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Page 1: 338466_A epistemologia jurídica entre o positivismo e o pós-positivismo

GALUPPO, Marcelo Campos. A epistemologia jurídica entre o positivismo e o pós-positivismo. Belo Horizonte: Faculdade Mineira de Direito, 2002. 7 folhas. (mimeograf.). p. 1

A EPISTEMOLOGIA JURÍDICA ENTRE O POSITIVISMO E O PÓ S-POSITIVISMO

Marcelo Campos Galuppo** A gênese da Modernidade, situada nos séculos XV e XVI, ocorre por um processo que pode ser chamado de descentramento radical. Enquanto o mundo antigo e medieval se caracterizava pela existência de um centro unificador de toda a ação humana, fosse esse centro a polis, fosse a Igreja1, o mundo moderno é um mundo sem centro. A idéia de centro implicava, necessariamente, a idéia de uniformidade, de identidade. A referência única oferecida pela polis ou pela Igreja para a ação de todos permitia uma lógica de organização social que foi chamada, por Weber2 e por Tönnies3, de comunidade: ao contrário da sociedade, essa essencialmente moderna, a comunidade pressupõe um único projeto coletivo que aglutina e dá sentido à existência humana. Exatamente por isso, na Antigüidade e na Idade Média a totalidade goza de uma primazia ontológica sobre as partes, ou dito de outra forma, não havia lugar nas comunidades antigo-medievais para o indivíduo4. Não havia nessas comunidades o outro, e portanto também não o sujeito, seja no “bom sentido” que a palavra sujeito possa assumir, ou seja, como autonomia e liberdade, seja no “mal sentido”, como individualismo e egocentrismo. Se a Antigüidade e a Idade Média se caracterizavam pela existência de um único centro aglutinador do pensamento e da ação, a Modernidade se caracteriza pela explosão desse centro. Seguindo uma pista de Hannah Arendt na Condição humana5, podemos dizer que três processos estão ligados a esse descentramento. O primeiro deles foi a Revolução Científica: ao investigar o céu, deslocando seu olhar, o homem descobre que o Sol, e não a Terra, é o centro do sistema que habita, e nós não estávamos mais no centro do universo. O segundo processo foi as Grandes Navegações: ao realizar a circunavegação, o europeu descobre que a Europa não era o centro da esfera terrestre. O terceiro e último processo foi a Reforma Protestante: ao refletir sobre uma Europa dividida em religiões distintas, o homem descobre que a Igreja Católica Apostólica Romana não era mais o centro cultural da civilização ocidental. O processo de descentramento radical revela que o aparecimento do sujeito na Modernidade, ou seja, a afirmação da preexistência ontológica (ou pelo menos lógica) da parte sobre o todo, decorre, antes de qualquer coisa, de uma necessidade: já não há mais um centro único e unificador que diga como todos nós devemos pensar e agir, e então é preciso que cada um de nós o faça.

** Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG. Professor de Filosofia do Direito e de Teoria da Argumentação Jurídica nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da PUC/Minas. 1 E mais notadamente os mosteiros. 2 WEBER, Max. Economia y sociedad. Esbozo de sociología comprensiva. 2 ed. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1992. 1246 p. 3 TÖNNIES, Ferdinand. Comunidad y sociedad. Buenos Aires: Losada, 1947. 322 p. 4 Nisto é exemplar a célebre frase aristotélica: “o homem é por natureza um animal político” (ARISTOTE. La Politique. Paris: J. Vrin, 1995. p. 28). 5 ARENDT, Hannah. A condição humana. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. 352 p.

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O grande problema da integração social moderna decorre exatamente deste ponto: é que os sujeitos não são mais unificados e homogeneizados em uma comunidade. Agora eles constituem uma sociedade, que, por oposição à comunidade, se forma artificialmente pela justaposição ou superposição de vários projetos de vida, alguns essencialmente individuais, outros, coletivos. Por isto, enquanto a comunidade antigo-medieval era unitária, a sociedade moderna é plural. Por outro lado, ao se descobrir sujeito, no início da Modernidade, o homem se descobre contemporaneamente como subjugado (subjectum), como submetido, como submisso, seja à Igreja, seja ao monarca, seja aos costumes, seja às superstições e aos preconceitos. As relações sociais, antes tidas como naturais, agora são vistas como conformadas pela violência. E um dos problemas iniciais que o homem moderno enfrentará, que está na constituição da essência do próprio projeto moderno, é exatamente como se libertar radicalmente de toda submissão, ou para usar a expressão tão cara ao Iluminismo, como se emancipar. Que o tema da emancipação e do progresso perpassa toda a Modernidade, indicam-no as revoluções burguesas e, posteriormente, as revoluções socialistas. A questão moderna passa a ser, neste ponto, como realizar a emancipação. Dominação, sobre a sociedade e sobre a natureza, é a idéia moderna a serviço da emancipação. Para libertar o homem, é preciso dominar a natureza e a sociedade (encarada no início da Modernidade antes como um “eles” que como um “nós”). Na verdade, o Positivismo é um projeto inerente à própria Modernidade: conhecer para dominar, e dominar para libertar. Ordem e progresso. Já Descartes era, a seu modo, um positivista, quando afirmava, no Discurso do Método, a supremacia do homem sobre a própria natureza que o transforma em senhor, vale dizer, naquele que não está submetido, mas que submete e que possui a natureza6. Nesse sentido, o Positivismo não é apenas a primeira epistemologia moderna, no sentido de ser a mais antiga, mas também no sentido de ser a mais radicalmente moderna. Não podemos confundir aqui o Positivismo, sobretudo o Positivismo Jurídico, com o processo de positivação do direito. O fenômeno da positivação tem suas raízes na concepção de que o ordenamento jurídico é criação humana, e que, como tal, pode ser mudado de forma a propiciar aquela emancipação de que falava antes. Esta idéia é também essencialmente moderna. Primeiro, porque pressupõe que o direito, a política e a história são obras essencialmente humanas , e não relações naturais eternas e imutáveis. Segundo, porque isto leva à concepção de que a mudança, o movimento e mesmo as revoluções7, constituem a própria essência da realidade social, concepção esta oposta à antigo-medieval de um universo social estático e finito. Já o Positivismo Jurídico, apesar de contido em germe na gênese da própria Modernidade, é muito mais radical que a positivação, consistindo numa epistemologia e numa ideologia de leitura do direito positivo, essencialmente metafísica, que crê, de uma forma um tanto quanto contraditória com a idéia de mudança inerente ao fenômeno da positivação, na auto-existência do objeto criado pelo homem, notadamente da lei, razão pela qual o Positivismo pretende converter o conhecimento jurídico em ciência.

6 DESCARTES, René. Discurso do método. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 33 a 100. 7 Veja-se COPÉRNICO, Nicolau. As revoluções dos orbes celestes. 2a ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. 657 p. Veja-se, também, a interessante obra de Koyré, Estudos de História do Pensamento Científico, em especial KOYRÉ, Alexandre. Galileu e Platão. Estudos de História do Pensamento Científico. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 152 a 180.

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Posso indicar pelo menos quatro características notáveis do Positivismo Jurídico enquanto ideologia/epistemologia do conhecimento jurídico da Modernidade. Em primeiro lugar, a ficção, pelo menos no ato de conhecimento, de que o objeto do conhecimento jurídico, a saber, a lei, é um objeto auto-existente, não criado pelo homem, que por isto mesmo pode ser conhecido, controlado e dominado pelo cientista, da mesma forma que o faz o físico ou o biólogo em relação à natureza. Isto implica a segunda característica: neutralidade. Assim como não compete ao biólogo discordar da cor ou do cheiro da rosa, mas apenas descrevê-la, não compete ao cientista avaliar o ordenamento jurídico, mas apenas descrevê-lo, seja justo ou injusto, como postulou Kelsen8. Por isso é central para o paradigma do Positivismo Jurídico a separação entre direito, de um lado, e moral, de outro. Ralf Dreier afirmou, em um conhecido texto, que “a tese geral de toda teoria positivista sustenta a inexistência de uma relação necessária entre direito e moral, na qual ‘direito’ aludiria ao direito positivo e ‘moral’ àquilo que tradicionalmente se chamou ‘direito natural’ ou ‘direito racional’ ou ‘justiça’”9. Sobre isto é sintomática a obra de Hoerster, intitulada Em defesa do Positivismo jurídico, em que o autor afirma o ponto nevrálgico do Positivismo consiste na tese da neutralidade, segundo a qual é indiferente o conteúdo das normas jurídicas (justas ou injustas) para que sejam caracterizadas como direito, e mais, que esta tese, assim como a outra grande tese do Juspositivismo, a tese do subjetivismo segundo a qual todos os critérios de justiça são subjetivos, que estas duas teses “estão bem fundamentadas e são doutrinas praticamente inofensivas. Por isto não há nenhuma razão para o repúdio veemente que desperta reiteradamente o Positivismo jurídico”10. Por trás de ambas as teses encontramos uma concepção nominalista acerca da justiça À neutralidade valorativa de seu objeto, a norma jurídica, impermeável ao binômio justo/injusto, corresponde um compromisso metodológico da Ciência do Direito engendrada por este paradigma: a adoção do modelo das ciências naturais como modelo apropriado ao conhecimento jurídico. Com relação a este ponto, é notável o esforço do Positivismo em construir um conhecimento objetivo acerca do ordenamento jurídico que permitisse à Ciência do Direito dominar o direito e sobretudo seu conhecimento, assim como as ciências naturais dominaram a natureza. Nenhuma corrente levou tão a sério o projeto de controle sobre o conhecimento jurídico (a Ciência do Direito) como o normativismo kelseniano. Como disse Kelsen11, se devemos concordar que as normas jurídicas não podem ser aferidas, em si mesmas, pelo critério verdade/falsidade, é necessário no entanto controlar, através desses critérios, as proposições e enunciados que as descrevem. Em outros termos: se não podemos enunciar juízos de avaliação sobre o ordenamento jurídico (pois isto implicaria adotar um critério subjetivo de Justiça), podemos no entanto emitir juízos de avaliação dos enunciados que descrevem o direito positivo estatal, controlando-o indiretamente ou, mais propriamente, dominando-o. Também com vistas a esta dominação (que é possível na medida em que a matéria jurídica é concebida da mesma forma que a matéria natural, no sentido de ser passível de sujeição ao sujeito cognoscente), o Positivismo Jurídico adotará um tipo de raciocínio tipicamente sistemático. Isto significa que o ordenamento jurídico é concebido como um conjunto de prescrições

8 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 427 p. 9 DREIER, Ralf. Derecho y justicia. Bogotá: Temis, 1994. p. 72. 10 HOERSTER, Norbert. Em defensa Del positivismo jurídico. 2a ed. Barcelona: Gedisa, 1992. p. 27. 11 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 427 p.

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harmônicas entre si, que regulam de forma completa a vida humana e que ainda guardam, de certa forma, uma relativa independência entre si, como apontou Viehweg12. Este conceito de ciência, que pressupõe neutralidade do próprio conhecimento jurídico, concebido em si mesmo como uma empreitada sistematizadora da realidade jurídica, produz no final do século XX uma série de paradoxos insuperáveis pelo próprio paradigma. De um lado, encontramos na Ciência do Direito um rigorismo jurídico, que só encontra precedentes no rigorismo moral kantiano, e que desconhece completamente a ética da responsabilidade inerente não ao conhecimento (descritivo) da realidade (natural), mas à ação política e jurídica, que articularia, em uma sociedade plural, o direito com a moral e com a ética, evidenciando seus compromissos com a ação prática. Assim, o Positivismo Jurídico, por sua metodologia, opera um reducionismo no próprio fenômeno. A terceira e quarta características da epistemologia do Positivismo Jurídico são, portanto, a adoção do critério de verdade para aferição do conhecimento e a adoção do pensamento sistemático, que pretende encontrar na Ciência do Direito um processo de redução da complexidade do ordenamento jurídico positivado, recorrendo-se à construção de um sistema baseado em classificações, divisões, etc. A questão que pretendo enfrentar a partir deste ponto é: em que medida esta epistemologia é adequada para o conhecimento jurídico no final do milênio? No início do século certamente o Positivismo Jurídico era, pelo menos, eficaz. Mas o será ainda hoje? Se pensarmos a epistemologia jurídica para além da eficácia da ação instrumental, será o Positivismo adequado para se produzir uma sociedade justa? O grande problema consiste em que, em nosso século, o projeto moderno entra em crise. Percebe-se, já na passagem do século XIX ao século XX, que a dominação que pretendia emancipar o homem produziu o seu contrário. Os mestres da suspeita, Marx, Nietzsche e Freud, denunciam que o homem, tal como existente, que, cada vez mais, é um homem submetido, subjugado, submisso, difere-se radicalmente do homem emancipado do projeto moderno. A dominação se converte, novamente, em submissão. Os três autores denunciavam o projeto moderno por fidelidade ao mesmo, ou seja, por crerem que, apesar dos resultados a que conduziu a Modernidade, é possível que o homem ainda se torne emancipado. Neste sentido, os três são radicalmente modernos13. É neste contexto que ganha sentido a célebre afirmação de Habermas14, segundo a qual a Modernidade seria um projeto inacabado. Poderíamos mesmo ir além: no sentido acima relatado, o projeto da Modernidade é um projeto interrompido e mesmo corrompido. Mas, ao contrário do que afirmam os chamados pós-modernos, não creio ser necessário abandonar o projeto moderno ou interrompê-lo, mas apenas retificar seu itinerário. Dessa forma, e somente desta forma, podemos manter as grandes conquistas da Modernidade (sobretudo o sujeito e o direito à diferença). A articulação dos novos movimentos sociais a partir da década de sessenta indicam nessa direção. Na medida em que a sociedade se organiza e encontra formas de suplantar a dominação sistemicamente realizada, seja pela economia, seja pela política, seja inclusive por um direito colonizado pela política e pela economia, podemos perceber que há um futuro (moderno) à nossa frente, sem que tenhamos que renunciar à razão moderna. 12 VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979. 13 Mas os três já trazem em si, paradoxalmente, a semente do pensamento pós-moderno, porque a forma que encontram para se emancipar o homem é libertá-lo de si mesmo, superá-lo. Mas o homem é, essencialmente, o homem moderno, e então superar o homem é superar a modernidade. 14 HABERMAS, Jürgen. Ensayos políticos. Barcelona: Península, 1988. p. 265 e ss..

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Uma das características da retomada desse projeto moderno é a nova epistemologia que progressivamente se articula. Cada vez mais, renunciando ao Positivismo, as humanidades recusam a ser chamadas de ciências. Isto é notável no caso da História. Retomando a tese central de Dilthey, segundo a qual explicamos (descrevemos) a natureza, mas compreendemos, (interpretamos) o agir humano, de forma circular, diria Gadamer, e assumindo um estatuto epistemológico que a aproxima cada vez mais da Literatura, a História recusa-se a usar, em seu estatuto metodológico, termos tais como “verdade” e “sistema”. Cada vez mais as humanidades se aproximam do ideal de um saber sábio, a serviço da felicidade e, efetivamente, da emancipação do homem em relação a toda e qualquer submissão. Infelizmente, em poucos ramos do conhecimento um paradigma científico é tão importante e tão majoritariamente adotado quanto o Positivismo na Ciência do Direito. Os juristas não podem aceitar, via de regra, outro estatuto para seu conhecimento que não seja o das ciências (positivistas), pois num mundo positivista, apenas o saber científico é tido como legítimo. Paradoxalmente, nenhum paradigma mostrou-se tão pouco adequado a um determinado ramo do conhecimento quanto o Positivismo em relação ao Direito. Como resposta a esta angústia, tem se consolidado em nosso meio, a partir de meados do século XX, uma nova maneira de se encarar o conhecimento jurídico que, a falta de melhor designação, vem sendo chamado de Pós-Positivismo. Essencialmente moderno, o Pós-Positivismo se caracteriza por entender que o direito é obra humana que pode ser posta a serviço da emancipação. Reconhecendo que o direito é obra humana, o Pós-Positivismo recusa identificar o direito e a justiça com ideais e valores, mas ao contrário os identifica com as normas jurídicas produzidas historicamente por uma sociedade, afastando-se portanto de qualquer proposta jusnaturalista. Há três características da epistemologia pós-positivista que gostaria de salientar para terminar minha intervenção. A primeira delas é que o Pós-Positivismo se recusa a pensar o ordenamento jurídico através da categoria do sistema. A tentativa positivista de se reduzir a realidade jurídica a um sistema pressupõe uma harmonia no processo de produção do direito, e sobretudo a existência de um único projeto para a sociedade, administrado por uma única fonte emanadora de regras (jurídicas ou políticas ou ainda econômicas). O direito não é harmônico, sendo antes o produto de uma sociedade plural e mesmo conflitante que crê ser possível convivermos. Sabemos que, ao contrário dessa visão idílica, o ordenamento jurídico positivo é, em si mesmo, prenhe de contradições, que refletem as contradições entre os vários projetos de vida de uma sociedade plural. Por isso um sistema que busque uma reductio ad unum é impossível. No lugar do pensamento sistemático, o Pós-Positivismo coloca o pensamento problemático. O pensamento problemático entende que o conhecimento jurídico se faz a partir de casos concretos. Enquanto o pensamento sistemático do Positivismo parte de normas em direção ao caso, o Pós-Positivismo inverte a lógica da argumentação, fazendo partir a solução do caso concreto em direção a normas adequadas a serem aplicadas. Não é que se considere que as normas genéricas, as leis, sejam posteriores à decisão judicial, mas que a norma jurídica não é nem o produto do ato do legislador apenas, nem do ato do juiz apenas. Em segundo lugar, a epistemologia jurídica inerente ao Pós-Positivismo recusa o conceito de verdade como conceito central do conhecimento jurídico. Devemos nos lembrar das diferenças radicais entre a natureza e seu conhecimento de um lado, e o direito e o agir que

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lhe é inerente, de outro. Revisitando a obra de Karl Popper, Habermas lembra que o critério de verdade é inerente àquilo que ele chama de mundo objetivo, que é o mundo da ciência e da natureza, e que o direito não integra o mundo objetivo, mas o mundo intersubjetivo, que não utiliza o critério de verdade, mas de correção normativa. A diferença entre verdade e correção normativa15 não é sem importância, e implica, dentre outras conseqüências, a negação à suposta pretensão do Positivismo de reduzir todos os mundos e seus enunciados ao mundo objetivo da ciência e aos enunciados sobre a verdade como sendo o único mundo e únicos enunciados que fazem sentido, pretendendo assim reduzir todo conhecimento válido ao conhecimento “objetivo” das ciências naturais. Por trás do termo “verdade” está a possibilidade de se verificar a adequação de um enunciado para descrição do mundo objetivo (mundo natural) pela confrontação com este mesmo mundo objetivo. Assim, um enunciado não é verdadeiro quando não pode ser aceito por não descrever adequadamente as relações entre os objetos do mundo objetivo. Esta adequação a que me refiro não é no entanto concebida aqui como a conformidade do entendimento e da coisa, como a entende Santo Tomás de Aquino, já que mesmo o acesso à realidade objetiva é um acesso mediado pela linguagem e, assim, mediado por proposições lingüísticas. Enquanto “aceitabilidade racional”16, o que o termo verdade pode predicar são as proposições, e não a própria realidade. A correção normativa, por sua vez, não pode ser verificada no mesmo sentido que a verdade. Não se trata, aqui, de verificar as proposições normativas, comparando-as com a “realidade”. Não se trata, aqui, de verificá-las através de “experimentos”, pois ela produz a realidade. O que podemos averiguar é apenas as razões que as sustentam, o que nunca pode ser feito de forma definitiva e absoluta. Por isto, qualquer tentativa de identificar as duas pretensões representa uma forma contemporânea de Positivismo, assim como representa uma forma contemporânea de Positivismo utilizar-se de elementos do mundo objetivo, e portanto de proposições com pretensão de verdade, para se decidir sobre questões de correção normativa, que se referem ao mundo intersubjetivo da moral e do direito. Existe ainda outra característica que diferencia a verdade da correção normativa. É que a correção normativa, apesar de criticável como qualquer outra pretensão de validade, assume uma função contrafática, inerente ao próprio conceito de esfera ou âmbito normativo. Isto significa que, ao contrário da verdade, que quando não pode ser predicada a um enunciado significa não haver aceitabilidade acerca da correspondência entre o enunciado descritivo e os fatos, o que implica a necessidade de se alterar a (ou produzir nova) proposição, a correção normativa de um enunciado que prescreve normas de ação não pode ser verificada a não ser comparando-o a outro enunciado normativo, que, como aquele, não descreve mas prescreve uma realidade. Isto implica que, se é verdade que os fatos podem nos convencer que nossas proposições são falsas, eles não podem, no mesmo sentido, nos provar que nossas proposições são incorretas. Resumindo, a epistemologia pós-positivista substitui a busca pela verdade no conhecimento jurídico pela busca pela correção normativa na aplicação adequada de normas jurídicas a um determinado contexto. Isto se liga à contraposição aristotélica (e tomista) entre a ordem das coisas que são sempre e a ordem das coisas que são na maioria das vezes. As coisas que são sempre do mesmo modo, são

15 HABERMAS, Jürgen. Wahrheit und Rechtfertigung. Philosophische Aufsätze. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1999. p. 271 e ss. 16 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: Entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. Vol. I, p. 33.

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necessárias, e regem-se pela ciência, que implica a noção de conhecimento verdadeiro (episteme). Já as coisas que são a maioria das vezes não se regem pela verdade, pois não são necessárias17. É o caso daquilo que capaz de produzir o bem ou o mal para o homem18. É o caso da prudência. Ciência (e verdade) implicam previsão, o que é impossível no direito. Prudência implica um saber circunstancial. Finalmente, como terceira característica, a epistemologia jurídica do Pós-Positivismo recusa radicalmente o estatuto teórico descritivo das ciências naturais ao pretender-se um conhecimento de ordem hermenêutica. Estabelecendo uma distinção entre o plano de justificação e o plano de aplicação das normas jurídicas positivas, afirma que se é verdade que toda norma legal é genérica no plano de sua criação, não deve no entanto ser aplicada indistintamente em qualquer circunstância. O Pós-Positivismo pressupõe que, apenas com a atividade do legislador, o sentido das normas jurídicas é incompleto: o aplicador deve realizar um juízo de adequabilidade da norma ao caso concreto19, verificando se as condições de aplicação de uma determinada norma se dão no caso concreto. Em poucas palavras, o Pós-Positivismo recusa ao Direito o estatuto de uma ciência. Nosso saber não é científico. Não precisa sê-lo. Sobretudo não pode sê-lo, se estiver a serviço da emancipação. Como indicava Viehweg, talvez devêssemos pensar como pensavam os romanos: não em uma Ciência do Direito, mas em uma Juris prudentia20.

17 ARISTOTE. Éthique a Nicomaque. Paris: J. Vrin, 1994. p. 280. 18 ARISTOTE. Éthique a Nicomaque. Paris: J. Vrin, 1994. p. 285. 19 GÜNTHER, Klaus. The sense of appropriateness. Application discourses in morality and law. Albany: State University of New York, 1993. 354 p. 20 A esta conclusão também chegou o prof. Eros Grau, apresar dos pressupostos e mesmo dos resultados diferentes. Veja-se GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 2a ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 34.