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Cadernos de Semitica Aplicada
Vol. 8.n.2, dezembro de 2010
ESTESIA E EXPERINCIA DO SENTIDO
ESTHSIS ET LEXPERIENCE DU SENS
Ana Claudia de OLIVEIRA1
PUC Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo
RESUMO: O texto uma abordagem da estesia como condio de apreender as qualidades sensveis
emanadas das configuraes das coisas do mundo e dos artefatos culturais. Os processos de apreenso
e o do sentir so descritos pelos efeitos de sentido que tocam o corpo do sujeito, que vive uma
experincia significante. Tratada como um percurso cognitivo, a apreenso se d a partir da
figuratividade, tela do parecer. Ela formada por operaes de traduo do mundo natural em
mundos de linguagens. A plasticidade da expresso e aquela do contedo articulam as impresses
sensveis do sentido que tocam o corpo do sujeito e os somas indicam a direcionalidade do sentido. O
sujeito vive a correlao existente entre figuratividade e narratividade. Nas interaes discursivas que
so comandadas por procedimentos enunciativos, a produo do sentido feita por passagens do
sujeito estsico, somtico e cognitivo.
PALAVRAS-CHAVE: Estesia; Somaticidade; Experincia; Cognio; Figuratividade; Narratividade.
RESUM: Le texte est une approche de lesthsis comme condition dapprhension des qualites sensibles des configurations des choses du monde et des artefacts culturels. Les processus
dapprhension et du sentir sont dcrits par les effects du sens qui touchent le corps du sujet qui vit une exprience signifiante. Traite comme un parcours cognitif, lapprhension se donne partir de la figurativit - lcran du paratre. Celle-ci est forme par des oprations de traduction du monde naturel dans les mondes de languages. La plasticit de lexpression et celle du contenu articulent les impressions du sens qui touchent le corps du sujet en indiquant la directionalite du sens. Le sujet vit
cette exprience dans une succession des tats transforms par les actions, fait qui montre la
corrlation existant entre figurativit et narrativit. Dans les interactions discursives qui sont conduites
par le processus enonciatif, la production du sens est faite par des passages du sujet esthsique,
somatique et cognitif.
MOTS CLES: Esthsis; Somaticit; Exprience; Cognition; Figurativit; Narrativit.
1 professora titular da PUC-SP na qual atua na Ps-Graduao em Comunicao e Semitica e codiretora do
Centro de Pesquisas Sociossemiticas (CPS).
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A um tempo passado de 15 anos do corpo e sentidoe a construo do desapego processada nesses 15 anos com Anne manifestao de puro amor.
Preliminar I: figuratividade e narratividade
A problemtica da significao no mbito da apreenso do sentido tem sido
cada vez mais atual nos estudos semiticos. Nessa rota, retomo minha caminhada dos anos
90, quando, a partir do legado do livro Da imperfeio (1987), de Algirdas Julien Greimas,
tratei os mecanismos de elaborao do sentido e sua trajetria do inteligvel ao sensvel com
preocupaes de dar conta dos processamentos da estesia. Considerando-a uma dimenso
inerente presena dos objetos, coisas, seres no mundo, a estesia a condio de sentir as
qualidades sensveis emanadas do que existe e que exala a sua configurao para essa ser
capturada, sentida e processada fazendo sentido para o outro.
Em quaisquer das irrupes do descontnuo no contnuo, na escapatria
minimal ou na fratura catastrfica, o impulso que age sobre o sujeito, mais especificamente
sobre o seu corpo como uma totalidade de sentidos apreendidos, produz tipos de aes que
incidem sobre a sensibilidade e o estado em que o sujeito e o mundo se encontram. Essa
afirmao nos conduz a observar que a noo de narratividade, definida enquanto sucesso de
estados e transformaes, est inteiramente articulada de figuratividade estabelecendo entre
a semntica do nvel discursivo e a do nvel narrativo correlaes que nos ajudam
compreender o ato de produo do sentido. Enquanto a mostrao das qualidades sensveis de
um dado mundo recortado se faz apreenso por uma fora estsica proposicional dessa
totalidade, os feixes de figuras da expresso que as articulam so marcados pelos meios
usados pelo enunciador para conformar as figuras do contedo ao enunciatrio. Nesse
procedimento direcional da criao, observa-se que o processamento da captura delineado
por uma sucesso de estados do sujeito e do outro sujeito da apreenso que assinalam
passagens por uma dinmica de transformaes propiciadoras de orientaes da captura
sensvel, da articulao relacional entre essas partes minimais at, enfim, atingir a totalizao
da configurao que pode ter reconhecimento por seu contorno e forma. Assim a apreenso da
figuratividade de um ser do mundo origina uma sequncia de estado e transformao da
narratividade que o sujeito operador dessa apreenso experimenta no percurso de seu fazer
relacional que se correlaciona ao percurso do que se mostra a ele.
Entendida como a articulao tradutria de elementos dos sistemas de qualquer
linguagem, a figuratividade arranjada a partir de regras regedoras das relaes possveis que
o enunciador manuseia para configurar um arranjo sintagmtico, que foi definido por Greimas
(2002), como tela do parecer cuja virtude consiste em entreabrir, em deixar entrever, graas ou por causa de sua imperfeio, como uma possibilidade de alm (do) sentido (p.74). Um dado mundo de traduo imperfeita, essa tela do parecer sempre desencadeia novas tentativas
tradutrias, a imperfeio postulada como caracterstica criadora dos mundos de linguagens.
Uma fotografia, uma pintura, um filme, uma dana, um conto, uma fbula, uma cestaria, entre
tantos mais artefatos, so a produo resultante que tem o poder de singularizar os tipos de
cultura que so estabelecidos pelos distintos modos de interao entre sensibilidade e
ambientao do mundo que marcam os agrupamentos sociais. As interaes com o mundo so
plasmadas por vetores e direes que o manuseio enunciativo de recursos da linguagem
socializada afirma os tipos de interao entre os sujeitos um enunciador voltado para outro,
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um enunciatrio, seleciona e arranja, de certo modo, a sua composio imperfeita que deixa
depreender os mecanismos dessa criao. Os arranjos das materialidades significantes so
resultantes dos procedimentos enunciativos que incidem sobre o sujeito e o seu aparato
sensrio relacional integrativo. Esse opera comandando a captao das impulses do
modelado que vai produzindo a significao no ato mesmo de sentir o sentido. Em Semntica
estrutural (1966), Greimas afirmava que a percepo j significao, e o interesse da
semitica alocado na abordagem dos mecanismos de significar est voltado para o
processamento do sensvel.
De uma totalidade pictrica manufaturada com pincis e tinta a leo sobre um
retbulo de quatro partes ambientado originalmente no altar central da capela do hospital dos
Antoninos, que abrigava doentes graves, o polptico de Matthias Grnewald2 foi a cena
escolhida para que eu desenvolvesse como uma produo pictrica para significar atinge o seu
pblico a partir dos meios plsticos e figurativos de sua realizao discursiva que so
captados, produzindo, com seus sentidos, uma afetao do sujeito que as sente.
Figura 1: Polptico de Matthias Grnewald (1470-1528), conhecido como Retbulo de Isenheim, foi executado
entre 1512-1516 e era a pintura do altar da capela do Convento do Hospital dos Antoninos. Na parte central, a
pintura de uma cruxificao; na parte inferior, a pintura da descida da cruz; na lateral esquerda, a pintura de So
Sebastio e, na da direita, a pintura do patrono dos Antoninos.
2 OLIVEIRA, A. C. de. Sentidos do corpo ou corpo sentido? In: ASSIS SILVA, Ignacio (Org). Corpo e sentido. A escuta
do sensvel. So Paulo, EDUNESP, 2006, p. 220-246.
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Figura 2: A instalao atual do retbulo em Colmar, no Museu de Unterlinden.
Com intensificao das linhas, das cores vivas, do tratamento da luz, o tema do
sofrimento posto em cena e singularizado nas quatro pinturas do denominado retbulo do
tipo em transformao, por suas possibilidades de abertura e fechamento das telas, o que
permite vrios arranjos entre as pinturas, e pode, inclusive, s expor a imagem central. Uma
presena divina emana de cada uma, unificando-se na ambincia com tudo o mais do seu
entorno, que organizado a fim de animar o estado de esprito daquele que sofre, quer esse
seja o filho de Deus, Jesus Cristo, na sua crucificao pintura, quer seja qualquer doente na
sua crucificao em vida, que um sujeito enunciatrio posicionado na esfera de ao do
recinto religioso. A interao montada entre sujeitos que esto sofrendo e so postos
partilhando os seus corpos abalados que resistem prova por seus estados dalma animados pela f no pai celestial. Sobre a narratividade dos estados de alma e de nimo do doente, que
a figuratividade de Grnewald incide como fora transformadora. A crueldade do sentir a dor
exalando das figuras do contedo e das figuras da expresso do Cristo moribundo na cruz, ao
ser processada pelo doente enunciatrio, opera uma minimizao da dor prpria na medida em
que o que sofre deslocado dela para acompanhar a dor vivida por Cristo em detrimento do
seu sofrimento. Um argumento de exemplaridade que comove o corpo e a alma daquele a
posto a orar por seu querer, sua volio que o move at a capela do hospital, essa
figuratividade promove uma afetao no estado do doente. A narratividade do persistir
superando o mal da dor na ambientao da capela converte-se em uma espcie de medicao
do esprito cuja posologia administrada aos pacientes nas doses de suas oraes, de sua f.
Situavam-se, pois, na dependncia do ato de orar do paciente, os efeitos
benficos dessa medicao figurativa, que emana foras atuantes sobre os estados de alma e
de nimo em passagens de um estado a outro, registrando, nessa sequncia narrativa, tanto um
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regime de fuso de um eu sofredor com o Cristo que resiste dor da crucificao quanto um regime de unio dos sofredores reunidos em orao, que possibilitam suplantar a dor por
obra de Deus pai todo-poderoso. Essas possibilidades dos corpos na experincia de suas
crucificaes corpos contaminados de sentidos e sentidos contaminando corpos, contaminao do sentir, contaminao dos sentidos pelos sentidos que percebem, sentindo
significao (OLIVEIRA, 2006, p.345) apresentei no artigo Sentidos do corpo ou corpo sentido?, no colquio Corpo e sentido. A escuta do sensvel, que Ignacio Assis Silva organizou em 1995, em Araraquara. O evento e seu registro em uma coletnea podem ser
considerados uma abertura multidisciplinar para o tratamento do lugar do corpo com os seus
mecanismos de sensibilidade na construo da significao.
Preliminar II: corpo e sentido
Para esse tributo ao mestre que animou a semitica vivamente no interior do
Estado de So Paulo, projetando essa regio como um importante polo de pesquisa semitica
no mundo, repreendo a pesquisa do sentido no seu processamento a partir da sensibilizao do
corpo. No seu atuar de distintos modos, o corpo opera apreendendo e sentindo o sentido que
sentido graas condio estsica. Definida como a condio de processamento do esttico,
um componente constituinte de todo e qualquer arranjo de linguagem, a estesia um
processamento do corpo que sente as qualidades que sobre ele operam impressivamente.
Quanto maior o grau de esteticidade, maior a ao impressiva e a ao desse corpo operador
que, sem automatismo para processar o manifesto por um plano da expresso, capta e sente as
impulses que produzem uma experincia do que sentido para ser significado. Assim que
o tipo de homologao entre plano da expresso e plano do contedo um fator decisivo na
construo da significao. Quanto mais semissimblica tanto mais envolve o corpo e dele
requer uma participao direta e vivencial na construo do plano do contedo manifesto pelo
plano da expresso.
Esse eixo investigativo prosseguiu de 1996 a 1999, animado pelas discusses
do atelier Semitica e experincia esttica do Centro de Pesquisas Sociossemiticas CPS3, quando um pequeno grupo de jovens pesquisadores se ocupava comigo dos mecanismos da
descrio do sentir nas formas de arrebatamento que atingem sensivelmente o sujeito em seu
corpo. As minhas lembranas desse percurso coletivo que resultaram em teses, dissertaes e
livros devem-se atuao de Ignacio Assis Silva como animador desse grupo de trabalho e de
sua exigncia ortodoxa na utilizao da teoria semitica, aliada a um grande rigor
metodolgico. Talvez essa sua exigncia fosse defendida mais agudamente, pois o que
tratvamos envolvia o conceito de figuratividade nas operaes discursivas, mecanismos de
enunciao, apreenso e de sentir e as operaes de converso do plano da expresso em
plano do contedo que lhe eram muito caras.
A situao de nimo em que o sujeito tocado se encontra posta em relao
tanto com a sua disponibilidade efetiva, para sorver, com os seus sentidos, as impulses
significantes das orientaes do sentido de um arranjo significante, quanto do prprio arranjo
com as suas condies de sensibilizao do corpo que as sente e que pode estar em um estado
de dormncia ou automatismo no seu fazer processual do sentido, ou em um estado de
3 As referncias so os trabalhos dos dois ateliers que se dedicaram abordagem de Semitica e experincia esttica e eram
constitudos de ps-graduandos do PEPG em Comunicao e semitica da PUC-SP, a saber: Lincoln Guimares Dias, Yvana
Fechine; meus orientandos de mestrado, Nancy Bettz e Gisela Benatti; de doutorado, Anamlia Bueno Buoro, Elisa de Souza,
Lauer Alves Nunes, Lcia Fonseca, Luiz Edegar Costa, Moema Rebouas e Vicente Martinez; e a superviso de ps-
doutorado de Lucimar Bello.
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disponibilidade e abertura. A reunio dessas circunstncias distintas promove os estados de
apreenso em que o arrebatamento maior ou menor pode advir para o sujeito e, em qualquer
uma de suas manifestaes, o acontecimento move o sujeito a sentir com maior ou menor
intensidade. Essa produo da converso do plano da expresso em plano do contedo est
marcada ainda por uma durao diferenciada que distancia o uso prtico das linguagens do
seu uso artstico.
A cognio uma construo semitica sensvel e inteligvel. Nos
processamentos do corpo para a sua elaborao, esses dois polos esto integrados por uma
dinmica e no separados. Em especfico, meu trabalho investigativo abordava a irrupo do
sentido em uma interao em que o objeto era desconhecido do sujeito sensiente e se fazia
apreender e tornar-se cognio que permite o reconhecimento em uma singular ocorrncia
vivida. De outro lado, esse objeto recm-conhecido, com os mecanismos de sua produo do
sentido, ao ser submetido a um deslocamento e receber outra contextualizao geogrfica e
social que a situao primeira, somente passvel de reconhecimento a partir de nova
experincia do que sentido.
Na preparao de um texto para o III Colquio do Centro de Pesquisas
Sociossemiticas do ano 1998, tratava da apreenso sensvel do mar tal como foi vivida por
Anne, minha filha, que tinha ento uns vinte meses quando entrou nessas guas. Foi em uma
viagem Barra do Una, litoral paulista, que a ambincia martima a encantou, deixando-lhe
fortes impresses de seu primeiro contato com a imensido das guas do que saberia depois
ser a do oceano Atlntico. Observado de uma angulao triangular da praia, no ponto em que
essa cortada por um riacho que ali desgua, a vista extraordinria4 do choque das guas foi
vivida pela menina a partir das temperaturas diversas das duas correntes aquticas, a fria
ocenica, a quente ribeirinha e ainda a mistura quente-fria, s sentida na imerso mesma do
pequeno corpo instalado na ocorrncia em que a cor esverdeada do mar se tornava
amarronzada pelo sombreamento cromtico dessa tonalidade da areia grossa da praia, que
produzia uma suavizao da luminosidade atmosfrica. As bolhas embranquecidas da
espuma, que se avolumavam umas sobre as outras nas ondas quando quebradas gritantes,
desequilibravam os ps apoiados na rea movedia, promovendo as muitas quedas do corpo e
sua instabilidade. Os mergulhos na gua e a cabea, de novo fora dela, com o reerguer do
corpo, faziam a boca, o olho e o nariz sentir uma gua doce e outra salgada, penetrando de
fora para dentro de seu corpo. A umidade pegajosa do ar, o cheiro da maresia, o vento
ininterrupto que passava de uma sonoridade de brisa mansa a uivos que ecoavam na Mata
Atlntica adentro, isso tudo se tornava gosto salgado do poderoso mar que engolia a doura
tmida do ribeiro. O corpo pequenino ia e vinha, caa e se reerguia, no desequilbrio entre a
frgil verticalidade humana e a instvel horizontalidade ocenica varivel com a intensidade
da onda, do vento, da mar. No seu cinetismo, a presena do corpo operava com os seus
mecanismos de sentir, de interagir, de enunciar e apreendia sentidos somticos que
significavam o sujeito no seu embate corpo a corpo desbravando o oceano. Se a menina da
posio de sujeito passou a ocupar a de objeto das emoes produzidas pelo oceano sujeito,
preciso notar que, mesmo se esse, sem dvida, a ressignificou na durao da interao, no o
fez a ponto de promover a sua transformao em mero objeto. Na depreenso de uma srie de
passagens entre os estados, a saber, de um desequilbrio e apavoramento, nos momentos
iniciais, aos de descoberta dos encantamentos martimos que, em ato, foram-lhe ensinados, na
e pela experincia do sentido, a atingir o seu aprazimento. H, nesse processamento, uma
4 Termo cunhado por Jacques Geninasca, do qual tomo emprestado tambm os termos impresso, impressivo que so
empregados e sistematizados no seu artigo O olhar esttico, na traduo para o portugus de A.C. de Oliveira In: OLIVEIRA, A.C. de (Ed.). Semitica plstica. So Paulo, Hacker-CPS editores, 2004.
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transitividade entre as duas presenas corpreas desproporcionais, que acabam se afinando no
convvio, o que torna essa reciprocidade reflexiva uma possibilidade de um novo advento.
Entre Anne e o Atlntico, havia uma soberana regncia do mar que lhe
transladou os seus atributos por meio da dimenso estsica que a fez apreender, por
impresses, esse outro excessivo. Voluptuoso e, sobretudo, inebriante, ao ser rompida a
estranheza do desconhecido, essas guas despertam na pequena o querer nelas permanecer
com o seu corpo frgil, que logo descobriria, no e pelo contato com o mar, um jeito de estar
no e com o gigante. E esse mar permaneceu, muito tempo depois da interao, com a menina
nos seus olhos avermelhados que arderam; nas orelhas, engolfado no canal auditivo,
ensurdecendo-a e assustando-a com os murmrios das quebradas de ondas ininterruptas; nas
narinas de onde no parava de escorrer; na boca salgada, promovendo secura e sede; no corpo
dolente aps a grande excitao que a fez adormecer sobressaltada.
Dias e dias depois da visita, a menina rabiscava ainda essa convulso vivida
em linhas que iam e voltavam, nos traados assimtricos de curvas nas cores verde, azul,
marrom, amarelo, branco que alavam voo para o azulado do cu para retornar multicoloridas,
at findarem mansamente em um ponto de parada, surpreendentemente, para tudo recomear.
O acontecimento sensvel continuaria ainda em elaborao cognitiva nas
pginas de papel sulfite esparramadas pela casa inteira quase um ms depois, quando fomos
as duas com os nossos cadernos de notas visitar uma exposio de arte contempornea, que
ocorria em So Paulo, no SESC Pompia, de autoria de Fabrizio Plessi, denominada O
deposito dellarte. Sem qualquer projeto programado, eu levava Anne, de novo, descoberta do mar.
Figura 3: Os desenhos das montagens de Plessi so expostos e eles mostram o detalhamento extremo da obra
conceitual. Segundo o artista, os desenhos so as anotaes de seu processo de sua criao do qual ele afirma ter
incio com as suas viagens. Plessi relata que, durante as viagens, anoto e escrevo sobre emoes e sensaes. Depois, desenho. E nesse momento que a obra comea a se concretizar. O inserir os desenhos na montagem
atesta como eles vo alm da conceitualizao da obra sendo j a obra.
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Figuras 4, 5 e 6 Detalhes da curadoria de Solange Farkas, no 12 VdeoBrasil, realizado em setembro de 1998, em
So Paulo, no SESC Pompia. Os grandes containers propiciam a ambincia sem luminosidade para o artista
compor as suas doze localidades do mundo. Separadas as localidades, elas configuram uma totalidade reunida
pela obra, que a visitao reconstri a significao.
Figura 7: Videoinstalao Deposito Dell'Arte Dover, de Fabrizio Plessi, a maior das doze caixas. Na angulao que nos faz apreender a escurido da sala, os blocos de televisores ligados so mostrados como o
complexo urbano de Dover, resultante de uma figuratividade inusitada com o uso de um grande ventilador
(visvel na lateral esquerda do desenho na Figura 1) e 26 monitores de TV de 29.
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Em grandes caixas, encontrava-se cada uma das doze obras apresentadas, todas
nomeadas com nomes de cidades espalhadas no mundo. O ambiente era escuro e fechado,
tanto pelas caixas como por cortinas escuras que separavam as caixas, lugares urbanos do
mundo, que estavam ali postos em um discurso que indicava ao visitante uma orientao de
percurso passo a passo, de uma a outra caixa segundo a sua disposio em sequncia
especfica.
Essa ambientao modificava, ento, todo o habitual grande ambiente do Sesc
em que encontramos normalmente a sua vastido aberta e clara. Cada caixa significava um
lugar em que se adentrava e tinha, na sua nomeao, a chave para articular a expresso
plstica prpria da localidade. Uma das caixas, a maior de todas da exposio, a que recebia o
nome de Dover, era concebida como reconstruo dessa cidade beira mar, s que a
materialidade das suas partes constituintes era feita por uma seleo de meios
eletroeletrnicos de nossa era multimiditica. Vinte e seis monitores de TV 29 ligados emitiam a luminosidade azulada to caracterstica da imagem televisual e produziam o seu
chiado indicativo. Como blocos compactos, esses tinham a sua tela voltada para o alto, o que
azulava todo o espao sobre as cabeas com essa luminosidade televisual caracterstica, que
se expandia pela espacialidade criando uma ambincia da presena uniformizante dessa mdia
que comandava a temporalidade vivida por tantos atores, mostrando a sua presena massiva,
uma vez que delineava a figuratividade urbana. Uma distribuio de televisores formava
conglomerados de prdios absolutamente iguais, que eram separados por zonas livres
cimentadas como ruas de um projeto urbano, em que o vento circulava em rajadas e ouvia-se,
o tempo inteiro, a forte sonoridade do motor do ventilador misturada do chiado televisual. O
visitante andava entre ruas e prdios com essas rajadas sonoras que afetavam o seu corpo,
enquanto sentia o vento e as quebradas das ondas uivando nos penhascos e se expandindo pela
urbanidade. Percebia, assim articulando esses materiais inusitados, a montagem que o
reenviava a uma cidade ocenica.
A operao de traduo em linguagens de uma dada cidade, ela mesma
formada por meios e produtos de linguagens, estava me desafiando na minha elaborao
cognitiva e indagava qual era a especificidade dessa cidade que a tornava a Dover do ttulo do
Deposito dellArte quando, mesmo com esses significantes heterogneos e inusitados, a menina se ps assombrada a se agitar reconhecendo: Mar! Mar! e partiu ao seu encontro a correr pelos quatro cantos da caixa. Seu corpo movente saltitava ,e ela aparecia e desaparecia
entre os blocos de televisores na sua busca. A agitao se interrompia e, parada, ela se punha
a observar onde as ondas quebravam ruidosas. O seu marasmo perturbava a sua busca de
reconhecimento.
As impresses de sentido advindas da explorao isotpica em sua articulao
global propunham correlaes semissimblicas com a figura significante do mundo
percebido, mas transformavam a caixa em outro mar. Entre as duas semiticas, a do mundo
natural e a da manifestao discursiva do enunciador para o enunciatrio, postas em interao
discursiva na obra de Plessi, colocou-se, para mim, uma instigao maior que era: Como se
dava a operao do crivo cultural de leitura do mundo que opera o reconhecimento das formas
figurativas do mar na caixa? Como a operam as passagens entre as estesias e as
somaticidades do corpo na produo do sentido?
A sonoridade, o vento sobre a pele, a cromaticidade e a temperatura ambiente
eram produzidos por esse circuito de conduo de uma energia acstica e luminosa dos
televisores, que fazem som e luz transformarem-se em sinais. Na instalao performtica,
havia uma impresso referencial da presena martima, e o mar eletrnico de Plessi era mar
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como aquele mar de Barra do Una. O sujeito estsico, no entanto, estava posicionado em um
mar seco, nessas guas eletrnicas, e esse estranhamento era inquietante na medida em que o
impelia depreenso de outro modo de estar no mar plessiano. A presena que se fazia mar
instalou em ato uma copresena na interao corpo a corpo com a menina.
Sujeito estsico, somtico, cognitivo
Por pressuposio, o sujeito estsico que apreende as impresses impressivas
elabora um fazer resultante das afetaes sensoriais, o que o torna correlato ao sujeito
somtico. O sentir e o fazer esto em relao e fazem advir o sujeito cognitivo com um poder
e saber que a possibilidade de reconhecer o sentido sentido na produo da significao. A
operao de reconhecimento o par correlato da operao de apreenso sensvel. O sentir e o
fazer so, por sua vez, correlatos reflexo. Na volta do sujeito para si prprio, so
elaboradas a apreciao e avaliao das impresses impressivas que o afetam.
Dar conta da categoria semntica somtico-pragmtica correlata categoria
cognitiva permite aceder categoria semntica do sensvel. O que tanto a instalao do
retbulo de Grnewald quanto a instalao de Plessi permitem destacar que toda passagem
tradutria de um estado do mundo com a sua linguagem natural a um estado de mundo de
linguagens tambm processada por dispositivos transmissores dessa organizao particular
do enunciador ao enunciatrio. No seu significar, est engendrada a sensibilidade do sujeito
sensiente (o doente, o visitante, a menina, nos casos mencionados) que realiza converses das
qualidades com uma fisicalidade que produzem vibraes de sinais cujas impresses
energticas as fazem ser captadas justamente por suas ondas eltricas, acsticas, por exemplo,
que so transformadas em impresses condutoras de sentido.
Esse processamento de impresso e captao pode ser sistematizado a partir
dos procedimentos de embreagem e debreagem entre os tipos de sujeito que entram ou se
retiram da apreenso. Em ato, o sujeito estsico capta as impresses que o afetam,
elaborando-as, o que implica que, para o sujeito somtico passar a sujeito cognitivo, entra em
cena o operar do sujeito estsico, que ento a condio de fazer ser o sentido.
Essas operaes so, portanto, do escopo da enunciao que plasma o corpo
operador nas construes de sentido. A totalidade significante que imprime, em sinais, as
qualidades da Dover cidade beira-mar, assim como as qualidades de Deus na sua presena no
mundo, produz ambientao para tipos de interao discursiva5 que propiciam tipos de
experincia dessas formas de presena. Nos arranjos semissimblicos em que a durao do
processamento requer maior envolvimento do sujeito, que percebe e sente em razo do plano
da expresso no ter um uso convencionalizado de acordo com regras socializadas, para
rearticular a sua montagem em sua materialidade formatada por um uso particular, o sujeito
levado com o corpo todo para perceber o que o desarma das convenes e o posiciona em
abertura para sentir. Os efeitos de sentido patmicos do que sente o conduzem a entrever o
sentido. Essa experincia do sentido , pois, de copresena estsica dos corpos da tela e da
instalao e o corpo do sujeito, o enunciatrio, que instalado na interao discursiva pelo
enunciador da obra. Nessa interao dos dois sujeitos corpo a corpo, ocorre uma transio
plena da sensorialidade no mundo articulado da linguagem processada e a do sujeito estsico
que executa a sua performance de sentir processando a construo patmica. O percurso da
narratividade vai transformando os estados na medida mesma em que a direcionalidade
5 Sobre essa conceituao e seu desenvolvimento, consultar: OLIVEIRA, A. C. de. Discurso miditico como experincia do
sentido. Comps, Gt Epistemologia da Comunicao, 2010. Disponvel para consulta na biblioteca do site.
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teleolgica do sentido atua, o que nos faz sentir os ecos da proposio de Greimas: os humores do sujeito reencontram, ento, a imanncia do sensvel. (2002, p. 74)
A operao dos dados da apreenso pelas operaes do corpo, um compsito
de alma e de nimo, e toda a descrio de sua processualidade quer em textos artsticos, quer
nas prticas cotidianas permitiram a Greimas a descrio do fenmeno dos efeitos de sentido,
mostrando a figuratividade como a abertura para o alm sentido. Como esclarecendo uma
velha questo da busca inaugural de Semntica estrutural, Greimas explica: tudo ocorre como se nossa leitura socializada se projetasse frente e as vestisse, transformando-as em
imagens, interpretando as atitudes e os gestos, inscrevendo as paixes nos rostos, conferindo
graa aos movimentos. (2002, p. 73) A semitica trata, assim, no da natureza da sensibilizao, nem muito
menos das experincias individuais do corpo e da alma, mas de seu tornar fatos da cultura.
Segundo Greimas, no somente nossa alma, mas tambm nosso corpo se encontram culturalizados e relativizados no interior de uma cultura. (1994, p.28) Nossa abordagem postulou que h um percurso narrativo do sensvel estruturante da narratividade de seu
processamento que opera em correlao com as operaes discursivas tanto em termos de
enunciao quanto de figuratividade. Com a sua plasticidade, o figurativizar materializa as
escolhas de formantes e de regras de sua articulao em sintagmas que so determinados pelas
escolhas do enunciador e processados nos arranjos da expresso com uma esteticidade
determinante do seu ser apreensvel, que nos mostra os dispositivos modalizantes que os
organizam e, ao mesmo tempo, permitem-nos determinar os dispositivos prprios dessa
cultura que a singulariza de outras. A vocao semitica de aceder ao geral, atitude que lhe
permite estar continuamente construindo modelos, por vocao, mais abrangentes.
A sociedade da visibilidade total em que estamos imersos pode ser definida
enquanto nosso mundo concreto, cuja materialidade o torna apreensvel por suas qualidades
significantes. No se trata, nesse contexto, de apreender como o mundo engendra uma
configurao dele mesmo, mas de compreender como a percepo com as suas apreenses
pem-se em coextensividade ao mundo, conformam uma totalidade de sentido que opera por
atos limites que delineiam os sintagmas de partes analisveis desse todo. Nossa apreenso ,
ento, de zonas diminutas que a extenso do nosso corpo com as suas extenses tm
competncia de abarcar e dar conta de sua eficcia comunicacional. Operaes de subtrao
so processadas seletivamente pelo corpo que se define em sua mobilidade ininterrupta para
apreender por contrastes. O que vive mvel e a estaticidade so uma interrupo de sua
continuidade. Assim, no movimento que o sentido pode ser discernido por atos de captura
do sujeito dos traos de perceptibilidade que se mostram atuantes na interao de contato
como foi mostrado com a movimentao de captura, afetao e construo da significao,
tanto no fazer de Anne em Deposito dellarte quanto dos doentes (de alma, de corpo) no retbulo de Grnewald.
O sujeito processa as apreenses que so sentidas e, em concomitncia ao seu
ato de sentir, desenrola-se o processamento significante em sentidos que assumem a direes,
indicaes que o encaminham no desenrolar da processualidade do sentido. Em Les formes
dempreintes (1986), Jean-Marie Floch desenvolve que so esses traos pegadas que configuram as formas sensveis do parecer que temos acesso nas aparies de recortes do
mundo que nos tocam e tomam conta de nossa apreenso. Nesse irromper do descontnuo que
o faz experimentar transformaes, o sujeito se desenquadra do seu estado estabelecido no
contnuo de sua existncia que, entre outras ocorrncias, valoriza seu existir no mundo. O ser
no mundo , pois, configurado nos e por esses encontros e desencontros existenciais. Em
situao de vulnerabilidade, o sujeito experimenta esses tipos de contato que o abrem com a
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CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010
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sua competncia estsica para uma experincia do incomensurvel. A estesia na experincia
do sentido continuadamente um sentido sentido que significa o sujeito, o mundo, as
produes de linguagens, as culturas.
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PAROL - Quaderni d'arte e di epistemologia Il video di Fabrizio Plessi Disponvel em http://www.parol.it/articles/plessi.htm