: Arquivo Tatiana Belinky e Júlio Gouveia apud SILVA, 1981, p. 92)

Figura 17. Da esquerda para a direita: Edir Cerry (Narizinho), Lucia Lambertini (Emília), Hernê Lebon (Visconde) e David José (Pedrinho) e, à frente, Dulce Margarida (Dona Benta), no programa Sítio do Pica-pau Amarelo. (Fonte: ARMONIA, 2008, p. 278).

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Embora a proposta deste estudo não tenha como foco principal

inventariar e analisar as produções seriadas brasileiras19, formato em que o Sítio

do Pica-pau Amarelo (1952) foi o pioneiro, não deixaremos de comentar, ainda

que, sucintamente, a inserção desta produção no cenário da TV em fase de

experimentação.

A breve abordagem se justifica, uma

vez que o programa alcançou grande repercussão

no contexto cultural, cuja exemplar qualidade

artística permitiu-lhe somar um volume

expressivo de prêmios, bem como saborear a

cumplicidade entre criador/adaptador e criatura,

povoando, assim, através das muitas versões, o

imaginário de gerações e gerações de

telespectadores do país. De igual forma, este

tratamento receberão também as telenovelas

infanto-juvenis, as quais, veremos adiante,

constituíram também sucesso na telinha e

vivenciaram os sobressaltos do veículo em busca de expansão e espaço social.

O prazer em adaptar para a TV a obra desse autor brasileiro e apostar no

sucesso parece ter sido em razão de Tatiana conhecer seu acervo, constituído por

histórias originais e títulos e mais títulos de traduções, através dos quais tivera a

felicidade de reencontrar todos os personagens da literatura universal conhecidos

pela autora desde a sua infância na Rússia. Curiosamente, foi esse escritor

brasileiro, segundo Tatiana (Apud MATTOS, texto no prelo), que a fez desistir de

ser bruxa, um grande sonho de infância.

Depois de dois meses, os bonecos de panos, as figuras lendárias e

engraçadas do Sítio do Pica-pau Amarelo são os primeiros personagens de

Lobato a invadir a tela da Tupi-Difusora.

19 Na definição de Arlindo Machado (2005, p. 83-84): “Chamamos de serialidade essa apresentação descontínua e fragmentada do sintagma televisual. No caso especifico das formas narrativas, o enredo é geralmente estruturado sob a forma de capítulos ou episódios, cada um deles apresentado em dia ou horário diferente e subdividido, por sua vez, em blocos menores, separados uns dos outros por breaks para a entrada de comerciais ou de chamadas para outros programas. Muito frequentemente, esses blocos incluem, no início, uma pequena contextualização do que estava acontecendo antes para refrescar a memória ou informar o espectador que não viu o bloco anterior e, no final, um gancho de tensão, que visa manter o interesse do espectador até o retorno da série depois do break ou no dia seguinte.”

Figura 18. No Programa Sítio do Pica-pau Amarelo: Lúcia Lambertini (Emília) e Hernê Lebon (Visconde de Sabugosa) e, ao fundo, David José (Pedrinho) e Edi Cerri (Narizinho).

(Fonte: MATTOS, 2002, p. 228)

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É neste sítio que este tradutor, adaptador e escritor dimensiona, através

da arte literária, o contexto brasileiro. No decorrer

das histórias, o autor convida o leitor a mergulhar na

aventura, no faz-de-conta, como também a buscar a

liberdade, tendo um olhar crítico sobre sua realidade.

Entre ousadia e criatividade ficcional, implícito

estava o desejo de educar, de instruir. Logo, era

possível educar através de um contorno diferente. Na

‘escola’ de Lobato não há espaços determinados,

assim como as coisas não estão engessadas, passíveis

de uma única leitura, mas articuladas pela

instauração do diálogo, capaz de permitir que o

conhecimento seja adquirido de forma mais prazerosa, sem mistérios e burocracia.

Na contação de histórias da dona Benta, nas falas da Emília e do Visconde muitas

dessas intervenções se tecem e sustentam o rocambole infantil do escritor

brasileiro.

Como, na maioria das vezes, a adaptação de uma obra de grande

expressão literária para as telas, seja do cinema ou TV, resulta em discussões

polêmicas, demandando, até mesmo, interferências judiciais, em função de uma

série de objeções impostas pela família herdeira ou do próprio escritor, com os

Tatianas a história foi diferente. Quando, em 1952, Júlio Gouveia pensou na feliz

possibilidade de levar o mundo de Lobato para o audiovisual, a esposa do escritor

taubateano concedeu, com exclusividade, ao casal os direitos autorais. Não

somente eles eram amantes da literatura de Lobato, como o próprio escritor os

admirava por ter conhecido o trabalho realizado no grupo TESP.20 Em sua

biografia, Tatiana (Apud ROVERI, 2007, p. 81) revela, orgulhosa, como a mais

nova pretensão do casal rendera bons frutos:

Não havia programas específicos para crianças. A emissora tinha lá os programas de auditório com crianças, alguém fazendo alguma coisa, um barulho, um misterinho. Mas programa voltado só para criança não havia. Então, a emissora chamou o Júlio e disse: ‘Agora queremos um programa semanal brasileiro, com temática brasileira. […]’ E aí foi um Monteiro

20 Em sua biografia, … E quem quiser que conte outra… (2007), a autora revela que o primeiro contato com Monteiro Lobato aconteceu quando ele lhes telefonou numa noite e os convidou para marcar um encontro para se conhecerem.

Figura 19. Em pose: David José (Pedrinho) e Edi Cerri (Narizinho). (Fonte: MATTOS, 2002, p. 228)

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Lobato por semana durante pouco mais de 13 anos, sem interrupção. De 1952 até 1965. Treze anos sem contrato e fazendo tudo em cima da hora, tudo ao vivo. Era um trabalho insano.

Assim, em 3 de junho de 1952, a Tupi de São Paulo transmite o episódio

A pílula falante, extraído da primeira obra infantil Reinações de Narizinho

(1931).21 Em questão de meses, segundo

Lara Maria (2000), o programa também

alcançou êxito na telinha com a

apresentação de tantos outros episódios

dessa mesma obra. As histórias foram

exibidas em 45 minutos22,

acompanhados pela música Dobrado, de

Salathiel Coelho.

Todavia, em 1965, Lobato se

despede da emissora pioneira e de seus

telespectadores de imprecisa faixa

etária, incluindo desde os seus filhos da mídia impressa a seus telenetos, como

escreve Rosângela Marcola (2005).

Nesta trajetória, vale notarmos que, por um período de tempo,

aproximadamente um ano, os cariocas também assistiram a alguns textos do

referido programa pela TV Tupi (1951), canal 6, a qual moveu esforços para que

ao menos Lúcia Lambertini permanecesse no papel da Emília, já que seria

inviável o deslocamento de todo o cast da Tupi de São Paulo para o Rio de

Janeiro. Além do Sítio de dona Benta, outros textos, como a novelinha Polyanna,

também chegaram a ser transmitidos, como confessou sua autora Tatiana Belinky

(Diário da Noite, 25/10/58).

Segundo a história da TV brasileira, anterior ao videoteipe, essa prática

fora uma constante. A partir de 1956, as emissoras das grandes cidades, Rio de

Janeiro e São Paulo, começaram a ganhar devida importância não somente em 21 Esta publicação trata-se da terceira edição, pois, em 1920, a referida obra foi publicada pela Revista do Brasil, com o título A menina do narizinho arrebitado, e, no ano seguinte, pela Monteiro Lobato & Cia, como Narizinho arrebitado. 22 Os episódios foram: O casamento da Narizinho, O gato Félix, O irmão de Pinochio, João Faz-de-conta, O alfinete do pombinho Carijó, O palhaço, Os óculos de Dona Benta, O ensaio, A surpresa, O espetáculo, O pó de pirlimpimpim, Curto principal (MARIA, 2000).

Figura 20. Em cena, no Sítio do Pica-pau Amarelo, Benedita Rodrigues (Tia Anástácia) e Edi Cerry (Narizinho). (Fonte: http://www.sampaonline.com.br)

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função da organização de shows mais variados, mas também por valer-se desse

intercâmbio de artistas e programas, uma das mais novas e estratégicas iniciativas

do audiovisual para alcançar cada vez mais um expressivo número de público

(Revista da Semana, 28/07/56).

Em virtude da grande recepção nos anos anteriores na TV Tupi e pela

riqueza temática, que se desdobrava numa infinidade de episódios, os textos de

Monteiro Lobato voltam ao ar, em 1965, mas a convite da TV Cultura, numa

produção de Lúcia Lambertini; e dois anos depois, nas câmeras da TV

Bandeirantes também passam a transmitir, pela tecnologia do videoteipe, mas

ainda em preto e branco, as histórias do Sítio do Pica-pau Amarelo.

Entre 1977 e 1986, nos espaços da Rede Globo, em parceria com a TV

Educativa, o seriado chegaria a sua 4ª versão, a série de maior sucesso até então.23

Ao buscar respeitar o universo da criança, houve toda uma preocupação pelos

seus idealizadores, assim como fizera o grupo TESP, em reler e adaptar as

histórias sem violentar a qualidade literária, seja na exposição da trama e suas

mensagens, na linguagem, na caracterização dos personagens etc.

Diante de tantas versões, poderíamos pensar que o público telespectador

infantil estaria enfadado das histórias lobateanas. Mas a TV, com a 5ª versão do

programa, exibida em outubro de 2000, provou que a literatura desse escritor, em

plena era tecnológica e globalizada, podia ainda fascinar a criança brasileira.

Do Sítio, televisionado ao vivo, em preto e branco, e através de câmeras

enormes, vários momentos de improvisos técnicos junto à postura engessada dos

atores principiantes, chegamos ao sítio cibernético, sob direção de Roberto Talma,

da Rede Globo. Entre a contratação de novos atores, em especial crianças, e a

permanência de outros, o programa, sob novos cenários e auxílio de recursos

tecnológicos como a computação gráfica, prometia influenciar mais uma geração,

como nos anos anteriores.

Esse encanto dos aportes culturais do país pela obra de Monteiro Lobato,

que entre adaptações e adaptações o consagrou como escritor do mundo infantil, é

comentado pelo jornalista Luiz Giovannini (Última hora, 14/12/55, p. 10):

23 Quando os rostos se iluminam (no prelo) foi o título provisório da obra de memórias, escrita por Geraldo Casé, um dos principais diretores, e pelo Wilson Rocha, roteirista, ambos da Rede Globo. Ao focar o trabalho de adaptação empreendido no programa do Sítio, a obra apresenta os recursos rudimentares, a produção artesanal, bem como os segredos do sucesso da série por 10 anos consecutivos no veículo.

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O mundo infantil de Lobato, justamente pela humanidade e pelo carinho revelado, sempre testou a gente de teatro, de cinema e de televisão. No teatro estão sendo apresentadas, continuamente, pelas extraídas dos livros infantis de Lobato; no cinema “O Saci”, outra genial obra de Lobato; [...] um filme que mereceu os melhores elogios da crítica nacional e estrangeira. Finalmente, na televisão, Júlio Gouveia vem realizando uma série de trabalhos sobre os personagens infantis lobateanos, colocando-as no “Sítio do Pica-pau Amarelo”, local idealizado pelo autor para as aventuras de heróis-mirins.

Concomitante à exibição do

Sítio (1952), também sob a direção de

Júlio Gouveia, estreia, no ano de 1953,

o Grande Teatro Infantil Gordano.

Posteriormente, o referido

teleteatro passou a se chamar Era uma

vez e, em 1954, recebe novo título,

Teatro da Juventude, com o qual

permanece até o encerramento de suas

transmissões.

Durante nove anos, em exibições

que duraram até uma hora e meia, o

programa, semelhante à proposta do

Fábulas Animadas (1951), apresentou

textos da literatura clássica e popular,

especialmente, os de versões europeias,24 e

ainda originais de Tatiana Belinky,

baseados, por exemplo, em notícias de

jornal, biografias de pessoas brasileiras ou

episódios bíblicos. Como a produção de

literatura infantil genuinamente nacional

era ínfima na época, tendo como

exemplo diferenciador apenas a obra de Lobato, como explicamos no capítulo

24 Dentre os textos, estão: Chapeuzinho Vermelho, As duas gêmeas, Cinderela, Copellia, A bela e a fera, A bela adormecida, Branca de Neve e os sete anões, Os castiçais de Monsenhor (Os Miseráveis), O mágico de OZ, A roupa nova do Imperador, O gato de botas, Aladim e a lâmpada animada, trechos extraídos de As mil e uma noites, e tantos outros. (MARIA, 2000).

Figura 22. Cena de A Bela Adormecida – Teatro da Juventude.

(Fonte: Arquivo Tatiana Belinky e Júlio Gouveia, apud Silva, 1981, p. 95)

Figura 21. Odete Lara, em Branca de Neve – Teatro da Juventude.

(Fonte: Arquivo Tatiana Belinky e Júlio Gouveia apud Silva, 1981, p. 99)

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anterior, Tatiana Belinky cada vez mais busca inovar, apresentando, por exemplo,

as grandes narrativas da humanidade.

Neste programa, pela diversidade de temas e de gêneros das produções,

Tatiana, possivelmente, não visou apenas à criança como telespectador, mas abriu

espaço para o público mais jovem e, até mesmo, adulto. Os bastidores desse

sucesso de audiência são revelados pela autora (Revista É, [on-line]):

Começamos com Era uma vez25 aos domingos, uma história inteira de cerca de uma hora e meia, todas as mágicas, como os contos de fadas. Foi engraçado: nosso forte e grande público começou a reclamar porque o programa era de manhã e pediram para exibir durante a tarde, porque as crianças não estavam querendo ir à missa. O nome mudou para Teatro da Juventude, o público-alvo ampliou, não era proibido para adultos, comecei a trabalhar a literatura realmente baseada em tudo o que eu já havia lido.

A tradutora, ousadamente, vale lembrarmos, adaptou cinco ou seis contos

do escritor russo Tchecov, embora ele não escrevesse para criança e sim sobre

criança. E mesmo que a adaptação esbarrasse na dificuldade de reportar ao clima e

às paisagens desenhadas pelos contos, Tchecov foi para a TV. A este se

acrescentam Maupassant, Somerset Maughan etc.

Inicialmente, no horário da manhã, o programa dessas ricas histórias,

diferente dos outros teleteatros, tinha um horário reservado no programa Zig-Zag

(1953). Todavia, anos depois, ganhou autonomia na grade de programação da

Tupi.

Segundo os jornais da

época, a riqueza das encenações

dos textos referentes às histórias da

Bíblia, a maioria pertencentes aos

livros do Velho Testamento

contribuiu para isso. As adaptações

se notabilizaram pela fidelidade

ao texto original, ao figurino e ao

cenário, bem como pela sabedoria

25 Grifo nosso.

Figura 23. Cena do Teatro da Juventude. Da esquerda para direita, David José, Júlio Gouveia e os atores, amadores da Casa do povo, José Selver (ao centro), Felipe Wagner e Ênio Gonçalves. (Fonte: MATTOS, 2002, p. 230)

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de divulgar o conhecimento, através da imagem e som, a toda uma geração. Sob a

voz de Júlio Gouveia, acentuava-se a moral religiosa subjacente aos textos.

Transmitidas entre abril e maio de 1955, em cinco domingos

consecutivos, a grandiosidade das cenas “mostra do que é capaz a TV”, como

escreve J. Pereira (Diário da Noite, 14/05/55). Todavia, uma encenação que

mereceu os holofotes da imprensa foram os episódios de Os Dez Mandamentos26,

o que, consequentemente, colaborou para que o programa alcançasse o mérito de

melhor atração infanto-juvenil da TV brasileira no referido ano.

Além do Sítio como produção brasileira, o público também assistiu ao

teleteatro, Grande Teatro Wolf, cuja temática versava sobre personalidades

históricas e problemas atuais da cidade de São Paulo. Em março de 1953, os

Tatianas e o grupo TESP somam mais um programa, além de outros três já

agendados na Tupi paulista.

Dividindo o horário de domingo com

Teatro da Juventude, 25 episódios, escritos por

Tatiana Belinky, foram encenados.27 Neste novo

projeto, normalmente o elenco era composto por

atores crianças, apelidos, na época, de TBC

Mirim. Todavia, em ocasiões especiais, os atores

de destaque eram convocados.

Uma encenação da qual Tatiana

recorda com orgulho refere-se à homenagem

feita a um saneador ilustre de São Paulo:

Emílio Ribas. Através do depoimento da

esposa de Emílio, Tatiana Belinky deu vida ao

herói, que mereceu a interpretação de Júlio Gouveia e transmissão em horário

diferente dos demais episódios (Diário da Noite, 8/7/54).

26 Atores citados nessas apresentações: José Serber como Moisés; Hernê Lebon, Aarão; Adélia Victoria, Miriam; Wilma Camargo, princesa Bâthyia; Suzi Arruda, Jochibed; David José, Moisés (criança); Palmira Elia, Zepporah. (Diário da Noite, 27/04/55). 27 Segundo Lara Maria (2000), os episódios apresentaram títulos como Mestre João, A Nau Capitânea, Caramuru, João Ramalho, A Mudança para Piratininga, Pedro Sardinha, O 13 de Maio, O primeiro granfino, Dom Francisco de Manhas, A cana de Dom Gonçalo, Amador Bueno, Espanhóis em São Paulo, O homem que não queria ser rei, Os Pires e os Camargos, Os muros de São Paulo, O marquês de Cascais, O preço do pão, Pedro Taques ou O nepotismo, Parentesco entre vereadores, A vila de São Paulo se transforma em cidade, Os rios de São Paulo, A cacho de bananas e O governador das esmeraldas.

Figura 24. Cena de Os dez mandamentos, no Teatro da Juventude (Fonte: Arquivo Tatiana Belinky e Júlio Gouveia, apud SILVA, 1981, p. 99)

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Diante de todo esse investimento em adaptações que visem a uma

qualidade artística, para então manter a proposta de educar através da TV, é

possível conferir, a partir dos títulos, tal intenção. A difusão do caráter patriótico,

ao longo das apresentações televisivas, chega a corresponder a uma concepção em

evidência nos vários meios de comunicação impressa e também radiofônica

daqueles anos.

Além dos teleteatros, a TV Tupi também

investiu em um programa que Tatiana denominou

de ‘Romances em capítulos’, hoje entendido como

minissérie. As histórias, adaptações de textos

clássicos juvenis, se constituíam por 60 capítulos,

aproximadamente. Assim, Nicholas, Heidi,

Pollyanna, O pequeno Lorde e O jardineiro

Espanhol, foram algumas das minisséries de

sucesso na Tupi, as quais, inclusive, mereceram

reprises em outras emissoras, como a Tupi do

Rio, por exemplo.

Computando quatro programas semanais, também denominados por

Tatiana de curtas e longas-metragens: Fábulas Animadas (1951), às quintas-

feiras; Teatro da Juventude (1953), em dois atos, aos domingos; Sítio do Pica-

pau Amarelo (1952), às quartas; novelinhas (1956), às terças e quintas, e

palestras sobre educação, podemos dizer que o trabalho do casal e seu grupo

alcançara prestígio na Tupi de São Paulo. Nos bastidores, qualquer programa

exige, embora não pareça, a mescla de um número variado de linguagens (oral,

escrita, corporal, facial) para que ele se instaure como experiência televisiva.

Todavia, antes da transmissão, uma série de compromissos devia ser

observada de forma criteriosa, pois o trabalho na tevê “era parecido com um

trapézio sem rede: não se podia errar, um erro, visto por centenas de milhares de

pessoas, podia estragar tudo e tudo tinha que dar certo, de acontecer no momento

exato” (BELINKY, 1997, p. 4). Primeiro, era preciso escrever o roteiro na folha

de estêncil, reproduzi-lo através de um arcaico mimeógrafo a álcool – único

recurso econômico de reprodução de textos na época – distribuir para todo o

elenco e técnicos. A isto, somava-se a leitura preparatória do texto, seguida do

ensaio com o diretor artístico para, no outro dia, levar o espetáculo ao ar e ainda

Em cena, Verinha Darcy, na Novela Pollyanna. (Fonte: Arquivo Tatiana Belinky e Júlio Gouveia apud SILVA, 1981, p. 92)

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ao vivo. Para tanto, necessitava-se de agilidade, dedicação e responsabilidade de

todos os envolvidos nessa tarefa de brincar de ser criança quando adulto. Neste

sentido, Tatiana (News da Semana, 15/10/58, p. 10) explica que: A chave da solução do problema é ‘tarimba’, ‘mais vale a prática do que a gramática.’ Eu desenvolvi uma prática de destrinchar, adaptar e escrever um script em tempo mínimo; os atores a decorar em duas horas um ato e Júlio aperfeiçoou seu sistema de ensaios obtendo um rendimento especial.

Em entrevista, a autora também reconhece, orgulhosa, que nada foi em

vão, e recorda que chegaram a ganhar prêmios28, menções honrosas,

reconhecimento de entidades escolares e religiosas pelo trabalho de representação

na tela da pioneira Tupi.

E por ser o audiovisual a mais nova invenção na época, toda semana, mês

e ano, a crítica de TV e Rádio elegiam, assim como acontece na

contemporaneidade, os profissionais que se destacavam em cada função do

processo organizacional interno destes veículos, desde atores, diretores, músicos,

a animadores de programas. Revistas, como Radiolândia, São Paulo na TV,

Manchete, e jornais impressos, como Diário da Noite, O Estado de São Paulo,

dedicavam colunas inteiras, divulgando o êxito desses profissionais, os quais,

possivelmente, passariam a frequentar o mundo da fama, a partir de então.

Outro fato de importância seria a projeção internacional. Não tardou

muito, pois, em 1955, o elenco recebeu o convite da CBS para encenar episódios

do Sítio nos Estados Unidos, país em que a televisão e sua linguagem não era

mais nenhum mistério para seus técnicos e artistas. Na urgência da tradução, os

Tatianas decidiram que a primeira peça a ser transmitida seria “O Pó do

Pirlimpimpim” (Diário da Noite, 1955).

Por outro lado, a emissora PRF3 alcançava também sucesso e se

orgulhava de ser a primeira estação de TV na América do Sul a transmitir

programa para os pequenos. No ano de 1953, ela seria a pioneira em teatro infantil

e também recordista, desde o Natal de 1951, por transmitir, até a referida data,

28 Em 1955, o teleteatro Teatro da Juventude foi considerado o melhor programa infantil da TV brasileira. No ano seguinte, 1956, Júlio Gouveia ganhou o prêmio de melhor produtor de TV do ano (Manchete, 7/1/56, p. 15). Já em 1958, o casal recebe o prêmio Roquete Pinto da AFEU, o melhor do Teatro.

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250 peças de Tatiana, televisionadas em 3 programas semanais: O Sítio do Pica-

pau Amarelo, Fábulas Animadas e Grande Teatro Infantil Gordano (Teatro

da Juventude) (Diário da Noite, 30/10/1953). Nesse cenário de contação de

histórias, o TESP e os Tatianas construíram sua história na TV.

4.4 Entre efeitos e arranjos, o desafio de fazer TV

Na adaptação para a mídia televisiva desse mundo fantástico, cheio de

maldições, profecias, onde sobrevivem reis,

rainhas, príncipes e princesas, vilões ou

mocinhos, metamorfoses de criaturas humanas em

animais (ou vice-versa), fadas, bruxas, gênios

misteriosos e até bonecos falantes de sabugo de

milho, Júlio convocava todo o cast do TESP e,

conforme a necessidade da peça, também

participavam os atores contratados pelas

Associadas.29 Devido a sua ligação com os

integrantes do Teatro Amador Sesc, Júlio

chegava também a recrutá-los.

Nessa missão, nem mesmo um grupo

de amigos ecléticos profissionalmente –

engenheiros, médicos, advogados, professores –

todos amadores, ficaram de fora.30 Ao completar

um ano de trabalho na TV Tupi e quatro de

espetáculos pela cidade de São Paulo, em 1952,

o grupo já contava com 110 profissionais

inscritos em sua ficha técnica. Por não fazer

parte da folha de pagamento da Tupi, a cada

apresentação, o elenco recebia um cachê pela

atuação.

29 Nicette Bruno, Jayme Barcelos, Jacson de Souza, Sérgio Britto, Dionísio Azevedo e outros. 30 Clóvis Garcia, Alberto Guzik, Haydée Bittencourt, Bernardo Rocwesger, Roberto Ney, Beatriz Moura, Paulo Barbosa e outros.

Figura 26. No Teatro da Juventude, em 1957, Elias Gleiser, o Tonelada, apelidado pelos integrantes da Casa do Povo, ao lado de Henrique Martins, ator pioneiro da TV Tupi-Difusora. (Fonte: MATTOS, 2002, p. 231)

Figura 27. No Teatro da Juventude, em 1957, os atores da Casa do Povo, Marcos Rosembaum e Rafael Golombeck. (Fonte: MATTOS, 2002, p. 230)

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Nestes anos, o aprendizado quanto à arte cênica e televisiva acontecia

diariamente, pois havia “uma gente que não era ator, que vivia de outras coisas,

mas ficava à disposição, ficava sem fim de semana, porque havia os ensaios”

(TATIANA apud ROVERI, 2007, p. 87).

A ajuda de colaboradores e técnicos da emissora do Sumaré também

teve importante papel na encenação vitoriosa dos espetáculos. A este respeito,

Cavalheiro Lima (Diário da Noite, 14/07/52) completa, revelando que:

Afora essas pessoas a família inteira de Júlio no redemoinho. [...] Sua esposa Tatiana Belinky é quem teatraliza a maioria das histórias do Sítio31 e das Fábulas Animadas. O filho Ricardo escreve melhor que muito adulto que se mete a escrever literatura infantil. Os vizinhos, os conhecidos, enfim todos quanto se põem em contato com Gouveia e Belinky, terminam colaborando dum jeito ou doutro, com o teatro infantil.

Pela organização, o trabalho acontecia em equipe, e, como era comum

na tevê desses anos os profissionais atuarem em muitas funções, Tatiana (Ibidem,

p. 136) confessa que:

nós éramos obrigados a fazer às vezes de cenógrafo, de diretor, de especialista em efeitos especiais. Todo mundo tinha de ser muito ágil e muito criativo. A sonoplastia, por exemplo, nada mais era do que soltar a agulha no ponto exato do disco. Assim também era com os efeitos de luz. Hoje vejo que nós fazíamos três curtas-metragens e um longa-metragem por semana. Era um milagre, uma coisa louca que a gente levava na brincadeira. Depois das apresentações, todo mundo ia para mina casa, almoçar, jantar, fazer feijoada.

Havia também por parte do grupo TESP a preocupação com o público,

elemento importante na construção desse cenário televisivo. Para conhecê-lo,

estrategicamente, o grupo buscava saber a opinião do telespectador. Assim, Júlio

fazia questão de elaborar um fichário com informações importantes (nomes,

endereço, telefones e dados como condição social, a quantos programas assistiram

etc.) do público telespectador. A pesquisa de audiência, pautada num método

totalmente rudimentar, sem nenhum painel eletrônico, também acontecia através

de cartas e telefonemas que recebia.

31 Grifo nosso.

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Até mesmo quanto às declarações de conteúdo reprovador o diretor

chegava a explicar, em suas palestras, promovidas pela UNESCO, que não havia

nada de errado com as encenações, todavia o problema residia, muitas vezes, na

própria ignorância dos pais, pois estes não compreendiam as transmissões. Ainda

que estipular uma faixa etária para determinado programa fosse algo impreciso,

pois à TV basta apenas apertar o botão, para Júlio Gouveia, os pais e responsáveis

deveriam estar cientes de que programas como Fábulas Animadas (1951) se

direcionavam a crianças da idade escolar e Era uma vez, isto é, Teatro da

Juventude (1953), aos adolescentes da faixa de 15 anos em diante.

Com relação ao caráter emancipador das emoções, o diretor revela,

também, que uma mãe, em carta, os agradece pela transmissão do espetáculo O

fantasma de Canterville, o qual permitiu ao filho dela aprender a lidar com seus

medos e pavores de ambientes escuros.

Precisamos mencionar ainda que muitos dos atores e diretores se

destacaram e construíram uma importante trajetória artística na história da

televisão através dos referidos programas. Nesses

anos, de forma curiosa, alguns personagens foram

representados por mais de um ator, porém, devido à

falta de registros, há dados confusos sobre os nomes

dos artistas e das datas, sobretudo quando se referem

ao programa do Sítio.32 No papel de Pedrinho, por

exemplo, os registros não são unânimes em afirmar

quais destes nomes – David José, Antônio Roberto

Fava e André José Adler – seria o primeiro a

representar o referido personagem.

A essa lista se acrescentam, ainda, Julinho

Simões e Sérgio Rosemberg. Quanto à Emília, a boneca felizmente encontrou em

32 De acordo com o artigo Elmo F. Ankerkrone (2001), a personagem Emília foi representada por Lúcia Lambertini, Dulce Margarida; Narizinho por Edi Cerri, Leny Vieira, Lídia Rosemberg; Visconde de Sabugosa por Daniel Filho, Rubens Molino, Luciano Maurício, Hernê Lebon; Dona Benta por Sydnéia Rossi, Wanda A. Hammel, Suzy Arruda, Leonor Pacheco; Tia Anastácia por Benedita Rodrigues, Zeni Pereira. O autor cita também Ricardo Gouveia como Rabicó; Paulo Basco, Dr. Caramujo; Mara Mesquita, Peter Pan. Segundo registros de jornais e revistas, outros programas dos Tatianas também atuavam como diretor de TV: Hélio Tozzi e Luiz Galon; diretor de estúdio, Nelson Oliveira; diretor de cena, eletricista, sonoplasta, mecânico, Abracha Belinky; cenógrafo, Alexandre; maquiador, Barry; costureira, Vera Halseman. No programa Teatro da Juventude, além da atuação desses atores, havia nomes como Ileana Saska, Wilma Camargo, Adélia Vitória e outros.

Figura 28. Lucia Lambertini, no papel de Emília. (Fonte: O Cruzeiro, jan.1952.)

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Lúcia Lambertini sua grande perfomance artística, encarnando de corpo e alma a

personagem falante e de humor irreverente. Apelidada de Condessa das Três

Estrelinhas, Marquesa de Rabicó, ela encantou a todos.

Como vimos, anteriormente, os atores mirins também participaram da

história do teleteatro dos Tatianas, uma herança das primeiras encenações teatrais

no território brasileiro. Neste sentido, Lara Maria (2000) esclarece que o diretor

recorria a “atores-crianças” no momento em que o texto tinha como necessidade

imprescindível a presença dos pequenos. Na montagem da peça Branca de Neve e

os sete anões33, por exemplo, a participação de atores-crianças colaborou para que

a história televisionada se revestisse de um realismo tal qual pertencia à

imaginação infantil. Chico Vizon, em matéria para a revista O Cruzeiro

(18/07/53, p. 69), focaliza os bastidores dessa nova configuração de “elenco” do

programa Teatro da Juventude (1953):

Eis agora, neste domingo: é a história da Branca-de-neve e dos 7 anões. Lília Belinky, menina de 3 meses, alva e nédia e já é veterana do vídeo, representa a princesinha na idade de colo. As crianças são anões de 4 a 7 anos que criam pequeninos grandes problemas, nas tomadas das cenas sem ensaio. Mas a equipe de Hélio Tozzi aceita o desafio, em ação das câmeras, do improviso das atitudes infantis arranca efeitos que valem o espetáculo, sob o patrocínio de Chocolate Gardano.

Além da exigência de representar expressivamente o papel em cenas, os

pequenos teriam que ser alunos exemplares nas escolas, o que, por conseguinte,

proporcionar-lhes-ia o senso de responsabilidade, o trabalho em equipe e a

socialização. Para eles, atuar era sinônimo de alcançar um prêmio, pois Júlio era

rígido em suas exigências. É preciso verificarmos que a época não oferecia quase

nenhuma atividade cultural e de lazer para a criança. Assim, participar do

teleteatro significava entreter-se, vivenciar, por alguns momentos, uma realidade,

aparentemente, diferente da cotidiana.

Apostando na importância da arte cênica, Júlio Gouveia entendia ser o

teatro infantil diferente do teatro para crianças. Na sua concepção, no primeiro,

são as crianças os donos das cenas e sua mais alta expressão se constitui no

“Teatro Escolar”, por este permitir um percurso por todos os níveis escolares,

33 Atores do TESP: Wilma Camargo como Branca de Neve, Luciano Maurício como Príncipe caçador, Dionísio como o Bom Vassalo (O Cruzeiro, 18/07/53, p. 69).

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enquanto que, no segundo, exigem-se atores adultos34 como procediam

geralmente os teleteatros, os quais ele dirigia na TV Tupi.

Logo em seguida, Gouveia alerta que é preciso analisar com cautela a

proposta do teatro infantil, pois, caso não seja praticado nos espaços escolares, ele

poderá apresentar desajustes e fama precoce. Resultados estes, muitas vezes, do

egoísmo e da incompreensão dos pais que desejam a todo custo filhos prodígios.

Infelizmente, o teatro pode contribuir para isso, anulando, por outro lado, toda a

sua dimensão ética, sua filosofia de vida (Última Hora, 1955).

Na visão de Tatiana, essa coletânea de textos da tradição popular

estrangeira e nacional era, propositalmente, televisionada, com a “intenção de

despertar o prazer pela pesquisa em livros e a leitura, além de estimular o

processo imaginativo da criança” (BELINKY apud SILVA, 1981, p. 84). O casal

acreditava no veículo enquanto espaço de mediação entre o educativo e o

recreativo.

Em depoimento ao jornalista Luiz Geovannini, Júlio revela a dimensão

que a arte de narrar pode assumir na vida de uma criança. Os espetáculos

exclusivamente para crianças, segundo o diretor, deveriam ter como critério maior

normas estéticas e pedagógicas bem definidas. A poesia, por exemplo, jamais

poderia se ausentar dos textos.

Assim, através de seu conhecimento psicanalítico (Última hora,

14/12/55, p. 10), diz:

A história é o elemento mais importante no ‘teatro para crianças’. O espetáculo deve desenvolver um determinado tema, criando uma situação dramática que exija uma solução. A criança se identifica com os personagens da história e vive aquela situação como se fosse uma verdadeira experiência pessoal. É a maneira como a personagem resolve o problema ou situação que tem de enfrentar, é que determina no espírito da criança a sua formação ética, uma filosofia de vida, uma compreensão dos valores morais e humanos, enfim, todos os elementos que vão aos poucos moldando a mentalidade e o caráter.

Como aludimos anteriormente, para o sucesso desse ideal, o casal

buscava manter a respeitabilidade do original, permitindo que toda a concepção da

34 Teatro para criança encenado por adultos foi uma das normas apresentadas pelo Instituto Internacional de Teatro (UNESCO), em conferência na cidade de Paris, em 1952.

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educação infantil sobre conhecimentos do cenário nacional ou mundial ganhassem

vida, de igual forma, na linguagem televisiva. Para evidenciar a importância do

ato de ler ao público infantil, estrategicamente, Júlio Gouveia trazia para a cena

um livro, que funcionava também como uma indicação simbólica do início e do

término da história televisionada. Dessa forma,

os pequenos se conscientizavam de que todo

aquele mundo da tela podia ser encontrado nos

livros.

Segundo a professora Rosângela

Marçolla (2005), as adaptações repercutiram de

tal forma, que as obras de Lobato ganhavam, a

cada dia, novos leitores do segmento infantil.

Essa experiência também fora vivenciada por

sua mais fiel adaptadora, Tatiana, a qual

recebia propostas para engrossar as vitrines das

livrarias com suas traduções e textos originais já transpostos para o audiovisual.

Ao convocar a todos, a TV tornou-se a grande mediadora entre literatura e leitor.

A preocupação com fins educativos nas transmissões televisivas estava até mesmo

na escolha do produto propaganda. Neste sentido, a adaptadora Tatiana (Revista

É, [on-line]), comenta que:

Como educador, ele (Júlio Gouveia) dizia que não iria promover um produto com o qual não concordava – se fosse indústria de bebidas, cigarro ou algo que ele não considerasse bom para crianças, recusava o patrocínio. O Biotônico Fontoura foi um dos patrocinadores, os Chocolates Lacta também.

A princípio essa realidade de divulgação de determinado produto não

fora tão fácil na telinha, pois a televisão, assim como o rádio em seus primeiros

anos, constituía-se à base da experimentação e da insipiência, e não encontrou, de

imediato, anunciantes inclinados a apostar no veículo. E sem anunciantes, seria

impossível a sua sobrevivência. Aos poucos, a telinha ganhou prestígio e

apareceram em sua história as famosas garotas propagandas. Em depoimento,

Belinky (Revista É, [on-line]), comenta sobre o poder do programa e, por

conseguinte da TV, nesses anos:

Figura 29. Júlio Gouveia, na cena de abertura dos seriados do Sítio do Pica-pau Amarelo (1952). (Fonte: MATTOS, 2002, p. 227)

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Os contratos valiam por dois anos, uma vez tivemos um patrocinador que era uma marca de bebida maltada, só que o Sítio do Pica-pau Amarelo35 não tinha intervalos, então eu tive a idéia de que na hora do lanche, com os bolinhos de Tia Anastácia, [...] se colocasse a bebida na mesa. O sucesso foi tamanho que a empresa depois de quatro meses avisou que não poderia continuar, porque não possuía estrutura para produzir a quantidade necessária.

Dessa repercussão, a TV sem videoteipe passou a contar com uma série

de patrocinadores, mesmo não possuindo um intervalo comercial de grande poder

apelativo, como se presenciava nos programas de Júlio Gouveia para criança.

Neste sentido, Lara Maria (2000) esclarece que a venda dos patrocínios

dos teleteatros ficava a critério dos Tatianas, e a emissora Tupi apenas comprava a

programação. Caso rompesse o patrocínio de algum programa, o casal teria que

encontrar outros, uma vez que o grupo, semelhante a alguns teleteatros das demais

emissoras, atuava de forma independente. De modo discreto, produtos como Tio

Candinho, Kibon, os biscoitos Düchen e tantos outros ganharam as cenas. Logo,

logo, a TV conheceu o que se denomina, hoje, de merchandising, considerado

uma revolução no mercado publicitário da época.

Por buscar sempre manter boas relações com os patrocinadores, Júlio e

Tatiana tinham inteira liberdade de decisão para divulgar a empresa e seu produto,

normalmente do gênero alimentício. Outra exigência do casal que resultava em

sucesso era a manter a exclusividade de um patrocinador para cada programa.

Segundo o jornalista Cavalheiro Lima, o teleteatro Fábulas Animadas36

e o seriado Sítio do Pica-pau Amarelo eram “os dois mais bem pagos da

televisão paulista, comparando com os de outros teatros, por exemplo” (Diário da

Noite, 14/07/52). Em virtude da recepção significativa dos programas na

metrópole, em que “o público telefonava, pedia mais” (TATIANA apud ROVERI,

2007, p. 79), mesmo na ausência de patrocinador, a emissora não suspendia a

transmissão de novos espetáculos. Segundo a adaptadora (Ibidem, p. 81), “E

assim foi: quase três anos sem contrato na prefeitura e mais de 13 na televisão, só

na palavra.”

35 Grifo nosso. 36 Durante a transmissão do programa, como criança-propaganda selecionou-se a atriz Sônia Maria Dorce Armonia, que, por longos anos, somaria uma bela carreira na categoria publicidade da TV (ARMONIA, Entrevista em 12/03/2010).

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Esses arranjos, que chegavam a afligir a muitos, faziam parte da

construção da TV. Por ser um veículo ainda desconhecido pelos seus

profissionais, logo, não se tinha também dimensão das dificuldades ali presentes.

Segundo Tatiana, “Só fizemos o que fizemos porque ninguém contou que não era

possível” (BELINKY apud ANKERKRONE, [on-line]).

Para as teleteatralizações, os cenários eram, normalmente, montados na

hora. Como a TV ainda era um veículo pobre em recursos, os figurinos dos dois

elencos eram alugados na Casa Teatral ou confeccionados por profissionais do

próprio grupo TESP. Neste sentido, Júlio conta que a costureira Vera Halseman

chegou a fazer 14 roupas num único dia. Tudo era muito urgente na TV do ao

vivo, e havia montagens de peças que exigiam dedicação intensa de todos. Quanto

aos ensaios da peça, a revista Época (16/01/53) esclarece que:

Não raro, uma mesma cena é repetida cinco, seis, sete ou mais vezes até que seja tão perfeita quanto possível dando idéia de um jogo de expressões espontâneas, naturais, dilapidando-se a interpretação dos artistas de modo a torná-lo arejado e consciente.

Para completar essa experiência de exaustão, o grupo chegava a ensaiar

duas peças diferentes em um mesmo dia para a emissora do Sumaré. Esse brincar

de ser criança enquanto adulto se realizava num casarão conhecido com Elefante

Branco.37 Pertencente à família de Júlio, a propriedade dispunha de 3 salas para

ensaio, duas para o guarda-roupa, uma para oficina cenotécnica e outra onde se

encontrava o bar do Samuel, um dos atores do grupo.

Porém, o casarão apresentava certa particularidade: não podia ser

vendido, alugado e, para reformá-lo, como necessário, seria dispendioso para Júlio

Gouveia em razão da precariedade de sua estrutura física. Ainda assim, o antigo

palacete passou por algumas reformas para servir de palco para a história do teatro

infantil do TESP.

Ao contrário da realidade de hoje, em que os atores, conforme o papel a

ser interpretado, recorrem ao trabalho de laboratório para compor o personagem,

37 Endereço: Rua Artur Prado, nº 75. Outro dado que contribuiu para demonstrar a seriedade das atividades do grupo TESP, seria a criação de um logotipo, em que havia a imagem de dois elefantinhos – um de semblante triste e outro alegre, remetendo às máscaras do teatro grego. Desta simbologia surgiu também O Elefante, um pequeno jornal, e O Tespinho, um elefantinho de bronze que era dado ao ator de destaque no mês.

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nos anos 50, os artistas não tinham tempo para isso. A escolha obedecia ao critério

da aparência física de cada integrante. Para ilustrar, Tatiana menciona (Apud

ROVERI, 2007) um caso cômico em que era preciso encontrar alguém para fazer

o papel de Nero. Porém, ninguém do elenco correspondia à fisionomia do

personagem. Por acaso, ao transitar por uma das ruas paulistanas, a autora

encontrou o seu Nero, um senhor de cabelos escuros, todo pomposo e o convidou

para encenar na TV o papel. E lá se foi o engenheiro, de nome Sucupira, duas

vezes para a encenação e nunca mais voltou.

Quanto aos recursos técnicos, os Tatianas e seu grupo utilizavam uma

série de trucagens para que todo aquele mundo pertencente à imaginação infantil

fosse um sucesso na tela da Tupi.

Em sua biografia, Tatiana (Ibidem, p. 88), menciona que era

indispensável uma enorme dose de criatividade, pois:

Tínhamos de decorar tudo muito rapidamente, não havia a figura do ponto. O que havia era meu irmão, que se arrastava que nem uma lagartixa no chão, com os cartazes dando deixa, para o caso de algum ator esquecer a fala.

Por outro lado, o jornalista Gumercindo Fleury (Gazeta, 30/07/56),

aponta o lado trágico dessa realidade e alerta:

A arte de programar requer, sem dúvida nenhuma, honestidade e cultura. Levar ao ar, através do vídeo, representações de fundo artístico-educativo orientador tem responsabilidade e das maiores. Um aparelho de TV representa o que há de conforto e moderno nas residências. Escolher os programas para os infantes e adolescentes é dever maior do chefe de família. Isso porque há programas, nos quais muitos artistas usam e abusam do direito de ‘improvisação’, deixando [...] em sérias dificuldades o programador.

Mesmo não havendo o tão cobiçado “ensaio de câmera”, em função da

premência de tempo, o espetáculo se revestia por uma montagem de alta

qualidade artística. As imagens eram capturadas por apenas três câmeras e por

uma grua ou “girafinha”, no estúdio. Incrivelmente, tais recursos, rudimentares,

tinham que se virar para dar conta das mudanças de cena, superposição de

imagens, fusão, afastamento e outros efeitos de cinema. Já os efeitos especiais

surgiam de acordo com a necessidade da encenação, e, normalmente, eram

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invenções desprovidas de alguma referência. Em se tratando de programa infantil,

vale dizermos que todas essas práticas artesanais, em que todos se sentiam

responsáveis pelo resultado final da peça, chegavam a um número intenso de

criações pelo fato de as histórias apresentarem riqueza de detalhes.

Assim, “tínhamos que apresentar coisas do arco da velha, e o melhor é

que elas funcionavam sempre” (BELINKY, 1997, p. 6). Quando a adaptadora não

conseguia sugerir o modo de realizar tal trucagem, escrevia, no próprio script, um

recado para Júlio, pedindo-lhe que tomasse providências, já que ela, muito

ansiosa, não gostava de frequentar o local no momento das apresentações do

teleteatro.

Com relação aos efeitos sonoros, o sonoplasta utilizava um Lp, o qual

era segurado pelos dedos, numa vitrola. Na transmissão de No reino de Águas

Claras, por exemplo, o aquário da casa de Tatiana foi colocado à frente da câmera

e os atores pareciam estar de fato no fundo do lago, rodeados por peixes. Nas

diversas encenações, o ator precisava ser mesmo corajoso, um aventureiro, pois,

segundo Tatiana, “quando um anjinho caía do céu, ele literalmente desabava pelo

cenário” (Revista É, [on-line]).

Em seu livro TV sem VT e outros momentos (1997), Tatiana Belinky

descreve de forma leve e descontraída os muitos imprevistos, ora revertidos em

casos engraçados ou dramáticos; trata-se de um repertório de histórias de

bastidores que enriquece o universo televisivo dos anos 50 a 60. Por hora,

apresentamos aqui, sem muitos detalhes, um pouco desses acidentes de percursos,

sobretudo aqueles pertencentes aos programas de teleteatros.

Segundo a adaptadora, diferente da tecnologia dos flasbacks de hoje, na

TV em construção tudo era muito urgente, e não podia dar errado, já que toda a

equipe teria uma única chance para mostrar seu talento. Trabalhosas eram as

encenações dos contos de encantamento, os clássicos infantis adorados pelas

crianças. Para a cena em que objetos invisíveis agiam, eram usadas as técnicas de

marionetes e o teatro de bonecos. Isso foi possível, por exemplo, em A bela e a

fera.

Na peça Rapunzel, o acidente de cena foi ainda mais trágico. Em uma

cena, a personagem, no papel Lúcia Lambertini, tinha que conversar com um

pássaro, seu amigo rouxinol, e logo depois beijá-lo. Quando parte para a ação,

Rapunzel é atacada pelo bico do bichinho-ator. O que a atriz não sabia era que o

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bichinho não mais se encontrava dopado e, assim, acabou fugindo. Mesmo tendo

sangrado o nariz, a personagem continuou corajosamente a encenar sem nenhuma

interrupção. Assim, vemos como esses atores eram mesmo ousados, pois nada

mais estranho que levar para a cena animais de toda espécie, árvores, bicicletas e

toda sorte de elementos que incrementariam a cena.

Outro caso de animal dopado se deu na transmissão da telepeça A rifa,

tendo a participação de Nélida, uma vaquinha malhada. Porém, a sua atuação se

transformara em estado de riso, pois, sem mais nem menos, a atriz convidada

começa a soltar por todo o estúdio “uma série de fumegantes e olorosas

‘panquecas’” (BELINKY, 1997, p. 21). Apesar do forte odor e tendo que desviar

dos borrões, o elenco apenas fazia o ensaio de câmera e isso transcorreu com

tranquilidade.

É na adaptação de Os Dez Mandamentos, do programa Teatro da

Juventude, que as histórias de improviso e criatividade do grupo apresentavam

ricas experiências. Diferentes de outras encenações, cada um dos dez capítulos

dessa história bíblica chegou a durar uma hora e meia.

Em um dos episódios da peça José do Egito, Tatiana conta que o ator,

Luciano Maurício, para fazer o papel de José, numa cena dramática em que ele se

encontrava com os irmãos, teria de derramar uma lágrima. Para tanto, nada

melhor do que recorrer ao colírio. Porém, no momento em que precisou utilizar o

remédio, a câmera o focou e aí aconteceu o desastre. Para a sorte do ator e do

grupo, os telespectadores entenderam que aquele gesto era uma espécie de

coreografia egípcia, devido à classe e elegância apresentada pelo próprio ator.

Na história de Moisés, para a encenação do episódio em que o Mar

Vermelho se abre para permitir a fuga dos hebreus, foram utilizadas duas caixas

d’água em sequência. Enquanto a água estivesse sendo entornada, uma câmera

gravaria e a imagem seria projetada de trás para frente, como se as águas

estivessem se separando. Para ter a imagem do mar cobrindo os egípcios, um

trecho da rua Sumaré, onde estava localizada a Rádio e a TV Tupi, foi interditado,

e fizeram um corredor com muitos sacos de água pendurados na parte superior de

uma estrutura de três metros. Logo que os atores atravessassem correndo o túnel,

simultaneamente, os sacos seriam furados e cena ganharia o efeito pretendido.

Em outro episódio bíblico, Sansão e Dalila, de imediato, o grupo se vê

em apuros. José Serva, o ator escalado para o papel Sansão, não pôde comparecer

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por estar doente. A Dalila, Beatriz Segal, não poderia entrar em cena sozinha,

então Júlio colocou no papel o figurante Elias Gleiser, que era grande, mas gordo

e não forte. Mesmo temeroso, ele se saiu bem. Para a cena em que havia o túnel

do templo dos filisteus, pintaram-se caixas de chapéus redondas. Estas logo foram

derrubadas pelo herói. Para a cena tornar-se ainda mais emocionante, todo o

momento contou com uma grandiosa sonoplastia.

Assim, entre erros e acertos, os Tatianas e seu grupo TESP deixaram um

enorme repertório de histórias que enriqueceram ainda mais esse fabulário da TV.

Ainda que a aquisição do videoteipe tenha permitido à TV brasileira

alcançar novos horizontes, Tatiana não deixa de apresentar, por outro lado, sua

decepção com a tecnologia. Ao aceitar o convite de encenar o Sítio do Pica-pau

Amarelo, na TV Bandeirantes, em 1968, a autora (Apud ROVERI, 2007, p. 130)

confessa que: Mas um programa de meia hora, se gravado, leva no mínimo três horas de gravação. Aí também acabou aquela magia, aquele desafio. As pessoas sabiam que errassem, era só interromper, cortas e fazer tudo de novo. Ou mudar na hora da edição. Depois de um ano e pouco, o Júlio disse que não queria mais, que daquela maneira ele não gostava. Porque o que fazíamos antes era teatro mesmo. A televisão daquele jeito gravado, não era teatro.

Em entrevista, Tatiana Belinky lamentavelmente ratifica uma drástica

situação que acaba comprometendo a memória da TV brasileira: todos os roteiros,

todas as adaptações de livros e de teatros, por serem datilografados e rodados em

mimeógrafos jamais foram encontrados. E por isso confessa Tatiana (2007, p.

193): “Não consigo falar sobre minhas obras completas. Eu escrevi muito, muito

mesmo, durante os últimos 60 anos. Muita coisa se perdeu.”

Hoje, a ex-integrante do TESP trabalha com 14 editoras, escreve para

crianças e, em seu curriculum, conta com mais de 120 títulos publicados. A

dedicação dos Tatianos e seu grupo a um teatro cheio de boas intenções no vídeo

paulista somou 13 anos (1952-1965), totalizando mais de 700 textos. Mas, ainda

que buscasse sobreviver num veículo à mercê do experimentalismo, o teleteatro

para a criança se aventura por outros horários na própria TV Tupi e pelas demais

emissoras da época.

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Assim, era uma vez na TV paulista um médico, uma russa que queria ser

bruxa e um grupo que gostava de brincar de ser criança...

4.5 Por toda a parte, outros teleteatros infantis

Quando somos artistas, nunca deixamos de representar. Seja em que palco estivermos, sempre estaremos representando.

Sônia Maria Dorce Armonia38

Se fizermos um voo pela transmissão dos programas infantis da TV Tupi

paulista, observaremos que não só o investimento numa programação de alto

nível, tendo, por exemplo, os teleteatros infantis produzidos e encenados pelo

TESP, dignificaram-na como um grande marco da história da televisão brasileira.

Na trajetória de seu empirismo, sobretudo a partir do 2° ou 3° ano de inauguração,

tantos outros formatos, originários do rádio ou não, tomaram corpo em seus

estúdios, e a disputa pela audiência se tornaria, então, desigual. E o que mais

chamou a atenção do telespectador na época foi a diversidade de sua grade de

horários.39

Numa produção que se pretendia ser essencialmente nacional e de

qualidade artístico-cultural, já que o audiovisual necessitava de aprovação da

sociedade para sua inserção promissora no contexto sociocultural daqueles anos, a

gurizada, público em formação, divertia-se, sem deixar o conforto da sua casa.

Com o tempo, as atrações passaram a abarcar ora o horário da manhã,

normalmente aos domingos, ora o da tarde e princípio da noite, correspondendo

ao restante da semana. Assim, entre as telenovelas, famosos musicais, simulações

circenses e seriados, além das adaptações teatrais dos Tatianas, tantas outras

formavam uma corrente de peso se comparadas às emissoras que começavam a

dar seus primeiros passos na cidade de São Paulo, como a TV Paulista (1952) e a

TV Record (1953).

38 Entrevista realizada em 12/03/10. 39 Cf. Anexo 4.

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Paralelamente às transmissões

dos teleteatros infanto-juvenis de Júlio

Gouveia e Tatiana Belinky, a pioneira

Tupi também produziu o teleteatro

Façamos hoje os homens de amanhã,

que, por dois anos, de 1955 a 1957,

permaneceu na sua programação. Nesse

período, foram ao ar muitas histórias, cuja

origem, em sua grande maioria, era

proveniente das cartas dos telespectadores,

que não demonstravam nenhum receio de revelar seus dramas pessoais.

O programa tinha em sua direção o maestro, compositor, pianista e

arranjador Francisco Dorce (1911-1983), e, como assistentes, Fernando Buck, e os

mais novos contratados da TV de

rudimentar estrutura organizacional e

técnica, Chico Assis e Antunes Filho.

Ao mencionar sobre a trajetória

profissional de Francisco Dorce, Sônia

Maria Dorce Armonia (2008), sua filha,

acrescenta que a autoria do programa

também pertencia a ele, um dos nomes de

fama do rádio paulista com experiência de

direção em programas da Rádio Tupi-

Difusora como a Grande Orquestra Tupã (1939-?)40 e o infantil musical Clube

Papai Noel (1938-1967).41

40 Fundador da Grande Orquestra Tupã, Francisco Dorce chegou a ter 30 músicos no programa e vários cantores importantes como Caco Velho, Elsa Laranjeira, Vida Alves, Hebe Camargo. Vivenciando a época de ouro das orquestras, o trabalho artístico de Dorce e de seus músicos passou a ser requisitado também em outros palcos como as sessões de bailes, em especial as formaturas, os ambientes das boates e dos cassinos. Através de um repertório eclético (foxtrote, boogie-woogie, samba, tango e outros mais), a orquestra também realizou turnês pela América Latina. (Fonte: http//: www.museudatv.com.br). 41 O referido programa tinha na direção Geral Homero Silva, grande radialista da Rádio Tupi, nos anos 40 e 50, premiado várias vezes por sua competência profissional e que, a partir de 1952, seguiria carreira política, somando 12 anos de mandato, nos cargos de Vereador e Deputado Estadual em São Paulo. Nomes que se tornariam importantes no mundo da TV, do Rádio, da música chegaram a frequentar o programa. Dentre eles, estão Hebe Camargo, Wilma Bentivegna,

Figura 31. Silas, Zezinho do Pandeiro, Hebe Camargo, Nelson Navais, Francisco Dorce e Lolita Rodrigues, nos estúdios da Rádio Tupi Difusora. (Fonte: ARMONIA, 2008, p. 53)

Figura 30. Ao piano, Francisco Dorce. (Fonte: ARMONIA, 2008, p. 36)

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Do sucesso no rádio, cujo contrato iniciou-se em 1939, o músico foi

convidado a conhecer o cenário

televisivo, onde teria a oportunidade

de continuar a enriquecer

musicalmente o universo cultural da

criança. Nos estúdios da Tupi,

produziu, então, sua primeira

experiência de TV: o Gurilândia

(1950), uma réplica do famoso

Clube Papai Noel.

Pertencente ao gênero auditório, em formato ao vivo, Gurilândia era um

programa em que os pequenos

chegavam a aceitar qualquer desafio:

cantar, dançar, declamar, representar

etc. Entre as crianças prodígios do

programa, estava Sônia M. Dorce

Armonia (1944)42, que somaria

respeitável experiência no rádio e,

sobretudo, na TV como apresentadora,

atriz, criança/garota-propaganda,

produtora, entre tantas outras. Por ter frequentado essas mídias desde os primeiros

anos da sua infância, a artista, com 19 anos, já era considerada da velha guarda.

Francisco Dorce, ou como muitos o chamavam, Chico Dorce, além de

sua paixão pela música, buscou, através da tela, dar vida também a uma outra

forma artística de grande admiração: a encenação teatral. Diariamente, “ele

teatralizava todos os seus atos e gostava muito de metáforas [...]” (ARMONIA,

2008, p. 34). Conhecedor de um variado repertório temático, desde literatura à

política, Chico Dorce não economizava na aquisição de novos livros e nem

mesmo na transmissão da riqueza do mundo estampado em suas páginas.

Erlon Chaves, Vida Alves, Lia de Aguiar, Walter Avancini, Wanderley, e tantos outros. (ARMONIA, 2008). 42 Em 2008, através da Coleção Aplauso Perfil, a referida artista publica, pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, sua autobiografia A queridinha do meu bairro, cujo título faz referência a sua participação como protagonista, em 1953, no longa-metragem de Francisco Ricci. Na obra, à proporção que a artista rememora sua vida particular, ela detalha com minúcias a sua trajetória profissional, sobretudo o seu trabalho na televisão.

Figura 32. Um dos aniversários do Clube Papai Noel: Sônia Dorce, à frente, e Homero Silva, ao fundo. (Fonte: ARMONIA, 2008, p. 41)

Figura 33. Gurilândia: Homero Silva e Sônia Dorce Armonia, ao centro, e crianças participantes do programa. (Fonte: ARMONIA, 2008, p. 70)

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Assim como Tatiana Belinky e Júlio Gouveia tentavam mostrar aos

pequenos que o livro era um objeto mágico, capaz de produzir conhecimentos e

conduzir ao universo da imaginação e da fantasia, Chico Dorce, endossando essa

mesma filosofia, viu a encenação teatral na TV como grande aliada nesta missão.

Inicialmente, a experiência começa no palco do programa Gurilândia, o qual

reservava à prática teatral alguns momentos.

Desses poucos momentos, o maestro de origem italiana se mobilizou e

resolveu investir nos teleteatros. O primeiro a ganhar as cenas da Tupi foi

Façamos hoje os homens de amanhã. Embora somasse pouco tempo de

transmissão na pioneira, de 1957 a 1958, o programa, por tratar de temas relativos

a problemas sociais e familiares, como recursos financeiros, preceitos morais,

abandono, alcoolismo e tantos outros, alcançou audiência satisfatória. Neste

repertório de tragédias, em que não havia, por parte de seus idealizadores, uma

preocupação com o seu caráter de veracidade, as encenações teleteatrais tentavam

mostrar aos seus telespectadores, não só o infantil, mas também o adulto, “que as

dificuldades são ensinamentos que a vida te dá. Que você pode ter sofrido um

grande drama pessoal e pode superar.”43

Além da participação do elenco adulto da Tupi, como, por exemplo,

Vera Darcy, Vida Alves, Henrique Ogala, trabalhavam, entre uma exibição e

outra, os atores-crianças Adriano Stuart, David José, Sônia Dorce e, sua irmã,

Márcia Dorce. O programa, conforme depoimento de Sônia44, era transmitido

num horário próprio para os pequenos: às 18h, sempre às quintas-feiras.

Um ano após o término do teleteatro Façamos hoje os homens de

amanhã, em 1958, Francisco Dorce também dirige o Cine Trol, tendo no elenco

participantes do programa de rádio Clube do Papai Noel e crianças de colégios

paulistas. Diferente do procedimento adotado no primeiro teleteatro e até mesmo

de outros teleteatros realizados por adultos, como o TESP, no Cine Trol,

eventualmente, quando o roteiro trazia personagens mãe, pai, bruxa, atuava, então,

gente grande.

43 Entrevista realizada com Sonia M. Dorce Armonia, em 12/03/2010. 44 Idem.

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Sob a autoria da gaúcha Clenira Michel (1930)45,

atriz, redatora e mãe das atrizes-mirins Jussania e Jussara

Michel, o referido teleteatro ganha a mais nova produtora

da TV daqueles anos: Sônia M. Dorce Armonia, então com

14 anos de idade.46

Nesta nova função, a artista revela, em

entrevista47, que era admirável como as crianças-atrizes

demonstravam profissionalismo frente à experiência teatral.

No momento certo, elas chegavam com os scripts decorados, as diversas

marcações bem definidas, a postura e expressão diante das câmeras, dentre outros

quesitos. Antes de encenar com a câmera no estúdio

da Tupi, os ensaios tinham como palco um dos

quartos do grande casarão da família Dorce, assim

como os do TESP de Júlio Gouveia.

Entre 1958 e 1959, o canal 3, às 18h, nas

tardes de sábado, sob o patrocínio da fábrica de

brinquedos Trol, o programa buscava inovar com a

adaptação para o vídeo das histórias da literatura do

norte da Europa48, pertencentes ao folclore sueco, dinamarquês, norueguês etc.

Muitos dos textos, vale notarmos, desconhecidas até então. Dessa cultura, Sônia

relembra um dos espetáculos que marcou a época: Bombas de creme do Rei.49

Dentre as várias encenações do texto, a última ganhou, até mesmo, um palco em

forma de teatro de arena. À medida que os espectadores assistiam à encenação ao

vivo, saboreavam as bombas de creme.

A exploração dessa produção cultural do norte europeu, bem como a da

tradição de Perrault e dos Grimm, deu-se em virtude de a realidade literária

45 Após sua passagem como atriz pela Rádio América e redatora no jornal Época, Clenira, em 1958, assumiu contrato na TV e, por 27 anos, dedicou-se à TV Tupi. Além de atuar nos programas Teleteatro de Vanguarda e Teleteatro de Comédia, exerceu também a função de redatora. Em 1959, também se envereda pelo cinema, e participa do elenco do filme de Mazzaropi, Choffer de Praça. 46 Segundo o Jornal Diário da Noite (apud ARMONIA, 2008), Sônia chegou a produzir Dona de Casa, uma comédia infantil, cujos papéis de destaque pertenceram às irmãs Jussara Michel e Jussania Michel, a Luis Canales, a Cidinha Campos, Ivani Paliuso, Márcia Dorce. 47 ARMONIA, 2008. 48 A tradução dessas histórias era realizada por uma amiga da família Dorce, cujo nome não fora lembrado pela depoente Sônia Dorce Armonia (Idem). 49 Entrevista realizada com Sonia M. Dorce Armonia, em 12/03/2010.

Figura 34. Clenira Michel. (Fonte:

http://www.museudaTV.com.br)

Figura 35. Sônia M. Dorce Armonia, na adolescência. (Fonte: ARMONIA, 2008, p. 134)

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brasileira não oferecer, naqueles anos 50, um repertório de grandes textos, logo

eles tinham que recorrer à literatura estrangeira, explica a produtora.

Embora tudo que se transmitia fosse bem recepcionado pelo público, já

que a TV era a grande novidade da época, havia, por parte dos adaptadores e dos

diretores, uma preocupação com o conteúdo dos textos. Segundo Sônia Dorce,

“como não tínhamos efeitos visuais muito poderosos, efeitos tecnológicos

praticamente nenhum, era tudo na base da improvisação, não tinha o colorido”50,

era preciso apostar no sucesso do programa, sobretudo, através dos textos. Por

estes serem muito vigorosos em sua proposta literária e linguística, seu pai tinha o

cuidado de verificar se as crianças encontravam alguma dificuldade na

compreensão do roteiro e se algo lhes despertava a curiosidade, o desejo de

aprendizagem. Como exemplo dessa particularidade, Sônia cita que, caso o script

apresentasse uma palavra não presente no vocabulário da criança, prontamente,

Chico Dorce buscava explicar o seu significado, a importância daquele termo no

contexto da história.

O texto-roteiro não sofria nenhuma forma de retalhação ou recortes em

sua tessitura, já que o diretor acreditava na dimensão da inteligência infantil que,

por isso, jamais deveria ser menosprezada ou castrada. Como Chico Dorce fazia

questão de trabalhar nos teleteatros com um elenco infantil, muitos detalhes

teriam que ser considerados.

Do grupo de crianças, Sônia Dorce era uma das únicas a ter contrato

firmado com a TV Tupi, pois sua rotina diária era tomada em grande parte pelas

atrações da emissora. Tendo em vista a lei, vigente na época, segundo a qual o

trabalho infantil para menores de 12 anos era proibido, a garotinha Dorce

menciona que requereu, junto ao juizado de menores da cidade de São Paulo, um

alvará especial de aprendiz autorizando-a o exercer suas atividades na Tupi.51

Concedido o pedido, em 1951, Sônia, com 6 anos, assina seu primeiro contrato de

aprendiz. Até completar 14 anos, anualmente, a garotinha teria que comparecer à

Rua Asdrúbal do Nascimento, centro, para renovar seu alvará. Quanto ao restante

das crianças que atuavam no Cine Trol ou participavam de tantos outros como os

do gênero auditório, elas recebiam cachês.

50 Idem. 51 Idem.

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Outros quesitos da encenação que conferiam à TV sua realidade inicial

de veículo insipiente são os figurinos e os cenários. Como nos primeiros anos a

Tupi não tinha ainda o setor de costura, as roupas, sobretudo aquelas do mundo

medieval, eram alugadas da Casa Teatral. Mesmo assim, as crianças ainda

improvisavam seu figurino. Quando não utilizavam as roupas do seu próprio

guarda-roupa, elas tinham que se valer de um vestuário confeccionado

exclusivamente para os atores adultos. Embora a câmera não atentasse para

minúcias, em muitos momentos, Sônia Dorce, em entrevista52, explica que as

roupas precisavam ganhar novos arranjos para os atores-mirins, como dobrá-las

para não correr o risco de tropeçar em sua extensão. Com as grandes produções do

Teleteatro de Vanguarda (1952-1967) e tantos outros, a instituição não

conseguia atender à demanda, o que fez com que a emissora paulista passasse a

produzir seu próprio figurino.

O cenário para ser montado conforme o roteiro da peça também

dependia dos pertences dos seus participantes. Nos ensaios, a equipe de direção já

definia quais objetos e, até mesmo, animais iriam compor o cenário e quem

poderia emprestar algum. Para fazer o cenário de fundo, com imagens de

florestas, castelos, casas, jardim e até mesmo estantes de livros, vidros e tantas

outras, recorria-se à pintura. Neste sentido, Sônia comenta que, com o volume de

peças teatralizadas, os tecidos do cenário chegavam a ficar duros devido ao

excesso de tinta.53

Não diferente das demais, a produção dos teleteatros da família Dorce

guarda um rico painel das histórias da TV em sua fase artesanal. Além das

dificuldades que alguns atores encontravam em decorar todo o texto, e assim se

serviam de lembretes espalhados e colados por todos os lados, havia casos em que

eles confundiam as falas dos atos das peças. Assim, aconteciam os verdadeiros

escorregões. Neste sentido, a atriz Dorce conta que, na peça O cupido às soltas, ao

representar o anjinho encontrou dificuldades, pois, ao invés de fazer uso de arco e

flechas, ela tinha estilingue; ao invés de asas, patins. Foi justamente o uso

embaraçado deste último recurso pela atriz no palco que provocou o seu equívoco

numa cena onde ela expôs “a fala do último ato no primeiro.” Em uma das falas,

52 Entrevista realizada com Sonia M. Dorce Armonia, em 12/03/2010. 53 Idem.

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ela revela que: Contei o segredo e alguém no fundo gritou nãaooo. Mas já tinha

falado. Depois conduzi a cena e o público nem percebeu...”54

Essa era a TV da primeira década: passiva a toda sorte de atropelos, os

quais, a todo momento, buscavam ser superados pela paixão de toda a equipe de

técnicos e atores, “um pessoal que se propunha fazer com garra, com muita força

e determinação.”55 A este respeito, Sônia Dorce, com muita propriedade, ressalta

o heroísmo dessa gente num veículo, que, desprovido totalmente de refinamento

técnico, conseguiu colocar a imagem no ar. Na concepção da entrevistada, tal

ação representou uma vitória, pois, embora não pareça, a TV, diferente do teatro,

não requer apenas recurso humano, mas uma série de quesitos tecnológicos para

sua constituição. Segundo Sônia, é preciso ter, além de competentes profissionais

como atores, iluminadores, câmera-man, sonoplastas e outros, equipamentos em

perfeito estado de funcionamento, seja para captar as ações, seja para transmiti-las

e, até mesmo, recebê-las.56

Logo em seguida, acrescenta que o veículo, às vezes, se definia como

um processo muito ingrato, pois, no ritmo do ao vivo, o câmera, por exemplo,

podia, por descuido, focar errado, e, assim, o ator, talvez num de seus grandes

momentos na cena, perdia todo o seu trabalho. Com o videoteipe, essa realidade

de improvisos, atropelos, acompanhada também de vitórias, já passou a não existir

mais. Ainda que os profissionais da TV reconhecessem o mérito do moderno

recurso eletrônico, por outro lado, a atriz adverte que tal tecnologia não deixou o

universo da TV livre de problemas. Para os fundadores da TV artesanal, a nova

fase, anos 60, causaria um verdadeiro desencanto, pois era comum nas emissoras

situações desgastantes como a falta de compromisso com os horários da gravação,

a ausência de filtragem do texto e de um trabalho de equipe etc.

Entre uma cena e outra, entre uma improvisação e outra, os teleteatros de

Francisco Dorce também cativaram espaço na TV Tupi e na vida dos

telespectadores infantis. Não fugindo à regra dos demais teleteatros infantis,

vimos que a referida produção explorou, sobretudo, a literatura folclórica nórdica,

um mundo ainda desconhecido nas paragens brasileiras. Neste percurso, inovador,

54 Entrevista realizada com Sonia M. Dorce Armonia, em 12/03/2010. 55 Idem. 56 Idem.

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as histórias do faz-de-conta da cultura europeia ampliaram sua magia, alcançando

espaços nunca antes encontrados.

Assim, lançaram-se aos novos tempos da era eletrônica com a promessa

de seduzir cada vez mais os pequenos. Nesta missão, o trabalho de

teleteatralização produzida pela família Dorce deixou enorme contribuição.

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