4 a 17 de janeiro de 2016 nº 99 ano iv director: …...o azul mar único do mar. o cinzento céu...

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O MÉRITO REFORMADOR DE 4 a 17 de Janeiro de 2016 | Nº 99 | Ano IV Director: José Luís Mendonça •Kz 50,00 PÁG. 7 LETRAS DIÁLOGO INT ERCULTURAL PÁG. - 13 TERCEIRA EDIÇÃO DOS 11 CLÁSSICOS PÁG. 5-6 LETRAS LOPITO FEIJOÓO “CONSCIÊNCIA DOS DIREITOS AUTORAIS” PÁG. 3 - 4 ECO DE ANGOLA A DINÂMICA SOCIAL DE ANGOLA EM 1943 DESCOBRIR ANGOLA NA ALEMANHA FILIPE MUKENGA ARTES Pág. 10-11

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Page 1: 4 a 17 de Janeiro de 2016 Nº 99 Ano IV Director: …...o azul mar único do mar. o cinzento céu único do céu. eu agora eu único carícia vaga das águas! mar moça! beça-ngana!

O MÉRITO REFORMADOR DE

4 a 17 de Janeiro de 2016 | Nº 99 | Ano IV Director: José Luís Mendonça •Kz 50,00

PÁG. 7LETRAS DIÁLOGO INTERCULTURAL PÁG. - 13

TERCEIRA EDIÇÃO DOS 11 CLÁSSICOS

PÁG. 5-6LETRAS

LOPITO FEIJOÓO “CONSCIÊNCIA DOS DIREITOS

AUTORAIS”

PÁG. 3 - 4ECO DE ANGOLA

A DINÂMICA SOCIAL DE ANGOLA EM 1943

DESCOBRIR ANGOLA NA ALEMANHA

FILIPE MUKENGAARTES Pág. 10-11

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2 | ARTE POÉTICA 4 a 17 de Janeiro de 2016 | Cultura

Conselho de AdministraçãoAntónio José Ribeiro (presidente)

Administradores ExecutivosCatarina Vieira Dias CunhaEduardo MinvuFilomeno ManaçasSara FialhoMateus Francisco João dos Santos JúniorJosé Alberto Domingos

Administradores Não ExecutivosVictor Silva

Mateus Morais de Brito Júnior

Propriedade

Sede: Rua Rainha Ginga, 12-26 | Caixa Postal1312 - Luanda Redacção 222 02 01 74 |Telefone geral (PBX):222 333 344Fax: 222 336 073 | Telegramas: ProangolaE-mail: [email protected]

CulturaJornal Angolano de Artes e Letras

Um jornal comprometido com a dimensão cultural do desenvolvimento

Nº 99 /Ano IV/ 4 a 17 de Janeiro de 2016

E-mail: [email protected]: www.jornalcultura.sapo.aoTelefone e Fax: 222 01 82 84

CONSELHO EDITORIAL:

Director e Editor-chefe: José Luís MendonçaSecretária: Ilda RosaAssistente Editorial: Coimbra Adolfo (Matadi Makola)Fotografia: Paulino Damião (Cinquenta)Arte e Paginação: Sandu Caleia, Jorge de Sousa, AlbertoBumba e Sócrates SimónsEdição online: Adão de Sousa

Colaboram neste número:

Angola: Ana Koluki, Filipe Mukenga, Imanni da Silva, JonuelGonçalves, Mário António, Sónia Gomes

ALEMANHA: Barbara Mesquita

Normas editoriaisO jornal Cultura aceita para publicação artigos literário-científicose recensões bibliográficas. Os manuscritos apresentados devemser originais. Todos os autores que apresentarem os seus artigospara publicação ao jornal Cultura assumem o compromisso denão apresentar esses mesmos artigos a outros órgãos. Apósanálise do Conselho Editorial, as contribuições serão avaliadas e,em caso de não publicação, os pareceres serão comunicadosaos autores.

Os conteúdos publicados, bem como a referência a figuras ougráficos já publicados, são da exclusiva responsabilidade dosseus autores.

Os textos devem ser formatados em fonte Times New Roman,corpo 12, e margens não inferiores a 3 cm. Os quadros, gráficose figuras devem, ainda, ser enviados no formato em que foramelaborados e também num ficheiro separado.

POEMA DA MANHÃ CINZENTA NABEIRA DO MAR

o azul mar único do mar.o cinzento céu único do céu.eu agora eu únicocarícia vaga das águas!mar moça! beça-ngana!teus dedos, infinitamente múltiplos,ou teus cabelos líquidos de ondina,carícia de tua presençano meu corpo!esta manhã sem sol: vida!esta espera de chuva: vida!chuva sobre o mar: vida!ó pescador solitário olhando o céu e o mardongo na praia indecisoreceio das redes escondidas no capimpescador:tua mulher terá peixepara vender no mercado?carícia longa das águas!espera triste da chuva!espera-arrepio na promessa cinzenta do céu!quem lhe falou na beleza desta tarde? tão sóe a inquietação e longe o amor e o sonho… tão sóstudo descansa em nossas mãos caídas!Mário António

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Este artigo faz parte de um conjun-to sobre o desenvolvimento geral deAngola entre 1914 (inicio da primeiraguerra mundial, com combates emterritório angolano) e 2014 (início deciclo dos preços do petróleo em baixa,com efeitos poderosos no modelo ex-trativista angolano). A escolha do anoem si tem, ao mesmo tempo, razões decuriosidade pessoal (é o ano de nasci-mento do autor) e razões ligadas à in-versão de tendência na segunda guer-ra mundial, impactando na realidadede Angola, sempre muito ligada à con-juntura mundial seja em economia ouem política.

A totalidade do projeto exige buscados pontos de partida, estimulantes –como a dinâmica social criada – ouinibidores – como a dependência e do-minação. Assim, procuraremos focarum ano de manifestações importan-tes destes dois fatores.

Uma primeira versão experimentalfoi publicada numa revista universi-tária brasileira, tendo passado porgrande revisão e consolidação da for-ma e conteúdo.

A base de trabalho decorre de tro-cas de informações e opiniões, anota-das ao longo dos anos, com pessoasque viveram a época no começo desuas vidas adultas. Parte deles já fale-ceu e, um dos motivos da publicação,consiste em homenageá-los.

Acrescentamos pesquisa bibliográ-fica, consulta de imprensa e de ilus-

trações da época, recorrendo tam-bém a dados estatísticos levantadospara nosso livro “A economia ao longoda História de Angola” (:2011)

O artigo apresenta característicasmultidisciplinares na área das rela-ções sociais, estratégicas e perfil eco-nómico, procurando uma apresenta-ção fluente que facilite a compreen-são sem os excessos de citações e no-tas, autênticos entupidores de texto.

A redação segue as regras do maisrecente Acordo Ortográfico, excetoquando se trate de citações relativas atextos do período estudado.1943 foi o ano de mudança defini-tiva na tendência da segunda guerramundial. Angola, como parte do en-tão Império colonial português, eraterritório neutro, mas o conflitomundial recebia grande coberturanos noticiários locais e a então coló-nia de Angola tinha todos os vizinhosenvolvidos no campo dos Aliados. Aomesmo tempo, acontecimentos in-ternos recentes prenunciavam umanova fase política, com vários dosprincipais atores a iniciarem movi-mentações ou estudavam nas frágeisestruturas locais de ensino e algunsbuscavam precocemente (em funçãodas idades) meios de expressão.Em 1943, Angola tinha uma popu-lação total aproximando os quatromilhões de habitantes, segundo oCenso colonial de 1940. Este númeropode ser inferior à realidade em vir-tude da desconfiança de parte da po-pulação sobre qualquer tipo de re-censeamento, com receio de aumen-to de impostos ou recrutamento pa-ra o trabalho forçado. Cerca de 90%

dos habitantes viviam em zonas ru-rais, sob a autoridade dos postos ad-ministrativos, comandados por umchefe, na altura quase sempre portu-guês formado na Escola de EstudosColoniais, de Lisboa, apoiado por umou dois funcionários civis e um nu-mero variável de cipaios (subalter-nos africanos da polícia) também emnumero reduzido.Essa estrutura agia em espaçosmuito vastos para a sua dimensão,escapando-lhe muitos aspectos tan-to mais que a população dissimulavaao máximo, como forma de auto-de-fesa. Ainda assim, os postos adminis-trativos tinham grande poder de in-timidação, em muitos casos pressio-nando as comunidades através dosrespectivos sobas. Por essa via eramrecrutados os “contratados”, ou seja,trabalhadores forçados com saláriosirrisórios, sistema inspirado dos“contractuels” existente na entãoÁfrica Equatorial Francesa (AEF).Nunca foi possível conhecer o nú-mero exato de “contratados”, poden-do apenas situar-se na ordem degrandeza das centenas de milhar, na-quela época. As minas de diamantes,as culturas do algodão, açúcar e café,as pescarias e as obras publicas,eram os principais destinos dessamão-de-obra, implicando movimen-tos de população para longe de suasregiões de origem, geradores de re-lações inter-étnicas, ao mesmo tem-po que proporcionavam – não ape-nas entre as vítimas – a consciênciasobre o colonialismo á escala de todoo território. Essa consciência ultra-passava os simples horizontes locais,como ocorreu durante as resistên-cias à ocupação colonial entre finaisdo século XIX e a segunda década doXX, com prolongamento pontual pa-ra a década de 1940 no extremo sul,em virtude de rebeliões do grupo He-rero, confirmadas pelo GovernadorGeral, comandante de marinha Frei-tas Morna (Morna:1944).A base da “política indígena” na An-gola de 1943 era traduzida por esseGovernador, após diversas considera-ções paternalistas da seguinte forma: “ Não prima, via de regra, o nativode Angola [N.A.:referia-se apenas aonativo negro], pelo amor ao trabalho.“É um facto evidente e, diremos até,em parte natural consequência do cli-ma, mas que deve sobretudo atribuir-se ao seu atraso mental. O trabalho,como culto do dever, fonte de alegria,origem de bem estar, produto de aspi-rações, não existe nem pode existirentre os indígenas, no estado primiti-vo em que se encontram.“Há sem duvida excepções indivi-duais e até regionais que se distin-guem pela sua actividade, como osdo Bailundo e Caconda, mas, de mo-

do geral, o nativo é mais indolente doque trabalhador.“Não quero incluir-me, certamen-te, no número dos que teem comodogma a sua preguiça nata, negaçãoformal de toda a actividade, incapazsem coação de produzir.“É um exagero e, por isso, não re-presenta a verdade.“Mas também me não conto entreos que prestam admiração e home-nagem às faculdades de trabalho donativo, porque não é, infelizmente,caso para isso. “Os que abraçam essa errada opi-nião pretendem fundamentar-se nosresultados da evolução operada naprovíncia de Angola, atribuindo-a aoindígena” (op.cit)O Governador Freitas Morna, refe-re-se nestes dois últimos parágrafosà corrente de opinião em crescimen-to contra o trabalho forçado e o ra-cismo em geral, dois pontos de parti-da na reativação do combate ao colo-nialismo em geral. Testemunho ver-bal que recolhemos na década de1960, sobre Angola dos anos da se-gunda guerra mundial, com o jorna-lista de Benguela José Rocha deAbreu (nascido no começo do séculoXX), ele próprio integrante dessacorrente, confirmam a sua existênciae a difusão desde finais da década de1930 de núcleos organizados oureorganizados.Perante esse dado, as autoridadescoloniais procederam a várias pri-sões em 1941 e convocam “eleições”para as Câmaras Municipais que,alem dos limites do sistema ditato-rial de partido único, tinham um cor-po eleitoral tão reduzido que o diário“A Província de Angola” definiu-as –em tom aprovador – como uma ho-menagem ao colono.As prisões atingiram intelectuaisangolanos um dos quais, detido emBenguela, estaria mais tarde entreos maiores poetas de Angola e serianovamente preso já durante a guer-ra pela independência: Aires de Al-meida Santos. Outra prisão, seguidade deportação por dois anos em Por-tugal, foi de Monsenhor Alves da Cu-nha, vigário geral da Arquidiocese,muito ligado aos meios intelectuaislocais. A função de vigário geral da

ECO DE ANGOLA |3Cultura |4 a 17 de Janeiro de 2016A DINÂMICA SOCIAL DE ANGOLA EM 19431. Cotidiano colonial extremo e focos de resistência

JONUEL GONÇALVES

Mercado

Jornal de Benguela

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4 |ECO DE ANGOLA 4 a 17 de Janeiro de 2016 | CulturaArquidiocese Católica de Luanda apa-rece como uma posição alvo do podercolonial, pois outro vigário-geral, oConego Manuel das Neves, seria presoem 1961 acusado de comandar a in-surreição. Em 1941, alem de Bengue-la e Luanda, as cidades de Sá da Ban-deira (hoje Lubango) e Nova Lisboa(hoje Huambo) foram abaladas porprisões e deportações para a entãometrópole, criando traumatismos,ressentimentos e críticas ainda paten-tes dois anos depois, estimuladas peloavanço dos Aliados na segunda guerramundial, cuja vitória era vista comofavorecendo um processo de demo-cratização mundial. A policia política do regime salaza-rista (primeiro PVDE e depois PIDE)ainda não tinha sido formalmente ins-talada nas colónias, sendo as prisõesefetuadas por decisão administrativae executadas pela Polícia de SegurançaPublica (PSP) que, desde 1937, faziainvestigações sobre o agrupamentoclandestino Organização Socialista deAngola (OSA) (Dáskalos: 2005), funda-do por estudantes do Huambo com li-derança de Sócrates Dáskalos, outra fi-gura que a partir dos anos 1960 vai terdestaque no processo de independên-cia. A expansão da OSA para alem doHuambo foi facilitada pela obrigato-riedade de exames dos alunos do ensi-no particular nos dois Liceus oficiaisentão existentes. A única hipótese deensino secundário no Huambo era oprivado Colégio Alexandre Herculanoe os exames válidos eram feitos no Li-ceu Diogo Cão, da então Sá da Bandei-ra. Através das deslocações de estu-dantes, a OSA construiu um núcleonesta cidade e pela via dos laços deamizade chegou a outras cidades doSul e, em menor escala como confirmaDáskalos (:op. cit.), a Luanda.Em 1943, Monsenhor Alves da Cu-nha foi autorizado a regressar a Ango-la, em virtude de pressões da Igreja ca-tólica mas também como parte de me-didas soltas para descomprimir o cli-ma social.Com efeito, é nesta fase que tem ini-cio a onda de criticas de rua, cuja auto-ria é atribuída pelas autoridades e pe-los colonos a uma categoria designa-da por “calcinhas”, ou seja, negros es-colarizados, vestidos com roupasmais modernas que os conservadoresimigrantes portugueses e que opõemargumentos às medidas discriminató-rias ou ironizam com o baixo nível degrande parte desses mesmos imigran-tes. Ao mesmo tempo, aumentam asfugas de “contratados” ou de habitan-tes sem documentos.Neste caso, manifesta-se uma re-pressão colonial muito além do campopolítico. Qualquer negro que não pos-sua o estatuto de “assimilado” (sãocerca de 40 mil nessa década) tem depossuir uma caderneta de trabalhodiariamente assinada pelo patrão. Re-gularmente são desencadeadas ope-rações nas cidades – sobretudo Luan-da - comandadas por um administra-dor colonial apoiado por grande nu-

mero de cipaios, destinadas a verifica-ção desse documento. Muitas vezessão autênticos cercos a muceques e aausência do documento em si, ou dedois ou três dias sem assinatura pa-tronal, significa prisão e posterior en-trada na situação de “contratado”.Parte dos presos foram durantebastante tempo encaminhados como“serviçais” para as roças de cacau dailha de São Tomé, onde as condiçõesde vida eram ainda piores que em An-gola, a ponto de terem provocadouma campanha mundial de boicote aocacau sãotomense, acusado de serproduto de trabalho escravo. Em An-gola, os protestos contra os envios pa-ra São Tomé atingiam quase todas ascamadas, incluindo altos funcioná-rios. O próprio Governador FreitasMorna opôs-se e teve um encontro so-bre o assunto com seu colega de SãoTomé e Príncipe, dando destaque emseu livro relatório à quase desapari-ção dessa pratica a partir de 1942(Morna: 1944) .Mas as capturas internas mantive-ram-se, através de prisões de indocu-mentados ou de ação dos angariado-res de mão-de-obra com apoio admi-nistrativo e pressão sobre os sobas,configurando um vasto setor do mer-cado de trabalho pré-capitalista ou se-mi-escravo.Em 1943, o Govenador Freitas Mor-na tem em construção um “bairro indí-gena” em Luanda apresentado comogrande realização em apoio à popula-ção negra. Na verdade, são algumas de-zenas de casas num traçado semelhan-te ao que outras potências coloniais fa-ziam nas periferias das zonas urbanasbrancas ou correspondentes ao que se-riam as townships sul-africanas. Outra característica do clima so-cial deste ano (e dos seguintes) é aemergência de atividades culturais erecreativas com fundo reivindicati-vo, no seio das quais se discutem for-mas de atuação política. Em Luanda,a Liga Nacional Africana e a Associa-ção dos Naturais de Angola (Anango-la) apesar de sujeitas a restrições eaté comissões administrativas im-postas pelo poder colonial, são palcode algumas dessas manifestaçõesculturais. Em 1942 foi fundada a So-ciedade Cultural de Angola, incluindoangolanos e portugueses residentes,em geral de tendência democrática,abrindo um espaço por onde passariagrande parte dos intelectuais res-ponsáveis pelas ações clandestinasna década seguinte.Em 1943 chegou a Angola o Dr. Euge-nio Ferreira, advogado nascido em Por-tugal, mais tarde Presidente da Socie-dade Cultural, animador de campanhasoposicionistas sempre que o governoconvocava “eleições” e defensor depresos políticos. Após a independência,Eugenio Ferreira recebeu a cidadaniaangolana e seria nomeado juiz.Na verdade, movimentações seme-lhantes existiam também nas áreas Lo-bito-Benguela e Huambo-Huíla, en-quanto no então distrito do Congo Por-

tuguês (hoje as províncias de Uíge e Zai-re) outros fenômenos se esboçavam.Em 1943, o catequista batista Si-mão Gonçalves Toco termina seu pe-ríodo missionário na Missão do Bem-be , onde já fazia pregações sobre adoutrina cristã do ponto de vista dapopulação negra, consideradas peri-gosas pelas autoridades. Mantendouma estrita postura não violenta esem contestar o regime em si, entrounuma linha próxima do messianismo,em gestação também noutros pontosdo continente africano, com relevopara o vizinho Congo Belga, marcadopela rejeição das humilhações ra-ciais. Mais tarde fundaria uma igrejaindependente existente até hoje (oTocoísmo) e foi exilado para o farolda Ponta Albina, no deserto do Nami-be e, depois, para o arquipélago dosAçores (Gonçalves:1967)No mesmo distrito colonial apare-cia com frequência um debate sobreo nível de autonomia do reino doKongo, entidade simbólica desde abatalha de Ambuíla, no século XVII,quando foi derrotada pelo exercitoportuguês e perdeu todo o poder. Anoção de reino, no sentido ocidentaldo termo, é discutível, desde logo pe-la flexibilidade dos critérios de su-cessão, motivadores de varias legiti-midades e, portanto, de vários pre-tendentes. Alguns historiadores e an-tropólogos têm recentemente prefe-rido as designações de chefaturas ouunidades políticas.Seja como for, segmentos da socieda-de nessa área do país, interessaram-sepela Historia da mesma e reclamavamcontra as interferências coloniais na es-colha do soberano. Discussões intensasmarcaram a década de 1940, dando lu-gar pouco depois ao nascimento de as-sociações, como a Ngwizako e a Uniãodas Populações do Norte de Angola, an-tepassado da futura Frente Nacional de

Libertação de Angola (FNLA).Neste caso, o grande número de emi-grados angolanos no vizinho CongoBelga exerceu uma influência decisivae, além das duas organizações mencio-nadas, outros grupos de angolanos fo-ram fundados no território congolês.Em 1943, há dezenas de estudantesangolanos nas universidades portu-guesas, em maioria brancos e algunsmestiços e negros. Vários deles inse-rem-se na agitação estudantil portu-guesa, acompanham os movimentosfavoráveis à causa aliada e acabampor fundar a Casa do Estudante de An-gola, posteriormente transformadaem Casa dos Estudantes do Império,por onde passaram vários lideres dosfuturos movimentos de libertação.Assim, no ano em estudo e nesteplano, Angola revela : - três conjuntos urbanos com asso-ciações culturais de base política, dis-creta em virtude da repressão masinegavelmente presente. - uma área rural no norte, onde atradição e o messianismo religiososão portadores de protesto. - núcleos de estudantes angolanosnas universidades portuguesas em li-gação constante com os debates e mo-vimentações urbanas de Angola.Uma vasta área de atividades re-creativas e desportivas existe em An-gola desde pelo menos o começo doséculo XX e o decorrer da segundaguerra mundial não impediu o cursonormal dos campeonatos, sobretudode futebol e as competições de atletis-mo, com destaque para a corrida daSão Silvestre. Como tudo em Angola,toda esta área e atividades têm fortesmarcas raciais.(CONTINUA)

Vista parcial do Lobito

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LETRAS| 5Cultura | 4 a 17 de Janeiro de 2016LOPITO FEIJOÓ SOBRE DIREITOS AUTORAIS

“AUTORES NÃO TÊM CONSCIÊNCIA DOS SEUS DIREITOS”

O escritor Lopito Feijoó é o ho-mem de arte que está à frente daSociedade Angolana do Direito deAutor – SADIA, na qualidade de pre-sidente. É até aos dias que correm aúnica entidade na gestão colectivade direitos patrimoniais e moraisdos autores angolanos e não só, cu-jas obras autorais são usadas emterritório nacional. A SADIA estácom quase dois mil membros douniverso cultural, incluindo cria-dores de moda. Neste período emque se procura encontrar uma so-lução para rentabilizar o sectorcultural e ser também um contri-buinte válido do Estado, as receitaspor se amealhar no uso dos bensculturais são aqui apresentadascomo ponto-chave, embora tudodependa ainda da nossa educaçãoautoral, como bem enfatiza nesteentrevista Lopito Feijoó (L.F). Masnão é só, para que todo o processo

ganhe o seu curso normal é precisosuperar questões de ética profis-sional, como é o caso dos plágios ede abusivas interpretações, duasfaltas graves do sector cultural quea SADIA reúne competências legaispara não deixar impunes.

Jornal Cultura - Como funciona aSADIA?Lopito Feijoó - Tem fundamental-mente o papel da gestão dos direitosque advêm do uso do bens autorais.Ou seja, no caso da fotografia, e aí épreciso dizer que, enquanto membroda CISAC- Confederação Internacio-nal das Sociedades de Autor e Com-positores, a SADIA está classificadacomo sociedade especificamente vol-tada à música. Entretanto, no âmbitodo novo ordenamento jurídico ango-lano, de acordo com os seus estatu-tos, a SADIA é uma sociedade de ges-tão plural dos direitos. Significa quegere direitos musicais e não só, lite-

rários, fotografia, artes plásticas. Emtermos concretos, significa que osobjectos artísticos só podem ser usa-dos com a devida autorização do au-tor ou do órgão de gestão que o re-presenta. JC – E em outros contextos?L.F - Nos contextos em que há maise uma entidade de gestão colectivade autores, o autor é livre de escolhera entidade que melhor representa osseus interesses. A SADIA ainda tem omonopólio na gestão dos diretos deautor em Angola. E quando falo emdireitos de autor, estamos a falar deuma sociedade multidisciplinar: mú-sicos, compositores, escritores e ar-tistas. Tudo que é produto da criaçãointelectual de um autor. JC - Como os artistas chegam à

SADIA?L.F - Por meio de uma inscrição. ASADIA tem sede própria. Segundo oestatuto, a própria sede da SADIA es-tá em Luanda mas pode ter represen-tações nas demais províncias. Nós,por razões objectivas, ainda não con-seguimos representações nas pro-víncias. Também porque as socieda-des de gestão de autor são interna-cionalmente classificadas em gran-des, médias e pequenas. E a SADIAainda é pequena. E as classificaçõessão feitas em função do montante dasarrecadações. Em Portugal, Brasil eEspanha chegam a cobrar acima deum milhão de euros por mês aosusuários dos produtos artísticos. Ascasas que tocam músicas devem pa-gar. E é a SADIA que cobra e faz a dis-tribuição da arrecadação aos respec-tivos autores.JC - Como está o quadro de co-

branças no nosso país?L.F - É o possível, num país em queos próprios autores não têm cons-ciência dos seus direitos e o públicoconsumidor não tem consciência danecessidade desta questão dos direi-tos autorais e os usuários tambémnão têm consciência do pagamentopor aquilo que usam. Aliás, nós vive-mos numa sociedade em que, de umamaneira geral, todos nós gostamosde consumir e não temos a consciên-cia do pagamento do produto consu-mido. É uma característica geral danossa sociedade porque nós não es-tamos eticamente preparado parapagar e sustentar o nosso consumo.Acontece que quando nós vamos aum usuário (discoteca, casa de músi-ca, bar com música, loja, centro co-

mercial) e apresentarmos o dossiê depagamento de direitos de autor, ossenhores perguntam: como pagar osdireitos de autor se eu já pago impos-to nas finanças em função da minhaactividade comercial? Como pagardireitos de autor se o aparelho queestá a tocar eu que comprei? Comopagar direitos de autor se até o pró-prio suporte disco eu que comprei?Esquecem-se que só são donos do su-porte (disco) mas não do produto decriação dos artistas, que devem serressarcidos pelo seu esforço intelec-tual despendido no momento da cria-ção artística. JC - Estamos em que estado?L.F - Não estamos num estado ze-ro. Porque a própria SADIA, apesarde que foi fundada em 1993, sofreuconstrangimentos de outra ordem,como a morte do então Presidente doConselho de Administração, SílvioPeixote, depois morreu o administra-dor delegado que funcionava, Ma-nuel Faria de Assis Neto. O próprioconselho de administração da entãosociedade de autores acabou por sedesmoronar. Até que em outubro de2004, demos conta, a convite de umleque de artistas, do processo de re-vitalização do funcionamento da SA-DIA, que segue o seu curso até agora.De 2004 a esta parte nós já temos fei-to algumas arrecadações, porque alei nos obriga a assinar contratos delicenciamentos, autorizada a dar li-cenças para os usuários, e já temoscerca de vinte e tal contratos bem en-caminhados. JC - Quem pode estar isento?L.F -Toda a entidade que fizer, sal-vo raras excepções, uso ou execuçãode bens autorais sem fins lucrativosestá isenta de pagamentos de direi-tos autorais. Também as usadas comfins pedagógicos estão isentas de di-reitos autorais. Por exemplo, no casodas casas comerciais, as músicas aju-dam na freguesia das casas, e os do-nos devem deduzir no seu montantede lucro uma parte para pagar o es-forço criativo do autor que lhe ajudaa angariar uma margem de lucro su-perior a do seu concorrente.JC - Como gerir os casos de plá-

gio?L.F – Politicamente, enquantomembro da CISAC, temos uma orien-tação que é universal, de que todoconflito no âmbito autoral deve seresgotado no máximo por via da nego-ciação, e só em últimos casos é que

MATADI MAKOLA

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passamos o problema para as insti-tuições judiciais. Sempre que nossurgirem problemas de plágios, e jásurgiram, de usurpação, interpreta-ção abusiva de outros autores, eagora está na moda nos mais jovensque entenderem como “fazer novaroupagem”, que não lhes isenta derecorrer ao autor, se for vivo, parasolicitar a devida autorização, ouaos herdeiros, caso de autor faleci-do, ou, o que é coerente, ao órgão degestão que o representa. Nós temosdado várias autorizações há váriosmúsicos mais atentos para interpre-tarem músicas de autores que a SA-DIA representa. Mas a maior partedeles usam abusando das composi-ções musicais dos autores, princi-palmente dos anos 60 e 70, com o ar-gumento de que ́ os mais velhos es-tão esquecidos e nós é que os esta-mos a ressuscitar´. Entretanto, ob-têm lucros fabulosos que os mais ve-lhos não têm acesso a nem sequeruma fatia. Também dizem que ao fa-zer a dita nova roupagem estão a re-vitalizar a música do passado. Não.Só ao autor cabe autorizar a utiliza-ção do produto da sua criação. E oautor, porque não pode estar a con-trolar ao mesmo tempo quais são asrádios, as instituições, festas e se-melhantes que tocam as suas músi-cas ao longo de um dia, por exemplo,delega este poder a uma entidade degestão colectiva, que em angola é aSADIA.JC - Pode lembrar os efeitos e

ensinamentos do caso Yuri daCunha?

L.F -É um caso ultrapassado. Masfoi muito bom ter sido levantado nadevida altura porque acabou porservir de algum exemplo a muitosda geração dele. Porque a partir da-quele momento muitos deles come-çaram a acorrer mais aos nossos es-critórios para devida autorização.Mas, profundamente ao caso dele,foi mais uma questão de ignorância,

tanto da parte dele como tambémda parte de uma irmã de Artur Nu-nes, que supostamente lhe tinhambaixado uma autorização verbal.Mas esta irmã, no caso concreto,não era herdeira. Porque não tendodeixado descendentes, a herdeiranatural é a ascendente, nesse caso amãe do artista, que ainda se encon-tra em vida. Também no âmbito deum certa ignorância, esta irmã deu aautorização para a utilização de umproduto que não era dela, ao dar aindevida autorização a um autor pa-ra usar a obra do irmão. Nenhum ir-mão ou irmã podia, quando a mãedo artista ainda o pode representar.Felizmente as pessoas entenderam-se e o caso foi minimamente resolvi-do. Foi muito bom ter levantado es-te problema e abrimos os olhos dasociedade e de muita juventude,que agora, quando quer cantar mú-sica de alguns autores, já pede a au-torização devida.JC - Que ponto a realçar sobre a

nova Lei do Direito de Autor? L.F - A nova Lei do Direito de Au-tor, aprovada recentemente, já per-mite o surgimento de mais socieda-des do género. Quer dizer que o mo-nopólio da SADIA deixará de existir,e está para breve, quando for regula-mentada. Por outro lado, apesar deque a nova lei permita mais socieda-des, até porque estamos num paísdemocrático, vai fazer com que sediscipline a cobrança dos direitos deautor, principalmente em territórionacional. Mas não fará sentido se ca-da uma chega e cobra e o usuário fi-car sem saber a quem pagar ou pa-gar muitas vezes pelo mesmo servi-ço. Este regulamento de funciona-mento dos órgãos de gestão colecti-va poderá regular o funcionamentoda cobrança e da distribuição. JC – Qual seria a solução?L.F -É fundamental que haja estaentidade única que cobra e depoisfaz a distribuição para as outras so-

ciedades. Um órgão cobra e depoisdistribui para as sociedades de au-tor e estas aos seus membros, umpouco como acontece no Brasil como Escritório de Arrecadação de Re-ceitas. Porque o Brasil, sendo umEstado federado, tem várias socie-dades de autor nos vários estadosmas tendo apenas uma entidadeque cobra. JC - Qual a desvantagem?L.F - A desvantagem é que o bancotem funcionários, e quando vai co-brar tira uma comissão para os seusfuncionários e o resto manda paraas sociedades de autor e estas tam-bém tiram a sua comissão e só chegauma ninharia aos autores. E o nossocontexto ainda não se justificava is-so porque somos uma sociedade pe-quena e a sociedade cultural tam-bém ainda é muito pequena, motivomais que claro para não despender-mos esforços. JC - Ainda é um mercado vir-

gem?L.F -Alguns artistas menos aten-tos prejudicam-se em não ir à SA-DIA. Nós fazemos distribuição de di-reitos desde 2005/2006. Só há unstrês anos é que paramos devido asnovas leis. O maior bolo da arreca-dação da SADIA advém da gestão debens autorais no domínio da música.Continuam a crescer o número deinscrições. As coisas vão mudar maso mercado é virgem e favorável. Te-mos em angola cerca de, salvo o er-ro, de três mil unidades hoteleiras emenos de uma dúzia pagam direitos,quando todas deveriam pagar. Ain-da há muito por arrecadar, inclusivepara a área dos direitos conexos,com os instrumentistas, interpretes,editores e mais. JC - O que aconselha aos jovens

que ainda continuam a fazer in-terpretações abusivas e às rádiosque passam as músicas sem licen-ciamento?

L.F -Ainda não despertaram. Porisso mesmo é que uma das nossasprimeiras preocupações foi criar umboletim de informação que desse a

conhecer aquilo que nos chamamosa ´educação autoral´, que permiteeducar os autores, o público a con-sumir produtos legais e os usuáriosa pagarem por aquilo que conso-mem. Ou seja, as pessoas não gosta-riam de estar numa discoteca onde apolícia económica actuasse ou fe-chasse. O público consumidor temde estar educado para consumirprodutos legais. E os donos das dis-cotecas devem estar educados paravender um produto legalmente. Te-mos publicado a Gazeta dos Autorescomo forma de colmatar lacunas deeducação autoral, que sai desde2006 e circula no meio artístico. Masnós notamos que o que mais impor-ta a alguns autores é ver a sua carana revista. Elas esgotam mais por-que os músicos estão preocupadosem ver a sua cara nas páginas ou nacapa da revista do que no seu pró-prio conteúdo de educação autoral.As revistas são gratuitas e esgotam.Publicamos dois exemplares de ca-da número para o universo de doismil membros. É bimestral.

6 | LETRAS 4 a 17 de Janeiro de 2016 | Cultura

Aliás, nósvivemos numasociedade emque, de umamaneira geral,todos nósgostamos deconsumir e nãotemos aconsciência dopagamento doprodutoconsumido

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O GRECIMA (Gabinete de Revitali-zação e Execução da ComunicaçãoInstitucional e Marketing da Admi-nistração) dá continuidade a um dosmaiores projectos culturais da An-gola pós-independente, o programa“Ler Angola”, voltado para o fomentodo livro e da leitura de obras de es-critores angolanos, através do lança-mento da 3ª edição da Colecção 11Clássicos da Literatura Angolana, no

passado dia 21 de Dezembro, na Me-diateca de Luanda.Foram apresentados nesta tercei-ra colecção dos 11 clássicos da lite-ratura angolana os livros: “O cantodo matrindinde”, do escritor ErnestoLara Filho, “Ondula, savana branca”,de Ruy Duarte de carvalho, “Poe-mas”, de Alexandre Dáskalos, “Un-dengue”, de Jacinto de Lemos, e“Chuva Novembrina”, de José Luís

Mendonça.Constam ainda da lista “Terramorta”, de Castro Soromenho, “Ritosde passagem”, de Ana Paula Tavares,“O feitiço da rama de abóbora”, de Ci-kakata Mbalundo, “Subscrito a giz”,de David Mestre, “Nzinga Mbandi”,de Manuel Pedro Pacavira, e “Baixa& Musseques”, de António Cardoso.Na sessão de lançamento, DivaldoMartins, coordenador do programade Fomento do Livro e da Leitura,demonstrou a sua satisfação e rego-zijo pelo progresso registado ao lon-go do tempo, informando que “a de-manda levou-nos a aumentar para10 mil exemplares cada título da se-gunda colecção, lançada em 2014, e,neste ano, juntamente com os clássi-cos, procedemos também ao lança-mento da primeira colecção de 11novos autores”.Como explicou Divaldo Martins, oanúncio da terceira edição fica mar-cado pelo lançamento e apresenta-ção da 1ª colecção infantil, designa-da por «11 Clássicos Infantis», quevêm dar resposta à procura e pedi-dos do próprio público para que fos-se colmatada a ausência de literatu-ra voltada para as crianças.Nesta colecção infantil estão inseri-dos os títulos «E na floresta os bichos

falaram» (Maria Eugenia Neto), «Opaís das mil cores» (Octaviano Cor-reia), «Lutchila» (Rosalina Pombal),«Kibala, o rei leão» (Gabriela Antu-nes), «A árvore dos gingongos» (Ma-ria Celestina Fernandes), «Duas histó-rias» (Zaida Dáskalos), «As sete vidasde um gato» (Dario de Melo), «A velhasanga» (Cremilda de Lima), «Fábulasde Sanji» (António Jacinto), «O circulode giz de bombo» (Henriques Guer-ras) e «A viagem das folhas de cader-no» (Maria João Chipalavela).Ambas as colecções somam 220mil livros, a serem comercializados a500 kwanzas cada. Vinte mil exem-plares são destinados à oferta a insti-tuições ligadas aos ministérios daEducação, Cultura e associações decaridade, como forma de fazer che-gar o livro aos mais carenciados.A colecção ininterrupta dos 11Clássicos da Literatura Angolanatem como objectivo dar um impulsoà produção literária no país e o in-centivo à leitura e está na génese dacriação do Programa de Fomento doLivro e da Leitura, no âmbito do “LerAngola”, programa do Executivo pa-ra a promoção do património identi-tário da cultura nacional.O acto teve lugar na presença deestudantes e amantes da literatura.

“LER ANGOLA” INAUGURA CLÁSSICOS DA LITERATURA INFANTIL

A CRÓNICA DE IMANNI DA SILVA

DESEJO DE ANO NOVO

Clássicos da literatura angolana

Mais um ano termina e com ele re-flectimos sobre tudo de bom e demau que passou em nossas vidas,muito se reclama da crise e muitomais e melhor se deseja no novo ano.O optimismo é praticamente mais doque uma opção, uma necessidade epor mais stressante que seja o nossodia à dia a vontade de esquecer e fu-gir do mesmo não deixa de ser umavontade. Como artista refugio-me nacriação e carrego comigo a respon-sabilidade de oferecer aos merosmortais um mundo de fantasia ondecada um cria a sua própria estória. E

num mundo de uma real fantasia éimpossível não fazer um balanço so-bre os passos significativos queacredito que o nosso País deu nomundo das artes. Sem dúvida Angolase deve orgulhar pela participaçãpna Expo Milão 2015 tendo educado einformado o mundo sobre a sua cul-tura, hábitos e costumes. Os artistasaumentaram e também o númeroconstante de exposições onde osamantes e colecionadores por vezesnem sabiam por onde se virar comaté 3 exposições num só dia tal comolançamento de obra literárias e pe-ças de teatro. Os espaços para tal te-mos mas não podemos ainda dizerque estão de bom tamanho, Por ini-ciativa de muitos certos bares e res-taurantes têm noites especiais dedi-cadas as artes tal como o Goz´aqui eUnitedArtistsWednesdays. Ansiosaestou para a abertura do Museu damoeda de frente à torre BPC cujo de-senvolvimento segui com bastanteentusiasmo, igualmente com reaber-tura do Palácio de Ferro ou futuro

Museu do Diamante que acredito euserão o mais novos espaços culturaisque servirão de apoio para os criado-res com fome de partilhar com omundo o seu sonho.A galeria Hall eMov´arteforam as galerias de artecontemporânea inauguradas paranosso alívio. Os projectos artísticostêm surgido entre eles o Mural daSerra Da Leba e oCucarte onde tive oprazer e honra de participar, projec-tos estes que dão aos artistas a opor-tunidade de trabalhar e levar ao pú-blico os salpicos da sua criatividde.Mais concursos para a descoberta denovos talentos seriam ideais onde apromoção e valorização dos mesmospermitisse que estes crescessem elevassem para bem longe as nossascores. Em 2016 aguardamos combastante apetite por mais uma edi-ção do Ensarte e a Trienal de Luanda.Para mim os nossos passos estão aaumentar cuja velocidade quere-mos aumentar mas claro que paranós mais significa melhor e no novoano todos temos desejos e para além

de saúde, paz, amor e sucesso, tam-bém em nome de todos os artistaspeço atenção, valorização e sobretu-do mais espaços e apoios onde cadaum de nós poderá dar ao público e aoPaís mais vida e educação.

LETRAS| 7Cultura | 4 a 17 de Janeiro de 2016

Peça da exposição colectiva “Elas Expõem”

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8 | ARTES 4 a 17 de Janeiro de 2016 | CulturaBelmiro Carlos e a sua visão do semba

“DISCORDO DESTES SEMBASCOM GUITARRA A SABER A JAZZ”

Jornal Cultura- Como está aUNAC?

Belmiro Carlos - A UNAC está deboa saúde. Isso é bom e penso que é omais importante, dando algum à-von-tade para mobilizar coragens paraprosseguir com o projecto. É verdadeque os desafios de hoje são muito dife-rentes dos que tinha em mãos a UNACde ontem, outrora associação profis-sional, formada por uma plêiade deartistas da geração veterana queachou por bem constituir este órgãopara acudir os seus interesses. E, de lápara cá, ela já sofreu metamorfoses,atingindo fases moribundas e outrasde bonança, principalmente devido arazões de ordem financeira. Mas épreciso entender que agora estamos aviver um contexto diferente, não é quesejamos melhores do que os outros ousejamos mais visionários: trata-se deestarmos num período que ajuda a fa-zer as mudanças que estamos a imporna UNAC. Mas as pessoas que passa-

ram por cá também fizeram muitosesforços para que ela continuasse adar o seu melhor, só para lembrar quejá tivemos uma acutilância muitomaior no que toca a apoios sociais aosseus membros, chegando mesmo a tera capacidade de distribuir algumasviaturas e casas. JC – Era a vossa grande intenção?BC- Sabemos que o caminho não ébem por aí, mas são elementos subsi-diários da nossa acção. Temos é quegarantir que haja trabalho e remune-ração condigna como nossa primeiracausa. Em paralelo à acção de inte-gração social dos nossos artistas, te-mos feito muito em função das possi-bilidades financeiras da instituição.Faz mais ou menos um ano que a as-sociação se transformou numa enti-dade de gestão colectiva, e isso porforça da nova Lei dos Direitos de Au-tor. Se nós não fossemos capazes demudarmos, a UNAC certamente con-

tinuaria a definhar, até desaparecer. JC - O que mudou na UNAC?BC - Não mudaram os propósitos.Mas agora temos uma possibilidademaior de termos uma espécie de inde-pendência económica. Nos sobrevive-mos de um subsídio do Orçamento Ge-ral do Estado, mas que devido a essascrises cíclicas da economia foi dimi-nuindo ano a ano, de modos que nãoestamos em condições de remuneraros nossos representantes nas provín-cias. Agora talvez as coisas mudem umpouco. Felizmente abriu-se esta possi-bilidade de nos transformamos em so-ciedade de gestão colectiva: vamos ge-rir dinheiros, e dinheiro dos associa-dos nacionais e estrangeiros, por viade resultados de compromissos de re-ciprocidade que temos estado a avan-çar. Vamos viver algum desafogo fi-nanceiro e poderemos implementarcom mais facilidade os projectos so-cioprofissionais e criar incentivos aofomento da cultura.JC - Fala da pensão aos músicos?BC - Somos a instituição pioneiraneste domínio. Já, aí há cinco anos,conseguimos com que os nossos artis-tas conseguissem uma reforma. Sãomais de 200 artistas veteranos a bene-ficiarem de uma pensão na ordem dos70 mil kwanzas mês. Foi uma luta te-naz e conseguimos que o governo, na asua boa vontade, anuísse que issoacontecesse, principalmente o Presi-dente da República, José Eduardo dosSantos. E se não é muito boa, já é me-lhor do que nada, para quem estava aviver numa indigência quase que totale com falta de trabalho para muitosmúsicos, dançarinos e teatristas. JC - Mas esse era o objectivo?BC - O nosso principal objectivo émelhorar o ambiente de trabalho ar-tístico no país. Nós precisamos que aactividade artística se desenvolva epara isso tem de haver trabalho artís-tico. Infelizmente, não existe um tra-balho artístico sustentável, daí o gran-de problema e por isso é que assisti-mos ao surgimento de grupos.JC - De quais grupos fala? BC - Não é combater esses gruposorganizados que surgem sob diversascapas e que fazem um trabalho de di-visão das classes artísticas, um poucocomo é o Time de Sonho e etc. Não épor aí que vamos desenvolver a activi-dade artística de forma equilibrada esustentável no país. Não é fazendo

grupos estanques. É verdade que osempresários têm toda a liberdade deescolher os artistas com quem que-rem trabalhar, mas é preciso haverum certo sentido de razoabilidade. Épreciso promover a integração, e nes-te aspecto sente-se também a ausên-cia do Estado que assiste esta situaçãocom sabor a oligarquia ou a monopó-lio em que se precisa a sua interven-ção para repor a normalidade, deacertar o mercado e criar condiçõesfavoráveis para todos trabalharem. Edepois vêm os melhores, os medíocrese os maus, mas isso tem de ser um pro-cesso natural e não administrativo,feito por um grupo que parece ter pos-sibilidade do ponto de vista financeiroem fazer isso. Mas o Estado deve e po-de interferir para conferir um certoequilíbrio a tudo isso, até porque ocombate não é por fim a grupos comoo Time de Sonho, mas sim acções quecontraponham esse tipo de acto que oEstado deve exercitar. Um dia que aUNAC esteja em melhor situação fi-nanceira, interviremos. Mas não domesmo modo e sim incentivando queas actividades se incrementam e quetodos tenham um grande espaço detrabalho. Aqui o grande problema éuma gravíssima falta de estrutura noambiente de trabalho artístico a nívelnacional. JC - E nesse ambiente, como vê o

semba na panorâmica da músicaangolana?

BC -Não existe pré-disponibilidadeda parte da juventude e nós assisti-mos até indivíduos que têm responsa-bilidades muito grandes e que fazemopinião em programas de rádio, tele-visão e imprensa escrita a cometemerros de palmatória que infelizmenteestão a moldar a geração vindouraneste sentido, a educar mal e a fazerum péssimo trabalho cívico. Chamamde semba o que não é semba, e elespróprios não conhecem o que é sembae fazem uma mistura que é contrapro-ducente. Portanto, aquilo que é verda-deiramente semba anda por aí, e se ca-lhar pouco explorado e promovido. JC - Qual é o grande problema?BC -O grande problema que se viveé que o lado comercial está a falar maisalto e as kizombadas e zouk se fazemsemba desde que algum locutor ou al-gum artista põe no disco que isso ésemba, e ninguém corrige. Não se tratade censura. A cultura tem de estaratenta. O ministério tem de fazer maispor isso e introduzir um mecanismo

MATADI MAKOLA

O semba, seu estado e perspectiva no panorama cultural angolano, foi omóbil de um encontro mantido com Belmiro Carlos, que nos concedeu estaentrevista enquanto músico e gestor de um dos mais importantes braços daCultura Nacional no que toca à gestão dos músicos: a União Nacional dos Ar-tistas e Compositores – UNAC. Com passagens como solista em vários con-juntos importantes da História da Música Angola, também às vezes apeli-dado de ́ guitarrista mítico´, o Nito, como é conhecido o autor de Belos Ru-mos nas lides musicais, recebeu-nos na sala da UNAC, num dos prédios des-ta Mutamba que se metamorfoseia diariamente. O calor do seu sorriso epragmatismo em nos acomodar mataram em nós os empecilhos dos forma-lismos e permitiram criar uma conversa amena e dinâmica à volta destesemba que ele defende, levantando problemas que se estenderam da suaconcepção à falta de crítica musical.

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ARTES | 9Cultura | 4 a 17 de Janeiro de 2016de correcção das coisas para serembem-feitas. Temos que encorajar, esti-mular e intervir para que as coisas se-jam bem-feitas e não confundirmos ozouk e a kizomba com o semba. Não éjusto e não está correcto. Infelizmente,os jovens que se aplicam a tentar fazersemba nem sequer conseguem falarcorrectamente alguma língua nacio-nal. No cômputo geral, a nossa músicaevoluiu bastante no aspecto técnico.Os nossos instrumentistas estão muitomelhor habilitado e com um domíniomais profundo dos instrumentos, eparticularmente nos instrumentos decorda. Estamos melhor servido tam-bém no canto e na performance. Mas anossa música ainda tem vivido de mui-tas mentiras.

JC – Quais mentiras?BC - Por exemplo, os nossos discos,a maior parte deles que aqui nos ofe-recem como kizomba, zouk e até sem-ba, embora muito bem estruturadosdo ponto de vista melódico, muitosnão são executados por músicos ango-lanos. Podem, na base, chamar o João-zinho para por tumbas ou o Tolingaspara fazer reco e ficar identificado co-mo semba. Mas os sopros e o resto nãosão executantes angolanos, e istoaconteceu até no meu próprio disco.Mas quando alguém de fora ouve osnossos discos vai pensar que os músi-cos angolanos são exímios executan-tes. Infelizmente, essa falsidade temajudado para que haja um certo ador-mecimento das estruturas competen-tes. Nós já deveríamos ter várias or-questras sinfónicas, e o que temosapenas é a Kapossoca. Há de facto umacerta distração e a minha percepção éque a cultura continua a ser um entea-do, que não é visto numa perspectivaeconómica. Agora é que aprovou-seum documento, mas ainda não saiu dopapel e continuamos a coxear.JC - Os executantes têm parte de

culpa no adormecimento do semba?BC - Isso é bem verdade. Houve umhiato muito grande devido à guerra e amúsica desapareceu quase totalmen-te e deixou de haver actividade artísti-ca no país e fomos invadidos pela mú-sica brasileira e cabo-verdiana. Quan-do se retomou este processo, já naépoca do Eduardo Paím e outros, vie-ram todos eles influenciados pelozouk e pouco vocacionados para aqui-lo que era antes, no tempo dos conjun-tos, a nossa música. Não houve passa-gem do cordão umbilical musical. E vi-veu-se o período kizomba, que é umacópia mal parida do zouk. O sembacaiu num esquecimento. E agora háuma tentativa de recuperação do sem-ba mas por jovens com alguma falta decuidado. O semba tem a sua ritma, asua alma e a sua elevação. Discordodestes sembas com guitarra a saber ajazz. Pode ter mudanças, efeitos e ino-vações, mas não podemos adulterar.Há pessoas que têm ligação profunda,que cultuaram o semba, sabem reco-nhecer este período desenquadrado.

Não há correções. Não temos críticamusical no país. JC - Então, onde estão os homens

do semba?BC - Os homens do semba estão aí.Não estão nada velhos. Criou-se umfalso problema neste país com as ida-des e todos são kotas, até o EduardoPaím já lhe chamam publicamente natelevisão de kota. Mas quando o Ro-berto Carlos vem aqui, ninguém estavaa lhe chamar mais velho Roberto Car-los ou Kota Roberto Carlos. Quandoeles falam isso já estão a dizer “epá,mais velho, arruma as botas”. O músi-co, o artista, quanto mais velho, me-lhor. E isso é em qualquer parte domundo, tanto em Cuba ou Brasil, ondevincam miscelâneas de grupos com di-ferentes idades, com consagrados, tan-to kotas como putos, a darem o seu me-lhor. Aqui, os cultores do bom sembanão cantam, não têm espaço. O que es-tá a acontecer tem sabor a escândalo.JC - Trazer o sabor dos conjuntos

ajudaria em alguma coisa?BC - Há de facto um processo deadulteração do semba, pelo menos é oque está a sofrer mais, e sob o olhar si-lencioso e a apatia quase de criminalconivência. Nós olhamos e sem inter-venção nenhuma. As instituições dedireito, e até a própria rádio deveriamajudar. O zouk e outras podem coexis-tir, podem fazer. Mas aquilo que ésemba tem de ser bem feito. Corremoso risco de um dia não termos semba. Osemba do Ngola Ritmo não é o que eutoquei, e certamente não é o que foi to-cado depois de 75, dando nomes quese afirmaram plausivelmente como éo caso de Bangão. Houve metamorfo-ses, mas a malha de como se tece e osabor era de semba. Havia o consensoe a viola solo podia ter um toquezinhomas a matriz estava lá. Só para exem-plo, o samba dos anos 60 era tocadocom notas naturais e que hoje tocamcom as sequências que o jazz trouxe,mas nada fugiu da base. O samba ésamba. Não é o que está a acontecercom o semba. As guerras prejudica-ram muito na inexistência da nossamúsica. Já era tempo de corrigir esteproblema que está a ter contorno deum desastre nacional. Há uma ausên-cia gritante do Estado. Seria bom pen-sar a Miterrand, então presidente daFrança, com a sua intenção de que nogoverno dele “são todos ministros dacultura”, para passar a mensagem deque a cultura é o povo, a nação. Se nósnão valorizarmos as nossas referên-cias culturais, acho que não teremosforças no concerto das nações. Se sair-mos para um país anglófono, nós quejá vestimos como os portugueses ecantamos rap, podem ter alguma dú-vida da nossa existência como povo.JC - Críticas no programa Quintal

do Ritmo…BC -Eu assinava com o pseudónimode Mbidikila no programa Quintal doRitmo, quando Gilberto Júnior e Cha-

gas eram os responsáveis do progra-ma, lá para finais de 70. Fazia algunstextos de opinião e algumas críticas noverdadeiro sentido da palavra, comodizer se estava ou não no espírito e oque estaria desafinado, e isso as pes-soas não gostam. E lembro que umadas vezes cheguei a dizer, quando oAndré Mingas e o Elias foram gravardiscos no Brasil, que o disco do Andréestava bom no seu estilo mas o discodo Elias só valia pela nostalgia da vozdo Rei. Então cheguei a dizer que aqui-lo pecava pela ritma e pelo espirito eque a alma musical foi altamente pre-judicada no disco. E o texto foi lido etrouxe murmúrios, porque fazer umacrítica ao Rei não era normal. Mas eusentia-me à altura e com autoridadepara tal. E é esse tipo de acção que estáa faltar no país. Está a faltar crítica noverdadeiro sentido da palavra, fazeresse tipo de correção das anomaliasque vem sofrendo a nossa música. Amaior parte dos críticos musicais sófalam bem e é uma grande mentira. Eparticularmente dos veteranos, dizemtodos que cantaram bem. Mas naqueletempo também tivemos artistas me-díocres mas que hoje são apresenta-dos como grandes artistas. JC - Trouxe inimizades? BC - As pessoas não aceitam isso.Mas também não se faz isso há muitotempo. Há quarenta anos que não sefaz uma crítica, que um individuo po-de cantar e tocar errado e se você lhedizer que está mal, ele vai ficar zanga-do. Não precisamos de ser arrogantese destruir as pessoas, mas há formas emétodos como educar. A comunicaçãosocial pode dar espaço para intervir.Porque eu penso que é muito maisprejudicial estar a dizer às pessoasque está tudo bem quando estão a fa-zer mal. Amanhã esse erro pode cairna normalidade. JC - E sobre as abusivas interpre-

tações?BC - Há trechos adulterados nas in-terpretações que eu particularmentenão gosto, e se a música fosse minhaeu não deixaria tocar. Interpretar é le-gal, mas devem ter autorização.JC - Muito aquém das originais?BC - Depende muito do desempe-nho de quem faz a versão original. Háoriginais que para fazer alguma ver-são até dá medo. Infelizmente, temosartistas que eles próprios fazem ver-sões das suas músicas mas sai uma có-pia muito pálida. Eu acho que têm queser melhores ou cópias muito próxi-mas da qualidade da original. Quandoum individuo fazer uma versão piorque a original, é melhor desistir. Infe-lizmente há muitos casos destes nonosso mercado. Mas há também có-pias com alguma qualidade.JC - E como analisa o caso do ́ In-

térprete´ Yuri da Cunha?BC - Eu gostei particularmente dodesempenho e da forma mais dançante

que ele conferiu à música do Euclidesda Lomba. Agora, sobre outros casos,esse interpretar abusivamente temmuito a ver com a falta de estrutura deque já falei. E a usurpação de obras, deacordo com a lei, pode dar cadeia.JC – O semba foi o estilo musical

da mensagem política. Que reco-nhecimento nota?

BC - É pena não haver um reconhe-cimento prático das autoridades. E,portanto, houve também muitos artis-tas que fizeram canção política pelamobilização. Do mesmo modo que ou-tros pegaram em armas, houve umgrupo de pessoas que também pegouna música como arma.Isso é lamentável porque já tivemoselementos do Kissanguela que morre-ram na indigência. O Kandinho, porexemplo, morreu sem reconhecimen-to, sem nada. E é um individuo que atéhoje tem os tambores que abrem o no-ticiário da rádio, que só por aí deveriater dinheiro mais do que suficiente pa-ra viver e cuidar da família. É precisocorrigir algumas injustiças. Não temosreconhecimento do Estado dos indiví-duos que estiveram envolvidos nacanção política, a cantar contra a inva-são sul-africana e mercenários ameri-canos. Nós íamos cantar nas frontei-ras entre as nossas tropas e a do inimi-go, fomos ao Kifangondo, ao Uíge, nascampanhas do café, Cuando Cubango,feito guerrilheiros, mas não com ar-mas e sim com a canção política.

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10 | ArtEs 4 a 17 de Janeiro de 2016 | Cultura

O MÉRITO REFORMADOR DE

FILIPE MUKENGA

No passado dia 19 de Dezem-bro, no Memorial AgostinhoNeto, foi lançado pela Arte

Viva – Edições e Eventos Culturais, olivro “Vida, Poesia e Canções” da au-toria de Filipe Mukenga, com um CDretrospectivo com canções selecio-nadas pelo próprio autor, por JomoFortunato e por Paulo Cordeiro daMata. O livro apresenta um caráctermaioritariamente biográfico, comuma estória de vida, cronologia mu-sical, depoimentos, recortes de im-prensa, diplomas outorgados, entre-vistas… Contudo, revela também avocação literária de Filipe Mukenga,com a inclusão de contos e poemasque só agora foram editados. O tempo de adolescência e de matu-ração musical de Filipe Mukenga foiuniversalmente marcado pela décadade 60, conhecida esta pelos anos de re-beldia, atendendo à relevância deacontecimentos que constituíram fac-tor de mudança em todo o mundo eque, de forma indelével, influenciaram

a juventude daquele tempo. Uma sériede movimentos políticos e sociocultu-rais agitaram tanto os países ociden-tais como também o continente africa-no, onde o ciclo das independênciaspassou a inverter o sentido de séculosde escravidão e dominação colonial. Em 1960, de uma assentada, nadamais nada menos que 18 países africa-nos da África subsaariana se tornaramindependentes: Nigéria, Somália, Ga-bão, Senegal, Mali, Costa do Marfim, Be-nin, Níger, Burkina Faso, Chade, Mada-gáscar, Somália, Mauritânia, Togo, Ca-marões, República Centro Africana, Re-pública do Congo e República Demo-crática do Congo. Mas, o regime colonialportuguês, optando pela política do “or-gulhosamente sós”, manteve-se alheioàs mutações que aceleradamente pas-saram a acontecer, deste Abril de 1954,aquando da Conferência de Bandung. Daí que, em 1961, a par da indepen-dência da Serra Leoa, tivesse ocorridoa ocupação de Goa, Damão e Diu pelastropas da União Indiana, bem como o

assalto às cadeias de Luanda, no dia 4de Fevereiro, dando início à luta arma-da de libertação nacional em Angola.Em Setembro deste mesmo ano, no âm-bito de uma visita a Angola do Prof.Adriano Moreira, Ministro do Ultramar,foi abolida a Lei do Indigenato que, juri-dicamente dividia os angolanos em as-similados e indígenas. O moderno na-cionalismo angolano afirmava-se e con-tagiava os jovens daquele período, queclandestinamente passaram a ouvir pe-la rádio o “Angola Combatente”. Na década de 60, os Black Panters,Ângela Davis, Rap Brown e Stokely Car-michael tornaram-se líderes da lutacontra a segregação racial nos EUA. Em28 de Agosto de 1963, o líder MartinLuther King encabeçou em Washingtonuma manifestação com mais de 200 milpessoas a favor dos direitos civis dos ne-gros, onde pronunciou o seu célebre dis-curso: “I have a dream.” Um sonho quelevou Barack Obama, 46 anos depois, atornar-se no 44º Presidente dos EUA.Na música, os anos 60 corresponde-

ram ao período da cultura pop anglo-saxónica e norte-americana. Os Bea-tles tornam-se populares em todo omundo e influenciam as tendênciasmusicais de Filipe Mukenga. Mas tam-bém canções como “Georgia in mymind”, de Ray Charles; “Natural wo-man”, de Aretha Franklin; “Amen” deOtis Redding; “Say it loud, I’m blackand I’m proud”, de James Brown;“Land of thousand dances”, de WilsonPickett tornam-se, também para ele,músicas de referência daquele tempo.“Black is beautiful and is so beau-tiful to be black” era a palavra de or-dem da época, que levou à interiori-zação do chamado penteado afro,divulgado por Jimi Hendrix, um len-dário da música rock, que, no festi-val de Woodstock, em 1969, perantemilhares de pessoas interpretou,pela primeira vez, o hino dos EUAcom solos e efeitos de guitarra eléc-trica. Simultaneamente, os especta-dores passaram a exigir o fim daguerra do Vietname, que havia ini-

FILIPE ZAU*

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ARTES | 11Cultura | 4 a 17 de Janeiro de 2016

ciado com o envio de tropas dosEUA, a 9 de Fevereiro de 1965, paraaquela frente de combates. No Brasil, emerge o movimento tro-picalista, com Caetano Veloso, GilbertoGil, Maria Bethânia, Gal Costa e JorgeBen. Não necessariamente com o ob-jectivo de utilizar a música como “ar-ma” de combate político contra a dita-dura militar que vigorava no Brasil,mas porque os seus mentores acredi-tavam que a inovação estética musicaljá era uma forma revolucionária departicipar. Mais tarde, Mukenga deixa-se influenciar por Djavan e Milton Nas-cimento, na fase de transição para umnovo sentido estético da sua música.Todavia, soube combinar um novo pa-radigma de composições com letrasem línguas africanas de Angola, dasquais “Nvula Ieza Kia” e “Humbiumbi”,interpretadas, entre outros, por Dja-van, Gilberto Gil e Flora Purin – esta úl-tima, uma das mais respeitadas canto-ras de jazz, pelo facto de ter trabalhadocom Miles Davis –, acabou por trans-formar Filipe Mukenga em um dosmais representativos embaixadoresda Música Popular Angolana.Ainda nos anos 60, a banda Osibisa,com músicos maioritariamente nasci-dos no Ghana, se caracterizava por es-tabelecer novos paradigmas estéticosda música africana e, até mesmo Mi-riam Makeba com o seu “Pata Pata”,passava a abrir espaço para a interna-cionalização da música do nosso conti-nente. Inexplicavelmente, em Angola,o reconhecimento do relevante traba-lho de 52 anos de carreira musical deFilipe Mukenga, persiste em passar aolado. Poucos, no nosso país, talvez peloreceio de não colherem êxitos imedia-tos, ousam avançar para um tipo demúsica mais trabalhado e exigente.Todavia, Mukenga é honesto e exigen-te para consigo próprio. Propositada-mente foge ao comercial, porque éalérgico à composição intuitiva de fácilconsumo. Quem mais vem valorizandoe validando o seu trabalho tem sido amedia estrangeira e, maioritariamen-te, artistas brasileiros, como Djavan e

Martinho da Vila e, evidentemente, osseus amigos e admiradores.Da minha parte, descobri Filipe Mu-kenga ainda no Duo Misoso, através deuma canção intitulada “Lavadeira”,quando as emissões da TPA eram ain-da a preto e branco. Mas foi com a can-ção “Mandume”, cantada em Ochikwa-nyama, ouvida através da RNA, quesenti o desejo de com ele poder fazermúsica. O nosso primeiro trabalho deparceria foi a canção “Novo Som”, com-posta por volta de 1978. Estou até hojeagradecido pelo facto de Filipe Muken-ga ter gostado daquela letra, que foi tí-tulo do seu primeiro álbum. Sem dúvi-da alguma e sem falsas modéstias, omérito mais significativo de todo o tra-balho desta nossa parceria de 37 anosconsecutivos, tem sido dele.Mukenga prossegue até hoje um es-tudo de sequências harmónicas, a par-tir do jazz e da música popular brasi-leira e identificou-se com os acordesdissonantes, fugindo o mais possíveldos acordes naturais. Nenhum preten-siosismo dele na minha opinião. Ape-nas uma opção estética ainda não com-preendida por muita gente, que, semperspectiva dinâmica da cultura, porvezes o aconselha a voltar atrás. A op-tar por um outro caminho com o qualnão se identifica. Filipe Mukenga é fruto do tempo demudanças dos anos rebeldes da déca-da de 60. Quando lhe perguntam quetipo de música faz, responde simples-mente: “faço MMA”; ou seja, “ModernaMúsica Angola”. Conscientemente in-sere-se num paradigma de renovaçãoestética musical, tal como, no mundo,

tantos outros músicos o fizeram poropção e direito que lhes assiste. O re-sultado da actividade musical de FilipeMukenga predestinou-o para ser umcriador nato, um inovador, quer pelaforma como compõe, quer pela formacomo interpreta. As culturas não sãoestáticas. São dinâmicas e influen-ciam-se mutuamente numa lógica depermanente osmose e complementa-ridade. Nunca numa perspectiva deconservadorismo e exclusão a partirde pseudos-identidades que procu-ram excluir outros através de uma es-pécie de xenofobia ou “cultura de pa-cote”, quando o tempo que vivemos,cada vez mais se caracteriza por seraberto ao mundo. Como “operário de cultura”, todo ocompositor e intérprete acaba por sedeixar influenciar por músicos e músi-cas que ferem a sua sensibilidade, sempreconceito pela assunção de novoshibridismos, que são produto de mui-to estudo e trabalho. O mérito de Fili-pe Mukenga começa por ser reforma-dor, no seio do próprio escol musicalque já criou e que, de certa maneira,vem influenciando uma geração denovos músicos de elevado talento, taiscomo: Sandra Cordeiro Silva, TotyS’Med, Tótó St, Selda Portelinha, Kan-da, Jack Nkanga, Gary Sinedima, KizuaGourgel, Dódo Miranda, Paulo Moto-mina, Carlos Lopes, Anabela Aya, Nda-ka yó Wiñi, Irina Vasconcelos, NinoJazz…e, também numa primeira fase,Matias Damásio, apenas para me refe-rir a alguns deles.Com Filipe Mukenga, do ponto devista musical, aprende-se muito. Daí

que consiga resistir às intempéries pro-vocadas por alguma falta de apoio aoseu trabalho de excelência, atendendo àriqueza melódica e harmónica das suascomposições, à forma como as inter-preta e à preocupação com os arranjosmusicais. Senão, claro, já teria sido es-quecido e não estaria a ser seguido pe-las gerações mais jovens, que gostamde trabalhar nos seus projectos disco-gráficos. Apesar do ensurdecedor silên-cio com que gente comprometida com apromoção e difusão da actividade cul-tural persiste em brindar a sua arte,Mukenga, querendo-se ou não, já fezhistória na música angolana de subs-tância. Não na de circunstância, pois emnada se identifica com esta última.Chamei-lhe, há tempos, “Sr. Disso-nância” pelo estilo muito próprio desequenciar as harmonias nos seus tra-balhos. Uma “praia” que só é frequen-tada pelos músicos, que adquiram al-guma formação sistematizada em es-colas vocacionadas para o efeito ou,simplesmente, através do dedicadoautodidatismo no campo do jazz ou da“Música Popular Brasileira” (não todaela evidentemente). Esta é a “praia”dos músicos desprovidos de precon-ceitos, que olham para a cultura comoum processo social dinâmico e em per-manente contacto com outras culturas,quer antes pela perspectiva cosmopo-lita, quer hoje pela planetização da eco-nomia, que necessariamente influen-cia a actividade cultural dos povos,principalmente nas grandes superfí-cies urbanas. Esta é a “praia” dos músi-cos que, de alguma forma, procuram,no âmbito da endogeneidade, estabele-cer a ponte entre a tradição e a moder-nidade, tal como em África, dos que me-lhor conheço, fazem, hoje, Richard Bo-na, Lokwa Kanza, Ray Lema, Salif Keita,Hugo Masekela, Manu Dibango, JimmyDludlu e Johnatan Bartley. O livro “Vida, Poesia e Canções” desua autoria, com o primeiro “Best off”,reflecte, evidentemente, essas sínte-ses culturais em Filipe Mukenga. Ummúsico angolano, também africano ecidadão do mundo, mas que sabe ver omundo, África e Angola através dosseus próprios olhos. É isso que musi-calmente o personifica. Este seu livro éo espelho da sua própria idiossincra-sia e cumpre-me o dever moral de tam-bém felicitar a editora “Arte Viva”,através do académico, intérprete,compositor, crítico literário e musicalJomo Fortunato, pelo bonito trabalhobiográfico, literário e de selecção mu-sical que empreendeu, fruto, evidente-mente, da sensibilidade musical quetambém em si se revela.Vai na tua, meu irmão. Vai na tua. Pa-rabéns pelo bonito trabalho que vensproduzindo durante todos estes anos,pois, tal como tu, muito poucos até hojeo souberam fazer com a devida mestria,para que nós nos possamos sentir na ob-rigação de lhes prestar a devida vénia.* Intérprete e Compositor Musical

Mukengaprossegue atéhoje um estudode sequênciasharmónicas, apartir do jazz eda músicapopularbrasileira eidentificou-secom os acordesdissonantes,fugindo o maispossível dosacordes naturais

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12 | DIÁLOGO INTERCULTURAL 4 a 17 de Janeiro de 2016 | Cultura

E trouxe consigo água doce noolho do coco verde das Maurícias,e farinha muceke de acompanharo feijão com carne seca do Gana epeixe frito com molho de kiabos efunge de ynhame do Benin, e ba-nana-plaintain e milho fresco as-sado do Uganda, injera e café moc-ca-sidamo da Etiópia e mikates ekikwangas dos Kongos… E misan-gas dos Xhosa, e ouros dos Ashan-ti… E djellabas, kaftans, dashikis,boubous, kanzos, kangas, gomesisem todas as cores, cortes, formas efeitios dos panos tradicionaisAfrikanos… E os sopros da Or-questra Baobab do Senegal, ostantans de Tony Allen da Nigéria eas vozes e koras dos Griots Diaba-té do Mali… E as explosões de dan-ça, arte, moda e design um poucode todo o Kontinente…

UTOPIAChamaram-lhe ‘Utopia’, mas foi defacto um ‘Sonho’ tornado realidade:o Verão em que a Mamá Afrika de-sembarcou no epicentro da MargemSul do Thames (The Royal Festivaland Queen Elizabeth Halls no SouthBank Centre) e desembrulhou seussabores, odores, cores e sorrisos pe-rante Londres ‘like it’s nobody’s bu-siness’!… E toda a Família Afrikana dacidade e gente de todas as nacionali-dades seguiu o ‘Caminho do Rio’, du-rante 3 dias (11-13 de Setembro doano que agora finda) para a saudar ecelebrar, numa verdadeira festa decalor humano, alegria, criatividade,diversidade, fraternidade, empreen-dedorismo e muita sofisticação!“Por todo o Continente Africano, há

uma miríade de exemplos de criativi-dade e inovação que nos encorajam, anos no Norte Global, a testar ideias es-tabelecidas com novas abordagens.Nos fruímos desta energia em ‘ÁfricaUtopia’, que coloca a questão provoca-tória, ‘Como pode a África resolver osproblemas do Ocidente?’, através deuma serie de performances e deba-tes.” – Assim nos foi apresentado oevento por Jude Kelly, Directora Artís-tica do Southbank Centre. Ao que Hannah Pool, Curadora das“conversas” do evento, acrescentou:“O programa de palestras e debatesdo ‘África Utopia’ deste ano foi cria-do ‘on the road’ pelo continente –desde cafés em Joanesburgo a espa-ços artísticos em Nairobi, os mesmostemas vinham se repetindo. Ques-tões de liderança, espaço e o papeldas artes na criação de mudança so-cial foram todos reflectidos no pro-grama. Em colaboração com o ‘TheGuardian’, ‘Africa at LSE’, ‘The Afri-can Women’s Development Fund’ e‘Africa Gathering’, o ‘Africa Utopia’alinhou uma serie de conversas co-brindo um pouco de tudo, desde o ac-tivismo digital ao feminismo Africa-no. Com intervenientes do Continen-te e da Diáspora, incluindo artistas,activistas e lideres nas áreas de tec-nologia e comercio, o programa real-çou como as artes e ideias de Áfricaestão a mudar o mundo.” O ‘Africa Utopia’ já se vem reali-zando anualmente há quatro anos,mas este foi de todos o maior e o pri-meiro que “não se ficou por ali”…Porque a Mama Afrika dali seguiupara a Margem Norte do Rio em di-recção ‘a British Library, lá no ‘Cru-

zamento dos Reis’ (King’s Cross), pa-ra dar voz e vez aos seus Impérios,Reinos e Reis da África Ocidental –proeminentemente, Wole Soyinka(que, infelizmente, não pôde estarpresente por razoes imponderáveisna altura, mas que fará as honras doevento em próxima ocasião maispropícia) e Fela Kuti – com a sua Pa-lavra, Símbolo e Canção (‘West Afri-ca: Word, Symbol, Song’ – em exibi-ção e performances até meados deFevereiro do próximo ano).‘AFRICA WRITES’ (Mas em que Lingua(s)?)Mas as falas e cantos dos ‘griots’anunciando a chegada da Mama Afri-ka começaram a ecoar bem no pinodo Verão (3-6 Julho) com o certame‘Africa Writes’ – um festival literárioincorporando uma feira do livro, emcelebração da eterna criatividade eindubitável ascensão da literaturaAfricana como uma força proemi-nente da literatura global e da cultu-ra popular, promovida anualmentepela ‘Royal African Society’ em asso-ciação com a ‘British Library’.Este ano na sua quarta edição, o‘Africa Writes’ reflectiu todo esse di-namismo, incluindo eventos cobrin-

do um amplo espectro de temas, des-de o significado do ‘Amor em Africa’e do ‘Romance na Era Digital’, ‘a ex-ploração de novas áreas de estudossobre a literatura Africana.O primeiro grande evento do festi-val foi um Simposium sobre tradução,curado por Wangui wa Goro e o Afri-kult (um forum online promovendo aconexão, exploração e expansão doconhecimento sobre a literatura e cul-tura Afrikana), composto por três pai-néis, incluindo escritores, artistas,publicistas, tradutores, escritores eestudiosos, sob o tema genérico “Afri-ca in Translation: What’s Love Got toDo with It?” Focando no tema do Amor, o sim-posium visou desfazer mitos sobreromance entre Afrikanos e analisar o

O ANO EM QUE A ‘KULTURA AFRIKANA’ PASSOU O VERÃO EM LONDRES...

ANA KOLUKI

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DIÁLOGO INTERCULTURAL |13Cultura| 4 a 17 de Janeiro de 2016

Na Alemanha sabe-se pouco so-bre Angola. A imprensa alemã pu-blica, quando muito e muito de vezem quando, escassas notícias so-bre a situação económica do vastopaís subsaariano e sobre a sua ri-queza em petróleo e diamantes,nunca deixando de mencionar queLuanda é supostamente a cidademais cara do mundo e repetindoquase sempre os clichés e estereó-tipos divulgados na Europa sobrequalquer país africano: ninhos decorrupção e de calamidades. Como a literatura tem a grande ca-pacidade de levar o leitor para dentrode universos desconhecidos, trans-mitindo-lhe uma noção do que pen-sam e sentem os seus habitantes, dassuas preocupações, da sua história,do mundo que os rodeia, ela cria re-presentações artísticas, imagens, domundo real que constitui o seu ponto

de referência, o seu material de base. Foi nesta perspectiva que surgiu aantologia Angola entdecken! (Desco-brir Angola!), publicada em línguaalemã em Julho deste ano na Alema-nha pela editora Arachne-Verlag,com o apoio da União dos EscritoresAngolanos, do Instituto Goethe deLuanda e da Direcção-Geral do Livroe das Bibliotecas de Portugal. De Setembro até agora, o livro já foilançado em Aachen, Berlim, Muniquee, por último, no dia 22 de Novembro,em Hamburgo, no âmbito de um Diade Angola organizado pelo Museu deEtnologia de Hamburgo, com um pro-grama de literatura, cinema e a actua-ção do grupo de batuque Tussanganade Dresden, este último enviado pelaEmbaixada de Angola. A antologiaAngola entdecken! foi apresentada,juntamente com a antologia bilingueOxalá cresçam pitangas organizadapor Ineke Phaf-Rheinberger, pelo Pro-fessor Martin Neumann da Universi-dade de Hamburgo, com uma audiên-cia de cerca de quarenta pessoas.O título do livro remete para o im-portante movimento Vamos desco-brir Angola, fundado em 1948 por Vi-riato da Cruz e Mário de Andrade, queteve grande importância para o pro-cesso da independência de Angola, e éum livro de leitura histórica: Reune

vinte textos em prosa de catorze auto-res de renome, como Pepetela, Luan-dino Vieira, Arnaldo Santos, João Meloou Ondjaki, que reflectem as diferen-tes épocas da história de Angola, des-de o início da colonização do país até àactualidade. A sua publicação coinci-de com o ano em que Angola festeja os40 anos da sua independência e a UEAos 40 anos da sua existência. O livro pretende ser uma contribui-ção para divulgar a literatura angola-na na Alemanha, uma literatura quesegundo a renomada estudiosa das li-teraturas ibero-americanas MichiStrausfeld tem “grandes autores, in-justamente desconhecidos entre nós”que não o seriam se “o mundo literá-rio fosse menos eurocêntrico e nãotão dominado pela literatura anglo-saxónica”, como ela escreveu na suarecensão de Descobrir Angola!no por-tal literaturkritik.de (http://www.li-teraturkritik.de/public/rezension.php?rez_id=21366).O livro pretende também acrescen-tar aspectos diferentes à imagem queAngola tem na Alemanha, embora arepresentação oficial do país pareçanão estar muito preocupada com essaimagem. A lista de recomendações deleitura enviada no início do ano pelasecção cultural da Embaixada pelomenos indicaque as suas prioridades

são outras: os dezoito livros cuja lei-tura é aconselhada têmtítulos como Aarte de vender, Todos podemos nego-ciar bem ou O mapa da fortuna.Entretanto, a nossa descoberta dasmúltiplas facetas de Angolacontinua– através da literatura e, se possível,também através do contacto real como país e com as suas gentestão gene-rosas, criativas elutadoras!

DESCOBRIR ANGOLA NA ALEMANHA

BARBARA MESQUITA

impacto da tradução e os seus cons-tructos inter-culturais sobre o amorna literatura Afrikana contemporânea.Foram igualmente explorados os limi-tes e possibilidades da tradução denarrativas criativas e culturais atravésdo tempo e do espaço, incluindo o es-paço virtual, oratura, música, filme emultimédia. Seguiram-se varias ou-tras sessões de analise e discussão aolongo do certame, entre as quais:Um painel intitulado “African Crea-tive Non-fiction: Moving the Bounda-ries?”, dirigido por Ellah WakatamaAllfrey, explorou as ‘interfaces’ entrediferentes géneros literários, focandoigualmente nas técnicas de escrita enas estruturas através das quais estoi-ras encontram a sua forma, numa re-flexão sobre o potencial da não-ficçãopara melhor expressar vozes, realida-des e imaginários do Kontinente, for-mulando questões como: - “Quais aspossibilidades criativas da não-fic-ção?”, “Qual a relação entre poesia ememória, ou entre história e literatu-ra de viagem?”, “Onde se localiza o li-terário no ensaio, na ‘escrita-vivida’ou na reportagem?”… Outro painel, sob o tema “ChartingNew Platforms, Ideas and Forms: ThePlace of Literary Magazines in AfricanLiterature”, reunindo editores tantode estabelecidas como de novas publi-cações, sob a direcção de Nana YaaMensah, reflectiu sobre como as revis-

tas e jornais literários, desde ‘Transi-tion’ e ‘Black Orpheus’ a ‘Chimurenga’e ‘Farafina’, moldaram e continuam amoldar a produção e recepção deideias e da literatura Afrikana.O painel debruçou-se sobre a formae influencia das revistas literárias pa-ra a literatura Afrikana contemporâ-nea, respondendo a questões como:“O espaço digital cria oportunidadespara as revistas literárias do século 21serem mais genuinamente pan-Afri-kanas tanto pelos seus leitores comopelas comunidades de escritores querepresentam?”, “Permite a revista li-terária o desenvolvimento de ideias ede literatura Afrikana através de for-mas mais experimentais e multimé-dia?”, “Identificam-se essas publica-ções como parte da, e são influencia-das pela, trajectória histórica das ‘Re-vistas literárias Afrikanas’?”Num outro painel ainda, concebidopor Dele Meiji Fatunla, foram aborda-das questões criticas como: “De queforma o nexo mutável entre raça eeconomia molda as oportunidades deescrita e publicação abertas a escrito-res Afrikanos e a perspectiva dos lei-tores Afrikanos?”, ou “Como e’ que ocrescimento de novas iniciativas depublicação no continente estão a mu-dar as formas como a literatura deAfrika é lida, produzida e valorizada?”Em um artigo para o ‘New York Ti-mes’ em Novembro do ano passado,

Adaobi Tricia Nwaubani argumentouque ‘o sucesso para o escritor Afrikanoainda depende do Ocidente’ e que asvozes Afrikanas contemporâneas ‘sócontam estoiras que os estrangeiroslhes permitem contar’. Usando a ideiado ‘white gaze’ (‘o olhar fixo do bran-co’) de Toni Morrison, o painel explo-rou, interrogou e contestou aquelanarrativa e a ideia de que a escrita Afri-kana contemporânea é criada pela in-dústria livreira global. Ao invés, inter-rogou-se sobre o que as actuais recon-figurações da indústria livreira Afrika-na, a par do crescente poder de com-pra de cada vez mais Afrikanos e ou-tros consumidores globais não-oci-dentais, poderão significar para futu-ras percepções das e interacções comas literaturas Afrikanas, os seus escri-tores e o próprio Kontinente.BEN OKRI (E a “Tirania Mental”)Ao multi-premiado escritor Nige-riano Ben Okri – galardoado, entre ou-tros, com o maior premio literário daAnglofonia, o '(Man) Booker Prize', pe-lo seu livro "The Famished Road (O Ca-minho Faminto)" – coube a honra deproferir a ‘Aula Magna’ de encerra-mento do certame. Sob o título “Reflec-tions on Greatness”, dir-se-ia que Okriprosseguira o debate do último painelacima referido, mas não: sem o referir,ele apenas retomava e expandia um te-ma que se lhe tornou pessoalmente

bastante caro, desde que, em Dezem-bro do ano passado, no ‘The Guardian’,publicou um artigo intitulado "A men-tal tyranny is keeping black writersfrom greatness (Ha' uma tirania men-tal impedindo os escritores Negros deatingirem a grandiosidade)", que ge-rou uma grande polémica nos meiosintelectuais, culturais e literários Afri-canos e Africanistas...Durante uma entrevista na vésperado evento, indagado sobre a polémica,ele respondeu simplesmente: "eu es-tou a tentar soltar um tigre e há pes-soas que pensam que quero ensinarum cordeiro a andar"...[CONTINUA]

Ana Koluki com Ben Okri e participantes no ‘Africa

Utopia’

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IDepois de ter feito alguma fortuna no comércio de automóveis de ocasião etelemóveis, certo dia sentei-me diante da minha esposa e declarei:— Vou abrir um asilo para idosos!Já bastante familiarizada com estes rasgos de generosidade do marido, mui-to calma, Marta ergueu os olhos da revista cor-de-rosa que tinha no colo e fi-tando-os em mim, proferiu:— É uma excelente ideia, Tchela! Parabéns! — e numa atitude que não com-binava com o entusiasmo das suas palavras, baixou de novo o olhar para a re-vista. — E porquê um asilo para idosos? — tinha perguntado segundos depois,sem levantar os olhos.— Há muitos anos, tinha eu ainda doze anos, testemunhei uma cena horrí-vel, tendo deixado em mim uma sensação de culpa que o tempo não conseguiuapagar. — Tirei a revista do colo da minha mulher que depositei na mesa ao la-do, e obrigando-a a olhar para mim, prossegui: — Vou contar-te a história.Decorria o último ano da década de oitenta. Luena era uma cidade sitiada.De longe, e de tempos em tempos, ouvia-se o ruído de disparos de metralhado-ras, o barulho da queda de obuses e o rumor da explosão de granadas e minas.E com eles chegavam notícias sobre ataques a colunas militares, comboios, al-

deias, pessoas feridas e mais deslocados ao centro de acolhimento da Delega-ção Provincial dos Assuntos Sociais. Mas no periférico bairro Sinai Velho, a vi-da continuava a correr assim, lenta e quase despreocupada. Um número gran-de da sua população adulta dedicava-se à prática da agricultura em camposque distavam do bairro mais de sete quilómetros. Alguns poucos estavam em-pregues em instituições estatais e privadas, trabalhando na fábrica de panelas,localizada no centro da cidade; na fábrica de tacos, CIMA, um edifício enorme erectangular, que se desenvolvia no sul do bairro; na fábrica de licor e na pada-ria, duas estruturas que circundavam uma das laterais do bairro. Vivia aindano Sinai Velho um homem oriundo do Bié que trabalhava nos Caminhos de Fer-ro de Benguela (CFB).De tanto faltarem às cozinhas, o arroz, o peixe do mar, o sal, o óleo vegetal, afarinha de trigo, o café e o açúcar, as pessoas chegaram ao ponto de considera-rem que passavam muito bem sem esses produtos.As crianças, a maior população do bairro, frequentavam a escola primáriado vizinho Bairro Popular. Outrora, houvera alguns que estudavam na escolado Mandémbwé. Mandémbwé era um outro bairro vizinho, mais evoluído queo Sinai Velho, ostentando muitas casas feitas de tijolo com cobertura de rosali-te, com reboco e pintura. Podiam também ser encontradas no popular bairrocasas com corrente eléctrica.Mas as frequentes brigas entre os meninos do Sinai Velho e os do Mandémbwéque acabavam invariavelmente por se estender para os pais dos pequenos con-tendores, com recurso, da parte dos progenitores dos donos do bairro, a facas, ca-tanas e enxadas, tinham forçado as crianças do Sinai Velho a desistirem da escola.Para chegar à escola do Bairro Popular, os meninos do Sinai Velho tinham depassar pela fábrica de tacos, penetrar na densa floresta de eucaliptos e capimalto, atravessar a via férrea que partindo da estação do CFB seguia para o inte-rior da província, e finalmente seguir por um caminho ladeado por uma mata,menos fechada e de capim alto e verdejante e algumas mangueiras.Com frequência aparecia no Sinai Velho, vindo não se sabia de onde, um ho-mem, quase velho e muito estranho. Era mestiço, de estatura média e caminhavapelas irregularidades dos caminhos estreitos do bairro em passo estugado, man-tendo quase sempre os braços cruzados atrás das costas e o olhar invariavelmen-te preso no chão enquanto mastigava a enorme língua dobrada para o lado, dei-xando correr, noutro canto da boca, um fio de baba. Ninguém sabia dizer se eramaluco ou se tinha algum outro problema. Nunca ninguém o vira proferir palavra.Aparecia barbudo, cabelo tingido de fios brancos caído até aos ombros evestia umas calças largas amarradas à cintura com um fio de barbante e umacamisa demasiada grande para ele sob um pesadíssimo e velho sobretudo. Notempo seco, altura em que a fome apertava, ele recolhia-se para não sabíamosonde para reaparecer, algum tempo depois, limpo e em trajes novos debaixodo velho sobretudo, com a barba feita, o cabelo cortado, exibindo uma cabeçaredonda e umas orelhas pequenas.Sentava-se então debaixo de uma mangueira e depois de olhar em torno co-mo se suspeitasse de qualquer perigo, punha-se a saborear um alimento, ad-quirido não sabíamos de que maneira, que trazia nos enormes bolsos do so-bretudo. Outras vezes instalava-se no canto de uma residência e ficava a ver ascrianças que brincavam ou as mulheres que faziam trabalhos domésticos.Quando alguém lhe dirigia a palavra, ele respondia com um sorriso que lhe fa-zia brilhar os olhos de amendoim, mas logo depois baixava o rosto como queenvergonhado. Todas as vezes que alguém lhe ofereceu um prato de comida,ele recusou. Isso fazia-nos imensa confusão, a nós rapaziada, que o alcunhára-mos de Tchiniangueiro.Largamente temido pelas crianças de tenra idade que se punham a chorarlogo que o viam, a nós adolescentes acabava por nos proporcionar o confortoque o encontro com um adulto conhecido concede num lugar distante de casa,quando, por exemplo, o encontrávamos na floresta de mangueira a norte do

O TCHINIANGUEIRO“Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da

terra; (...); a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do género humano.”

John Donne

Sombras (VAN)

CONTO DE SÓNIA GOMES

14 | BARRA DO KWANZA 4 a 17 de Janeiro de 2016 | Cultura

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BARRA DO KWANZA| 15Cultura | 4 a 17 de Janeiro de 2016bairro ou na floresta de eucaliptos. Era pois para lá que nos dirigíamos cons-tantemente para fazer necessidades maiores e, algumas vezes, para andar acaça de pássaros, ratos, grilos e toupeiras. E também para trepar às árvoresno tempo da manga.Especulava-se muito sobre a vida do homem. Os moradores mais antigosdo bairro diziam que já cá andava no tempo colonial e com aquele aspecto. Ahistória mais espantosa era a que dizia que ele teria morrido ainda muito jo-vem. Mas como o homem tinha sob seus cuidados muitos irmãos mais novos,Deus recambiara-o à vida.A partir de determinada altura, mesmo que o não víssemos, sentíamos asua presença por todo o lado, de tal modo nos habituáramos aquele homem.

IITinha chovido toda a manhã. As águas tinham-se acumulado em pequenoscharcos nas esquinas das estreitas ruas que invariavelmente marcavam fron-teiras entre os enormes espaços de terrenos vazios à volta das casas onde naestação chuvosa se fazia a cultura do milho e do feijão. O bairro estava em si-lêncio. Do tecto da maioria das cozinhas, em grande número feitas de blocosde areia e com tectos de capim pontiagudos, funcionando num espaço inde-pendente da casa, subiam os rastos de um fumo azul em direcção ao céu aindacarregado de nuvens.Mal abriu o sol, por volta das três da tarde, a maior parte das crianças aban-donou o aconchego das fogueiras e correu para o único campo vazio do SinaiVelho. O espaço, rectangular, cercado, por três lados, por casas, abrindo oquarto lado para a floresta de eucaliptos, era para lá onde a rapaziada se diri-gia nos tempos livres para, os mais crescidos, jogarem futebol, e os mais pe-quenos, brincarem ao “cotcha” e ao jogo de malha.Eu, porém, permaneci sentado na cubata do meu avô colada a um canto danossa casa. E olhando para ele através das enormes línguas de fogo da foguei-ra feita com pesados troncos no centro da cozinha e que nos separava um dooutro, eu ouvia uma história, já tantas vezes contada por ele, com o entusias-mo da primeira vez. Logo que a história chegou ao fim, ergui-me e abandoneio cubículo saturado de fumo.Mas estando três a passos afastado da casa do meu avô, imobilizei-me e pusas mãos na cintura. Olhei por sobre os ombros para a porta da casa do velho eno enlevo de brilhante ideia, atravessei um enorme espaço vazio e dirigi-me àlavra de milho e feijão que germinava em frente à nossa casa. Vagueei entre osintervalos dos lombos dos socalcos, sentindo nos braços nus os cortes suavesdas longas folhas de um verde-claro cujas extremidades encurvadas pesavamcom as gotas de água. Apanhei algumas maçarocas que deixei com o meu avôantes de partir, seguindo uma direcção totalmente oposta a do campo.Descendo por um caminho íngreme, no terreno meio acidentado, semeadode mangueiras e de um capim verde, do bairro para a estrada de alcatrão queligava o Aeroporto à cidade, marcando os limites de Sinai Velho de uma dassuas laterais, inspirei profundamente o cheiro característico da chuva — daareia molhada, do milho a ser assado às fogueiras acesas em muitas cozinhas.— Senti na cara uma brisa ligeira sob o sol meio tímido.Caminhava agora em passo lento, evitando as poças de água formadas, noespaço de terra empapada pela chuva entre a mata de mangueiras e o alca-trão. As folhas das mangueiras que ladeavam a estrada, no lado do bairro con-tinuavam a desprender pingos de chuva.Nada se ouvia a não ser o suave ruído do rio de água lamacenta que, proce-dendo da Carreira de Tiros, deslizava no estreito carreiro cavado pelo desli-zar constante da água ao longo da base da encosta. Sentia-me tranquilo ape-sar de me encontrar tão só num raio de muitos metros. Soprou um vento forteque trouxe até mim o odor das árvores de acácias rubras que bordejavam aestrada do lado da fábrica de licor e da padaria. Vagueando o olhar à minha volta, ouvi de súbito o ruído de vozes da rapa-ziada vindo do campo de futebol.Atravessei a estrada e pus-me a andar rente aos muros brancos que sepa-ravam, primeiro a fábrica de licor e, depois, a padaria, de um passeio de ci-mento já quase inexistente. Deparei-me com um tufo de margaridas aindaborrifadas com a água da chuva e, como que movido por uma força qualquer,ajoelhei-me diante delas. Quando ia estender a mão para arrancar uma flor,ergueu-se uma linda borboleta que se pôs a voar de um tufo de margaridaspara outro de modo tão lento que parecia convidar-me a segui-la. E eu segui-a, movendo-me de cócoras.Um camião militar vindo do aeroporto passou a toda a velocidade na estra-da estreita a espalhar um som ensurdecedor enquanto cuspia uma grande nu-vem de fumo. O meu olhar, esquecido da simpática borboleta, permaneceupreso na estrada e quando se apresentou, como que tendo surgido do nevoei-ro deixado pelo SCANIA, diante dos meus olhos, a figura do velho do sobretudopesado, estremeci. Parado noutro lado da estrada, contra um fundo verde, sal-picado de pontos castanhos, ele parecia estar a olhar para mim. Tinha o cabeloensopado e as roupas molhadas. Pela primeira vez, fiquei um instante com a

respiração suspensa diante de semelhante visão, e como para me libertar da-quela inesperada reacção, sacudi a cabeça. E quando voltei a fixar o olhar nohomem, tinha-se juntado, como num passe de magia, à volta do velho um ban-do de rapazes. Eu os conhecia, eram do Mandémbwé. Encontrava-os sempre avagabundear, pelas florestas que rodeavam o nosso bairro. Todos eles tinhamas roupas molhadas e sujas de lama. E assim, sem nenhuma razão, e conformeo seu costume, começaram, exibindo semblantes hostis, a zombar o velho:— Tchiniangueirooo! Tchiniangueirooo! Tchiniangueirooo!Agora, o homem olhava para eles com aqueles seus olhos de uma benevolên-cia boba. Mas de repente, um dos rapazes posicionou-se e pontapeou o traseirodo velho. Impelido pela força do chute, ele deu dois passos para diante e cru-zando as mãos sobre as próprias nádegas, pôs se a rir. E logo, um outro rapaz,arregaçando as mangas de uma camisa rota, pegou numa pedra e atirou-a aohomem. A pedra atingiu o lado direito do peito do velho. Eu ergui-me num salto.Mas o velho que não se movera e cujo rosto não esboçara nenhuma reacção deprotesto contra a dor continuava a olhar para eles com o seu sorriso bobo.A nova vaga de rumor da rapaziada no campo abrandou o receio ardenteque crescia no meu coração.O segundo rapaz atirou outra pedra que atingiu o homem no mesmo lugar.Eu cerrei os punhos, porém, no rosto do velho o sorriso persistia. Pensei en-tão que o homem não manifestava nenhuma reacção àquela inexplicávelagressão simplesmente porque as pedras não podiam machucar o seu corpo,protegido como estava pelas pesadíssimas roupas.A minha visão da terrível cena foi, por segundos, interrompida por um ou-tro automóvel que passou a toda a velocidade pela estrada, desta vez seguin-do para o aeroporto.Uma terceira pedra cortou o ar frio e atingiu com muita força o lado es-querdo do peito do homem. A mão enrugada voou para o lugar atingido e oantigo brilho no olhar velho apagou-se, instalando-se no seu lugar um olharcarregado de suspeita, de medo e tristeza. Quando lhe foi atirada a quarta pe-dra, que atingiu o lado direito da face, ele olhou à volta com a desorientaçãodo indivíduo que de repente se descobre numa terra estranha.Uma rajada de vento sacudiu a árvore debaixo da qual me encontrava esenti as acácias caírem sobre a minha cabeça e ombros. Perdi o controlo, euma vontade de fazer alguma coisa pelo infeliz ergueu-se gigante no meu pei-to. Mas no lugar de gritar por socorro, agarrei-me ao tronco da árvore dasacácias. Senti um misto de pena, revolta e medo.Estava possuído de uma enorme vontade de enfrentar aquele bando, re-freada, porém, pelo receio de conhecer a sorte do velho. Colei-me ainda maisao tronco da pequena e velha árvore e cerrei os olhos. Algum tempo depois,percebendo o rumor de vozes dos rapazes maus já distante, descerrei-os. Ohomem estava caído no chão. Olhei para o lado, os rapazes tinham desapare-cido numa curva. Quando me aproximei do agredido, apanhei um choquediante da horrível imagem: tombado de costas num charco, tinha o rosto con-torcido de dor, o nariz quebrado, a testa ferida e da boca meio aberta escorriaum fio de sangue. Corri para o bairro para chamar pelos mais velhos.Dois dias depois, eu e mais dois amigos fomos visitá-lo ao hospital para ondetinha sido conduzido e que ficava mesmo no caminho que nos levava do SinaiVelho para a cidade. A mulher de uniforme branco que nos olhou com imensocarinho, informou-nos que o Tchiniangueiro tinha morrido naquela manhã. Baixei os olhos e fixei os meus pés, descalços e cobertos de poeira. Deveriater corrido para o bairro a busca de ajuda logo que os rapazes do Mandémb-wé começaram a insultar o velho. Acusei-me.Luanda, Junho - Julho de 2011.

LUANDA (panorâmica de Dá Mesquita)

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