377_antropologia e nutriçao um diálogo possível ana maria canesqui rosa wanda diez garcia...

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  • Antropologia e Nutrio: um dilogo possvel Antropologia e Nutrio: um dilogo possvel contm um conjunto de importantes textos cuidadosamente organizados por Ana Maria Canesqui e Rosa Wanda Diez Garcia. No existe na literatura brasileira atual uma obra de to largo alcance, de tamanha importncia terica e que exprima tanta reflexo, unindo questes sociais, da sade e da nutrio e questionando os pressupostos biologistas da alimentao. O livro se compe de trs partes, absolutamente essenciais para se obter um olhar integrado. Na primeira parte h uma ampla reviso bibliogrfica. Na segunda, abordam-se os paradoxos e repercusses, na cultura alimentar, das transformaes sociais e da internacionalizao da economia, das tecnologias, das finanas, do consumo e da produo cultural em escala mundial no contexto da globalizao. A terceira parte dedica-se alimentao tal como ela se configura hoje nos diferentes espaos, privados e pblicos, dos contextos urbanos e diante das transformaes sociais ocorridas no pas nos ltimos 35 anos. Os autores apresentam, logo de incio, as balizas da reflexo: comidas tm histrias sociais, econmicas e simblicas complexas, e o gosto do ser humano pelas substncias no inato. Eles evidenciam a imbricao entre produtos materiais, interesses econmicos, poderes polticos, necessidades nutricionais e significados cul-

  • Antropologia e Nutrio: um dilogo possvel

  • FUNDAO OSWALDO CRUZ Presidente Paulo Marchiori Buss Vice-Presidente de Ensino, Informao e Comunicao Maria do Carmo Leal EDITORA FIOCRUZ Coordenadora Maria do Carmo Leal Conselho Editorial Carla Macedo Martins Carlos E. A. Coimbra Jr. Charles Pessanha Gilberto Hochman Jaime L. Benchimol Jos da Rocha Carvalheiro Jos Rodrigues Coura Luis David Castiel Luiz Fernando Ferreira Maria Ceclia de Souza Minayo Miriam Struchiner Paulo Amarante Vanize Macdo Coordenador Executivo Joo Carlos Canossa R Mendes _______________________________ COLEO ANTROPOLOGIA E SADE Editores Responsveis: Carlos E. A. Coimbra Jr. Maria Cecilia de Souza Minayo

  • Antropologia e Nutrio: um dilogo possvel Ana Maria Canesqui Rosa Wanda Diez Garcia organizadoras

  • Copyright 2005 dos autores Todos os direitos desta edio reservados FUNDAO OSWALDO CRUZ / EDITORA

    ISBN: 85-7541-055-5

    Projeto Grfico Anglica Mello Editorao Eletrnica Carlota Rios Capa Danowski Design Ilustrao da Capa A partir de desenho de Hans Arp, Torso With Flower Head, 1924 Reviso e Copidesque Irene Ernest Dias Jorge Moutinho

    Catalogao-na-fonte Centro de Informao Cientfica e Tecnolgica Biblioteca da Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca C221a Canesqui, Ana Maria (org.)

    Antropologia e nutrio: um dilogo possvel. / organizado por Ana Maria Canesqui e Rosa Wanda Diez Garcia. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005. 306p. (Coleo Antropologia e Sade)

    1. Antropologia Cultural 2. Hbitos Alimentares 1. Diez Garcia, Rosa Wanda (org.) II. Ttulo

    CDD - 20.ed. - 363.8

    2005 Editora Fiocruz Av. Brasil, 4036 Trreo sala 112 Manguinhos 21040-361 Rio de Janeiro RJ Tels: (21) 3882-9039 e 3882-9041 Fax: (21) 3882-9006 e-mail: [email protected] http//:www.fiocruz.br/editora

  • AUTORES Ana Maria Canesqui Doutora em cincias e livre-docente em cincias sociais aplicadas medicina; professora colaboradora do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade Estadual de Campinas. Autora de diversas coletneas e artigos na rea das cincias sociais em sade, antropologia da alimentao e da sade. Publicou as coletneas Cincias Sociais e Sade para o Ensino Mdico (2000), Cincias Sociais e Sade (1997) e Dilemas e Desafios das Cincias Sociais na Sade Coletiva (1995). Carmem Slvia Morais Rial Antroploga, professora doutora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Publicou artigos nas reas de antropologia urbana, antropologia audiovisual, globalizao cultural e estudos de mdia, antropologia alimentar, etnias e gnero. Grard Maes Diretor honorrio dos Hospitais Civis de Lyon, Frana. O autor tem vrias contribuies sobre a alimentao hospitalar. Publicou o livro Les 40Ans de la Mutuelle Nationale des Hospitaliers et des Personnels de Sant (2001). Jean-Pierre Corbeau Socilogo, professor de sociologia do consumo e da alimentao na Universidade de Tours, Frana. especialista em sociologia e antropologia da alimentao, com vrios artigos publicados sobre prticas alimentares, cultura e alimentao. Co-autor com Jean Pierre Poulain do livro Penser lAlimentation: entre imaginaire et rationalit (2002). Jess Contreras Hernndez Antroplogo, catedrtico de antropologia social da Universidade de Barcelona, Espanha. Autor de vrios artigos e livros, destacando-se entre os ltimos Alimentao e Cultura: necesidades, gustos y costumbres (1995), Antropologa de la Alimentacin (1992), Antropologa de los Pueblos de Espaa (1991), Brbaros, Paganos, Salvajes y Primitivos: una introducin a la antropologia (1987) e Subsistencia, Ritual y Poder en los Andes (1986). Jungia Maria Pimentel Daniel

  • Antroploga, professora doutora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paran.

  • Mabel Gracia Arnaiz Antroploga, professora titular do Departamento de Antropologia Social e Filosofia da Universidade Rovira e Virgili, Tarragona, Espanha. Entre suas numerosas publicaes sobre alimentao, destacam-se os livros Somos lo que Comemos (2002), Paradojas de la Alimentacin Contempornea (1996) e La Transformacin de la Cultura Alimentaria: cambios y permanncias en un contexto urbano (1997). Maria Eunice Maciel Antroploga e professora doutora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenou o Grupo de Trabalho de Comida e Simbolismo da Associao Brasileira de Antropologia e tem vrios artigos publicados sobre cultura e alimentao. Norton F. Corra Antroplogo e professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranho. Autor de vrios artigos sobre religies afro-brasileiras. Rosa Wanda Diez Garcia Nutricionista, doutora e professora do Curso de Nutrio e Metabolismo da Faculdade de Medicina de Ribeiro Preto da Universidade de So Paulo e ex-professora da Faculdade de Nutrio da Pontifcia Universidade Catlica de Campinas. autora de vrios artigos publicados sobre representaes e prticas da alimentao no contexto urbano. Slvia Carrasco i Pons Antroploga, professora titular do Departamento de Antropologia Social e Pr-Histria da Universidade Autnoma de Barcelona, com publicaes na rea de antropologia da alimentao, migraes e programas multiculturais de educao. Publicou o livro Antropologia y Alimentaci: uma proposta per lestudi de la cultura alimentaria (1992). Veraluz Zicarelli Cravo Antroploga, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paran.

  • SUMRIO Uma Introduo Reflexo sobre a Abordagem Sociocultural da Alimentao..... 9

    Ana Maria Canesqui Rosa Wanda Diez Garcia

    I - Olhares Antropolgicos sobre a Alimentao

    1. Comentrios sobre os Estudos Antropolgicos da alimentao........................... 23

    Ana Maria Canesqui

    2. Identidade Cultural e Alimentao....................................................................... 49

    Maria Eunice Maciel

    3. O Valor Social e Cultural da Alimentao........................................................... 57

    Jungla Maria Pimentel Daniel Veraluz Zicarelli Cravo

    4. A Cozinha a Base da Religio: a culinria ritual no batuque do Rio Grande do Sul........................................................................................................................

    69

    Norton F Corra

    5. Brasil: primeiros escritos sobre comida e identidade........................................... 87

    Carmem Slvia Morais Rial

    6. Pontos de Partida Terico-metodolgicos para o Estudo Sociocultural da Alimentao em um Contexto de Transformao....................................................

    101

    Slvia Carrasco i Pons

  • II - Mudanas Econmicas e Socioculturais e o Sistema Alimentar

    7. Patrimnio e Globalizao: o caso das culturas alimentares.................................... 129Jess Contreras Hernndez

    8. Em direo a uma Nova Ordem Alimentar? ........................................................... 147Mabel Gracia Arnaiz

    III - A Alimentao nos Espaos Privado e Pblico

    9. Mudanas e Permanncias da Prtica Alimentar Cotidiana de Famlias de Trabalhadores................................................................................................................ 167

    Ana Maria Canesqui

    10. Alimentao e Sade nas Representaes e Prticas Alimentares do Comensal Urbano.............................. ........................................................................................... 211

    Rosa Wanda Diez Garcia

    11. Alimentar-se no Hospital: as dimenses ocultas da comensalidade.......................... 227Jean-Pierre Corbeau

    12. A Sopa no Hospital: testemunho ........................................................................... 239Grard Mes

    IV - Dilogos das Cincias Humanas com a Nutrio

    13. Cincias Sociais e Humanas nos Cursos de Nutrio............................................ 255Ana Maria Canesqui Rosa Wanda Diez Garcia

    14. A Antropologia Aplicada s Diferentes reas da Nutrio................................... 275Rosa Wanda Diez Garcia

    15. Aplicaes da Antropologia Alimentao: algumas propostas .......................... 287Mabel Garcia Arnaiz

  • 9

    UMA INTRODUO REFLEXO SOBRE A ABORDAGEM SOCIOCULTURAL DA ALIMENTAO

    Ana Maria Canesqui

    Rosa Manda Diez Garcia

    Esta coletnea rene pesquisas e reflexes que elucidam mltiplos entendimentos antropolgicos sobre a alimentao como fenmeno sociocultural historicamente derivado. Sendo a alimentao imprescindvel para a vida e a sobrevivncia humanas, como necessidade bsica e vital, ela necessariamente modelada pela cultura e sofre os efeitos da organizao da sociedade, no comportando a sua abordagem olhares unilaterais.

    No comemos apenas quantidades de nutrientes e calorias para manter o funcionamento corporal em nvel adequado, pois h muito tempo os antroplogos afirmam que o comer envolve seleo, escolhas, ocasies e rituais, imbrica-se com a sociabilidade, com idias e significados, com as interpretaes de experincias e situaes. Para serem comidos, ou comestveis, os alimentos precisam ser elegveis, preferidos, selecionados e preparados ou processados pela culinria, e tudo isso matria cultural.

    Recentemente, Claude Fischler (1990) disse que, pelo fato de sermos onvoros, a incorporao da comida sempre um ato com significados, fundamental ao senso de identidade. Se as tcnicas, as disponibilidades de recursos do meio, a organizao da produo/distribuio na sociedade moderna imprimem as possibilidades, cada vez mais ampliadas, de produzir e consumir alimentos, cabe cultura definir o que ou no comida, prescrever as permisses e interdies alimentares, o que adequado ou no, moldar o gosto, os modos de consumir e a prpria comensalidade.

    As escolhas alimentares no se fazem apenas com os alimentos mais nutritivos, segundo a classificao da moderna nutrio, ou somente com os mais acessveis e intensivamente ofertados pela produo massificada. Apesar das presses forjadas pelo setor produtivo, como um dos mecanismos que in-

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    terferem nas decises dos consumidores, a cultura, em um sentido mais amplo, molda a seleo alimentar, impondo as normas que prescrevem, probem ou permitem o que comer.

    As escolhas alimentares tambm so inculcadas muito cedo, desde a infncia, pelas sensaes tteis, gustativas e olfativas sobre o que se come, tornando-se pouco permeveis completa homogeneizao imposta pela produo e pela distribuio massificadas. As anlises sociolgicas do consumo, que fazem uma interlocuo com a cultura e tambm se preocupam com as escolhas alimentares, mostraram as contradies da cultura mercantilizada: a persistncia das diferenas nas estruturas do consumo entre grupos de renda, classe, gnero e estgio de vida, bem como a indissoluo dos constrangimentos materiais e das idiossincrasias individuais.

    Novidade e tradio; sade e indulgncia; economia e extravagncia; convenincia e cuidado nos termos de Alan Warde (1997) so as principais antinomias das modernas e contraditrias recomendaes que procuram guiar a seleo dos alimentos e os hbitos alimentares nos contextos sociais do capitalismo avanado, que se veiculam acompanhadas por um tom moral. Da mesma forma, ao analisar os contedos das mensagens publicitrias, desde a dcada de 60 at 1990, na Espanha, Mabel Gracia Arnaiz (1996) destaca os vrios discursos: a tradio/identidade; o mdico nutricional; o esttico; o hedonista; o do progresso e da modernidade; do extico e da diferena. Entrecruzam-se, por um lado, os consumos, as prticas e os valores que permeiam os comportamentos alimentares, e por outro os discursos publicitrios. Ambos se reforam e so impulsionados reciprocamente, diante da ampliao das oportunidades de eleio alimentar que se mostram simultaneamente plurais e contraditrias, especialmente nas sociedades capitalistas europias que ainda convivem, tanto quanto as latino-americanas, com as diferenas sociais no consumo, sem serem homogneas.

    A comida foi e ainda um captulo vital na histria do capitalismo. Muito antes dos dias de hoje, o capitalismo procurou por toda parte transformar os antigos desejos por novos meios. As comidas tm histrias sociais, econmicas e simblicas complexas, diz Sidney Wilfred Mintz (2001), e o gosto do ser humano pelas substncias no inato, forjando-se no tempo e entre os interesses econmicos, os poderes polticos, as necessidades nutricionais e os significados culturais.

    Ao estudar o acar, esse autor levou em considerao a sua histria social, ressaltando que antes de esse produto ter chegado mesa do operariado industrial emergente do sculo XIX, na Inglaterra, teve lugar na farmacopia

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    medieval, da mesma forma que o tomate, vindo das Amricas, foi tambm recusado pelos ingleses durante o sculo XVIII por acreditarem ser ele prejudicial sade (Wilson, 1973). O gosto e o paladar, em vez de se naturalizarem, so portanto cultivados no emaranhado da histria, da economia, da poltica e da prpria cultura.

    Sob um outro olhar e mantendo a perspectiva de longo alcance, Fischler (1990) ainda nos fala do paradoxo do onvoro que resulta na sua ansiedade permanente: a necessidade da diversidade alimentar, de variedade, inovao, explorao e mudana para sobreviver, que convive com a conservao no comer, sendo cada alimento desconhecido visto como potencialmente perigoso. O prprio sistema culinrio foi visto por Paul Rozin (1976) como um produto cultural resultante do paradoxo do onvoro ao trazer um conjunto de sabores peculiares cozinha de uma dada regio, propiciando familiaridade e diversidade de alimentos.

    A nfase na insero da alimentao no sistema cultural como portadora de significados que podem ser lidos e decifrados como cdigo tem minimizado os fatores materiais e hierrquicos, preocupando-se mais com a continuidade e menos com as mudanas, sendo que o foco na totalidade descuida da diferena. Por essa razo, Jack Goody (1995) sugeriu que os esforos de isolar o cultural, levando-o a submergir exclusivamente no sistema simblico e significante, levam a supor a unidade cultural, o que impede referncias s diferenciaes internas, s influncias socioculturais externas, aos fatores histricos e aos elementos materiais.

    O fato de a comida e o ato de comer serem prenhes de significados no leva a esquecer que tambm comemos por necessidade vital e conforme o meio e a sociedade em que vivemos, a forma como ela se organiza e se estrutura, produz e distribui os alimentos. Comemos tambm de acordo com a distribuio da riqueza na sociedade, os grupos e classes de pertencimento, marcados por diferenas, hierarquias, estilos e modos de comer, atravessados por representaes coletivas, imaginrios e crenas.

    A antropologia se interessou tradicionalmente pelas crenas e pelos costumes alimentares dos povos primitivos, pelos aspectos religiosos em torno dos tabus, totemismo e comunho; pelas preferncias e repulsas alimentares, pelos rituais sagrados ou profanos que acompanham a comensalidade, pelo simbolismo da comida, pelas classificaes alimentares, alm de muitos outros aspectos. Recentemente, vem se interessando pelas cozinhas e pela culinria, que trazem a marca da cultura. As cozinhas e as artes culinrias guardam histrias, tradies, tecnologias, procedimentos e ingredientes submersos em sistemas

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    socioeconmicos, ecolgicos e culturais complexos, cujas marcas territoriais, regionais ou de classe lhes conferem especificidade, alm de alimentarem identidades sociais ou nacionais.

    Como espao habitualmente reservado s mulheres, mais do que aos homens, a culinria imbrica-se no sistema de diviso e estratificao do trabalho, embora os chefs e os famosos cozinheiros sejam antigos personagens dos servios pessoais de nobres, papas, da burguesia e das elites em geral, que se transformaram ao longo do tempo em novas figuras especializadas da gastronomia mercantilizada em torno de restaurantes sofisticados ou de outros servios alimentares.

    O resgate da gastronomia e da culinria tem suscitado maior interesse no contexto da globalizao, no sendo casual, mais recentemente, a recuperao das tradies culinrias, de publicaes a respeito entre as quais aquelas que enfatizam a antropologia da alimentao ou a histria da alimentao e dos costumes alimentares. As atuais reedies de Gilberto Freyre (1997) e de Cmara Cascudo (1983), entre outros autores, mostram o interesse nessa temtica, assim como a criao de grupos de trabalho sobre simbolismo e comida nas reunies da Associao Brasileira de Antropologia, ao lado dos debates em mesas-redondas, nos congressos de nutrio.

    Um largo espectro de questes associadas alimentao poderia ainda ser explorado nesta breve introduo, embora as consideraes tecidas a respeito nos paream suficientes para argumentar a favor de sua abordagem sociocultural que, certamente, se aprofunda e se completa na leitura dos vrios artigos apresentados pelos autores componentes desta coletnea. Apesar da heterogeneidade dos enfoques na abordagem da alimentao como matria cultural, sob os olhares diferenciados de antroplogos, socilogos e nutricionistas, que comungam a importncia de abord-la dessa maneira, espera-se que esta coletnea proporcione aos profissionais da sade, aos cientistas sociais, aos estudiosos, professores e interessados na alimentao humana uma compreenso do quanto ela tributria da cultura.

    O paradigma biolgico da nutrio fez uma interlocuo com as cincias sociais na qual a cultura, o econmico e o social se reduzem a fatores ou variveis sobrepostos a uma viso biologizante das doenas e da prpria desnutrio, agregando-os s anlises, que no abalaram a estrutura do seu entendimento. Esses estudos e iniciativas contriburam para a multidisciplinaridade sem, no entanto, ter se constitudo uma abordagem capaz de recriar novas perspectivas de leituras e compreenso dos problemas alimentares e nutricionais com os quais a nutrio se preocupa.

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    Geralmente, esto marginalizadas da formao dos nutricionistas a importncia da antropologia e as leituras sociolgicas sobre a alimentao. Decerto a vertente social da nutrio, inaugurada por Josu de Castro, abriu flancos, no passado, para analisar a fome, os seus efeitos e criar uma agenda para as intervenes de polticas nutricionais e alimentares governamentais que, embora transformadas em sua formulao e implementao no quadro das polticas sociais, ainda se mantm.

    Apesar de menos agudas atualmente em relao s dcadas imediatas aps a Segunda Guerra Mundial, pobreza, misria e fome ainda convivem ao lado da maior abundncia alimentar, que traz outros problemas nutricionais como a obesidade e as doenas associadas, assim como os distrbios do comportamento alimentar (a bulimia e a anorexia, por exemplo), fortemente ligados imagem corporal e que convivem no quadro das desigualdades sociais e epidemiolgicas reinantes em nossa sociedade. O entendimento restrito da cultura, carimbado geralmente com termos como irracionalidades a serem removidas por intervenes que se crem racionais ou cientficas, no concede espao s diferenas e s diversidades culturais que marcam a nossa sociedade.

    A primeira parte desta coletnea inicia-se com um artigo de reviso bibliogrfica, feita por Ana Maria Canesqui, sobre os estudos socioantropolgicos sobre a alimentao realizados no Brasil, percorrendo as dcadas passadas e a corrente. Discutem-se temas, conceitos e enfoques terico-metodolgicos adotados por diferentes autores, espelhando a multiplicidade de paradigmas que convivem entre si na abordagem de um conjunto de assuntos que foram pesquisados, tais como hbitos e ideologias alimentares; produo, acesso, prticas de consumo e ideologia; organizao da famlia, sobrevivncia e prticas de consumo alimentar; alimentao, corpo, sade e doena; comida, simbolismo e identidade e representaes sobre o natural.

    Maria Eunice Maciel destaca as cozinhas, simultaneamente, como expresses das tradies e construes histrico-culturais. As cozinhas no se resumem aos seus pratos e ingredientes emblemticos ou especficos; a partir da leitura da comida como linguagem, a autora assinala que a cozinha capaz de comunicar as identidades de grupos sociais, tnicos e religiosos; das regies e de seus habitantes ou da prpria nacionalidade. Assim, escreve a autora, o prato serve para nutrir o corpo, mas tambm sinaliza um pertencimento, servido como um cdigo de reconhecimento social.

    Jungla Maria Pimentel Daniel e Veraluz Zicarelli Cravo, por sua vez, elucidam a diversidade das sociedades humanas (tribais, camponesas e capita-

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    listas), as regras e as relaes sociais imbricadas com o aspecto simblico que permeiam a produo, a distribuio e a comensalidade. Elas tambm percorrem um conjunto de estudos etnogrficos nacionais, que muito bem expressam a marca das contribuies antropolgicas, pelo menos em um dado momento do desenvolvimento das pesquisas.

    Norton Corra nos fala da culinria ritual do batuque no Rio Grande do Sul. Alm de servir para demarcar territrios regionais, sociais e diferenas identitrias, os alimentos servidos ritualmente no contexto daquele culto religioso abastecem os vivos, os mortos ou as divindades, inscrevendo-se nas relaes sociais. Corra mostra que a cozinha, como base da religio, constitui fundamentalmente a essncia e a existncia do prprio batuque.

    Carmem Slvia Morais Rial percorre os relatos dos viajantes e suas interpretaes sobre os costumes alimentares; as espcies vegetais e animais comestveis; o seu preparo; os sabores, odores e os paladares observados; os modos de comer e beber, assim como o canibalismo, juntamente com mudanas e introdues de novos alimentos, mediante o contato com os colonizadores. Ela no se interessa apenas pelos relatos em si mesmos, mas neles l a interpretao que traziam sobre a nossa identidade, que a comida dos outros, em sentido geral, foi capaz de expressar, despertando reaes naqueles que a observaram e comentaram com seus olhares de europeus.

    Slvia Carrasco i Pons, adotando a perspectiva socioantropolgica, sugere que sejam abordados os comportamentos e as experincias alimentares como meios de reconstituir os sistemas alimentares, expostos a um conjunto de transformaes, num mundo globalizado e desigual quanto distribuio da riqueza. Esse sistema sofre, a seu ver, um conjunto de influncias, s quais se expem as economias tradicionais com escassez crnica de alimentos e crise de disponibilidade alimentar, passando pelas mudanas tecnolgicas e ecolgicas na produo de alimentos, por intervenes sociossanitrias induzidas pelos programas de ajuda internacional e submetidas aos processos de industrializao, urbanizao e migrao. Ela lembra tambm, entre as mudanas recentes dos sistemas alimentares, a crise da alimentao nos pases desenvolvidos, ou seja, a gastro-anomia, apontada por Claude Fischler (1990). O desenho detalhado de uma proposta para o estudo sociocultural da alimentao elucida o seu ponto de vista sobre a reconstruo do sistema alimentar, como componente da cultura que serve de guia para um trabalho de campo de natureza antropolgica com intenes comparativas e interculturais. A autora pe entre parnteses a feitura de uma etnografia da nutrio, propondo antropologia a compreenso e a anlise das propriedades social e material da alimentao e dos processos sociais e

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    culturais e no dos alimentos, per si, ou dos processos metablicos, postos pela biomedicina e pela nutrio.

    Na segunda parte, os autores aprofundam a reflexo sobre os paradoxos e as repercusses, na cultura alimentar, das transformaes e da internacionalizao da economia, das tecnologias, das finanas, da produo cultural em escala mundial e do consumo no contexto da globalizao. Trata-se de um processo que comporta a heterogeneidade e a fragmentao, no sendo homogneo, como parte da literatura sobre a globalizao sugere. Os artigos de Jess Contreras Hernndez e de Mabel Gracia Arnaiz admitem, por um lado, os efeitos relativamente homogeneizantes e positivos da globalizao sobre a maior afluncia alimentar, assim como a massificao do consumo e a maior acessibilidade alimentar, nos pases industrializados, movidos pelo novo ciclo econmico do capitalismo, concentrador dos negcios e altamente especializado nas redes de produo, distribuio e consumo. Por outro lado, refletem sobre a gerao e a preservao de vrias contradies.

    Contreras nos fala, entre aquelas mudanas, na defasagem entre as representaes alimentares dos consumidores e os ritmos e a velocidade das inovaes e tecnologias; do sistema de produo e distribuio dos alimentos em escala industrial, diante dos quais os consumidores permanecem desconfiados, inseguros e insatisfeitos. Reflete tambm sobre a importncia das polticas culturais que tornam as cozinhas e suas tradies objetos de patrimnio, criticando, todavia, os seus usos ideolgicos e mercantis por meio da difuso e da revalorizao descontextualizada de certas cozinhas regionais, locais e nacionais. Se a antropologia sempre se interessou pelas diversidades e diferenas, prestando ateno s relaes sociais e s formas culturais criadas pelas distintas sociedades, sugere o autor que indaguemos sobre as diferenas e os ritmos do processo de tornar objetos de patrimnio as vrias tradies culturais alimentares nos diferentes pases; sobre os agentes proponentes, seus propsitos e as caractersticas que assumem em cada pas.

    Mabel Gracia Arnaiz bastante enftica ao tratar da persistncia, na afluncia alimentar, das desigualdades sociais no acesso; das diferenas do consumo, segundo a bagagem sociocultural dos vrios grupos sociais; da grande variabilidade da oferta alimentar, questionando a homogeneizao e reafirmando a existncia dos particularismos locais e regionais, no destrudos pelo processo de globalizao. Para a autora, a abundncia alimentar convive com: 1) a magreza rigorosa, como um novo padro da esttica corporal produzido por e para certos setores sociais; 2) a segurana e a insegurana alimentares, ou seja, os riscos reais e subjetivos; 3) os novos produtos comestveis no-

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    identificados; 4) a destruio da alimentao tradicional, dos seus ciclos e ritmos e 5) a maior vulnerabilidade de muitos grupos sociais e dos pases empobrecidos. Segundo ela, a antropologia da alimentao move-se num espao que lhe permite descrever e analisar as mudanas da ordem social e contribuir simultaneamente para melhorar a qualidade de vida e sade das pessoas, reduzir as desigualdades sociais, evitar discriminaes, preservar o meio ambiente, a biodiversidade, mantendo as identidades.

    Na terceira parte, transpe-se a alimentao para os diferentes espaos privados e pblicos nos contextos urbanos. Ana Maria Canesqui apresenta um estudo comparativo sobre a prtica alimentar cotidiana no mbito domstico, realizado em dois perodos e conjunturas macroeconmicas distintas (1970 e 2002) entre segmentos de famlias trabalhadoras urbanas que haviam migrado do campo para a cidade, no incio da dcada de 70, quando elas foram primeiramente estudadas, e numa segunda vez, aps decorridos 30 anos de experincia e insero na cidade. A autora enfoca os grupos domsticos, caracterizando-os segundo a sua composio, formas de insero no mercado de trabalho, ciclo de vida e diviso sexual dos papis familiares, atentando para o modo como se organiza e se estrutura a prtica alimentar cotidiana (proviso, preparo, distribuio e consumo final dos alimentos), indagando sobre as suas mudanas e permanncias naquele espao de tempo e entre duas geraes. Valendo-se da etnografia, possibilita compreender representaes e aes sobre os usos e o modo de consumo dos alimentos conformando um dado estilo de consumo que evidenciam outras lgicas que devem ser compreendidas pelos profissionais da sade. O estudo de corte qualitativo ultrapassa os de tipo oramentrio sobre o consumo, que geralmente constatam transformaes no padro alimentar nas ltimas dcadas, justificadas apenas pela renda e pela escolaridade, sem considerarem a complexidade das prticas alimentares que, alm do acesso ao consumo, comportam valores, identidades, aprendizagem, escolhas e gostos alimentares, conformados no modo de vida e permeados por vrias ambigidades, que denotam simultaneamente tradies e mudanas.

    Rosa Wanda Diez Garcia relata pesquisa sobre as representaes da alimentao de funcionrios pblicos com ocupaes administrativas que trabalhavam no centro da cidade de So Paulo e faziam refeies no local de trabalho ou em restaurantes. No estudo, ela identifica a existncia de um discurso sobre a relao entre alimentao e sade que associa causas de doenas, contaminao alimentar e excesso de peso corporal, aspectos que se articulam em torno de valores associados ao corpo e ao seu cuidado, de juzos morais sobre o que bom ou no para comer e de formas de pensar assentadas

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    nas classificaes culturais e simblicas sobre a comida. Um conjunto de contradies entre as formas de pensar e de se comportar diante da alimentao nos mostra uma mobilidade e flutuaes nos discursos e nas prticas que esto tensionados permanentemente por escolhas individuais percebidas como transgresses.

    O socilogo Jean-Pierre Corbeau discorre sobre a dimenso simblica e oculta da comensalidade no mbito hospitalar com base na anlise da seqncia alimentar: suas especificidades, o contexto e a sociabilidade alimentar naquele espao. Para o autor, na seqncia alimentar interagem aspectos psicossociolgicos e culturais do comer com os aspectos simblicos e a prpria percepo do alimento pelos comensais. Ele destaca seis eixos de perspectivas institucionais na alimentao hospitalar: a higiene, as propriedades dos alimentos, o servio, o sabor da alimentao, o simblico e o simulacro presentes na gesto dos hospitais franceses, matrias de confronto de expectativas de comensalidade dos usurios e das instituies, demonstrando que a comida tem efeitos nos tratamentos, uma vez que portam significados para os adoecidos.

    Grard Maes, administrador hospitalar, reconstitui a trajetria das mudanas no tempo da alimentao institucional, por meio de um testemunho arguto de suas transformaes no contexto francs: da sopa, que ocupa um lugar histrico nessa trajetria, at os cardpios mais recentes preparados por chefs de cozinha. Tudo isso reflete simultaneamente os processos de mudana de valores em relao hospitalizao, ao gerenciamento dos hospitais no preparo das refeies, na produo de cardpios, atualmente influenciada por profissionais de nutrio, e sua permeabilidade s transformaes no estatuto do doente que passou a ser visto mais como cliente e menos como paciente.

    Na quarta parte, so discutidas as possveis interlocues entre a nutrio e as cincias sociais e humanas, especialmente a antropologia. As organizadoras fazem uma anlise dos currculos de cursos de nutrio do Brasil e de alguns programas de disciplinas por eles ofertadas. Detm-se sobre os contedos de programas de cursos de cincias sociais e humanas sobre alimentao, ministrados por universidades norte-americanas e inglesas, com a inteno de tecer comparaes de contedos programticos e metodologias de ensino daqueles programas com os nacionais, e a finalidade de contribuir para a discusso do melhor equacionamento dessas disciplinas nos currculos dos cursos de nutrio nacionais. Entre as constataes do estudo esto, para a situao brasileira, a expanso da incluso das cincias sociais e humanas nos currculos, embora heterognea e dispersa quanto aos contedos, carga horria e disciplinas apresentadas, o que parece conformar tenses e fragilidades na

  • ANTROPOLOGIA E NUTRIO

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    expectativa da participao dessa rea de conhecimento na formao do nutricionista. Os programas internacionais analisados so mais especficos nos seus contedos, que se voltam para um exame mais focado na temtica da alimentao e dos fatores que a elucidam, expondo um acervo diversificado de pesquisas e preocupaes bem mais amplas do que as existentes no Brasil.

    Os dois artigos que se seguem so dirigidos, respectivamente, a nutricionistas e a antroplogos. Ambos assinalam ser a complexidade da alimentao como objeto de estudo o fundamento para uma abordagem interdisciplinar e tratam das dificuldades que se operam na sua aplicao.

    Na forma de dilogo entre a antropologia e a nutrio, Rosa Wanda Diez Garcia reflete sobre a adoo da dieta mediterrnea como modelo de dieta saudvel, destacando a inadequao cultural de transportar ou generalizar um modelo diettico fundamentado numa cultura e num meio determinados. Traduzir em nutrientes, ou em itens alimentares, um modelo de dieta descontextualizar a sua produo, e gera apropriaes fragmentadas de alimentos que so reintegrados em outros modelos dietticos, desconsiderando-se tanto o resultado desse rearranjo quanto a prpria identidade culinria como patrimnio de outra cultura.

    Dirigido inicialmente a antroplogos, o artigo de Mabel Gracia Arnaiz traz uma discusso sobre as peculiaridades da antropologia da alimentao, na qual lamenta o reduzido interesse dos antroplogos no seu estudo; revela as rivalidades entre a antropologia terica e a prtica e a relevncia atribuda primeira, em detrimento da segunda. A aplicao do conhecimento antropolgico, ultrapassando as preocupaes exclusivamente tericas, defendida pela autora. Ela trava tambm um dilogo com profissionais da rea da sade e mais especificamente com os nutricionistas, apontando as fronteiras dos campos profissionais na anlise de programas e polticas de alimentao.

    Espera-se que esta coletnea preencha uma lacuna bibliogrfica e facilite a aproximao da antropologia com a nutrio. Embora a construo da interdisciplinaridade no goze do consenso de todos os autores dela participantes, abrem-se possibilidades de interlocuo entre os diferentes campos disciplinares no mbito da pesquisa, como tambm entre os incumbidos, por ofcio, de intervenes nos problemas individuais e coletivos da alimentao e nutrio intervenes culturalmente ajustadas demandam profissionais que permaneam mais sensveis compreenso das diferenas e da diversidade cultural alimentar das populaes ou das clientelas s quais se dirigem. Da mesma forma, tendo em vista a incipincia, desarticulao e fragmentao observada na ainda frgil participao das cincias sociais e humanas no

  • UMA INTRODUO REFLEXO ...

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    ensino da nutrio, espera-se auxiliar no amadurecimento da conformao dos currculos, particularmente no que diz respeito s abordagens socioantropolgicas da alimentao.

    REFERNCIA BIBLIOGRFICAS

    CASCUDO, C. Histria da Alimentao Brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983. FISCHLER, C. L(H)omnivore. Paris: Odile Jacob, 1990. FREYRE, G. Acar: uma sociologia do doce com receitas de bolos e doces do Nordeste brasileiro. So Paulo: Companhia das Letras, 1997. GOODY, J. Cocina, Cuisine y Clase. Barcelona: Gedisa, 1995. GRACIA, M. Paradojas de la Alimentacin Contempornea. Barcelona: Icaria, 1996. MINTZ, S. W. Comida e antropologia: uma breve reviso. Revista Brasileira de Cincias Sociais, 16(47):31-41, 2001. ROZIN, P. The selections of food by rats, humans and others animals. In: ROSENBLATT, J. S. et al. (Eds.) Advances in the Study of Behaviour. Vol. 6. London: London Academic Press, 1976. WARDE, A. Consumption, Food and Taste: culinary antinomies and commodity culture. London: Sage Publications, 1997. WILSON, C. S. Food habits: a selected annoted bibliography. Journal of Nutrition Education, 5(suppl.1):37-72,1973.

  • Parte I OLHARES ANTROPOLGICOS SOBRE A ALIMENTAO

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    Comentrios sobre os Estudos Antropolgicos da Alimentao

    Ana Maria Canesqui

    Ser revisto aqui um conjunto de estudos sobre a alimentao feitos

    principalmente por antroplogos, acrescentando-se alguns mais orientados pela sociologia, que se destacam na literatura examinada. Incorporam-se tambm as contribuies recentes de profissionais da sade que assimilaram conceitos e metodologias das cincias sociais na anlise da dimenso sociocultural da alimentao. Embora no se aprofundem as especificidades terico-metodolgicas de cada paradigma, que inclui abordagens nos seus vrios ismos, delineiam-se conceitos e metodologias empregados pelos autores que refletem, a cada tempo, algumas correntes de pensamento utilizadas pelos pesquisadores.

    Parte-se de estudos anteriores (Canesqui, 1988, 1994) que elaboraram, respectivamente, uma reviso dos estudos antropolgicos sobre a alimentao e daqueles relacionados sade e doena, acrescentando-se pesquisa bibliogrfica para a dcada de 90 e incio dos anos 2000, com base na consulta aos artigos publicados nas revistas nacionais de antropologia, sade pblica/sade coletiva e nutrio.

    Foi Geertz (2001) quem sugeriu que o entendimento das cincias pode passar no apenas pelas teorias, mas pelos seus praticantes, importando assim analisar aquela produo sem que se faa uma etnografia do saber antropolgico sobre a alimentao. O interesse mais recente pela gastronomia e culinria, o crescente volume de publicaes do mercado editorial e o maior desenvolvimento da antropologia da alimentao ou da nutrio, no mbito internacional, sinalizam a maior centralidade do tema nos debates intelectual e social, com reflexos na produo acadmica nacional, ainda que este assunto se encontre entre os objetos secundrios para a antropologia.

    Se durante a dcada de 70 alguns antroplogos pesquisaram a alimentao, interessando-se pelo modo de vida das classes populares, incluindo a cultura e a

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    ideologia, nos anos 80 o interesse a respeito foi muito residual, embora o assunto tivesse se articulado aos estudos das representaes do corpo, sade e doena ou das representaes de sade e doena. Tais estudos marcaram algumas etnografias e as pesquisas qualitativas em sade no Brasil, em funo do maior desenvolvimento das cincias sociais em sade e do crescente envolvimento dos antroplogos com as questes relacionadas sade em geral, da qual a alimentao um dos componentes.

    Desde a segunda metade da dcada de 90, no mbito das discusses do Grupo de Trabalho sobre Comida e Simbolismo, promovido pela Associao Brasileira de Antropologia, renovados e antigos temas se incorporam ao debate intelectual, como os regionalismos culinrios; comida e simbolismo; cozinhas e religio; hbitos alimentares de grupos especficos ou os promovidos pelo marketing; os fast-food e a reorganizao da comensalidade na sociedade urbano-industrial, entre outros. Compe-se, assim, uma bibliografia recente, ainda no inteiramente publicada, o que dificultou a realizao de um balano mais abrangente e detalhado dessa produo acadmica recente.

    Da mesma forma, no mbito dos Congressos Brasileiros de Nutrio, na dcada de 90 houve tentativas ainda tmidas de maior interlocuo com as cincias sociais no campo da sade (psicologia, antropologia e sociologia), por meio da convocao do debate multidisciplinar, em mesas-redondas e grupos de especialistas em nutrio. Seria amplo demais para este estudo abordar as contribuies dessas diferentes disciplinas no assunto examinado; por esta razo, preferimos destacar apenas os estudos antropolgicos, com os quais temos maior familiaridade.

    ANTIGAS E NOVAS CONTRIBUIES ANTROPOLGICAS OS ESTUDOS DE COMUNIDADE Roberto DaMatta (1983) sintetizou os objetos dos primeiros estudos

    antropolgicos no Brasil: os negros, brancos e indgenas, e certamente muitos antroplogos brasileiros continuam interessados nas relaes raciais e na questo indgena. De fato, essa classificao aplicava-se a um dado momento da histria da antropologia brasileira, circunscrita aos estudos monogrficos daqueles e de outros grupos sociais (camponeses e populaes ribeirinhas, entre outros).

    Os estudos de comunidade enfocaram a dimenso cultural da alimentao, manifestada por meio de crenas e tabus (proibies) associadas gestao, ao

  • COMENTRIOS SOBRE OS ESTUDOS ANTROPOLGICOS...

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    parto e ao ps-parto. Mostraram tambm as fontes de produo e de abastecimento alimentares das economias de subsistncia e extrativas, com baixa dependncia do mercado, juntamente com as crenas, permeando a composio da dieta, o preparo dos alimentos, os hbitos alimentares e a classificao dos alimentos (quentes/frios, fortes/fracos). As crenas alimentares, cujas origens aqueles estudos pouco exploraram, foram consideradas como verdadeiros patrimnios da cultura folk (Ferrari, 1960).

    Charles Wagley tambm se enquadra entre os estudiosos de comunidade, como um dos primeiros antroplogos norte-americanos que estiveram no Brasil e se dedicaram antropologia aplicada sade pblica, tendo sido tcnico da Fundao de Servio Especial de Sade Pblica no perodo de 1942 a 1946 (Nogueira, 1968). De seu estudo sobre a comunidade amazonense destacam-se os seguintes aspectos quanto alimentao e sade: a anlise dos regimes alimentares, das receitas e despesas alimentares; da disponibilidade de calorias, do estilo de vida; bem como das crenas tradicionais relacionadas sade, doena e s suas causas e meios de tratamento, englobados genericamente sob a magia, segundo Wagley (1953). Tomando esse conjunto de crenas como barreiras adoo de mudanas, imprimidas pela introduo de medidas higinicas e teraputicas calcadas no conhecimento mdico-sanitrio, o autor fornece um tpico exemplo do comprometimento do saber antropolgico com a educao sanitria etnocntrica, que, apoiada na racionalidade do modelo mdico-sanitrio dominante, considera inadequados os saberes e procedimentos tradicionais de cura.

    A tradio dos estudos de comunidade geralmente entendeu a cultura como totalidade indiferenciada em todas as suas dimenses e foi criticada por trat-la como um sistema fechado, funcional e isolado. Como afirmou Nogueira (1968:182), foram trs as tendncias dos estudos de comunidade:

    1) dar nfase aos aspectos locais e atuais, numa exagerao do grau de isolamento da comunidade; 2) dar nfase ao desenvolvimento histrico, com a considerao simultnea das condies atuais; e 3) estudar a vida social da comunidade e as condies ecolgicas da regio.

    Quanto alimentao, destaca-se o estudo de Cndido (1971), que ampliou e renovou os estudos de comunidade anteriores e explicou as mudanas a partir da produo dos meios de sobrevivncia, das relaes entre o homem e seu hbitat na proviso daqueles meios. Cndido identificou, nessa que uma monografia clssica sobre a alimentao, os padres de sociabilidade e os aspectos das transformaes culturais (tecnolgicas, no sistema de crenas e valores).

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    No se tratava mais de conceber a cultura como um sistema fechado. Ela estava exposta s transformaes dadas em uma sociedade rural e tradicional pelo desenvolvimento do capitalismo urbano-industrial, que proporcionou novas feies ao meio rstico paulista. Diante daquelas mudanas, eram maiores ou menores os graus de ajustamento dos distintos agrupamentos ao equilbrio entre o meio fsico e as necessidades bsicas vitais, que se satisfaziam atravs da explorao dos recursos naturais, mediante o emprego de tecnologias e de formas de organizao social. Esse conjunto de fatores e processos afetava a produo e a distribuio dos bens alimentcios, o sistema de abastecimento e o consumo alimentar, refletindo-se ainda na dimenso cultural.

    O autor explorou as vrias formas de distribuio dos alimentos, entre elas as realizadas nas festas pblicas e entre vizinhos e parentes. Ele inseriu a comensalidade nos padres de sociabilidade e nas relaes de parentesco e vizinhana, em que o sistema de trocas alimentares assentava-se na cooperao. Muitas crenas alimentares reportavam-se ao sistema religioso e s suas prescries e rituais, que persistiam naquele ambiente rstico, apesar das mudanas na organizao social, econmica e cultural. Estas se refletiam na proviso dos meios de vida. Rural e urbano, sempre postos como fenmenos relacionados, sofriam um processo acelerado de transio. Essa obra de Antnio Cndido um bom exemplo da prtica multidisciplinar entre as cincias sociais, desde que recorreu a conceitos e metodologias procedentes da histria, da antropologia e da sociologia, tendo influenciado algumas pesquisas posteriores sobre a alimentao.

    Tanto esse estudo quanto os de comunidade foram efetuados entre as dcadas de 40 e 60, e na dcada de 70 a antropologia ganhou maior impulso e atualizao no Brasil, com a expanso dos cursos de ps-graduao e as mudanas geradas pelas reflexes crticas sobre a disciplina, que lhes imprimiram novas faces, sob novas influncias e correntes de pensamento (o estruturalismo lingstico e outras formas de estruturalismo; a fenomenologia; a etnometodologia; as correntes compreensivas; o marxismo e outras), sem que estas tenham substitudo integralmente a perspectiva funcionalista anterior, que compunha a matriz disciplinar.

    Naquele momento, a questo da desnutrio estava posta entre os efeitos adversos do milagre econmico brasileiro e despertou o maior interesse das polticas governamentais de nutrio e alimentao, levando ampliao dos financiamentos para as pesquisas nessa rea, que resultou no envolvimento de antroplogos no tema da alimentao, sem que pudesse ser identificada a antropologia especializada no assunto, embora ela se voltasse para as questes urbanas, sensibilizando-se com a dramaticidade dos problemas sociais.

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    HBITOS E IDEOLOGIAS ALIMENTARES Na dcada de 70, uma linha de estudos antropolgicos voltou-se para a

    cidade, especialmente para desvendar o modo de vida dos grupos socialmente desfavorecidos, composto de um conjunto de prticas e representaes (formas de pensamento e ao) de tradies, entre as quais se incluiu a alimentao. Assim, ao lado do Diagnstico Nacional das Despesas Familiares (FIBGE, 1974/1975), o Grupo de Cincias Sociais do Estudo Nacional de Despesas Familiares (Fineep/Inan/IBGE) fez vrias etnografias sobre os hbitos e as ideologias alimentares, integrando pesquisadores da Universidade de Braslia e do Museu Nacional. Nem todos esses estudos foram publicados e amplamente divulgados, embora tivessem sido realizados em distintas localidades do pas, entre grupos rurais (camponeses independentes, parceiros agrcolas, pescadores, produtores agrcolas) e segmentos de trabalhadores urbanos. A esses estudos financiados somaram-se outros empreendidos por pesquisadores independentes, sempre ligados aos cursos de ps-graduao em antropologia social, de forma que o tema alimentao ganhou visibilidade na bibliografia produzida.

    Apesar de heterogneos, os estudos produzidos por aquele grupo foram comentados por Woortman (1978) e Velho (1977), ambos coordenadores do programa de pesquisa. Para eles, os hbitos alimentares foram compreendidos de duas formas: a primeira privilegiou as teorias alimentares, por meio do sistema de classificao dos alimentos (quente/frio, forte/fraco, reimoso/descarregado), que presidem as prescries, proibies e os prprios hbitos alimentares. A segunda associou aquele sistema ao conjunto das diferentes prticas sociais e significaes, conferidas pelos distintos grupos sociais e que se ancoram na ideologia e na cultura e no apenas nos modelos de pensamento, que ordenam previamente as categorias alimentares.

    A primeira abordagem situou a alimentao como parte do universo cognitivo e simblico, que define as qualidades e propriedades dos alimentos e dos que se alimentam; as indicaes e prescries alimentares apropriadas ou no a situaes especficas e o valor dos alimentos. Isso tudo se ancora em um modelo de pensamento que conceitua e define a relao entre o alimento com o organismo que o consome, identificando simbolicamente a posio social do indivduo (Woortman, 1978).

    Os hbitos alimentares, para esse autor, resultavam de lgicas relacionadas racionalidade econmica, ao acesso, seleo dos alimentos, fatores que, isoladamente, eram insuficientes para explic-los, uma vez que a alimentao fenmeno cultural, detentor de contedos simblicos e cognitivos relativos s classifi-

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    caes sociais, percepo do organismo humano e s relaes entre este e as substncias ingeridas, operantes por meio de um sistema de conhecimento e de princpios ordenadores que tratam a relao entre a alimentao e o organismo (Woortman, 1978). Desses planos compreendiam-se os padres que caracterizavam os hbitos alimentares.

    Esse tipo de anlise se preocupa com princpios ordenadores dos hbitos alimentares, que operam como modelos classificatrios, acrescentando ou no os modos de acesso aos alimentos e a sua relao com a sobrevivncia e a reproduo, ou seja, com os fatores da infra-estrutura econmica da sociedade. Nesses embates intelectuais estavam marxistas e estruturalistas, sendo que Otvio Velho (1977) se ops estruturao dos modelos ordenadores prvios dos princpios classificatrios, que so formas de pensar, postos como cdigos a serem desvendados pelos pesquisadores.

    O autor sugeriu a busca dos vrios princpios classificatrios que presidem os hbitos alimentares evidenciados em cada caso, uma vez que a relao entre os alimentos e a natureza e a sociedade, antes de configurar formas de pensamento, remete s formas concretas e historicizadas. Para ele, os sistemas classificatrios alimentares comportam um conjunto de princpios ordenadores que conduzem s concepes particulares de sade e doena nos diferentes grupos sociais e relao entre a alimentao e o organismo humano. So, portanto, princpios ligados prtica social de cada um dos diferentes grupos, uma vez que estes portam distintos ethos e habitus, tal como foram estudados por Pierre Bourdieu (1977).

    Outro estudo elucida a perspectiva estruturalista na abordagem das classificaes alimentares, das proibies e dos tabus associados ao sistema de crenas. A pesquisa de Peirano (1975) entre pescadores de Icara, no Cear, foi exemplar sobre a influncia do estruturalismo de Lvi-Strauss na explicao das proibies alimentares associadas categoria reimoso, aplicada a certos peixes e que compem as crenas de algumas populaes e o prprio sistema classificatrio dos alimentos.

    A classificao de peixes reimosos foi entendida pela autora como uma manifestao paratotmica, na qual a srie cultural, referida aos seres humanos, relacionava-se com a srie natural dos seres marinhos pela via de relaes de homologia entre ambos, traduzidas, no plano simblico, nas proibies do consumo de certos peixes por certas categorias de pessoas, enquanto outras espcies animais, que so caadas (os voadores), se incluam tambm naquela categoria, cujos critrios explicativos se referiam ao hbitat e ao revestimento externo.

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    Essa forma de anlise no foi compartilhada por Maus e Maus (1978, 1980), quando estudaram as representaes sobre os alimentos, as proibies alimentares e a classificao dos alimentos entre pescadores. Eles admitiram a existncia de tabus alimentares ligados ao comportamento ritual e no ao sistema totmico, como quis Peirano. Para esses autores, os tabus alimentares aplicavam-se a alguns alimentos classificados como fortes, frios, quentes e reimosos, associados a pessoas impedidas de consumi-los, entre elas as mulheres menstruadas. Eles sugeriram que os alimentos e as categorias de pessoas, uma vez relacionados, formavam um tipo de classificao simblica bastante complexa e globalizante, referida aos alimentos, ao xamanismo e ao ritual, integrando a viso de mundo daquela populao, no sendo redutveis polaridade estabelecida entre a natureza e a cultura, segundo posto pelo estruturalismo. Os tabus alimentares tambm no comportavam regras fixas e eram flexveis, podendo funcionar como mecanismos de defesa contra a fome, nos momentos de escassez alimentar, submetendo-se a manipulaes situacionais e s transgresses, ou seja, saam do mundo das idias para habitar o mundo das aes e das relaes sociais.

    Ao chamar a ateno para a relao entre a alimentao e a sade e a doena, Rodrigues (1978) reportou-se ao sistema classificatrio dos alimentos, que prov as relaes de certas categorias de alimentos com o organismo, tanto por seus efeitos na produo e no agravo de doenas, quanto na garantia e na manuteno da sade. Na origem de certas categorias alimentares, que esto presentes no discurso popular das classificaes alimentares, esto os saberes mdicos antigos, como a medicina humoral hipocrtica, que foi difundida pelos portugueses no Brasil.

    O autor observou a grande variao dos significados das categorias reima e mimoso (Rodrigues, 2001) e sua associao com pessoas, ocasies e situaes, admitindo que a reima, sem ser propriedade intrnseca dos alimentos ou seu atributo, relacionava-se com o organismo, aplicando-se classificao das doenas e a certas atividades que interferem no fluxo dos humores corporais, provocando ou gerando doenas. Na alimentao, a categoria reima se aplica s proibies alimentares.

    A anlise da categoria comida e sua classificao (forte/fraca, leve/ forte; pesada/leve; gostosa/sem gosto; de rico/de pobre; boa ou m para a sade) como componentes da ideologia alimentar de segmentos trabalhadores urbanos ganharam relevncia em alguns estudos, no apenas para elucidar o sistema de pensamento mais amplo, mas tambm como referncia aos usos ou apropriao dos alimentos nas prticas de consumo. Contrariando a existncia de modelos classificatrios alimentares pr-estruturados, alguns autores que estudaram as

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    representaes dos cusos dos alimentos chamaram a ateno para a presena recorrente de algumas categorias nos discursos dos informantes como forte/ fraco; gostoso/sem gosto, pesado/leve (Brando, 1980; Canesqui, 1976; Loyola, 1984; Costa, 1980), enquanto a obteno de informaes sobre as demais categorias implicava a imposio, pelos pesquisadores, de perguntas especficas sobre elas, cujas respostas se dispersavam. Logo, estava dificultada a obteno de padres classificatrios precisos dos alimentos, sendo que os informantes costumavam convencer o pesquisador do baixo uso de certas categorias, relutando em inform-las.

    Alguns estudos se concentraram na categoria comida, que bastante recorrente nos discursos dos informantes, constituindo o ncleo de um conjunto de representaes. Ela remete, em uma de suas dimenses, para o conjunto da dieta que efetivamente apropriada, dentro de determinadas condies materiais. Dessa forma, a comida de pobre servia simbolicamente para pensar as diferenas sociais , postas entre ricos e pobres na sociedade ou entre os pobres, em cujo limite inferior da hierarquia estavam os pobrezinhos e mendigos, excludos do acesso e dependentes da solidariedade social. Certos alimentos, como a carne, tambm serviam simbolicamente para distinguir a comida de pobre da comida de rico e como parmetro para equacionar pessoas e as respectivas diferenas de riqueza, poder e prosperidade na sociedade (Canesqui, 1976).

    As concluses das diferentes pesquisas mostraram a importncia da comida como veculo para pensar a identidade do pobre e a prpria privao, medindo-a por meio das defasagens percebidas entre os tipos de alimentos apropriados ou desejados e o montante dos salrios recebidos (Canesqui, 1976; Guimares et al., 1979) ou, ainda, como no caso dos trabalhadores rurais pernambucanos, como instrumento de aferio da relao entre os salrios e o preo da farinha (Sigaud, 1973). A permanente defasagem entre a comida apropriada e a idealizada, observada por Marin (1977), era capaz de provocar insatisfaes nos seus informantes. Loyola (1984) chamou a ateno para a importncia das categorias dietticas tradicionais, como referncias de uso da dieta consumida, de modo que, diante das precrias condies materiais de vida e do desemprego, restava para seus informantes a frustrao de no alcanarem uma dieta adequada, seja do ponto de vista nutricional tradicional, seja do preconizado pela medicina oficial.

    A importncia do princpio de sustncia, associado aos alimentos fortes, com vitamina e ferro, marcam as preferncias alimentares dos segmentos populares estudados pelos diferentes pesquisadores pela comida forte, pelos medicamentos tnicos que, nas representaes, incidem sobre o sangue, garantindo a sua qualidade e manuteno de seu estoque. Por oposio, os alimentos fracos,

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    destitudos de sustncia, de vitamina, no so recusados por essas qualidades, mas qualificam uma dieta empobrecida, que marca a identidade do ser pobre.

    A categoria comida apresenta outras dimenses que associam as adequaes do uso dos alimentos aos estados corporais ou s ocasies e horrios de consumo, sendo que certos alimentos (pesados, associados ou no categoria forte) tm consumo noturno interditado por interferirem na digesto ou no sono, que a outra atividade reparadora por excelncia. So pensadas tambm as adequaes de certos alimentos aos tipos de consumidores, segundo o gnero e a idade, prescrevendo-se ou no certos alimentos aos tipos de pessoa e sua etapa de vida. A tica de uso dos alimentos apresentada por Brando (1981), somada ao acesso, s razes do gosto, ao tipo de comida que marca a identidade, juntamente com a sua relao com o corpo, especialmente pelas sensaes provocadas, norteia as preferncias e a seleo dos alimentos apropriados, sendo que as regras de evitao, segundo os distintos estudos, se flexibilizavam entre as classes populares urbanizadas, aplicando-se muito restritamente.

    A afirmao das identidades sociais, das diferenas regionais, do ser brasileiro ou do ser pobre se embutia nos hbitos alimentares e no significado da comida ou de certos alimentos e pratos (Oliveira, 1977; Velho, 1977; Marcier, 1979; Lins e Silva, 1979; Bastos, 1977). Nos grupos populares pesquisados e diante dos processos migratrios que acompanharam a urbanizao, freqentemente ocorriam referncias emblemticas a certos alimentos e pratos, marcando identidades, entre as quais possvel lembrar: a farinha e a carne-seca para os nordestinos; o arroz com pequi para os goianos; o tutu com feijo e torresmo para os mineiros; e o feijo para cariocas, paulistas ou mineiros, entre outras referncias extradas dos diferentes estudos.

    ORGANIZAO DA FAMLIA, SOBREVIVNCIA E PRTICAS DE CONSUMO ALIMENTAR

    Socilogos e antroplogos na dcada de 70 desenvolveram estudos sobre as classes populares de baixa renda, enfocando ora especificamente a organizao e a realizao do consumo alimentar na unidade domstica e a ideologia e as crenas sobre a alimentao, ora as estratgias de sobrevivncia, nelas incluindo a alimentao, como componente bsico de recuperao e manuteno da fora de trabalho.

    Os estudos etnogrficos especficos sobre a alimentao partiram do grupo domstico como unidade de anlise e exploraram o trabalho, a gerao de renda, a montagem e o uso dos oramentos domsticos. Eles destacam o lugar da alimentao no conjunto dos gastos; a aquisio e a seleo dos alimentos; a or-

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    ganizao da famlia, a diviso sexual do trabalho na proviso e no gerenciamento, controle e realizao do consumo alimentar; o trabalho domstico relacionado ao consumo alimentar, refeies e composio dos cardpios, juntamente com as idias e crenas que cercam a alimentao e a prtica alimentar na sua totalidade. Alguns enfocaram mais o simbolismo dos alimentos do que outros, da mesma forma que as dimenses apontadas foram mais aprofundadas que outras e no tornam homogneos os referenciais tericos adotados (Canesqui, 1976; Guimares et al., 1979; Oliveira, 1977; Pacheco, 1977; Guimares, 1983; Woortman, 1982, 1984).

    Enquanto alguns estudos permaneceram mais afeitos s anlises das estratgias de sobrevivncia, outros acrescentaram a importncia da famlia como um dos elementos mediadores na organizao e nas decises do consumo alimentar. Assim, considerou-se a interdependncia dos papis familiares, ancorados na estruturao da famlia e em sua importncia na garantia do consumo, uma vez que o pai de famlia o provedor e a mulher-dona-de-casa gerencia e controla o consumo, no sendo dispensada a colaborao dos filhos ou da mulher na composio da renda familiar. O controle e o gerenciamento do consumo domstico rege-se pela regra de fazer economia, conforme demonstraram alguns estudos (Guimares, 1983; Fausto Neto, 1982). O papel de cozinheira percebido como mais importante pela dona-de-casa, pois o preparo da comida no comporta erros, nem desperdcio, envolvendo, portanto, os procedimentos mais econmicos, uma vez que se sobrepe aos motivos econmicos o componente ideolgico definidor da dona-de-casa, cujo controle sobre a cozinha define a sua qualidade moral (Woortman, 1982). Para este autor, os papis de controladora do consumo e de provedor de renda se articulam na ideologia da famlia.

    As pesquisas sobre as estratgias de sobrevivncia de famlias trabalhadoras (Bilac, 1978; Macedo, 1979; Fausto Neto, 1982) no se restringiram apenas alimentao, enquanto outras, especficas sobre a alimentao, por vezes aplicaram aquele conceito no estudo das estratgias alimentares. De fato, a importncia da famlia e de seus arranjos para a sobrevivncia foi destacada nesses estudos orientados sociologicamente, que no descartaram a importncia do comportamento do mercado de trabalho. Esses estudos privilegiaram o trabalho e no o consumo, incluindo o trabalho da mulher (remunerado ou no, como o domstico). A famlia geralmente foi abordada na situao de classe, como unidade social de reproduo em que se realiza a reproduo imediata do trabalhador.

    importante destacar que as estratgias de sobrevivncia mencionadas por outros estudos como a compra mida; a crdito; o uso de fontes mercantilizadas de abastecimento alimentar, combinadas com as no-mercantilizadas

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    e com as ancoradas no sistema de trocas e na solidariedade entre vizinhos; as substituies alimentares; a ampliao da jornada de trabalho; o no comer fora de casa apenas refletiam, para os que endossaram o marxismo economicista, as feies concretas da superexplorao da classe trabalhadora (Vianna, 1980; Carvalho & Souza, 1980) ou representavam um jogo de soma zero, contribuindo para rebaixar o custo da reproduo da fora de trabalho e obscurecer, ideologicamente, os antagonismos de classe (Oliveira, 1976).

    Essas estratgias, tidas como arranjos ou respostas necessidade de sobrevivncia, conforme endossaram os estudos, foram concebidas como expedientes ou respostas adaptativas ou criadoras de sentido para determinado modo de vida. Assim, a famlia na situao de classe sempre foi capaz de formular um conjunto de projetos, resultantes de seus esforos coletivos (Macedo, 1979), em vez de se apresentar apenas como uma unidade de reproduo ideolgica e submissa aos desgnios das foras materiais. A retomada recente do estudo das estratgias de sobrevivncia demonstrou, no Nordeste semi-rido, o quanto eram mobilizados certos alimentos tradicionais (br, caxixe e ouricuri), diante da escassez de outros alimentos, durante a seca (Assis, 1999).

    ALIMENTAO, CORPO, SADE E DOENA

    Os estudos etnogrficos sobre a alimentao foram escassos na dcada de 80, e

    os de representaes de sade e doena das classes populares referiam-se, invariavelmente, importncia das categorias fora/fraqueza, utilizadas no apenas para dimensionar a percepo de estados corporais, mas para articul-las em torno da alimentao (Costa, 1980; Loyola, 1984; Duarte, 1986; Queiroz & Canesqui, 1989).

    Ao rever os trabalhos sobre o assunto, Duarte (1986:153) observou que a comida tem como um de seus pontos centrais a avaliao de fora transmissvel ao organismo pela ingesto, freqentemente chamada de sustana ou avaliada pela presena de elementos como (...) vitaminas, ferro etc. A oposio entre os alimentos fortes e fracos relacionada tambm com a sndrome quente/frio articula-se de maneira ntima e no linear com as qualidades diferenciais do homem/mulher, adulto/velho-criana, estados regulares/estados especiais (gravidez, puerprio, menstruao etc.) ou ainda com as caractersticas das partes ou rgos e das diversas doenas e perturbaes. A doena, no discurso das classes populares, identificada pelas sensaes

    de fraqueza e desnimo, que afetam o corpo e a mente. Apresentam-se

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    entre as suas causas a falta de alimentao, ao lado de outras como as naturais, as morais, as comportamentais, as sobrenaturais e as econmicas (Minayo, 1988; Queiroz & Canesqui, 1989). Fraqueza fsica tende a ser percebida na indisposio para trabalhar, como ainda pode ser o efeito da fraqueza moral perante a sociedade (Ferreira, 1995), ou simultaneamente expresso de desordens mais amplas (Montero, 1985). Os enfraquecimentos mental e corporal de adultos e crianas, associados fome, expressam-se na categoria `fraqueza', da mesma forma que certos comportamentos abusivos (excesso de bebidas e comidas) podem fragilizar ou desequilibrar o organismo (Duarte, 1986).

    A valorizao da boa alimentao na garantia da sade revelou, nos distintos grupos pesquisados, tanto a existncia de conhecimentos e prticas tradicionais sobre a alimentao quanto a sua mescla com o saber nutricional dos mdicos e dos profissionais de sade, que so divulgados pelos servios de sade e a mdia. Os saberes no-eruditos sobre os alimentos e a alimentao so reinterpretados, com base em outras configuraes culturais presentes na cultura das classes populares.

    As observaes de Loyola sobre os limites impostos pelas condies materiais a uma alimentao adequada e as conseqncias do contato com o saber mdico-nutricional nos sentimentos dos seus entrevistados levaram-na seguinte afirmao:

    a maioria das pessoas sente-se privada dos meios para se alimentar convenientemente e compartilha o sentimento de estarem mal nutridas e, em conseqncia, mais vulnerveis a uma srie de doenas; e, certamente, o conhecimento do discurso mdico sobre as regras de higiene ou alimentao necessrias sade tende a agravar este sentimento de vulnerabilidade, redobrando o de impotncia e de desalento. (Loyola, 1984:156)

    As prticas de manuteno, preveno e recuperao da sade dos

    distintos segmentos sociais levam a cogitar associaes importantes com a alimentao e os cuidados corporais, embora tenham sido pouco pesquisadas. Os motivos de sade e as prescries mdicas presidem um conjunto de prticas de cuidados na manipulao e no uso dos alimentos. A prtica de exerccios fsicos e o emagrecimento, devido a razes de sade ou estticas, sempre se associavam no discurso dos profissionais da sade a preceitos normativos, carregados de um conjunto de valores, ticos e estticos. Sua divulgao, na sociedade moderna, e a incorporao pelos setores sociais de classes mdias e superiores, principalmente, mostraram nas representaes e nas prticas o quanto a sade se acompanha de valores

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    relacionados esttica corporal, ao bem-estar individual e aos comportamentos moralmente regrados.

    Em um estudo sobre a percepo dos problemas de sade, perguntou-se a funcionrios e professores de uma universidade paulista o que eles costumavam fazer para manter a sade (Canesqui et al., 1994); quase 70% dos entrevistados reportaram-se a algum tipo de prtica. Destacaram-se, entre as mais referidas, as dietas, sempre difundidas pelo saber mdico-nutricional, e os cuidados com a alimentao em geral, que incluem a adoo de medidas como a alterao nos hbitos alimentares, em decorrncia de certas doenas crnicas, especialmente naquelas pessoas com 50 anos ou mais. Seguiram-se referncias s prticas esportivas e aos exerccios fsicos (ciclismo, atletis mo, futebol e ginstica), juntamente com as referncias ao consumo de complexos vitamnicos e realizao de exames mdicos peridicos. Finalmente, associou-se preservao da sade a adoo de comportamentos e de hbitos de vida regrados, nos quais se incluem como norma a evitao do consumo de bebidas alcolicas e do fumo, juntamente com a observao das horas de sono, como elemento basicamente reparador.

    Ilustra-se, em um outro contexto, o estudo exploratrio de Ferreira (1998), feito com segmentos da classe trabalhadora urbana, em que foi identificada, entre as prticas de preservao da sade, a referncia s prticas todas difundidas pelo saber mdico de higiene e preventivas, e o uso de medicamentos, rituais e simpatias, geralmente empregados pelas religies, cujos usos orientavam-se, segundo a autora, mais pela experincia e menos pela adeso aos modelos abstratos e eruditos.

    Garcia (1997a), ao estudar as representaes sociais e prticas de cuidados com a alimentao e a sade de trabalhadores de escritrio na cidade de So Paulo, indicou dois eixos bsicos mobilizadores dos discursos. O primeiro se referiu alimentao saudvel, contendo as explicaes dos malefcios e dos benefcios de certos alimentos sade e os elos de causalidade entre alimentao e doena. O segundo centrou-se nos gostos, preferncias e no prazer da comida, significando formas de pensar o cuidar-se, mencionadas pelos informantes como opes individuais, que se traduzem na ideologia do individualis mo na sociedade moderna.

    A garantia da sade continha um discurso dos malefcios de certos alimen-tos (contaminados, gordurosos, possuidores de colesterol) sobre o organismo, reportado origem das doenas cardacas, enquanto os benefcios da alimentao saudvel referiam-se ingesto de frutas e verduras, por suas qualidades de concentrar `vitaminas', valorizando-se ainda o corpo esbelto e magro, como valo-

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    res estticos corporais das classes de mdias e altas rendas, contrapostos valorizao do corpo gordo e forte, sempre recorrente nas representaes do corpo das classes trabalhadoras, conforme muitos estudos mencionaram. A autora observou o quanto as informaes sobre a dieta, integradas s experincias vividas com problemas de sade, norteavam os discursos.

    Se os profissionais da sade querem compreender como os saberes, representaes e discursos fazem sentido para a ao, ser sempre importante, por um lado, report-los s necessidades cotidianas das pessoas e, de outro, s caractersticas e aos valores do seu grupo social e s suas relaes sociais. Como muito bem assinalaram Adam e Herzlich (2001:86),

    os elementos da estrutura social, bem como os sistemas de valores e as referncias culturais, tambm tm funo. Cuidar da sade e da alimentao, por exemplo, depende em grande parte de vrios tipos de recursos e limitaes, relacionados ao trabalho, renda ou vida familiar. Parar de beber ou fumar podem ser decises individuais, baseadas em algum tipo de informao ou norma, mas preciso, para se aquilatar a dificuldade envolvida, compreender suas implicaes relacionais estabelecidas pela cultura do grupo a que pertence o indivduo.

    COMIDA, SIMBOLISMO E IDENTIDADE O modo de alimentar sempre ultrapassa o ato de comer em si e se articula com

    outras dimenses sociais e com a identidade. No foi fortuito o crescente sucesso das cadeias alimentares de fast-food (McDonald's e outras), abordadas por Rial (1996), que muito investiram na publicidade alimentar e, pela via das imagens, veiculam novas representaes sobre o modo de vida moderno. Apesar da forte propaganda do estilo norte-americano, e sem que sejam homogneos ou padronizados os seus efeitos, Mintz (2001:34), citando o livro de James L. Watson Golden Arches East, sobre o Mc Donald's, lembrou que

    na China, comer McDonald's sinal de mobilidade ascendente e de amor pelos filhos. Onde quer que o McDonald's se instale na sia, as pessoas parecem admirar a iluminao ferica, os banheiros limpos, o servio rpido, a liberdade de escolha e o entretenimento oferecido s crianas. Mas tambm percebe-se que eles gostam mais dessas coisas do que propriamente da comida.

    E concluiu que o McDonald's mobiliza outros valores, no apenas restritos refeio rpida.

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    Rial (1993) ressaltou a especificidade da culinria do fast food na divulgao de novas formas de se alimentar, na redefinio dos espaos das refeies e do seu tempo, junto com a modificao da prpria estrutura da alimentao. No passado, a alimentao se demarcava geogrfica, temporal e simbolicamente, e as ocorrncias alimentares separavam o tempo, estimulando a sociabilidade familiar, ou interrompiam a jornada de trabalho, marcando a comida os momentos cotidianos e no-cotidianos. As formas de alimentao no mundo moderno e as mudanas nas prticas alimentares movem-se pela demarcao de novos espaos e velocidade. Apesar disso, elas no so imediatamente percebidas.

    Lembra a autora as palavras de Fischler (1979:205): os comedores modernos continuam pensando que fazem trs refeies por dia, um pouco como os amputados que sentem por um longo tempo o seu brao ou perna perdidos, como um membro fantasma, o que ainda no pode inteiramente generalizado. Diante das transformaes do tempo e do espao das refeies nas sociedades urbano-industriais, que conduzem realizao e valorizao das refeies rpidas e feitas fora do espao domstico, Garcia (1997b) identificou, entre os seus entrevistados no centro da cidade de So Paulo e freqentadores de restaurantes e de fast-foods, um forte discurso sobre a valorizao da comida feita em casa, onde se pode mais facilmente controlar e confiar na limpeza e na higiene dos alimentos e utenslios, ao contrrio da comida feita naqueles locais, onde a desconfiana maior em relao ausncia daqueles cuidados. A autora assinala a convivncia simultnea nas representaes e nas prticas alimentares de segmentos de populaes urbanas metropolizadas, novos e antigos modos de consumir e pensar os alimentos, as mudanas nas refeies, sendo que as feitas fora de casa marcam-se pelo tempo de trabalho, descanso ou lazer, ou pelos negcios (para dados segmentos sociais), quando se realizam em vrios locais, tanto pelos comensais solitrios quanto em grupo.

    Alm dos fast-foods, expandem-se as franchises alimentares, recuperando as comidas tpicas, que evocam identidades locais ou regionais, ou o incremento das comidas a quilo, chinesa e japonesa, entre outras, de estilo massificado, ou aqueles servios alimentares concentrados nas praas de alimentao dos shopping centers e que convivem com os restaurantes tradicionais, ofertando culinrias sofis ticadas, internacionais ou mesmo nacionais. Para cada um desses segmentos, que ofertam refeies, h clientelas especficas, diferenciadas socialmente (Collao, 2002). Para a antropologia urbana, crescente o interesse por esses espaos alimentares, que se apresentam como os novos lugares para os estudos etnogrficos.

    Outra associao entre comida e simbolismo est nas anlises sobre a comida de santo, ou sobre a culinria religiosa, no sendo novo o interesse de antroplogos e

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    socilogos por este assunto, que foi bastante estudado por Bastide (1960) e por autores interessados na cozinha afro-brasileira da Bahia, vinculada ao candombl.

    Os deuses so grandes glutes, dizia Bastide (1960:6),

    e os mitos que relatam as suas vidas andam cheios de comezainas pantagruelescas, de voracidades homricas. No h, pois, nada de espantoso, quando entramos no pegi dos orixs, ao vermos a abundncia de pratos, de cores ou de formas diversas, segundo os deuses, e contendo comidas saborosas. So oferendas das filhas-de-santo, realizadas no dia da semana dedicado ao seu anjo da guarda e que ficam no interior do pegi a semana inteira at que chegue o dia consagrado, quando podero renov-las. Mas naturalmente, cada orix tem os seus pratos preferidos. Os deuses no so apenas glutes, mas tambm finos gourmets. Sabem apreciar o que bom, e, como os pobres mortais, no comem de tudo. Cercam-se de cerimoniais o preparo, a oferenda dos alimentos e as refeies,

    sendo a cozinha do candomb l baiano um exemplar da origem religiosa da alimentao, que espalhou suas influncias na comida regional profana.

    O tema foi estudado nas distintas religies (candombl, umbanda, batuque). A culinria ritual reveste-se de simbologia das influncias regionais, que se imbricam com as identidades religiosas e culturais. Ela alimenta os elos entre os deuses e os homens e as prprias crenas de seus fiis (Correa, 1996; Lodi, 1977, 1988, 1995). Este ltimo autor tem numerosas publicaes sobre as comidas de santo e a cozinha brasileira em geral, s quais fazemos aqui referncias bem parciais. Lodi estudou as comidas do candombl da Bahia, da Mina do Maranho, do Xang de Pernambuco, Alagoas e Sergipe, destacando os alimentos utilizados nas ocasies rituais, da mesma forma que reviu e reuniu os textos de Manuel Querino, estudioso da culinria afro-baiana. Ele tem contribudo, com esses estudos, para o desenvolvimento de uma antropologia da alimentao, tema de um de seus livros (Lodi, 1992).

    No Tambor de Mina do Maranho, observou Ferretti (1996), a cozinha inclua as prticas africanas tradicionais, e os nomes dos pratos africanos, servidos nas festas religiosas, acompanhavam as danas. E ela notava que tanto pessoas em transe quanto vodus no comiam, mas o preparo da comida, seus odores e cores lhes eram atraentes, sendo o espao da cozinha (de domnio feminino), junto com o quarto do santo e a varanda, lugares rituais, por excelncia. O preparo e o consumo dos alimentos nesse contexto evocavam, aos participantes das religies, a proteo esperada pelos fiis com a doao. Deuses e homens eram dependentes na cozinha nos terreiros.

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    O forte valor simblico de certos pratos tpicos relacionava-se a identidades regionais, como o churrasco gacho, cercado do ritual da comensalidade (Maciel, 1996). Esta autora detalhou as maneiras como ele preparado, servido e compartilhado socialmente, pela mobilizao de rede de relaes sociais de troca, partilha, unio e de estabelecimento de laos e relaes sociais. Outras identidades se expressam em vrios pratos tpicos regionais, como a comida mineira, com o tutu de feijo, a leitoa pururuca, o torresmo, entre outros; o pato ao tucupi, dos paraenses; ou ainda o arroz com pequi dos goianos, diversificando-se os regionalismos alimentares no Brasil, sem que esses pratos, to bem definidos geograficamente, faam parte da realidade cotidiana de seus habitantes, sendo alguns deles famosos em todo o pas, como lembrou aquela autora.

    A feijoada foi promovida a prato nacional. Oriunda da senzala e, por ter sido recuperada pela elite dominante, funcionou como emblema de toda a nao, enquanto permaneceu soul food nos Estados Unidos. Fry (2002) refutou essa sua afirmao recentemente, demonstrando que os contextos intelectuais e polticos da dcada de 1970 influenciaram a sua anlise sobre a funo da feijoada, medida que eram bemvindas, entre os cientistas sociais de determinados contextos acadmicos, as interpretaes influenciadas pelo marxismo, que enfatizaram os determinantes estruturais em detrimento do simbolismo.

    Ao repensar a feijoada, que ainda se mantm como exemplar da converso de smbolos tnicos em smbolos nacionais, ele argumentou que este fato no apenas ocultou a dominao racial, como afirmara anteriormente (Fry, 1976), mas tornou muito mais difcil a tarefa de denunci-la. E afirmou: quando se convertem smbolos de fronteiras tnicas em smbolos que afirmam os limites da nacionalidade, converte-se o que era originalmente perigoso em algo limpo, seguro e domesticado (Fry, 2002:52) [destaques meus]. Portanto, o autor reconheceu que nada ocultou o racismo em nossa sociedade, emb ora julgue que denunci-lo tem sido difcil medida que se convive no Brasil com a tenso dos ideais da mistura e do no-racialismo, ao lado das hierarquias raciais.

    Roberto DaMatta (2003), referindo-se recentemente s unanimidades nacionais, lembrou-se do arroz com feijo e depois da farinha, pedida quando se est diante de alguma comida molhada, que para muitos comedores deve ficar dura, promovendo a mistura dos sabores, por todos apreciada. Ele acrescenta o cafezinho, como exemplar do gesto de ddiva de abertura e de hospitalidade de rico e de pobre, marcando a passagem da rua para a casa. Para o autor, arroz com feijo um prato-sntese do estilo brasileiro de comer, expressando a culinria relacional, capaz de misturar e combinar o negro com o branco (DaMatta, 1987).

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    REPRESENTAES SOBRE O NATURAL Este tema mobilizou reflexes e pesquisas etnogrficas nos segmentos das

    classes populares ou em grupos especficos, com a proliferao de um conjunto de discursos, imagens e smbolos referentes natureza, manifestado nas prticas, em representaes e saberes especficos. Lifschitz (1997), em relao alimentao, identificou e analisou quatro saberes que contm representaes sobre o alimento natural: as tribos alimentares (natural = artesanal e natureza); os profissionais da sade (natural = o saber sobre a boa alimentao e a adequao entre as propriedades dos alimentos e os requerimentos fisiolgicos e anatmicos); a indstria (natural = produtos sem aditivos); e a publicidade (natural = signo de marca comercial).

    Um vez que o campo alimentar bastante sensvel s indicaes de mudanas culturais, o autor explorou de forma bastante interessante as configuraes culturais do natural na alimentao, destacando-se: o orientalismo, a medicalizao, a ecologizao e a feminilizao, observando o quanto elas se interpenetram nos seus sentidos, que no so estanques. Em outro estudo, ele aprofundou as mudanas sinalizadas por meio da alimentao (Lifschitz, 1999). Em Lomba do Pinheiro, um bairro da periferia de Porto Alegre (RS), a etnografia de Giacomazzi (1995) recuperou as prticas e representaes sobre o natural, atravs das intervenes de setores da Igreja Catlica, que difundem o aproveitamento dos alimentos e o uso de plantas medicinais mediante a forte valorizao, na cosmoviso religiosa, do mundo natural e da prpria sade.

    CONCLUSO

    Na exposio aqui feita no se tratou de retomar as especificidades dos estudos nacionais examinados, mas apenas de mostrar que o estudo da alimentao comportou diferentes abordagens e conquistou certo interesse da parte de antroplogos e de alguns profissionais da sade, ainda que seja relativamente exgua a bibliografia nacional disponvel, quando cotejada com a internacional, segundo apontam algumas revises bastante completas sobre a alimentao (Messer, 1984; Murcott, 1986; Mintz, 2001).

    A antropologia, desde os seus clssicos, no decorrer de sua trajetria, preocupou-se, sob distintas perspectivas, com a alimentao. Sir James Frazer, um antroplogo de gabinete, afirmava que o selvagem acredita comumente que, comendo a carne de um animal ou de um homem, ele adquire as qualidades

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    no somente fsicas mas tambm morais e intelectuais que so caractersticas deste animal ou deste homem (Frazer, 1911:65). Trata-se de reafirmar o princpio da incorporao que, para Fishler (1979), uma das invariantes do comportamento alimentar.

    Outras abordagens podem ser rapidamente lembradas, como o materialismo cultural de Harris (1985), que acentuou o peso das ordens ecolgica e sanitria nas escolhas alimentares e no da ordem simblica; ou o funcionalismo de Richards (1932), discpula de Malinowski, para quem a alimentao preenche necessidades emocionais, biolgicas e culturais, ou ainda a perspectiva histrica de autores anglo-saxes, como Goody (1982), que simultaneamente enfatizou as condies materiais e simblicas da alimentao ao longo do tempo. Para esse grupo de autores, os alimentos so bons para comer, frase que marca a oposio tese estruturalista de que os alimentos so bons para pensar, como disse Lvi-Strauss (1965, 1968), tese em que o simbolismo da cozinha e das maneiras mesa se desconecta das razes prticas e das dimenses materiais.

    As contribuies nacionais examinadas foram relevantes na compreenso das lgicas que presidem os hbitos alimentares, demonstrando que elas no se prendem exclusivamente ao sentido da alimentao para a economia e trazem a marca da cultura, da aprendizagem e da socializao, assim como so permeadas pelo simbolismo, pelas crenas, pelas identidades sociais, pelas condies materiais e pelo acesso. Alguns estudos contriburam para elucidar o universo de classificaes alimentares, no como sistemas fechados em si mesmos, mas nos seus usos, ainda que outros procurassem os princpios ordenadores das formas de pensar os alimentos.

    Apesar das diferentes perspectivas tericas adotadas e de suas divergncias analticas, a produo acadmica examinada reafirma que o ato de alimentar se insere em uma ordem cultural que se expressa no sistema de classificaes alimentares na seleo do que ou no comestvel, e que toda cultura dispe de um conjunto de categorias e de regras alimentares, de prescries e proibies relativas ao que deve ou no ser comido. Os estudos se preocuparam em compreender os hbitos ou os comportamentos alimentares, os modos de consumo e de sobrevivncia, as representaes e prticas sobre a alimentao, tendo se voltado principalmente para as classes populares urbanas.

    Vale observar que os estudos sobre o consumo alimentar no conquistaram, no contexto brasileiro, um estatuto especializado, como na Frana, onde geraram anlises sociolgicas importantes (a sociologia dos gostos e do consumo inspiradas em Pierre Bourdieu); algumas etnografias feitas na dcada de 1970 se inspiraram nesses estudos para compreender os hbitos alimentares. As pesquisas

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    examinadas se marcaram pela sincronia e como etnografias localizadas, exceto os estudos de Cndido (1971) e Brando (1981), que compreenderam as mudanas e transformaes das prticas e representaes alimentares, que ainda so sinalizadores bastante sensveis das permanncias ou das alteraes mais profundas nos modos de vida.

    Vimos tambm a continuidade de preocupaes com temas clssicos da antropologia social, como as religies e, no seu mbito, as comidas sagradas, traando os elos dos homens com as divindades, como tambm entre os prprios homens e extrapolando dos rituais para a sociedade, para caracterizar muitas comidas e pratos regionais. O renovado interesse pela gastronomia e a abertura da antropologia para novos objetos, desde o fim do milnio passado, parecem motivar o deslocamento de olhares antropolgicos para as cozinhas, como elementos emblemticos de identidades grupais, regionais. Tambm as alteraes na comensalidade nos espaos urbanizados metropolitanos, movidas no s pelas novas formas de produo/consumo de alimentos, mas pelas redefinies do tempo e do espao na sociedade moderna, tm convocado os olhares antropolgicos para os novos lugares.

    Ao lado de estudos dessa natureza, que podem fazer interlocuo com a nutrio, h outros que convocam olhares multidisciplinares, como as doenas alimentares (obesidade, bulimia, anorexia) e a alimentao de grupos especficos religiosos ou no, entre outros assuntos. Observa-se tambm que os estudos antropolgicos, disciplinarmente orientados, tendem a privilegiar a carga simblica da alimentao, descurando-se freqentemente da sua dimenso material. A comida, disse a antroploga Maciel (1996:8),

    no apenas boa para comer, mas tambm boa para pensar. Pensar em comida pensar em simbolismo, pois ao comermos, alm de ingerirmos nutrientes (que permitem a sobrevivncia), ingerimos tambm smbolos, idias, imagens e sonhos (que permitem uma vivncia).

    Compartilharmos das idias dessa autora quando ela acrescenta que a alimentao responde no apenas ordem biolgica ( nutrio), mas se impregna pela cultura e a sociedade, sendo que a sua compreenso convoca um jogo complexo de fatores: desde os ecolgicos, os histricos, culturais, econmicos e sociais