355s de sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...frei luís de sousa de...

42
FREI LUÍS DE SOUSA DE ALMEIDA GARRETT criação criação criação criação Diogo Bento e e e e Inês Vaz DOSSIÊ PEDAGÓGICO

Upload: others

Post on 27-Apr-2020

3 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

FREI LUÍS DE SOUSA DE ALMEIDA GARRETT

criaçãocriaçãocriaçãocriação Diogo Bento e e e e Inês Vaz

DOSSIÊ PEDAGÓGICO

Page 2: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

1

ÍNDICE

Ficha artísticaFicha artísticaFicha artísticaFicha artística

2

I. I. I. I. O espetáculoO espetáculoO espetáculoO espetáculo

3

II. Almeida Garrett: o homem e o seu tempoII. Almeida Garrett: o homem e o seu tempoII. Almeida Garrett: o homem e o seu tempoII. Almeida Garrett: o homem e o seu tempo 5

Almeida Garrett: BiobibliografiaAlmeida Garrett: BiobibliografiaAlmeida Garrett: BiobibliografiaAlmeida Garrett: Biobibliografia 5

O RomantismoO RomantismoO RomantismoO Romantismo 10

Corpo e civilidade: ser romântico (Garrett)Corpo e civilidade: ser romântico (Garrett)Corpo e civilidade: ser romântico (Garrett)Corpo e civilidade: ser romântico (Garrett) 13

Garrett e o teatro portuguêsGarrett e o teatro portuguêsGarrett e o teatro portuguêsGarrett e o teatro português

15

III. III. III. III. Frei Luís de Sousa: Frei Luís de Sousa: Frei Luís de Sousa: Frei Luís de Sousa: algumas leiturasalgumas leiturasalgumas leiturasalgumas leituras 21

Garrett e a figura espectralGarrett e a figura espectralGarrett e a figura espectralGarrett e a figura espectral 22

Frei Luís de SousaFrei Luís de SousaFrei Luís de SousaFrei Luís de Sousa:::: Drama ou Tragédia?Drama ou Tragédia?Drama ou Tragédia?Drama ou Tragédia? 25

Figurações do femininoFigurações do femininoFigurações do femininoFigurações do feminino em em em em Frei LuísFrei LuísFrei LuísFrei Luís de Sousade Sousade Sousade Sousa de Almeida de Almeida de Almeida de Almeida GarrettGarrettGarrettGarrett

27

Natureza e Raízes Históricas do SebastianismoNatureza e Raízes Históricas do SebastianismoNatureza e Raízes Históricas do SebastianismoNatureza e Raízes Históricas do Sebastianismo

33

IV. Sugestão de AtividadesIV. Sugestão de AtividadesIV. Sugestão de AtividadesIV. Sugestão de Atividades

37

Equipa Teatro Nacional D. Maria IIEquipa Teatro Nacional D. Maria IIEquipa Teatro Nacional D. Maria IIEquipa Teatro Nacional D. Maria II, E.P.E., E.P.E., E.P.E., E.P.E.

39

Page 3: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

2

9 – 19 FEV’12

SALA ESTÚDIO

4.ª a sáb. 21h15 dom. 16h15

FICHA ARTÍSTICA

criação

DIOGO BENTO

INÊS VAZ

desenho de luz

JOANA GALEANO

desenho de tela

MIGUEL BONNEVILLE

interpretação

DIOGO BENTO

INÊS VAZ

ELISABETE FRAGOSO

coprodução

AMONG OTHERS ASSOCIAÇÃO

TEATRO DA GARAGEM

M/16

Page 4: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

3

I. O ESPETÁCULO

Fotografia do espetáculo © Alípio Padilha

Nós temos de continuar, não podemos continuar, mas vamos continuar. Desta vez

com Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett, um dos melhores clássicos da

literatura portuguesa, um desejo de homenagem ao Senhor Almeida da parte do

Senhor Bento e da Senhora Dona Vaz.

Mesmo sabendo que a Maria morre e que os outros ficam sozinhos ou vão para o

convento, mesmo sabendo que não vai dar certo, mesmo sabendo que a vinda do

Romeiro é inevitável, mesmo sabendo que não há salvação para ninguém e que é

preciso haver um bode expiatório, nós vamos continuar.

É mais ou menos como um pensamento esquizofrénico que nos guia quando

acreditamos que não é possível e que não depende de nós e, mesmo assim,

fazemos tudo com a mesma convicção, ou até mais, para que aconteça. Neste

caso, para que a Maria não morra sozinha a cuspir sangue. Porque, até lá

chegarmos, tudo pode mudar. Porque, na verdade, tudo tem em si a potência para

ser tudo e para mudar.

Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e

Inês Vaz e apresenta-se como a terceira parte de uma trilogia sobre o ato teatral

e a criação de uma ficção acerca dos próprios criadores que se iniciou com

Han Shot First (estreado a 19/03/2010 no Teatro Taborda em Lisboa e que passou

pelo espaço Teatro Praga, Formas 2010 em Tavira e Festivais de Gil Vicente em

Guimarães – um projeto financiado pela DGArtes/Ministério da Cultura e pela

Fundação Calouste Gulbenkian) e ao qual se seguiu I Love Broadway (estreado na

Casa Conveniente a 1/03/2011 com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian).

Page 5: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

4

Nem o drama, nem o romance, nem a epopeia são

possíveis, se os quiserem fazer com a Arte de verificar as

datas na mão.

Esta quase apologia seria ridícula, Senhores, se o meu

trabalho não tivesse de aparecer senão diante de vós, que

por intuição deveis saber, e por tantos documentos tendes

mostrado que sabeis, quais e quão largas são, e como

limitadas, as leis da verdade poética, que certamente não

deve ser opressora, mas também não pode ser escrava da

verdade histórica. Desculpai-me apontar aqui esta

doutrina, não para vós que a professais, mas para algum

escrupuloso mal advertido que me pudesse condenar por

infracção de leis a que não estou obrigado porque não as

aceitei.

Almeida Garrett, Memória ao Conservatório Real, 1843

Fotografia do espetáculo © Alípio Padilha

Page 6: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

5

II. ALMEIDA GARRETT:

O HOMEM E O SEU TEMPO

ALMEIDA GARRETT: BIOBIBLIOGRAFIA

1799

João Baptista da Silva Leitão, a que só depois acresceram os apelidos com que se

notabilizou, nasce a 4 de fevereiro numa casa da velha zona ribeirinha do Porto,

não longe da alfândega de que o pai possuía o cargo de selador-mor; a 10, é

batizado na igreja de Stº Ildefonso. Filho segundo, entre cinco irmãos, de António

Bernardo da Silva e de Ana Augusta de Almeida Leitão, família burguesa ligada à

atividade comercial e proprietária de terras na região portuense e nas ilhas

açoreanas.

1804-1808 «... os felizes dias de minha descuidada meninice!»»»» Infância repartida pela Quinta do Castelo, para onde a família se transferiu, e a do

Sardão, ambas ao sul do Douro, no concelho de Gaia. Ao legado de velhas histórias

e lendas populares das criadas Brígida e Rosa de Lima junta-se o preceptorado do

tio paterno, bispo de Malaca, Frei Alexandre da Sagrada Família, e do materno tio

João Carlos Leitão, formado em cânones e depois juiz de fora no Faial.

Page 7: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

6

Casa onde nasceu Almeida Garrett, em 1799,

na Rua do Calvário, n.ºs 37, 39 e 41.

1809-1816 ««««Padre, nunca!»»»» Partida da família para os Açores, antes que as tropas de Soult entrassem no

Porto. Adolescência na ilha Terceira, destinada à carreira eclesiástica, entre a

escola régia do padre João António e as aulas do erudito Joaquim Alves a que a

aprendizagem no seio familiar dava sequência. Chegou a tomar ordens menores

com que, por intercedência do tio Alexandre, então bispo de Angra, deveria

ingressar na ordem de Cristo, mas cedo recusou prosseguir.

Primeiras incursões literárias, algumas já com o pseudónimo de Josino Duriense:

Odes Anacreônticas, c. 1814 (ed. póst. 1902); algumas das primeiras poesias

inclusas na Lírica; poema épico inacabado Afonseida, ou fundação do império

lusitano, 1815-16 (ed. póst. 1985); um esboço trágico de Ifigénia em Tauride, 1816

(ed. póst. 1952) e a tragédia Xerxes.

1816-1820 ««««rodeado de Enciclopedistas, de Rousseaus e de Voltaires»»»» Autorizado a cursar Leis, matriculou-se na Universidade de Coimbra. Ao contacto

com os escritores das Luzes acresceu a leitura dos primeiros românticos,

enquanto transformava em ardor revolucionário a rápida adesão às ideias liberais.

Se, de início, pouco escreveu, depressa intensificou a criação literária.

Ensaia Mérope. Escreve O Roubo das Sabinas.

Page 8: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

7

1820-1823 ««««Alceu imberbe, levanta-se com a revolução»»»» O jovem bacharel e liberal maçónico participou com ardor na revolução vintista,

como poeta e dramaturgo, mas também como dirigente estudantil e orador, por

entre atividades clandestinas. Curiosamente, as obras deste período, bem como a

correspondência pública, eram datadas conforme o calendário francês

republicano.

(1921) Escreve o poema de homenagem à revolução "O dia vinte e quatro de

Agosto". Representação de O Corcunda por Amor no Teatro do Bairro Alto. Catão

sobe à cena.

(1922) Publicação do Retrato de Vénus e processo judicial devido à pretensa

imoralidade do texto.

1823-1828 ««««Terra, mas terra estranha, de exílio»»»» Em precária subsistência, a distanciação de um 1.º exílio permitiu-lhe melhor

reflectir criticamente e atualizar conhecimentos que marcaram a viragem

romântica do autor, sem completo abandono clássico e racionalista. No seguinte e

curto período da primeira vigência da Carta, aplicou-se em trabalhos políticos que

fixaram as bases de doutrinação liberal por que irá pautar toda a sua posterior

carreira de «homem público».

(1923) Exilado em Londres, escreve O Magriço.

(1925) Publicação, em Paris, de Camões.

(1926) Publicação, em Paris, de D. Branca. Escreve Bosquejo da História da Poesia e

Língua Portuguesa e a Carta de guia de eleitores em que se trata da opinião

pública, das qualidades para deputado e do modo de as conhecer. Publica o jornal

O Português.

1828-1834 ««««onde verdadeiramente acaba o velho Portugal e de onde começa o novo»»»» A um 2.º exílio, em piores condições que o anterior, seguiu-se a guerra civil,

período em que ao novo rumo do gosto literário junta a pedagogia liberal de uma

legalidade constitucional e de uma prática das liberdades, colaborando

diretamente nos primeiros monumentos legislativos do liberalismo e iniciando-se

na carreira diplomática.

(1928) Em Londres, publica Adosinda.

(1929) Publica, ainda em Londres, Da Educação e Lírica de João Mínimo.

(1930) Publicação, também em Londres, de Portugal na Balança da Europa.

(1932) Inicia o Arco de Sant'Ana.

Page 9: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

8

1835-1840 ««««nova e brilhante era na vida pública»»»» A breve ostracismo, com que a nova administração liberal o relegou para o

estrangeiro, seguiu-se o envolvimento no setembrismo, com colaboração na

ordem jurídica demoliberal, e o início da carreira parlamentar, ao mesmo tempo

que lançou as bases do teatro nacional.

(1936) Cria O Português Constitucional.

(1938) Apresenta Um Auto de Gil Vicente.

(1939) Elabora um Projecto de lei da propriedade literária.

(1940) Apresentação de D. Filipa de Vilhena.

Casa onde morreu Almeida Garrett em Lisboa,

na Rua Saraiva de Carvalho, n.º 78.

1841-1850 ««««A literatura ganhou com este ócio involuntário»»»» Com a década cabralista - durante a qual «passou para os bancos da oposição»,

em que emergiu na liderança da minoria parlamentar, ou foi afastado das

atividades públicas - coincidiu o auge da sua carreira literária, produzindo as

obras-primas que definitivamente o consagraram e entre as quais não faltam as

diatribes contra a nova aristocracia dos barões ou agiotas.

(1942) Representação de O Alfageme de Santarém.

(1943) Leitura, a 6 de maio, de Frei Luís de Sousa, no Conservatório Real.

Representação da peça, a 4 de julho, na Quinta do Pinheiro, em Lisboa. Sai o

primeiro volume do Romanceiro.

(1944) Publicação de Frei Luís de Sousa.

(1945) Publicação do primeiro volume do Arco de Sant'Ana e das Viagens na Minha

Terra.

(1948) Publicação de A Sobrinha do Marquês, As Profecias do Bandarra e Um

Noivado no Dafundo.

Page 10: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

9

(1950) Publicação do segundo volume do Arco de Sant'Ana.

1851-1854 ««««pergaminhos, esses deram-mos pela opinião pública»»»» O início da chamada Regeneração, último ato de sinceridade política do

liberalismo, de que foi paladino, marcou a sua consagração oficial, conquanto

breve: foi visconde, sem que o título alcançasse desejada segunda vida; chegou a

ministro, por cinco meses, vítima de intriga; nomearam-no par de um reino cujo

governo rápido criticou até ao fim da vida.

(1953) Publica Folhas Caídas e inicia a escrita do romance Helena.

Bicentenário de Almeida Garrett | Biblioteca Nacional

Almeida Garrett, Litografia, 1846.

Page 11: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

10

O ROMANTISMO "O termo Romantismo deriva, com mediações francesas, do adjectivo inglês

romantic, utilizado desde cerca de meados do século XVII com o significado de

'semelhante aos antigos romances' (em inglês, romance designa um género

narrativo caracterizado pela fantasia, pelo mistério e pela aventura). O adjectivo

romantic, ligado portanto originalmente a manifestações literárias, podia

qualificar uma paisagem, um monumento, etc., mas desde o início do último

quartel do século XVII, pelo menos, apresenta um significado inequivocamente

estético-literário, caracterizando, por exemplo, as obras de poetas como Pulci,

Boiardo e Ariosto, os quais, em virtude do papel nelas desempenhado pela fantasia

e pela efabulação romanesca, não obedeciam às normas clássicas da

verosimilhança.

Na cultura racionalista do iluminismo, em consonância com a poética

intelectualista do neoclassicismo, a palavra romântico adquiriu significados

disfóricos ('quimérico', 'inacreditável', 'ridículo', 'absurdo'), mas na segunda

metade do século XVIII, em conformidade com a valorização crescente, na arte, na

cultura e na vida, do sentimento, da emoção e da imaginação, o vocábulo passou a

ser utilizado frequentemente com significados positivos, como naquele famoso

passo das Revêries d'un promeneur solitaire (1782) de Jean-Jacques Rousseau em

que se lê que 'as margens do lago Bienne são mais selvagens e românticas do que

as do lago de Genebra". Ao longo da segunda metade do século XVIII, em inglês,

em francês e em alemão, a palavra romântico apresenta muitas vezes um

inequívoco significado literário, designando e caracterizando certos tipos de

textos, certos autores (Ariosto, Tasso, Shakespeare, Cervantes) e determinadas

categorias estéticas. (...)

Quer numa perspectiva histórico-literária quer numa perspectiva tipológico-

literária, o termo romântico passou a ser utilizado com frequência crescente,

desde o início do século XIX, em contraposição com o termo clássico. (...) Com

significados que oscilam entre categorias histórico-literárias e categorias

tipológico-literárias, os termos romântico e Romantismo foram aplicados, por

diversos historiadores e críticos literários de finais do século XVIII e inícios do

século XIX, e autores como Dante, Tasse, Shakespeare, Cervantes e Calderón de la

Barca, tendo Friedrich Schlegel afirmado, no fragmento n.º 247 do Athenaeum, que

'a universalidade de Shakespeare é como que o centro da arte romântica'. É

elucidativo sublinhar que os escritores dos séculos XVI e XVII assim qualificados e

caracterizados como românticos são escritores que, no século XX, têm sido

estudados e caracterizados como autores maneiristas e barrocos, o que bem

revela como estas genealogias do Romantismo exprimem a consciência de uma

Page 12: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

11

comum diferença em oposição aos princípios e valores do classicismo e do

neoclassicismo. (...)

As propostas de René Welleck têm inspirado, nas últimas décadas, os estudos mais

consistentes sobre o Romantismo, tendo ficado bem demonstrada a sua

capacidade heurística e a sua justeza. Torna-se indispensável, porém, ter sempre

em consideração as assincronias existentes entre as manifestações do

Romantismo em literaturas 'periféricas' como as de Portugal, de Espanha e dos

países da Europa Oriental e em literaturas 'centrais' como a inglesa, a alemã e a

francesa, bem como as peculiaridades de cada Romantismo, resultantes de

múltiplos factores de ordem literária, cultural, social e política. (...)

Tal como René Welleck, defendemos uma concepção histórico-literária do

Romantismo, mas não uma concepção restritivamente periodológica de um

Romantismo 'entalado' entre o neoclassicismo, por um lado, e o realismo, por outra

parte. O Romantismo é um megaperíodo que, à semelhança do Renascimento, se

tem projectado, em metamorfoses plurais, nas literaturas ocidentais ao longo dos

séculos XIX e XX, embora as suas manifestações originárias, mais homogéneas e

coerentes, se tenham verificado na primeira metade do século XIX. Não é apenas

o neo-Romantismo de finais do século XIX e inícios do século XX que constitui uma

ressurgência, aliás de tipo revivalista, do Romantismo. O simbolismo, o

surrealismo, o expressionismo e o existencialismo são impensáveis à margem do

megaperíodo do Romantismo.

O Romantismo, tal como o Renascimento, não é apenas um estilo literário de

época. Existe uma música romântica, existe uma pintura romântica, existe uma

filosofia romântica, existe uma política romântica, etc. O Romantismo manifesta-se

em todos os domínios da cultura, da arte e do pensamento, porque representa, de

modo global e sistémico, uma revolta, uma contestação e uma refutação, em

relação à modernidade burguesa e capitalista. (...)

Esta aparente rede de contradições e antinomias clarifica-se e resolve-se, se o

Romantismo for pensado como a rejeição de uma concepção mecanicista do

mundo, de uma concepção burguesa, capitalista, utilitarista e instrumental da vida

económica e da organização social, bem como de uma concepção a-histórica,

atemporal e atópica da cultura e das artes. Em contraposição, o Romantismo

elabora uma concepção organicista do mundo, da natureza e da sociedade,

enraizada em ideias filosóficas e religiosas de matriz platónica e neoplatónica,

inspirada em formas de religiosidade panteística e em ideais mágico-religiosos. A

analogia e o símbolo desempenham um papel fulcral na mundividência, no

pensamento, na literatura e nas artes do Romantismo, porque constituem os meios

privilegiados de apreensão e expressão da alma da Natureza e de revelação das

secretas correspondências existentes entre o homem, os seres e as coisas. A

Page 13: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

12

racionalidade científica e técnica, motor de progresso material da modernidade e

da acumulação da riqueza capitalista, não permite conhecer os signos viventes e

secretos da Natureza, as harmonias e as correspondências cósmicas, os anseios

profundos e os enigmas do homem. O Romantismo, ao exaltar a energia

demiúrgica da imaginação e do sonho, ao magnificar o dinamismo criador do eu,

ao proclamar a capacidade cognitiva, a dimensão profética e o poder órfico da

poesia, institui uma ruptura total e insuperável com a Razão do classicismo e do

iluminismo e gera uma modernidade estética que, ao longo dos séculos XIX e XX,

ou ignora a modernidade capitalista, burguesa, científico-tecnológica, ou com esta

entra em dissídio insanável. Se muitos românticos se exilam em 'torres de marfim'

e se comprazem na evasão quer no tempo quer no espaço, inscrevendo assim

negativamente na sua obra o seu conflito com a modernidade sociológica e

técnica, outros, inspirando-se muitas vezes nos valores do passado e da tradição

que o historicismo de Herder, dos irmãos Schlegel, de Carlyle, etc., ensinara a

conhecer e a admirar, assumem-se como hierofantes, profetas e vates de uma

sociedade utópica e de um mundo novo."

V. M. de Aguiar e Silva, "Romantismo", Dicionário do Romantismo Literário Português, coord.

Helena Carvalhão Buescu, Lisboa, Caminho, 1997: 487 - 492.

Fotografia do espetáculo © Alípio Padilha

Page 14: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

13

CORPO E CIVILIDADE: SER ROMÂNTICO (GARRETT)

HELENA CARVALHÃO BUESCU

"(...) No contexto português, podemos também recordar que os dois nomes

fundadores do Romantismo, Almeida Garrett e Alexandre Herculano, viveram

ambos largo período exilados (e portanto expulsos...) do seu país, por razões

cívicas e políticas que não foram afinal alheias à sua produção literária, já que as

suas obras nunca tentaram sequer esconder o seu empenhamento social

relativamente aos valores ideológicos, políticos e éticos por eles subscritos. Por

outro lado, aquando do seu regresso, ambos se envolveram proufundamente,

mesmo se de modos muito diferentes entre si, naquilo que entenderam poder ser

a refundação de um país 'novo' e de uma forma 'nova' de cidadania, em que a

tradição pudesse ser estética e eticamente associada ao que propunham como

modernidade. Dentro de tal envolvimento, cada uma das obras por eles assinadas

é simultaneamente uma 'defesa da poesia' e uma 'defesa da cidade' - talvez a

última derivando da primeira.

Ora é precisamente este conjunto de questões que confirma, no contexto

romântico, a centralidade da figura do intelectual e do seu posicionamento como

i) uma figura paradigmática da cidadania (através da qual o seu corpo e a sua

individualidade surgem como formas de viver a vida sob o signo da arête, isto é,

de uma vida conduzida pela 'arte de viver'); ii) o promotor e o criador de um

programa pelo qual esta 'arte de viver' possa ser ensinada e transmitida, e nessa

medida transformada em qualidade inerente a toda uma nação, que passa a ser

concebida como imagem (mesmo se desfocada) desse mesmo intelectual. O

projecto educativo vê-se assim confirmado pelo carácter representativo do

intelectual, que assegura a complementaridade das dimensões estética e ética, ao

mesmo tempo que molda o conceito de cidade sobre as características

imaginadas pelo poeta para a sua Pólis.

Entretanto, isto significa também que é a própria evolução da vida do poeta, por

exemplo Garrett, com a sua potencialmente progressiva capacidade de ser

desiludido relativamente à viabilidade de um tal projecto de cidadania, que

tenderá a isolá-lo, a pouco e pouco, face a essa desejada (e utópica) imersão, o

que retroactivamente tenderá a confirmá-lo na crença de que a sua

individualidade é a única arête possível.(...)

Page 15: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

14

Ora o corpo do poeta ou do herói representa uma resposta possível, bem como

uma forma de pensar sobre a sua materialidade e o seu grau de existência (da

realidade ontológica) enquanto um modo de atestação do grau de existência da

nação e da própria Pólis que romanticamente ele projecta ser. É isto precisamente

que o texto Frei Luís de Sousa encena no primeiro plano da sua acção dramática:

um mundo inteiro ocupado por pessoas (?) cujos corpos subitamente deixam (ou

deixaram já) de existir, de formas muito diferentes - a loucura que espreita, a

morte, a existência não-legal, a vida monacal em clausura. Ora, a 'espectralidade'

destes corpos que balbuciam torna-se uma forma densa e metaforicamente visível

de encenar o momento em que a própria nação ameaça tornar-se espectral (e

não apenas no passado): momento em que a civilidade foi suprimida e remetida

ao não-existente. Se pensarmos por um instante quais os corpos que neste texto

poderíamos classificar como corpos materiais, bem como em que lugar reside

essa materialidade, compreenderemos sem dúvida que todos eles são, de um

modo ou de outro, mais cedo ou mais tarde, espectros que encenam a sua própria

vida e morte - e que apenas a personagem mais terrestre, ironicamente frade

(frei Jorge), tem um corpo material capaz de sobreviver ao tumulto que agita e

destrói todos os outros. A figura paradigmática da adolescente Maria, com o seu

corpo doente, perturbado (e também sexuado) entre a puberdade e a morte é,

desta perspectiva, a figura exemplar que poderíamos oferecer. A civilidade que

ela tão bem encarna, na sua convicção radical, torna-se impossível na medida em

que é a própria nação que é impossível; e a civilidade surge como o lugar social

do corpo, lugar em que ele tem a capacidade de aprender e jogar o jogo das

relações interpessoais e suas consequências. Este jogo comunitário da civilidade é

reconhecido como ancorado numa ética imanente (por exemplo em Frei Luís de

Sousa) ou, em alternativa, e se esta for entendida como inexistente, é reconhecido

como produzindo apenas situações de simulacro, caso que julgo ser o da obra de

Garrett Viagens na Minha Terra. (...)"

In A Primavera toda para ti. Homenagem a Helder Macedo. Lisboa, Editorial Presença, 2004:

152 - 158.

Page 16: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

15

GARRETT E O TEATRO PORTUGUÊS

CONFERÊNCIA PRONUNCIADA POR AUGUSTO DE CASTRO

NO TEATRO NACIONAL D. MARIA II, EM 19 DE NOVEMBRO DE 1954

"Para compreensão da influência e da glória de Garrett no seu tempo, é

impossível, mais do que em qualquer outro escritor na Literatura Portuguesa,

separar a evocação da sua vida do estudo da sua obra. Não conheço mesmo na

Literatura Europeia, à parte Byron, outro espírito em quem a produção artística e

as vicissitudes do destino pessoal estejam mais indissoluvelmente ligadas.

Nenhuma existência mais ardentemente humana do que a desse inquieto, desse

amoroso impenitente, desse inconstante atormentado pelas paixões e pela

vaidade, desse génio do Coração que foi, acima de tudo, Garrett. Raramente no

esplendor literário, o Poeta e o Homem se encontraram mais sincera e

empolgantemente unidos.

«O drama é a vida e o amor a essencial parte da vida» — escreveu Garrett no

Prólogo do Alfageme de Santarém. Poucas existências terão mais dispersiva e

luminosamente ilustrado esta realidade. Pode dizer-se que a todas as criações do

seu espírito estão misturados farrapos da sua carne.

Esse Escritor espartilhado e brasonado, visconde, no fim da vida, como Camilo —

(que mania tinham, desde o Visconde de Chateaubriand, os homens de letras no

século 19, de serem viscondes!) — que se preocupava, como de negócios de

Estado, com os sinetes, os anéis, os berloques e as condecorações; que mandava

vir de Londres casacas e um trajo de caça, «para ir a Sintra», e que, aos 56 anos, já

ferido pela morte, ainda se gabava para os amigos, conforme conta Gomes de

Amorim: «sinto-me capaz de aguentar seis namoros») — este Escritor janota, por

vezes enfatuado e ingenuamente vaidoso, que cria, no seu tempo, o dandismo em

Portugal e «a moda à Garrett», mas sempre generosamente, exaltadamente

sincero, conservou, mesmo na doença e na precoce velhice, o segredo, o culto, o

vício admirável da mocidade. Morreu com os vinte e cinco anos que tinha havia

trinta anos — disse Herculano.

«O tempo que é preciso para se ser jovem!» — escreveu um dia Picasso, que anda

há setenta anos a passear vinte anos pelo Mundo. Garrett, seis anos antes de

morrer, publica a sua obra-prima lírica, As Folhas Caídas, os versos estuantes dum

amor de colegial pela Viscondessa da Luz, que tinha 28 anos espanhóis; exibe, sob

as árvores de Sintra, e na estrada de Pedrouços, o seu idílio inflamado e às

Page 17: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

16

escondidas escreve e passa, nos salões, bilhetinhos de derriço à mulher amada:

«morro pelos mais lindos olhos que ainda vi». Já consagrado pelo êxito e pelos

anos, debruçado duma frisa deste teatro, de casaca verde, colete branco e camisa

com folhos de cambraia, numa noite de primeira representação, grita para a

plateia indiferente e silenciosa: «Aplaudam, bárbaros!». (...)

A acção ilustre do grande Escritor no teatro português pode dividir-se em três

grandes expressões: os seus esforços para a fundação deste Teatro e do

Conservatório e a criação da Inspecção-Geral dos Teatros; o auxílio, material e

literário, à renovação dos autores e dos actores portugueses e, finalmente, a sua

obra admirável de dramaturgo, em que avulta, como jóia insuperável da nossa

literatura dramática, o Frei Luís de Sousa — que, só por si, constitui a glória

definitiva do Teatro Português.

*

Quando Garrett regressa dos seus exílios na Inglaterra e na França, o espectáculo

que, nos domínios da inteligência, a sociedade portuguesa do tempo, em plena

fogueira política, lhe oferece não podia deixar de impressionar o ardor dessa

espécie de proselitismo intelectual e sentimental que, pela vida fora, nunca o

abandona. O primeiro e mais flagrante dos contrastes com a influência e a

recordação do meio em que, em Londres e Paris, vivera, é o estado andrajoso do

teatro português, «acantoado, como diz Teófilo Braga, nos barracões do Bairro

Alto e do Beco das Comédias, vergonhosamente sumido no Pátio do Patriarca, nos

pardieiros do Salitre e da Rua dos Condes».

Os actores eram borrachos sem consciência. O público delirava com a Preta de

Talentos, a Zanguizarra, a Talafozada e com as comédias do António Xavier, de

que nos ficou a memória do famoso Manuel Mendes Enxúndia. (...)

Garrett tinha feito representar em Plymouth, pelos companheiros de emigração, a

sua tragédia da mocidade, Catão. Recebera a influência directa de Shakespeare,

de Goethe e de Schiller, da renovação romântica na Alemanha. O vendaval de

Hugo, com o Cromwell e o Ernani, começava a soprar sobre a Europa. De

Inglaterra Garrett traz o dandismo e essa espécie de liberalismo elegante e

palaciano que, politicamente, conservou até morrer. Familiarizara-se com a

eclosão do espírito europeu, na primeira metade do século 19. Mas — facto só na

aparência paradoxal — este Escritor, à medida que, pela evolução da sua

inteligência e da sua cultura, se universaliza — (como muito ‘bem notou o Sr. João

Gaspar Simões, na primeira das suas conferências no Porto, Garrett é um dos

nossos escritores do século passado de personalidade e estofo mais

decisivamente universalistas), à medida que se universaliza, o autor de Merope e

do Catão, o poeta filintista da mocidade, o neo-arcádico de antes do exílio

Page 18: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

17

escreve, no seu regresso a Portugal, estas palavras que vão ser o programa da sua

acção política e literária, o programa do Garrettismo: «Os deuses gregos fizeram

as delícias de nossos empoados avós e espartilhadas tias. Mas para nós é a

história nacional, as tradições populares, as superstições mesmas, os costumes, as

crenças de cada povo que só podem fornecer assuntos que nos interessem e

divirtam».

Em Arte, a universalidade só se atinge através da expressão nacional. O

nacionalismo de Garrett vai dar à Literatura Portuguesa as únicas obras

verdadeiramente universais da primeira metade do século 19, em Portugal.

*

Frei Luís de Sousa, enc. Pedro Lemos, TNDM II, 4/02/1969. Na imagem: Maria Dulce, Linda Bringel e Pedro Lemos (1.º ato). Fotografia de José Marques.

(...) Garrett é nomeado para o cargo gratuito de Inspector-Geral dos Teatros, que

só exercerá durante cinco anos, até Janeiro de 1841, e o seu primeiro trabalho é

organizar uma companhia de declamação que vai funcionar no velho Teatro da

Rua dos Condes, estreando-se com o drama A Duquesa de Vaubalière. Garrett

aproveita-se para esse efeito do exemplo e da colaboração duma Companhia

francesa, que chegara a Portugal em 1835 e de que faziam parte os actores MM.

Paul, Charlet, Roland, M.me Charton.

Page 19: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

18

O Conservatório de Arte Dramática, criado ao mesmo tempo que a Inspecção-

Geral dos Teatros, foi dividido em três escolas: declamação; música e dança;

música e ginástica especial. À frente do novo Conservatório continuava o Sr.

Bomtempo, o que era de bom agoiro. O curso de declamação era dividido em três

períodos ou termos: Recta Pronúncia e linguagem; Rudimentos literários e Aula de

dança «para desplante do corpo e desembaraço dos movimentos». Este programa

valeu durante algum tempo, a Garrett, a alcunha, lançada pelos seus inimigos, de

«Recta Pronúncia». Quanto ao desembaraço dos movimentos avançou-se alguma

coisa desde então até aos nossos dias. O «desplante do corpo» é hoje

sensivelmente o mesmo. Após longas hesitações, o Conservatório ficou instalado

no edifício dos Caetanos, então pouco menos do que em ruínas. O actor francês M.

Paul fora encarregado da direcção da Escola Dramática e para o coadjuvar, como

professor, foi nomeado um actor português de nome «Lisboa». O Conservatório

passou assim a ser não o Conservatório Real de Lisboa, mas o Conservatório do

Lisboa. Em 23 de Março de 1840, por ocasião do aniversário da Rainha D. Maria II,

realizou-se no Teatro do Salitre a primeira festa do Conservatório. O programa

tinha três partes. A primeira era constituída por uma «cantata» chamada

Apoteose, composta pelo professor Francisco Xavier Migone, com letra de César

Perini di Luca. Os alunos da Escola de Música interpretavam os papéis de Vénus,

Camões, Apolo e o Coro. A «cantata» tinha cinco cenas e todas decorriam em «um

sítio delicioso dos bosques Idálios», onde Camões aparecia «pensativo e triste

(dizia a rubrica) assentado debaixo dum loureiro».

* (...) A gloriosa tarefa de Garrett de restauração do Teatro Português, que, ele

próprio, deveria qualificar de «pasmosa pertinácia», tem o seu coroamento na

longa cruzada para a fundação e construção deste Teatro.

O decreto de 1836, promulgado sobre o Projecto de Garrett de 12 de Novembro,

estabelecia, como vimos há pouco, as bases para a constituição duma sociedade

destinada a promover os meios para a construção dum edifício «em que (eram as

expressões do Legislador) decentemente se pudessem representar os dramas

nacionais».

A primeira dificuldade a resolver era a escolha do local para o novo Teatro.

Começa aí o inevitável drama de todas as iniciativas e obras burocráticas.

Joaquim Larcher indicara em 1836 o terreno da Anunciada, perto do velho Teatro

da Rua dos Condes. Garrett, nomeado Inspector-Geral dos Teatros, renuncia a

esta ideia e propõe o Palácio da Inquisição, no Rossio. Alguns séculos antes, diante

dos seus sinistros muros, tinha sido queimado vivo um homem de teatro, António

José da Silva. Essa circunstância, entre outras, indicava, antes de mais nada, este

local para futuros suplícios dramáticos. A História também tem as suas ironias.

Page 20: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

19

O Governo aceita a indicação de Garrett. O arquitecto Chiari é encarregado de

fazer o projecto, cujo custo é, nessa altura, computado entre sessenta e cinco mil e

setenta e cinco mil cruzados. Foi ouvido o Inspector-Geral dos Teatros; foram

mandados ouvir os Arquitectos da Academia de Belas-Artes. Em Outubro de 1838,

foi eleita uma Comissão para reunir os accionistas. Quando tudo estava pronto e

se ia obter a autorização do Governo para a formação da Sociedade, o Governo

de então já tinha dado outro destino menos dramático ao Palácio do Rossio. Tinha

amortizado com ele uma parte da dívida do Estado à Câmara Municipal de Lisboa.

O terreno agora pertencia à Câmara. E aqui acaba o primeiro acto.

Frei Luís de Sousa, enc. Pedro Lemos, TNDM II, 4/2/1969.

Na imagem: Rogério Paulo e Maria Dulce (1.º ato). Fotografia de José Marques.

O segundo acto inicia-se com as diligências de Garrett, desiludido do Palácio da

Inquisição, para obter a cerca do Convento de S. Francisco da Cidade. A proposta

é aceita, publicam-se as condições para a constituição da empresa accionista,

obtêm-se 30:700$000. O Parlamento aprova. Os trabalhos vão começar. Passou-

se isto em começos de 1839. Entra nessa altura em cena o Conde de Farrobo que

se oferece para, sendo-lhe o terreno vendido em boas condições, construir, ele, o

teatro à sua custa, ficando sua propriedade. Foi solicitada e obtida oficialmente a

autorização para a venda particular, sem arrematação em praça pública. O

Governo manda que a Inspeccão-Geral dos Teatros estipule as condições de

venda. Surgem, porém, desinteligências entre Garrett e Farrobo. Este desiste da

sua proposta e da construção.

Page 21: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

20

A ideia da cerca do Convento de S. Francisco é inutilizada. Tem de se voltar ao

princípio. Fim do segundo acto.

A primeira cena do terceiro acto passa-se na Câmara dos Deputados, em 1840.

Garrett, que faz parte do Parlamento, consegue a aprovação duma lei autorizando

o Governo a ceder o terreno, bem como os materiais desaproveitados de outros

edifícios destruídos, para a construção do Teatro Nacional, podendo fazê-lo por

meio de compra ou «troca por outros quaisquer bens».

(...) O quarto acto tem por protagonista o antigo Governador Civil, Joaquim

Larcher, nomeado para substituir Garrett na Inspecção-Geral dos Teatros — o

homem que em 1836 realizara os primeiros esforços para a edificação do Teatro. Ê

ele quem, em 1841, sucedendo a Garrett, retoma a tarefa interrompida pela

demissão do grande Escritor. Deve-se-lhe um engenhoso plano de subscrição para

angariamento dos fundos necessários à construção. Recorrendo às Caixas do

Contrato do Tabaco, aliviadas durante seis meses, de 1843 a 1846, do encargo de

sustentar a Ópera Italiana em S. Carlos, esperando-se obter assim quarenta

contos; com o subsídio de dez contos da Rainha e cinco contos do Duque de

Palmela, uma ajuda do Estado de vinte contos e com outras verbas, Larcher obtém

noventa contos. As obras iniciam-se em Julho de 1842.

Realizava-se enfim o sonho de Garrett. O Teatro ia ser construído sobre estacas,

devido à humidade do solo. Castilho põe-lhe, por isso, o nome de «Teatro Agrião».

*

(...) O velho conceito de Beaumarchais de que o género duma peça depende muito

menos do conflito que ela cria do que dos caracteres que esse conflito põe em

jogo, tem no Frei Luís de Sousa um singular exemplo. A intensidade dramática, na

obra de Garrett, é dada, mais ainda do que pela acção, pela empolgante

sobriedade do desenho dos caracteres, como nas grandes tragédias clássicas,

pela sombra da fatalidade que, desde a primeira cena, sobre eles paira. A

imortalidade do drama provém sobretudo da empolgante humanidade das figuras

que, traduzindo sentimentos eternos e universais, como o amor, o remorso, a

fidelidade do sacrifício, o fervor religioso, ficam, sempre, fundamentalmente locais

e portugueses. Telmo e o seu sebastianismo, Manuel de Sousa Coutinho e o seu

ardente simbolismo patriótico, Madalena e o seu idealismo amoroso, são

enraizadamente nacionais. Sete anos, como o tempo que Jacob serviu a Labão,

levou esta obra máxima do Teatro Português a subir do pequeno teatro de

amadores da Quinta do Pinheiro até ao palco desta Casa que só à obstinação de

Garrett devia a sua existência. Os meandros da política nada têm de comum com

a Justiça da História."

In Discursos Almeida Garrett: 150 anos depois, Lisboa, Universidade Aberta, 2006: 179-197

Page 22: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

21

III. FREI LUÍS DE SOUSA: ALGUMAS LEITURAS "Depois do brilhantissimo livro «Viagens na minha terra», de que os maiores

escriptores, como Rebello da Silva, Castilho, Gomes d'Amorim, Theophilo Braga,

etc., disseram ser um monumento immorredouro da litteratura portugueza, a

melhor obra de Garrett é, sem contestação, o «Frei Luiz de Sousa». Vegezzi

Ruscalla, na revista «Cornelia» de Florença, diz, a pag. 180, que Portugal tem no

auctor do «Frei Luiz de Sousa» o seu Goethe, o seu Byron, o seu Lamartine e o seu

Manzoni, ajuntando: «Questo drama é un vero capolavoro». A. P. Lopes de

Mendonça («Memorias da litteratura contemporanea», Lisboa 1855) escreveu:

«...talvez pareçam demasiadamente singelos os dados d'esta funebre tragedia, e

todavia cremos que a litteratura moderna não possue monumentos de mais

superior e acabado molde...» Th. Braga («Questões de litteratura e arte

portugueza», Lisboa 1882, pag. 384) chama-lhe tragedia unica, e sem rival nas

litteraturas modernas. Rebello da Silva acha que as scenas do terceiro acto do

«Frei Luiz de Sousa» são as mais tragicas que conhece, e o quarto acto é o maior

esforço dramatico de que tem noticia.

«Frei Luiz de Sousa» tem tres traducções francezas; está tambem vertido em

hespanhol, italiano, inglez e allemão. Foi representado em Paris. Muito se tem

escripto sobre a grandiosa tragedia, sendo a ultima producção - «Frei Luiz de

Sousa» de Garrett - Notas com um prefacio de Th. Braga, por Joaquim d'Araujo."

Capa da edição da obra Frei Luiz de Sousa,

de Almeida Garrett, fac-símile da edição da Quinta do Pinheiro.

Page 23: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

22

GARRETT E A FIGURA ESPECTRAL

EDUARDO LOURENÇO

"Os fantasmas são os nossos fantasmas. Nossos, quer dizer, do que nós somos

como seres de paixão, sentimento e sonho, mas também como memória, tempo

perdido e conservado, onde a nossa vida real a si mesma se espectraliza, quer

dizer, em permanência se teatraliza. Da vida como teatro - cena interior e cena

exterior, história pessoal e história colectiva, se não confundidas, pelo menos

ligadas intrinsecamente uma à outra, foi Garrett o primeiro e, até hoje, o supremo

encenador. (...) No poema Camões, Garrett celebra menos os castelos e as ruínas

tenebrosos da sua querida Albion, com os seus crepúsculos nostálgicos, do que a

luminosa Sintra. Mas só em Frei Luís de Sousa o fantasma se dissolve aceitando-se

como fantasma, quer dizer como vida entre sonho e vida, sepultada em Deus para

recusar a verdadeira morte: a de um destino confinado ao seu nada. Na mais

célebre cena do teatro português - a única que adquiriu um estatuto mítico -, D.

João de Portugal não é propriamente um espectro. Pode mesmo dizer-se que é a

sua negação, pois surge a manifestar-se aos vivos para se desfazer de si mesmo

como o espectro em que, simbolicamente, os que o julgavam ou precisavam de o

saber morto, o tinham convertido. Mas quando sai de cena, depois de se ter

revelado melancólica, irónica e cruelmente, como ninguém, D. João é já um

autêntico espectro.

Naturalmente, um espectro de um género novo, como novo é o drama em que

desempenha, ao mesmo tempo, o papel de deus ex machina, do revenant e de

figura de um destino mais que anunciado. O génio de Garrett foi, entre outras

intuições, o de conciliar, não só em termos de eficácia teatral mas de coerência

psicológica, dois papéis, à primeira vista inconciliáveis, de uma mesma

personagem, de que, aliás, nada sabemos de verdadeiramente pessoal. D. João de

Portugal é imaginado pela inquietude e pressentimento alheios (Dona Madalena,

Telmo) e definido pelo gesto que o anula em figura espectral. E é aqui que Garrett,

ao mesmo tempo que situa e repercute uma figura já clássica do imaginário

europeu - em particular, do que começa com Walpole -, a transfigura e sublima,

interiorizando-a. Ao contrário dos espectros paradigmáticos de Walpole ou Ann

Radcliffe, a figura espectral de D. João não tem, senão no modo diferido e,

digamos, 'sobrenatural' do seu reaparecimento, nada de exterior, ou de

intrinsecamente inumano. Não é como o verdadeiro espectro, emanação de

qualquer potência tenebrosa ou morto-vivo sem sepultura assombrando a morada

dos vivos para reclamar deles a justiça ou restabelecer a ordem do mundo

Page 24: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

23

abalada por um crime sem nome, como os de Clitemnestra e Egisto revistos por

Shakespeare.

O D. João de Garrett não está vivo entre mortos como um 'espectro', paradoxal

autodenegação da opacidade da Morte e da nossa total incapacidade de a

pensar, mas apenas como não-Morte. D. João está morto entre os vivos por ter

desaparecido, menos da memória inquieta de Madalena que do seu coração, onde

nunca fora verdadeiramente 'ninguém'. E a esse título, menos que um espectro,

menos que a figura espectral de que se revestirá para se aceitar (ou assumir),

mas agora por um acto de livre vontade, como definitivamente morto.

Imaginando D. João, imaginando-o como figura espectral, Garrett desembaraçou-

se de toda a panóplia de sobrenaturalismo realista própria do espectro tão caro

ao espectáculo teatral, com carta de nobreza já firmada, de Shakespeare a Tirso

de Molina e deste a Molière. Aquelas irrupções do 'outro mundo' por excelência

conservaram o seu papel e o seu incontestável fascínio até aos nossos dias. (...)

Frei Luís de Sousa, enc. Pedro Lemos, TNDM II, 4/2/1969. Na imagem: Cena final - Morte de Maria (3.º ato). Fotografia de José Marques.

Page 25: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

24

O Frei Luís de Sousa não é ainda a simbolista-expressionista Sonata dos Espectros

de Strindberg, banquete de sombras ávidas por voltar à verdadeira vida,

confessando os seus crimes ocultos ou apenas imaginados. O Frei Luís de Sousa é

apenas um pesadelo diferido. Mas está já no caminho da metamorfose de um

teatro de conflitos exteriores, imitados dos da vida, representados num espaço e

num tempo de estrutura ainda clássica, para um teatro de interioridade, tão

intimamente instável como as vidas que procuram o seu rosto no espelho sem

fundo da subjectividade que é a quinta-essência do Romantismo. (...)

O carácter espectral que Garrett, por toques sucessivos, acaba por conferir ao

Romeiro, e este, como personagem, não só aceita como incarma, nem é o único

que remete para uma poética do espectro, já com larga tradição, nem é, passe o

pleonasmo, o mais espectral. (...)

Não é de um espaço morbidamente povoado de seres em busca de vida que

Garrett convoca as suas personagens e, através delas, se 'espectraliza'. D. João de

Portugal não regressa de nenhuma Terra Santa de fantasmas. (...) É a ausência

figurada como o Portugal de que tem nome, aquele Portugal sem existência

política onde Garrett situa a sua cena de espectros tão familiares."

In Almeida Garrett - Um Romântico, Um Moderno. Actas do Congresso Internacional

Comemorativo do Bicentenário do Nascimento do Escritor, vol. 1, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2003: 65 - 72.

Page 26: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

25

FREI LUÍS DE SOUSA: DRAMA OU TRAGÉDIA?

MARIA JOÃO BRILHANTE

"A primeira chamada de atenção que o texto faz ao leitor está no título. (...)

Garrett escolherá partir da História, e da história da literatura particularmente,

desde logo fazendo apelo a um conhecimento que só poderá vir da leitura. (...)

Não é por isso desprovida de sentido a introdução de citações no Frei Luís de

Sousa: processo que consiste em falar dos códigos culturais em jogo no texto

através de obras que o leitor deve conhecer bem. Os Lusíadas são citados duas

vezes e inclui-se o seu autor como personagem de 'aparição não programada',

com função sobretudo simbólica - a exaltação da pátria e do seu povo associa-se

claramente a uma condenação do estatuto social do escritor e, ao mesmo tempo,

à imagem de decadência dessa história cantada pelo poeta. A Bíblia serve de

termo de comparação com o texto anterior e está disseminada um pouco por

todas as falas do texto. Do Romanceiro ressaltam os ideais cavaleirescos, de honra

e justiça, enquanto da citação da Menina e Moça é sobretudo o destino infeliz e a

sensibilidade da heroína que lembramos estabelecendo-se o paralelo com Maria

de Noronha. (...)

Vejamos alguns dos aspectos que levaram Garrett e os seus contemporâneos a

distinguirem a qualidade deste texto e investigadores, desde então, a

classificarem-nos como tragédia. Analisando a sua construção, distinguimos, por

um lado, a articulação das cenas e actosarticulação das cenas e actosarticulação das cenas e actosarticulação das cenas e actos; por outro, a estruturaa estruturaa estruturaa estrutura. Assim, o I acto é

composto por doze cenas, das quais as duas primeiras constituem a exposiçãoexposiçãoexposiçãoexposição, ou

seja, o anúncio de informações sobre as personagens e suas acções no tempo,

fundamentais para a evolução da intriga. Estas informações normalmente

narradas por uma das personagens (secundárias ou principais) referem-se ao

passado e aos 'bastidores'.

D. Madalena e Telmo dizem:

- Relações que entre si estabelecem (idade, lugares sociais, saberes) e com as

outras personagens; introdução de Maria, D. João de Portugal, Manuel de Sousa

Coutinho.

- A existência de dois fios de intriga: a) infelicidade e terror de D. Madalena

devidos à incerteza da morte do primeiro marido; b) paralelo ao primeiro e com

ele entrando em relação, adivinha-se um conflito entre patriotismo e submissão ao

invasor. (...)

Page 27: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

26

Se a ligação entre cenas se faz de modos vários, predominando o das entradas e

saídas das personagens 'justificadas' por ordens ou pedidos, o retomar de um

tema - leitura, casa emblemática -, as acções que se anunciam ou se questionam -

fogo, preparativos para a fuga - e mesmo a repetição de certas palavras ou

expressões - 'Valha-me Deus' / 'Ora seja Deus nesta casa' -, na passagem de um

acto a outro obedece-se também a um propósito expressivo e lógico. Do I para o

II actos retoma-se a mudança de espaço, acentua-se a anormalidade daquela

mudança através do relato dos sintomas de terror de Madalena. A importância

dessa cena fora de cena é tal que todo o reinício dela se ocupará com grande

pormenor, utilizando inclusive o recurso ao presente histórico que aproxima a

acção passada do momento da narração. (...)

O livro enquanto 'emblema' de códigos culturais e promotor de leituras /

decifrações é um tema que atravessa o texto. A própria estrutura que destacámos

tem por base a leitura de um género - tragédiatragédiatragédiatragédia - e o pedido de decifração dos

seus processos de composição. Constrói-se uma tragédia percorrendo as suas

regras e semeando de sinais o texto assim obtido. Daí que nele próprio assistamos

a actos de leitura: D. Madalena e Maria lêem obras; Maria lê nos rostos, nos

'olhares' e nas 'estrelas'; Telmo lê sempre o mesmo texto, de memória; Frei Jorge

lê(-nos) a 'história' da família de Manuel de Sousa Coutinho; e só este, que se diz

poeta, parece não o fazer. Afinal todos (três) lêem os discursos dos outros e daí

vem o desencontro na unidade aparente (...).

Frei Luís de Sousa parece essencialmente apontar em duas direcções, ou, se

quiser, propor duas linhas de leitura. A primeira, temática, mostra-nos o confronto

entre um passado delirante e decadente e um presente fascinado por esse

passado, a ele submetido: enfim, a inevitável oposição entre a Vida e a Morte. A

segunda, estrutural, revela os próprios processos de construção de um texto

dramático e do género trágico. Projecta uma outra economia, a 'ressurreição' da

tragédia como modo de expressão teatral de situações nacionais.(...)"

Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett, apresentação crítica, fixação do texto e sugestões para análise literária de Maria João Brilhante. Lisboa, Editorial Comunicação, 1982: 13 - 45.

Page 28: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

27

FIGURAÇÕES DO FEMININO EM FREI LUÍS DE SOUSA DE ALMEIDA GARRETT

MARIA JOÃO BRILHANTE "Têm sido mais frequentes as leituras críticas de Frei Luís de Sousa orientadas

para questões literárias, dramatúrgicas ou histórico-culturais. Eu própria fui

procurando destacar na obra aspectos que me pareciam constituir a

singularidade estética subjacente à vulgata poética em que assenta e se exibe a

canonização do texto como obra prima da literatura dramática do romantismo

português.

Um projecto experimental da performer Luz da Câmara, levou-me a descobrir ou,

melhor dizendo, a tentar formular uma intuição que, partindo da figura de Telmo

(a personagem que Almeida Garrett desempenhou na representação da Quinta do

Pinheiro), procurava entender a figuração ou as figurações do feminino em Frei

Luís de Sousa. Foi, por conseguinte, pressionada pelas preocupações feministas de

uma artista contemporânea que me confrontei com uma dimensão textual e

cultural apenas latente na minha relação com o texto de Garrett.

Procurarei mostrar nestas páginas o resultado (provisório) da análise dos modos

de figurar o feminino, no cruzamento entre questões de representação e de

ideologia que inevitavelmente se colocam. Para tal, revisitarei abreviadamente

alguns outros lugares na escrita oitocentista onde surgem a figura da mulher e

uma ideia de feminino, para em seguida procurar reconhecer no texto em questão

a sua inscrição como diferença e risco. (...)

Lugares do feminino em Lugares do feminino em Lugares do feminino em Lugares do feminino em Frei Luís de SousaFrei Luís de SousaFrei Luís de SousaFrei Luís de Sousa

Posto isto, creio que dois aspectos relativos à representação do género feminino e

da mulher no texto em análise merecem alguma atenção. Por um lado, a projecção

do paradigma romântico sobre o tempo histórico da ficção, na caracterização das

figuras femininas e das relações que estabelecem com as figuras masculinas (D.

Sebastião, D. João de Portugal, Telmo Pais, Manuel de Sousa Coutinho, Frei Jorge),

dominantes, note-se, na acção dramática. Por outro, a existência de duas figuras –

Maria e Telmo - nas quais pode ser lida a possibilidade de uma dissociação entre

sexo e género.

Page 29: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

28

São quatro as representantes do sexo feminino no texto de Garrett: D. Madalena,

Maria de Vilhena, Doroteia e Joana de Castro, condessa de Vimioso. Em cada uma

delas, se bem que diversamente, irá Garrett inscrever a diferença feminina face a

um universo masculino onde o papel da mulher surge circunscrito pela família e

pela religião e confinado ao espaço da casa. (...)

D. Madalena de Vilhena, esposa, viúva e mãeD. Madalena de Vilhena, esposa, viúva e mãeD. Madalena de Vilhena, esposa, viúva e mãeD. Madalena de Vilhena, esposa, viúva e mãe

Quando a acção começa, D. Madalena está no “quarto de lavor”, uma sala que

comunica com o interior e o exterior da casa. Lugar teatral, por excelência, onde

as figuras da casa e as de fora verosimilmente se encontram: não demasiado

público, não completamente privado. Está entregue à leitura de um livro que, no

dizer de Telmo Pais, o seu escudeiro velho, é “para damas - e para cavaleiros...e

para todos".

Os Lusíadas surge como leitura adequada, e a par dos trabalhos de tapeçaria, nas

actividades desta senhora nobre. Mais tarde, na acção, o facto de ter de sair deste

espaço, que domina, para um outro marcado pela memória do seu primeiro

marido, será habilmente explorado por Garrett para amplificar a crise de

identidade da personagem. Pela primeira vez, diz D. Madalena (“eu nunca me opus

ao teu querer, nunca soube que coisa era ter outra vontade diferente da tua”, I

acto, cena VIII ), o elemento feminino do casal se autonomiza. Através da recusa

em regressar à antiga casa, a “natural” passividade da mulher perante as decisões

unilaterais tomadas pelo chefe de família (“estou pronta a obedecer-te sempre,

cegamente em tudo.” I acto, cena VIII), é questionada de forma eloquente,

sobretudo se tivermos em conta que o novo espaço constitui, como é referido, um

bem patrimonial de D. Madalena, herdado por morte do seu primeiro marido.

Contudo, essa recusa não será atendida pelo marido e sairá confirmada a

completa ausência de poder do elemento feminino do casal.

Da infância de D. Madalena nada sabemos. O seu passado começa com o

casamento que a fará ingressar numa família da antiga aristocracia portuguesa,

sujeita a regras que mantinham as mulheres isoladas do mundo, vivendo em casa

como num convento. “Era uma criança” quando se casou e foi então que conheceu

Telmo, “aio fiel de meu meu meu meu senhor D. João de Portugal”. O respeito com que para ele

olhava constituía uma extensão de igual atitude dispensada ao marido e ao

patriarca da família que “de tamanhinha” se habituara a “reverenciar como pai”. A

submissão ao poder masculino subsiste, aliás, na ligação que permanece após a

morte de D. João, inscrita no pronome possessivo e na forma de tratamento, mas

também na reafirmada obediência filial (“chegastes a alcançar um poder no meu

espírito, quase maior...- decerto maior – que nenhum deles.”, “ ficastes-me em

lugar de pai”) e quase total (“salvo numa coisa”) à do desejo), e ainda na

autorização para o segundo casamento que lhe será concedida pela família de D.

Page 30: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

29

João, confirmação inequívoca do cumprimento irrepreensível do seu papel de

esposa e viúva.

Ao transitar para uma nova situação matrimonial nada parece mudar. Os cuidados

com o marido, a permanência da figura mais que tutelar de Telmo na

administração da casa (“entregar-vos eu mesma tal autoridade nesta casa e sobre

minha pessoa...que outros poderão estranhar...”), o nascimento de uma filha,

parecem confirmar o papel de esposa e mãe virtuosas. São suas as palavras mais

reveladoras de como deve comportar-se uma menina de condição nobre, ao

repreender Maria pelo seu gosto por superstições e vidências. O temor a Deus,

logo, a inculcação de uma educação religiosa que decreta o papel da mulher e

contrói o sexo feminino como originariamente pecador e submetido ao masculino,

pouca margem deixa à diferença.

Mas, de facto, não é este o retrato acabado de D. Madalena, visto que Garrett lhe

irá acrescentar pelo menos um traço da visão ficcional oitocentista, a que

chamamos romântica, do feminino. Perante Telmo - e Deus – D. Madalena

apresenta-se como uma mulher adúltera, em cujo discurso se contrapõe o

irresistível apelo da paixão e do desejo físico (“poder maior que as minhas forças”)

à racional abdicação ou ao sacrifício desse desejo em nome da fidelidade

conjugal. A confissão do pecado, porque surge a par da confirmação das virtudes

de “mulher bem-nascida” no discurso de Telmo sobre D. Madalena, configura a

impotência e a vulnerabilidade da mulher perante um amor fulminante, ou seja,

constrói eficazmente mais um sinal da “natural” fraqueza feminina. A ideologia

dominante masculina que determina a relação entre amor e casamento,

submetendo o desejo ao dever conjugal, tem como porta-voz Telmo, mas está

igualmente presente no discurso da própria D. Madalena, construindo-se desse

modo a crise identitária da personagem.

“(...) Este amor – que hoje está santificado e bendito do Céu, porque Manuel de

Sousa Coutinho é meu marido – começou com um crime, porque eu amei-o assim

que o vi...e quando o vi – hoje, hoje...foi em tal dia como hoje! – D. João de Portugal

ainda era vivo. O pecado estava-me no coração; a boca não o disse... os olhos não

sei o que fizeram: mas dentro da alma eu já não tinha outra imagem senão a do

amante...já não guardava a meu marido, a meu bom...a meu generoso marido...

senão a grosseira fidelidade que uma mulher bem- nascida quase que mais deve a

si do que a seu esposo.” (II acto, cena X).

Uma paixão que vinte e um anos volvidos ainda assim se exprime (através do que

sentiu e moveu o corpo jovem) é deveras inconveniente, ultrapassa os limites da

decência feminina, como provam o violentamente repressor discurso de Telmo, no

I acto, (“Não sois feliz na companhia do homem que amais, nos braços do homem

a quem quisestes mais sobre todos?”, “ Mas os ciúmes que meu amo não teve

Page 31: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

30

nunca (...) tenho-os eu...aqui está a verdade nua e crua...tenho-os eu por ele: não

posso, não posso ver...” I acto, cena II), e também as marcas discursivas da culpa

que acompanha a citada recordação do momento da “infracção”. Essa paixão

voltará a ser expressa no momento em que a separação do casal está consumada,

antecedendo o desaparecimento de ambos para o mundo. Garrett cria uma

situação particularmente significante para voltar a expor a paixão de D. Madalena.

Fechados na cela encontram-se Telmo e o Romeiro e é esse marido que nunca

terá escutado tão fogosas palavras de amor quem irá ouvir Madalena declará-las a

um Manuel de Sousa Coutinho ausente. (...)

Frei Luís de Sousa, enc. Carlos Avilez, TNDM II, 4/02/1999. Na imagem:, Fernando Luís, Carla Chambel, Maria Amélia Matta, Manuel Coelho e António Rama. Fotografia de Ricardo Santos.

Page 32: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

31

Nenhuma acção, nenhuma linha do texto resgatará D. Madalena do destino

traçado, destino que existe, desde a primeira fala, latente na comparação com

Inês de Castro (apesar de D. Madalena não viver em idêntico “engano d’alma ledo

e cego” o que torna menos trágico, mas talvez mais dramático dramático dramático dramático o seu destino).

Creio, todavia, que a sua morte simbólica manifesta uma estratégia textual cara

aos românticos no sentido de confirmar a perda de identidade da mulher que

ousou ousou ousou ousou seguir o impulso da paixão, cujo corpo (e criá-lo em cena constitui desafio

de monta para qualquer actriz...) talvez tenha denunciado essa paixão fora do seu

“estado” e da sua “condição”. Manuel de Sousa Coutinho deixa de poder chamar-

lhe “minha mulher”, já que, desfeito o casal, D. Madalena perdeu o vínculo ao

matrimónio. É como se o “meumeumeumeu senhor D. João de Portugal”, dito a Telmo, nunca

tivesse deixado de vigorar. Ficamos então a saber que a mulher perde a sua

identidade fora da relação com o homem, seja este o pai ou o marido. (...)

Donzela honesta ou um anjo do Céu?Donzela honesta ou um anjo do Céu?Donzela honesta ou um anjo do Céu?Donzela honesta ou um anjo do Céu?

Maria de Noronha constitui, em Frei Luís de Sousa, a mais estimulante figuração

do feminino. Motivo de frequente ligação entre o drama e a biografia de Garrett,

por permitir ler na ficção o caso verídico do nascimento ilegítimo da filha que teve

com Adelaide Pastor, é, contudo, na ambiguidade da sua caracterização genérica

que me parece poder residir a atracção que exerce sobre o leitor, o espectador e

jovens actrizes talentosas. (...)

Com excepção de D. Madalena (apenas nessa cena inicial falando de Maria como

um anjo com o qual Deus abençoara o casal), que usa expressões como “filha”,

“criança”, “aquela inocente”, “donzela”, descreve Maria como uma menina de juízo

e temente a Deus que deveria distraír-se “como as outras donzelas da [sua]

idade” e a quem recomenda que aceite o “estado” e a “condição” em que nasceu,

as restantes personagens identificam Maria como sendo um anjo ou mesmo um

“anjo do Céu”.

Esta nomeação, que começa por surgir no discurso de Telmo Pais, vai alastrar,

invadindo as falas de Frei Jorge e de Manuel de Sousa Coutinho no III acto.

Garrett contrapõe, sobretudo durante os dois primeiros actos, duas dimensões do

retrato de Maria: a que lhe atribui um corpo, frágil e febril, mas habitado por

desejo de acção (ver a tia Joana, combater, ter um irmão), que pula, abraça e

beija; e a que lhe atribui uma espectralidade, correspondente à de D. João de

Portugal, o anjo branco contra o anjo negro, a presciente ou visionária (“sabia de

um saber cá de dentro”), estranha às coisas materiais do mundo real, aquelas que

seu pai lhe apresenta como próprias de uma donzela, às quais prefere os sonhos,

as contemplações e as fantasias que povoam os romances tradicionais com os

quais Telmo a criou.

Page 33: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

32

De facto, é através do discurso de Telmo que se opera de forma sistemática a

angelização e a des-sexualização de Maria. “E daí começou-me a crescer, a olhar

para mim com aqueles olhos...a fazer-me tais meiguices, e a fazer-se-me um anjo

tal de formosura e de bondade, que – vedes-me aqui que lhe quero mais do que

seu pai.” (I acto, cena I) (...)

Ao longo destas páginas procurei apontar alguns dos modos de construção de

lugares do feminino em Frei Luís de Sousa, sabendo à partida que eles

inevitavelmente conjugariam várias modalidades da visão masculina e romântica

do sexo e do género. Estou igualmente consciente do risco que corre uma análise

situada no interior do discurso dominante e que valoriza o momento presente da

leitura face ao momento histórico em que o texto foi produzido, muito embora

incorpore os valores e os mitos que desse momento persistem na nossa vivência

social e cultural dos géneros.

Apesar disso, e como revisitar Frei Luís de Sousa é sempre desafiar as leituras

estabelecidas e a nossa própria capacidade de mudança, aqui fica esta viagem

pelos lugares femininos e pela inscrição romântica dos riscos de (um) ser

diferente."

In Discursos Almeida Garrett: 150 anos depois, Lisboa, Universidade Aberta, 2006: 31 - 51.

Fotografia do espetáculo © Alípio Padilha

Page 34: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

33

NATUREZA E RAÍZES HISTÓRICAS DO SEBASTIANISMO

JOSÉ VAN DEN BESSELAAR

"O sebastianismo é uma espécie de messianismo. Na acepção secularizada de

hoje, a palavra «messianismo» designa geralmente a cega fé das massas

populares num líder político, julgado capaz de acabar com os abusos existentes e

de inaugurar uma nova era de bem-estar geral. Seria um anacronismo se

interpretássemos o sebastianismo dos séculos passados neste sentido. Sem

dúvida, aos sebastianistas não faltavam nem a fé obstinada na vinda de um

imperador carismático, nem a esperança inabalável no estabelecimento de uma

nova ordem política e social. Mas essa fé e essa esperança estavam, para eles,

integradas numa visão nitidamente religiosa da história. O tipo de messianismo a

que pertence o sebastianismo português é próprio de uma sociedade ainda não

secularizada, digamos (embora o termo se preste a malentendidos) uma

sociedade «sacral». Nela, todas as áreas da vida individual e colectiva parecem

directa e constantemente permeáveis à actuação do mundo sobrenatural. Tal

messianismo é inconcebível sem uma fé religiosa, professada pela grande maioria

da sociedade. Não é estritamente necessário que a religião seja judaica ou cristã.

A etnologia moderna mostrou que existem também movimentos messiânicos fora

do âmbito da Bíblia. (...)

As profecias e os cartapácios dos sebastianistasAs profecias e os cartapácios dos sebastianistasAs profecias e os cartapácios dos sebastianistasAs profecias e os cartapácios dos sebastianistas

Antes de entrar na relação dos factos principais da história do sebastianismo, julgo

valer a pena deter-me por algum tempo nas profecias, que constituíam o baluarte

da seita. O que nos interessa sobretudo é saber como elas se originaram numa

sociedade «sacral», qual foi a sua função e sob que forma entraram nas colecções

sebásticas, a que António Vieira, com certo desdém, chama «cartapácios».

1. A profecia e a sua exegese

Assim como os nossos conhecimentos do passado se baseiam em documentos

históricos, assim as esperanças messiânicas se fundam em profecias. Mas existe

uma diferença fundamental: ao passo que o documento histórico é apenas a base

dos nossos conhecimentos do passado, a profecia é a base e, ao mesmo tempo, o

produto das esperanças messiânicas. Estas, na fase inicial da sua existência, são

vagas e subjectivas, necessitando de uma autoridade reconhecida que lhes possa

dar o devido crédito. A profecia torna concreto o que nelas era vago e indefinido,

abonando o que nelas poderia parecer ilusório com o prestígio de um santo ou

qualquer outro varão ilustre.

Page 35: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

34

Ao homem moderno, embora cada vez mais inclinado a acreditar em horóscopos,

dias aziagos e outros agouros, custa acreditar em profecias. É que ele vive num

«mundo fechado», em que ainda há lugar para a actuação misteriosa de um

Destino imanente, mas cada vez menos para o governo de um Deus pessoal, o

Senhor transcendente da História, o qual nela se revelou e não deixa de revelar-se.

Ora, a profecia é uma tentativa para penetrar nos mistérios da Divina Providência.

Ela dá um sentido ― divinamente garantido ― ao processo histórico e, por

conseguinte, à actividade colectiva de uma dada sociedade. A profecia é filha de

sociedades que vivem da fé num Deus que remunera as virtudes e castiga os

pecados já neste mundo; nasce e cresce em épocas ainda não reguladas por

pesquisas metódicas da Natureza, nem pelas suas aplicações técnicas. Em tais

períodos a contemplação da causa final prevalece sobre a investigação das

causas eficientes. Mas cumpre repararmos que a crença num Poder superior a

todas as forças da Natureza não chega a eliminar a Razão. Deus revelou os seus

desígnios históricos pela boca de profetas, e o intelecto humano pode perscrutá-

los e, até certo ponto, compreendê-los. Fides quaerens intellectum.

A profecia tem, por definição, um núcleo irredutível à pura racionalidade. Digamos

― embora o termo seja dos mais ambíguos ― que tem um núcleo mítico. Mas o

mito é um motor poderoso de processo histórico. Leva uma grande vantagem

sobre as construções puramente se dirigindo apenas ao seu intelecto, mas

tocando-lhe o coração, incentivando-lhe a imaginação e motivando-lhe a vontade.

A quem acredita nela, a profecia dá uma visão do futuro, convidando o homem a

colaborar com os desígnios divinos.

Na sociedade moderna ― científica e tecnológica ― a profecia já não funciona,

faltando-lhe para tal as condições indispensáveis. Vem a ser substituída por

análises científicas e processos técnicos, que invadem quase todos os terrenos da

cultura hodierna e, dentro dos seus limites, funcionam com grande perfeição. Mas

a ciência e a técnica têm os seus limites fatais: ambas são incapazes de dar

sentido à vida dos indivíduos e das colectividades. Examinando de perto as

ideologias modernas, que a muitos parecem objectivas e definitivas, descobrimos

nelas também elementos míticos. Estes mostram muitas vezes ter mais força

existencial e maior poder conquistador do que os componentes meramente

racionais. Intellectus supponens fidem. (...)

D. Sebastião e os inícios do SebastianismoD. Sebastião e os inícios do SebastianismoD. Sebastião e os inícios do SebastianismoD. Sebastião e os inícios do Sebastianismo

Bandarra dedicou as trovas em 1556, ou pouco tempo depois, ao bispo da Guarda,

quando D. João III, que era presumivelmente o herói da grande empresa

profetizada, já contava 55 anos. No seu longo reinado, este não realizara nenhuma

das façanhas prometidas. Em vez de conquistar a África, abandonara algumas

praças africanas. Não era de esperar que este rei, na sua idade avançada e com

Page 36: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

35

tais precedentes, chegasse a fundar o Império Mundial. Contudo, o sapateiro não

modificou os versos em que se lia o nome do monarca. Contava com um milagre

do Céu? Ou dava pouca importância à identidade do Encoberto, desde que ele

fosse Rei de Portugal e «semente de D. Fernando»? Ou transferia o Império de D.

João III para o seu neto, o recém-nascido D. Sebastião, sem se incomodar com as

incoerências que podiam resultar desta nova opção? Ignoramos quais fossem as

suas esperanças concretas na hora em que enviou uma cópia das suas trovas ao

novo bispo. Mas não se exclui a hipótese de que Bandarra, compartilhando com os

seus compatriotas o entusiasmo pelo nascimento do «Desejado», acrescentasse às

suas trovas uma quadra «sebastianista», que, naturalmente, falta na edição

«joanista» de 1644, mas ocorre em diversos manuscritos 35:

Um rei novo nascerá,

que novo nome há-de ter;

de terra em terra andará.

Muita gente lhe há-de morrer.

Com efeito, havia de lhe morrer muita gente, não dos infiéis, mas dos seus

próprios vassalos. Assim como o seu nascimento (1554) parecia garantir a

sobrevivência de Portugal como país independente, assim a sua aventura

marroquina havia de arruiná-lo, abrindo a porta ao domínio castelhano.

1. D. Sebastião e os Pseudo-Sebastiães

Uma figura estranha e trágica, esse D. Sebastião! Atrofiado na sua vida afectiva (o

que talvez se explique pela falta de ternura maternal na sua meninice), treinavase,

desde cedo, em exercícios físicos (era óptimo cavaleiro e bom caçador) e

ascéticos (era piedoso e casto). Destituído de qualquer realismo, andava alheio às

grandes necessidades da nação, como também ao espírito da época em que a

Europa acabava de entrar. Extraviado, vivia na Idade Média, e sonhava com actos

de bravura cavaleiresca e com louros militares, sobrestimando as suas forças. Não

se lhe pode negar certa grandeza e certo idealismo, mas essas boas qualidades

eram comprometidas por grande dose de teimosia, fanatismo e egocentrismo.

São conhecidas as consequências da ambição desproporcionada do jovem

monarca. A 4 de Agosto de 1578, o seu exército foi destruído nos campos de

Alcácer-Quibir. D. Sebastião deixou aí a vida, com 8000 dos seus homens, e uns 15

000 caíram nas mãos dos Mouros. Foi provavelmente a maior catástrofe da

história de Portugal. Milhares de mortos, outros milhares de cativos cujo resgate

impôs sacrifícios pesados à nação; e ― o pior de tudo ― a coroa sem herdeiro.

Depois de um breve interregno de D. Henrique, o país, oscilando entre a revolta e

a submissão, cedeu finalmente, tanto ao suborno como às ameaças militares de

Page 37: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

36

Castela, prometendo obediência a Filipe II (1581). Seria uma união pessoal, e

Portugal ficaria no gozo dos seus privilégios. Durante algum tempo, o país parecia

conformado com o inevitável. Mas, salvo alguns aristocratas, prelados e altos

funcionários, poucos estavam contentes com a situação. O povo, apoiado por uma

grande parte dos frades e do baixo clero, tinha saudades da independência

nacional. Mas era verdade que D. Sebastião morrera? Ninguém o vira morrer. É

verdade que os Mouros entregaram o corpo do rei defunto a Filipe II e que este o

faz sepultar no Mosteiro dos Jerónimos (1582). Mas muitos tinham as suas dúvidas

acerca da identidade do corpo, e viam-nas confirmadas pelas palavras do epitáfio:

si vera est fama…

Surgiram quatro aventureiros, que se diziam ser D. Sebastião: dois em Portugal e

dois fora do país. O primeiro foi «o rei de Penamacor», que foi preso, exposto no

pelourinho e condenado às galés (1584). O segundo foi «o ermitão da Ericeira»,

que apareceu no ano seguinte e foi executado em Lisboa. O terceiro foi um antigo

soldado castelhano, Gabriel de Espinosa, que se estabelecera em Madrigal

(Castela) onde, num convento, vivia D. Ana, filha ilegítima de D. Juan de Áustria.

Ela tinha um confessor português, o agostinho Frei Miguel dos Santos, que a

convenceu de que o antigo soldado, agora pasteleiro, era D. Sebastião. A intriga

foi descoberta: Gabriel de Espinosa e o monge foram executados (1595) e a

princesa foi transferida para um mosteiro em Ávila, onde a esperava uma rigorosa

vida claustral. O quarto e o mais célebre foi o calabrês Marco Túlio Catizzone, que

apareceu em Veneza (1598), onde foi visitado por diversos Portugueses, entre

outros por D. João de Castro, que o homenageou como seu soberano. Depois de

muitas aventuras, o impostor foi executado em San Lúcar (1603). Dos quatro

Pseudo-Sebastiães, cuja história aqui só tocámos de leve 36, apenas o Calabrês se

integra na história do sebastianismo, porque, devido sobretudo à imaginação

exaltada de D. João de Castro, foi identificado com o Encoberto das profecias

nacionais, o que não consta dos três outros. O pasteleiro de Madrigal não passou

de marioneta nas mãos de Frei Miguel dos Santos, que, muito provavelmente, se

queria servir dele para suscitar uma revolta em Portugal a favor de D. António, o

Prior do Crato. Os dois outros agiram por conta própria, mas a boa acolhida que

esses aventureiros receberam de muitos populares prova que o povo tinha

saudades de um rei nacional."

O Sebastianismo - História Sumária, Lisboa, Livraria Bertrand, 1987: 10 - 62.

Page 38: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

37

IV. SUGESTÃO DE ATIVIDADES

TAREFAS A DESENVOLVER COM OS ALUNOS

ANALISAR

Procurar na Cena I do Segundo Ato aspetos caraterísticos da narrativa romântica,

na descrição da paisagem, na composição da personagem feminina, ou ainda nos

temas da morte, do terror e do sonho.

PESQUISAR

Sugerir aos alunos a pesquisa de alguns dos fatos históricos referidos na peça

(Alcácer Quibir, personagem Frei Luís de Sousa, a peste vinda da Flandres).

DEBATER

Após a leitura do texto de Almeida Garrett e a assistência ao espetáculo Frei Luís

de Sousa de Almeida Garrett, debater o conceito de 'amor' e as diferenças

encontradas entre o texto original e esta criação contemporânea.

Page 39: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

38

Fotografia do espetáculo © Alípio Padilha

ESCREVER

1. Promover a reescrita da cena XI do Terceiro Ato num texto narrativo, isto é,

imaginando que o texto é dito por um ator desempenhando a personagem Maria.

2. Depois do debate feito na aula, pedir aos alunos um ensaio de uma página

sobre 'amor' na peça Frei Luís de Sousa, mas apelando sempre à experiência e à

capacidade de especulação dos alunos.

VISIONAR

Dar a ver o filme português Frei Luís de Sousa (1950), realizado por António Lopes

Ribeiro, adaptado da obra homónima de Garrett, e pedir aos alunos para fazerem

uma comparação com a peça de teatro.

OUVIR

Ouvir a Sonata dos Espectros de Strindberg, a propósito da reflexão sobre a

figura espectral de D. João de Portugal em Frei Luís de Sousa.

DRAMATIZAR

Escolher uma cena da peça para a sua dramatização.

Page 40: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

39

EQUIPA TEATRO NACIONAL D. MARIA II, E.P.E. direção artística JOÃO MOTA conselho de administração CARLOS VARGAS, ANTÓNIO PIGNATELLI, SANDRA SIMÕES secretariado CONCEIÇÃO LUCAS motorista RICARDO COSTA atores JOÃO GROSSO, JOSÉ NEVES, LÚCIA MARIA, MANUEL COELHO, MARIA AMÉLIA MATTA, PAULA MORA direção de produção CARLA RUIZ, MANUELA SÁ PEREIRA, RITA FORJAZ direção de cena ANDRÉ PATO, CARLOS FREITAS, ISABEL INÁCIO, MANUEL GUICHO, PAULA MARTINS, PEDRO LEITE, SARA VILLAS (ESTAGIÁRIA) auxiliar de camarim PAULA MIRANDA, PATRÍCIA ANDRÉ pontos CRISTINA VIDAL, JOÃO COELHO guarda-roupa GRAÇA CUNHA direção técnica JOSÉ CARLOS NASCIMENTO, ERIC DA COSTA, VERA AZEVEDO maquinaria e mecânica de cena VÍTOR GAMEIRO, JORGE AGUIAR, MARCO RIBEIRO, PAULO BRITO, NUNO COSTA, RUI CARVALHEIRA iluminação JOÃO DE ALMEIDA, DANIEL VARELA, FELICIANO BRANCO, LUÍS LOPES, PEDRO ALVES som / audiovisual RUI DÂMASO, PEDRO COSTA, SÉRGIO HENRIQUES manutenção técnica MANUEL BEITO, MIGUEL CARRETO adereços VIRGÍNIA RICO motorista CARLOS LUÍS direção de comunicação e imagem RAQUEL GUIMARÃES, TIAGO MANSILHA assessoria de imprensa JOÃO PEDRO AMARAL produção de conteúdos MARGARIDA GIL DOS REIS* design gráfico JOÃO NUNO REPRESAS*, MARGARIDA KOL* direção administrativa e financeira JOÃO VALADAS, EULÁLIA RIBEIRO, ISABEL ESTEVENS controlo de gestão MARGARIDA GUERREIRO tesouraria IVONE PAIVA E PONA recursos humanos ANTÓNIO MONTEIRO, MADALENA DOMINGUES direção de manutenção SUSANA COSTA, ALBERTINA PATRÍCIO manutenção geral CARLOS HENRIQUES, LUÍS SOUTA, RAUL REBELO, VÍTOR SILVA informática NUNO VIANA técnicas de limpeza ANA PAULA COSTA, CARLA TORRES, LUZIA MESQUITA, SOCORRO SILVA vigilância GRUPO 8* direção de relações externas e frente de casa ANA ASCENSÃO, CARLOS MARTINS, DEOLINDA MENDES, FERNANDA LIMA bilheteira RUI JORGE, CARLA CEREJO, NUNO FERREIRA receção DELFINA PINTO, ISABEL CAMPOS, LURDES FONSECA, PAULA LEAL assistência de sala COMPLET’ARTE* direção de documentação e património CRISTINA FARIA, RITA CARPINHA* livraria MARIA SOUSA biblioteca | arquivo ANA CATARINA PEREIRA, RICARDO CABAÇA * prestações de serviços

Page 41: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

40

Teatro Nacional D. Maria II*

Praça D. Pedro IV

1100-201 Lisboa

Tel.: +351 213 250 800

www.teatro-dmaria.pt

*Encerra à 2.ª

Page 42: 355s de Sousa 2 )tndm.pt/fotos/escolas/frei-garrett_9540037324f7d736283c5...Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett é a terceira criação da dupla Diogo Bento e Inês Vaz e apresenta-se

41