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Sobral, ano 5, v.1, n. 8, JAN/JUN 2016, p. 46-57. ISSN: 2317-2649 4. A GENTE NÃO QUER SÓ COMIDA. A GENTE QUER COMIDA, DIVERSÃO E ARTE: experiência sobre o estágio em Serviço Social quando da não execução do projeto de intervenção sobre trabalho infantil. RESUMO Crianças e adolescentes são vítimas diariamente da prática do trabalho infantil. Nos semáforos fechados, no estacionamento de carros, na venda de doces e águas minerais, estão elas sendo vitimadas pela ação incipiente do Estado e pelo olhar desatento e desresponsabilizado do condutor do veículo. Considerado como uma das piores formas de violação dos direitos de crianças e adolescentes, a prática do trabalho infantil sujeita milhares de crianças e adolescentes a trabalharem, excluindo destas a possibilidade de gozar, em plenitude, de outros espaços de sociabilidade, bem como ter seus direitos assegurados. Tem como objetivo sistematizar minha vivência como estagiário de Serviço Social em um Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS, no período de 2014.2 a 2015.2 quando da não execução do projeto de intervenção e difundir experiências acerca do processo de ensino- aprendizagem quando da entrada e permanência no campo de estágio. Configura-se como um trabalho qualitativo, numa perspectiva descrita, pois o que buscamos é essencialmente subjetivo e, portanto, não quantificável. O estágio foi um momento rico de aprendizagem, de construção de laços e de amadurecimento. Vivenciar a realidade com o contato direto com teorias que nos possibilita compreender os fios invisíveis nela existentes foi extremamente marcante. Trabalhar na perspectiva da autonomização e emancipação de indivíduos que estão em situação de ameaça ou já tiveram seus direitos violados é a tradução do verdadeiro papel do Assistente Social: traduzir a complexidade da realidade social intervindo de forma ética e com vistas ao empoderamento de cidadãos que muitas vezes já nem se reconhecem mais como sujeitos de direitos e, dentro desse contexto, articular e tencionar serviços e políticas públicas que não foram efetivadas ou não conseguiram chegar até os cidadãos atendidos pelo CREAS. Vivendo um contexto de precarização das relações trabalhistas e de efemeridade e liquidez, estamos cada vez mais acorrentados às relações de micro poderes, onde existem saberes que não podem e poderes que não sabem. Não distante desta realidade, o Serviço Social, enquanto profissão inscrita na divisão sócio-técnica do trabalho sofre os ataques do capital na forma de destruição dos direitos sociais conquistados e das lutas travadas historicamente. A política de Assistência Social, enquanto componente da Seguridade Social brasileira, vivencia um processo de precarização resultante do esfacelamento dos direitos trabalhistas, e, portanto, da própria Seguridade Social. Rotatividade, liquidez na criação de laços com o outrem, efemeridade, desregulamentação dos direitos sociais e trabalhistas, perda salarial, competitividade e qualificação técnica sem reflexão crítica cotidiana são algumas das características deste novo modelo de trabalho. Nesse contexto, qual a perspectiva pedagógica e educacional do estágio curricular obrigatório, quando da inserção do estudante no cotidiano profissional e do contato com a realidade? Qual a intenção do processo de ensino-aprendizagem? DESCRITORES: Trabalho Infantil - Projeto - Estágio. Laércio Gomes de Albuquerque - INTA Nayara Machado Melo

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Page 1: 4 A GENTE NÃO QUER SÓ COMIDA. A GENTE …inta.com.br/biblioteca/images/pdf/artigo-4-n8.pdfSobral, ano 5, v.1, n. 8, JAN/JUN 2016, p. 46-57. ISSN: 2317-2649 4. A GENTE NÃO QUER SÓ

Sobral, ano 5, v.1, n. 8, JAN/JUN 2016, p. 46-57. ISSN: 2317-2649

4. A GENTE NÃO QUER SÓ COMIDA. A GENTE

QUER COMIDA, DIVERSÃO E ARTE: experiência

sobre o estágio em Serviço Social quando da não

execução do projeto de intervenção sobre trabalho

infantil.

RESUMO Crianças e adolescentes são vítimas diariamente da prática do trabalho infantil. Nos semáforos fechados, no estacionamento de carros, na venda de doces e águas minerais, estão elas sendo vitimadas pela ação incipiente do Estado e pelo olhar desatento e desresponsabilizado do condutor do veículo. Considerado como uma das piores formas de violação dos direitos de crianças e adolescentes, a prática do trabalho infantil sujeita milhares de crianças e adolescentes a trabalharem, excluindo destas a possibilidade de gozar, em plenitude, de outros espaços de sociabilidade, bem como ter seus direitos assegurados. Tem como objetivo sistematizar minha vivência como estagiário de Serviço Social em um Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS, no período de 2014.2 a 2015.2 quando da não execução do projeto de intervenção e difundir experiências acerca do processo de ensino-

aprendizagem quando da entrada e permanência no campo de estágio. Configura-se como um trabalho qualitativo, numa perspectiva descrita, pois o que buscamos é essencialmente subjetivo e, portanto, não quantificável. O estágio foi um momento rico de aprendizagem, de construção de laços e de amadurecimento. Vivenciar a realidade com o contato direto com teorias que nos possibilita compreender os fios invisíveis nela existentes foi extremamente marcante. Trabalhar na perspectiva da autonomização e emancipação de indivíduos que estão em situação de ameaça ou já tiveram seus direitos violados é a tradução do verdadeiro papel do Assistente Social: traduzir a complexidade da realidade social intervindo de forma ética e com vistas ao empoderamento de cidadãos que muitas vezes já nem se reconhecem mais como sujeitos de direitos e, dentro desse contexto, articular e tencionar serviços e políticas públicas que não foram efetivadas ou não conseguiram chegar até os cidadãos atendidos pelo CREAS. Vivendo um contexto de precarização das relações trabalhistas e de efemeridade e liquidez, estamos cada vez mais acorrentados às relações de micro poderes, onde existem saberes que não podem e poderes que não sabem. Não distante desta realidade, o Serviço Social, enquanto profissão inscrita na divisão sócio-técnica do trabalho sofre os ataques do capital na forma de destruição dos direitos sociais conquistados e das lutas travadas historicamente. A política de Assistência Social, enquanto componente da Seguridade Social brasileira, vivencia um processo de precarização resultante do esfacelamento dos direitos trabalhistas, e, portanto, da própria Seguridade Social. Rotatividade, liquidez na criação de laços com o outrem, efemeridade, desregulamentação dos direitos sociais e trabalhistas, perda salarial, competitividade e qualificação técnica sem reflexão crítica cotidiana são algumas das características deste novo modelo de trabalho. Nesse contexto, qual a perspectiva pedagógica e educacional do estágio curricular obrigatório, quando da inserção do estudante no cotidiano profissional e do contato com a realidade? Qual a intenção do processo de ensino-aprendizagem? DESCRITORES: Trabalho Infantil - Projeto - Estágio.

Laércio Gomes de Albuquerque -

INTA

Nayara Machado Melo

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INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo geral difundir experiências acerca do processo de

ensino-aprendizagem das vivências nos cenários de prática a partir da sistematização de saberes e

práticas de atuação do Assistente Social. Busca, neste sentido, sistematizar a minha vivência de Estágio

Supervisionado em Serviço Social em um Centro de Referência Especializado de Assistência Social –

CREAS quando da não realização do projeto de intervenção no contexto do trabalho infantil.

O projeto foi estruturado a partir de objetivos, a saber: como objetivo geral tínhamos

fortalecer, através de discussões, a participação cidadã e o protagonismo juvenil de 15 adolescentes

do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos para crianças e adolescentes de 6 a 15 anos

em um Centro de Referência de Assistência Social - CRAS para a superação do trabalho infantil e como

objetivos específicos, contextualizar a prática do trabalho infantil; Oferecer informações de qualidade

e discutir acerca dos prejuízos do trabalho infantil, bem como criar espaços diversificados de

sociabilidade.

O estágio não é lugar de confrontar teoria e prática, mas sim de apreensão, sistematização e

consolidação teórica nas relações cotidianas ou mesmo, muitas vezes, questionamentos e dúvidas

quanto ao que já foi sistematizado enquanto saber. Assim, configura-se num grande desafio aproximar

ou confrontar princípios ético-políticos e articular as dimensões teórico-metodológica e técnico-

operativa. Tem, portanto, como objetivo desenvolver o processo coletivo de ensino-aprendizagem no

qual se realiza a articulação entre formação e exercício profissional.

O projeto de intervenção tinha como lócus de execução o Centro de Referência de Assistência

Social – CRAS, equipamento público e estatal da Política Nacional de Assistência Social – PNAS, que

trabalha na perspectiva de prevenir, combater e potencializar a autonomia dos usuários atendidos e

acompanhados pelo equipamento supramencionado.

Assim sendo, intervir no coletivo de 6 a 15 anos do CRAS não quer dizer necessariamente que

todos esses adolescentes estiveram e estão em situação de trabalho infantil. No entanto, acreditamos

não ser algo distante de suas realidades e que foi necessário, portanto, pensar em intervir para

contribuir na quebra desse ciclo vicioso que gera tantos prejuízos ao desenvolvimento biopsicossocial

de todos os envolvidos.

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A escolha do cenário e público participante levou em consideração uma série de fatores que

permeavam as redes de sociabilidade construídas ao longo da história de vida dos sujeitos envolvidos.

Conflitos territoriais, conflitos familiares e fragilização dos vínculos entre adolescentes e pessoas

responsáveis, impossibilidade de deslocamento etc., foram algumas das dificuldades de elaboração do

projeto de intervenção que nos levaram tomar outro direcionamento.

Neste sentido, a relevância do projeto se mostra na preocupação em intervir numa

problemática cotidiana, complexa e alvo de comentários que reproduzem e reafirmam o ciclo vicioso

de pobreza, violação de direitos e ausência do Estado em prover políticas públicas e sociais eficientes,

eficazes e efetivas.

REVISÃO DE LITERATURA

O trabalho infantil é um fenômeno presente no cenário mundial e nacional. Intensificado

com a Revolução Industrial nos séculos XVIII e XIX, levou milhares de crianças e adolescentes a

ingressarem precocemente no mundo do trabalho. No Brasil, por sua vez, ele é uma constante na

história. Basta lê-la para perceber sua incidência desde a colonização, submetendo, inicialmente,

crianças indígenas e negras ao trabalho precoce.

Com a chegada dos jesuítas em território brasileiro, isso fica claramente perceptível, pois,

além do caráter religioso, a presença destes trouxe a noção do ofício como importante para a formação

do caráter e responsabilidade.

Assim, no dia 29 de março de 1549, desembarcaram na Vila Pereira, quatro padres e dois irmãos da Companhia de Jesus, liderados pelo padre Manuel de Nóbrega, onde estes tinham a difícil “missão” de ensinar aos pequenos os cantos religiosos, ler e escrever, bem como o valor moralizador do ofício. (CHAMBOULEYRON, 1999, p.55).

No Brasil colônia, com a extração do pau-brasil, famílias completas foram submetidas a

trabalhos hostis e em condições insalubres e desumanas. Para Santos (2012, p. 56)

no Brasil, a começar pela repelência em relação ao clima, os colonos portugueses vieram para ser dirigentes, empresários comerciais, mas não trabalhadores. Os estímulos envolvidos em seu interesse de migrar para um lugar tão adverso foram as possibilidades de produzir, nestas condições tão diferenciadas das europeias, gêneros alimentícios e especiarias de que a Europa não dispunha. Ainda diante de tão promissor negócio, acompanhado de regalias políticas oferecidas pela Coroa, poucos portugueses se

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dispuseram a vir inicialmente para ocupar o nosso território, inclusive porque a escassez populacional na Europa durante este período – devida a pestes – desfalcou os braços de trabalhos disponíveis.

Segundo Vieira (2009, p. 85 apud FALEIROS, E., 1995) no período da colonização, “o

abandono de crianças era um problema que preocupava autoridades”. Como alternativa para conter

esse abandono, são criadas as Santas Casas de Misericórdia por volta do ano de 1580. Estas instituições

atendiam todas as crianças através da Roda dos Expostos.

[...] começaram a funcionar no Brasil colônia e duraram até o século XIX. Essas Rodas eram locais onde as famílias abandonavam anonimamente bebês pobres ou gerados em relacionamentos extraconjugais, que eram então encaminhados para serem criados por instituição filantrópica ou família adotiva. Em troca dos alimentos e da moradia, esperava-se que os pequenos acolhidos trabalhassem – geralmente, prestando serviços domésticos. (BRASIL, p.16)

Nesse sentido, o trabalho infantil doméstico começa a ser introduzido na história da

formação social brasileira. Em troca de comida e moradia, as crianças eram submetidas a trabalhos

perigosos, sujeitando, muitas vezes, sua própria saúde.

No século XIX, com o fim da escravidão e a consequente expansão da Revolução Industrial

pelo mundo, o Brasil sofre algumas implicações.

Os reflexos das transformações que ocorreram mundialmente são percebidos também no Brasil nesse período. O país estava em um momento de grandes ajustes em função do fim da escravatura, do advento da proclamação da república e mais adiante, a grande explosão demográfica, em decorrência da expansão industrial. Este contexto, de aumento populacional, de criação de indústrias em contraposição às precárias condições de moradia e saúde, foi propício para o aumento da criminalidade. Nesse contexto, a preocupação com a criança passa a ser um foco importante de atenção por parte do Estado. (GIOSA, 2010, p. 33).

É criado, portanto, em 1927, o Código de Menores. Neste documento, a proteção dispensada

à criança e ao adolescente era voltada para a perspectiva policial e não assistencial. Tratava-se, neste

sentido, de vigiar os “menores” na ociosidade, caracterizados como “delinquentes” em potencial

(CONCEIÇÃO, 2009).

Em 1942 é criada a Legião Brasileira de Assistência – LBA, dirigida pela então primeira-dama

Darci Vargas. Segundo Behring e Boschetti (2006, p.107).

[...] foi criada para atender às famílias dos pracinhas envolvidos na Segunda Guerra e era coordenada pela primeira-dama, Sra. Darci Vargas, o que

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denota aquelas características de tutela, favor e clientelismo na relação entre Estado e sociedade no Brasil, atravessando a constituição da política social.

Assim sendo, a Legião Brasileira de Assistência – LBA passa a materializar o que foi colocado

no Código de Menores, na perspectiva da maternidade e da infância, sob o julgo da moralização

travestida num discurso e prática filantrópicos.

Caracterizada por ações paternalistas e de prestação de auxílios emergenciais e paliativos à miséria vai interferir junto aos segmentos mais pobres da sociedade mobilizando a sociedade civil e o trabalho feminino. Essa modalidade de intervenção está na raiz da relação simbiótica que a emergente Assistencia Social brasileira vai estabelecer com a Filantropia e com a benemerência. (MESTRINER, 2001, p.14)

A criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor – FUNABEM, por sua vez, surgiu

para estudar, analisar e refletir sobre o problema dos “menores” almejando uma solução para este

comportamento.

Empenhada em criar um “saber oficial” sobre o problema dos “menores”, a atuação da FUNABEM se organizava, ao menos teoricamente, em torno de dois eixos básicos: a correção e a prevenção das causas do “desajustamento do menor”, aplicando um método terapêutico-pedagógico com a finalidade de sua reeducação e reintegração a sociedade, procurando corrigir sua “conduta anti-social”. (BECHER, 2011.p. 10)

Somente na década de 1980 e, mais particularmente, na década de 1990, é que a prática do

trabalho infantil começa a ser questionada mais intensamente no Brasil. Como resultado da luta pelo

combate ao trabalho infantil, foram criados diversos mecanismos que entendem a criança na sua

condição peculiar de desenvolvimento e os riscos prejudiciais à saúde física, psíquica e emocional que

a prática do trabalho infantil ocasiona. Neste sentido, a Constituição Federal de 1988, coloca, em seu

artº 227

é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988)

O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, formulado nos anos 1990, substitui o então

Código de Menores. Este último durou mais de sete décadas e entendia o “menor” que não trabalhava

e/ou estudava como um “delinquente” em potencial. Este discurso foi bastante reprimido pelos órgãos

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de defesa dos direitos das crianças e adolescentes. O ECA, por sua vez, no seu texto legal, discorre

sobre a proteção aos direitos da criança e do adolescente.

Art. 2. Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. [...] Art. 5. Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. [...] Art. 60. É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz. [...] (BRASIL, 1990).

No ano de 2000, o Brasil ratificou por meio do Decreto nº 3597, a Convenção nº 182 da

Organização Internacional do Trabalho – OIT. Neste documento, os países signatários teriam que

elaborar estratégias para coibir, combater e proibir a existência das piores formas de trabalho infantil.

Como resultado, é elaborado o Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e

Proteção ao Adolescente Trabalhador, objetivando combater e erradicar, até o presente ano (2015) as

piores formas de trabalho infantil existentes no país. (BRASIL, 2011).

A Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS surge, então, no ano de 1993, para materializar,

através da Política Nacional de Assistência Social, o que foi colocado na Constituição Federal de 1988.

A Política Nacional de Assistência Social - PNAS, no entanto, é dividida em dois tipos de proteções, a

saber: proteção social básica, colocada no nível de prevenção ao risco social às famílias e indivíduos

em situação de vulnerabilidade social, tendo o Centro de Referência de Assistência Social – CRAS como

equipamento socioassistencial e, proteção social especial, atuando na perspectiva de redução de

danos às famílias e indivíduos com direitos já violados, tendo o Centro de Referência Especializado de

Assistência Social – CREAS como equipamento responsável. Neste local são recebidas denúncias e

encaminhamentos sobre situações de trabalho infantil. O CREAS é implantado a nível municipal e

regional, a depender do porte do município, tipificado na NOB/SUAS.

Em se tratando do município onde se localiza o CREAS, este é classificado como Grande Porte.

Essa classificação é tipificada pela NOB/SUAS, porque se trata de um município com população a partir

de 100.001 habitantes, encontrando-se no nível de gestão plena, pois é responsável pela oferta de

serviços de média e alta complexidade.

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O Centro de Referência Especializado de Assistência Social - CREAS, a nível nacional, tem

como marco legal a Portaria nº 843, de 28 de dezembro de 2010 e a Lei nº 12.435/2011, além de outros

documentos técnicos e institucionais do próprio Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à

Fome – MDS. Em âmbito local, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social - CREAS, por

sua vez, surgiu no ano de 2008.

Nos serviços ofertados pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS

são acompanhados famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade e riscos, por violação de

direitos, sem necessariamente terem os vínculos familiares e comunitários rompidos; São famílias e

indivíduos em situação de violência, seja por abuso/exploração de crianças e adolescentes, violência

contra o idoso, violência doméstica e familiar, violência contra a pessoa com deficiência, discriminação

por questões de orientação sexual, cárcere privado, conflitos intrafamiliares ocorridos pelo uso/abuso

de substâncias psicoativas, trabalho infantil, dentre outras.

O Centro de Referência Especializado de Assistência Social - CREAS atende a todo e qualquer

cidadão que se encontre nessas situações, portanto, como a violência não tem classe social, cor e

credo, não existe classe socioeconômica específica para atendimento nos equipamentos da Política de

Assistência Social, ou seja, quem procura o Centro de Referência Especializado de Assistência Social -

CREAS independente do fator financeiro, será ouvido e orientado. A demanda é transversal às

questões econômicas.

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METODOLOGIA

Este trabalho consiste em um artigo em formato de relato de experiência. O estágio em

Serviço Social faz parte da disciplina de Estágio Curricular Obrigatório, constante na grade do referido

curso. A vivência ocorreu no Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS. Trata-

se de um trabalho qualitativo, numa perspectiva descrita, quando da não aplicação do projeto de

intervenção no contexto do trabalho infantil, o qual passo a expô-lo agora.

O projeto se desenvolveria em dois momentos. O 1º momento seria de socialização entre os

15 adolescentes do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos – SCFV para crianças e

adolescentes de 6 a 15 anos do CRAS e tinha como objetivo central contextualizar a prática do trabalho

infantil, desmistificando alguns conceitos. Seria assistido ao vídeo Vida Maria, como forma de induzir

a discussão e ambientá-los na problemática. Após as discussões, seria realizada uma dinâmica

chamada “Mito ou Verdade”, para captar as percepções dos participantes sobre a prática do trabalho

infantil e seus rebatimentos na vida de crianças e adolescentes. Para realizá-la, pensou-se em placas

distribuídas entre eles para serem levantadas com as expressões “Mito” ou “Verdade”, confirmando

ou negando o que fosse lido pelo facilitador da discussão. Ao fim, realizar-se-ia uma avalição do

momento a fim de captar as percepções e interesses de participar de outros espaços de sociabilidade,

bem como para aprimorar a intervenção em outros momentos.

O 2º momento, denominado “A Universidade também é minha” seria realizado na

Universidade Estadual Vale do Acaraú – UEVA. Inicialmente, faríamos um tour pela Universidade,

conhecendo algumas instalações e mostrando, não só com a fala, mas também com a realidade

concreta, que este espaço pode e deve ser usufruído pelas crianças e adolescentes em situação de

trabalho infantil. Após o passeio pelo campus Betânia da Universidade, haveria um momento junto ao

Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Culturas Juvenis – GEPECJU. No momento, seria realizada uma

reflexão sobre juventude, políticas públicas e direitos com o intuito de reafirmar a condição peculiar

de desenvolvimento da criança e do adolescente e uma negativa ao trabalho infantil. Ao término, as

crianças e adolescentes sugeririam uma proposta apontando possíveis locais de interesses para a

realização de outras atividades do coletivo do CRAS.

A avaliação seria realizada através de questionários. Estes buscariam captar os seguintes

aspectos: apropriação da temática; interesse pela temática; avaliação sobre a metodologia; interesse

de participação de outros espaços.

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Os questionários foram escritos a partir de perguntas diretas com respostas objetivas. Na

aplicação, todas as perguntas seriam lidas pelo facilitador e as respostas dadas através de cores. Isso

possibilitaria com que aqueles que tivessem dificuldades de escrita e de leitura, pudessem fazer a

avaliação sem prejuízos em relação aos outros, peculiaridade bastante pensada ao se formular o

projeto de intervenção no decorrer do semestre 2014.2.

A sondagem feita no segundo momento seria realizada com o objetivo de perceber se a

vivência na Universidade despertou interesse em retornar a este espaço na condição de estudante da

mesma. A resposta da terceira pergunta da sondagem seria entregue aos técnicos do coletivo de 6 a

15 anos do CRAS, como forma de auxiliar no planejamento das atividades deste, observando o caráter

de construção coletiva, ou seja, o planejamento deve ser feito com o público atendido e não para eles.

A ida à Universidade e a proposição de outros espaços que eles tem interesses de conhecer, mostra-

se, para além de um “passeio”, uma forma de incentivá-los à apropriação de espaços públicos,

portanto, de participação cidadã.

RELATO DE EXPERIÊNCIA

Com uma carga horária pequena, o estágio curricular obrigatório proporciona vivências

inesquecíveis, seja pelo impacto que causaram ou pela solução que foi mostrada. Apontar, de

imediato, e a partir do pouco tempo inserido no cotidiano dos profissionais, uma proposta para projeto

de intervenção é corajosamente, uma atitude difícil.

Compartilhar vivências de famílias em situação de extrema violação de direitos ou que talvez

nunca tiveram esses direitos garantidos, proporciona uma confusão de ideias. Primeiro, porque,

infelizmente, é visível que as famílias acompanhadas pelo Centro de Referência Especializado de

Assistência Social - CREAS não vivenciam somente uma vulnerabilidade, mas várias, ou seja, são várias

violações num mesmo núcleo familiar. Segundo, porque a vontade de fazer um projeto de intervenção

que viesse a problematizar todas ou grande parte das questões coladas é muito grande.

Para a execução do que foi pensado para o projeto, no entanto, é preciso estar atento à

dinamicidade da realidade e dos processos de transformações no cotidiano profissional. Como ela é

dinâmica e heterogênea, a materialização de ideias abstratas podem não ser concretizadas. Foi o que

houve com o projeto quando se pensou em aplicá-lo.

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Vivendo um contexto de precarização das relações trabalhistas e de efemeridade e liquidez

(HARVEY, 2014), estamos cada vez mais acorrentados às relações de micro poderes, onde existem

saberes que não podem e poderes que não sabem. Não distante desta realidade, o Serviço Social,

enquanto profissão inscrita na divisão sócio-técnica do trabalho sofre os ataques do capital na forma

de destruição dos direitos sociais conquistados e das lutas travadas historicamente.

A política de Assistência Social, enquanto componente da Seguridade Social brasileira,

vivencia um processo de precarização resultante do esfacelamento dos direitos trabalhistas, e,

portanto, da própria Seguridade Social. Rotatividade, liquidez na criação de laços com o outrem,

efemeridade, desregulamentação dos direitos sociais e trabalhistas, perda salarial sem diminuição da

carga horária, competitividade e qualificação técnica sem reflexão crítica cotidiana são algumas das

características deste novo modelo de trabalho.

Nesse contexto, qual a perspectiva pedagógica e educacional do estágio curricular

obrigatório, quando da inserção do estudante no cotidiano profissional e do contato com a realidade?

Qual a intenção do processo de ensino-aprendizagem?

A ideia constante no projeto de intervenção não se materializou pelos motivos já expostos.

Profissionais rápidos, técnicos, sempre com muitas visitas domiciliares para realizar, demonstrando,

assim, uma banalização da mesma, sem momentos para reflexão da prática profissional e do caráter

pedagógico do estágio. Por outro lado, uma gestão centralizadora, ideologicamente conectada aos

governos que prezam os números, as estatísticas. Somados, o que mais ouvi durante este período foi:

“não temos tempo para pensar. Vá e faça!”. Discordo, obviamente.

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Sobral, ano 5, v.1, n. 8, JAN/JUN 2016, p. 46-57. ISSN: 2317-2649

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“A gente não quer só comida: a gente quer comida, diversão e arte”: experiência sobre o

estágio em Serviço Social quando da não execução do projeto de intervenção sobre trabalho infantil é

resultado da vivência do Estágio Obrigatório constante na grade curricular do curso de Serviço Social

das Faculdades INTA. Este ocorreu no Centro de Referência Especializado de Assistência Social – e não

foi executado porque a dinâmica da realidade não foi propícia.

O estágio foi um momento rico de aprendizagem, de construção de laços e de

amadurecimento. Vivenciar a realidade com o contato direto com teorias que nos possibilita

compreender os fios invisíveis existentes nela foi extremamente marcante. Apesar de ter pensado em

um projeto de intervenção e este não ter se concretizado pelos motivos já expostos, acreditamos que

isso é inerente à dinamicidade da realidade, sendo preciso, portanto, estar preparado para estas

circunstâncias.

A relevância do estágio para a vida acadêmica já foi exposta: não é confrontar teoria e prática,

como se ambas não se complementassem. A relevância do estágio está no fato de fortalecer princípios

éticos, políticos, teóricos e técnicos para uma atuação pautada e inscrita na luta pelos direitos sociais

e humanos, socialmente referenciada e em consonância com o nosso Projeto Ético-Politico e o Código

de Ética Profissional do Assistente Social.

Portanto, acreditamos que trabalhar na perspectiva da autonomização e emancipação de

indivíduos que estão em situação de ameaça ou já tiveram seus direitos violados, a meu ver, é a

tradução do verdadeiro papel do Assistente Social: traduzir a complexidade da realidade social

intervindo de forma ética e com vistas ao empoderamento de cidadãos que muitas vezes já nem se

reconhecem mais como sujeitos de direitos e, dentro desse contexto, articular e tencionar serviços e

políticas públicas que não foram efetivadas ou não conseguiram chegar até os cidadãos atendidos pelo

CREAS.

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