320 541 1 pb_ antonio negri

Upload: viana-nogueira

Post on 10-Jul-2015

48 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Para a subverso do conceito de poder constituinte: Antnio Negri e a genealogia da revoluo1Rogrio Dultra dos Santos*

Ativista poltico, filsofo e cientista social, italiano vinculado (durante os anos 1970) s lutas pela autonomia obrera, de cunho anarquista, Antnio Negri (1933-) transformou-se, nas ltimas dcadas, num smbolo da resistncia mundial s polticas neo-liberais implementadas pela maioria dos pases do globo. Esta posio de destaque como intelectual da esquerda, para alm dos seus perodos de encarceramento e de exlio, derivam certamente de uma profunda capacidade de apreenso crtica e questionadora da tradio terico-poltica burguesa. Nesse sentido, destaca-se o seu monumental trabalho sobre o contexto setecentista da constituio do discurso poltico moderno, especialmente centrado na exegese da obra de Espinoza (Anomalia selvagem: o poder da metafsica e da poltica de Espinoza (2000). 2 Aprofundando a sua aproximao desconstrutiva em relao aos princpios do neo-liberalismo, escreve, com Michael Hardt, o manifesto poltico Imprio (2001), onde a idia de revoluo recuperada das detraes usuais do liberalismo e alada a motor da implementao de uma democracia radical.3 a partir deste pano de fundo que Negri radicaliza filosoficamente seu diagnstico sobre a denominada ps-modernidade neo-liberal* Articulador de Pesquisa em Teoria do Direito e Professor de Cincia Poltica e Metodologia do Trabalho Jurdico no Curso de Direito da UNIVALI - So Jos. Mestre em Direito pela UFSC; Doutorando em Cincia Poltica no IUPERJ. Agradeo a leitura crtica e corretiva do Professor MSc. Luiz Magno Pinto Bastos Jr. Novos Estudos Jurdicos - Volume 8 - N 1 - p.229-233, jan./abr. 2003

229

no seu O Poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade (Traduo de Adriano Pilatti. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. 468 p.), onde, a partir de uma genealogia contextual da teoria poltica que criou a distino entre poder constituinte e poder constitudo, busca as chaves para a compreenso da fora revolucionria presente naquele conceito, capaz da transformao social. Com este objetivo em mente, e com a recorrncia erudita a uma metodologia exploratria diferenciada, Negri procura identificar a conformao e a conseqente domesticao da idia de revoluo (potncia constitutiva) atravs dos entraves polticos centrais da modernidade, todos perpassados pela idia de multido e de subjetividade coletiva, ambas constituintes dessa potncia popular reivindicativa. Assim, autores cannicos, responsveis pela solidificao de conceitos decisivos para a modernidade poltica (soberania, estado, razo de estado, poder constituinte, representao poltica), como Maquiavel, Espinoza, Burke, Sieys e Tocqueville, so rearrumados por Negri a partir de uma tenso dialtica que os vincula. So repensados a partir do seu papel eminentemente contra-revolucionrio, ou seja, de sua responsabilidade na ocultao do conflito poltico atravs de sua juridicizao como processo constitucional. A partir da reconstruo da histria do poder constituinte, o livro aparece como uma denncia da crise que deriva da tentativa de seu controle. Aqui, a aproximao explcita com o historiador Reinhart Koselleck, que igualmente denuncia o processo essencialmente liberal de formao de uma filosofia da histria que, objetivando explicar os fundamentos da poltica, se caracteriza exatamente pelo idealismo utpico que, a partir de sua chancela hermenutica, evita encarar a deciso histrica sobre o poltico, ou seja, evita justificar o processo histrico revolucionrio que a originou.4 O desafio lanado por Negri , desta forma, o de eliminar o tempo histrico responsvel por enclausurar o poder constituinte em um sentido utpico, jurdico e vazio de poltica. Escapar do processo de racionalizao da prpria poltica eliminar a estabilizao dos processos de controle da histria. O poder constituinte deve se colocar como elemento exterior sua prpria constitucionalizao, como sujeito coletivo criativo capaz de transcender a barbrie recorrente dos modelos de poltica que tendem a separar o social do poltico. A lgica linear da racionalidade moderna, vinculada esttica passiva da formalizao jurdico-constitucional das foras230Novos Estudos Jurdicos - Volume 8 - N 1 - p.229-233, jan./abr. 2003

sociais o grande objeto sob o qual recai a crtica de Negri. A superao desta tradio ocorre somente quando se assume a relao necessria entre potncia e multido, a relao entre mundo da vida e sistema constitucional (formal), entre substncia e forma, na superao ontolgica do irracionalismo presente na estreiteza da pureza metodolgica ou do formalismo exacerbado do direito constitucional. A racionalidade do poder constituinte torna-se ilimitada, possibilitando uma constante reflexo da comunidade sobre si mesma, uma reflexo que aponta e reconhece a necessidade de combater a rigidez jurdico-constitucional pelo movimento especial da criatividade e que s se realiza a partir do momento em que o comando heternomo superado pela noo de cooperao autnoma. Assim, se a multido constitui-se especialmente a partir da inovao cooperativa das singularidades em reconhecimento e em preservao identitria, o poder constituinte est apto a construir uma nova natureza na histria atravs da reproduo de um novo mundo da vida, prenhe das relaes criadoras que concretizam a aspirao democrtica de uma concepo nova de poltica caracterizada como potncia ontolgica de uma multido de singularidades cooperantes. Este novo modelo de poltica, sustenta finalmente Negri, o horizonte de sentido, no-utpico porque ontologicamente necessrio, de uma desutopia constitutiva de um poder constituinte em ato, conceituao disposta a dialogar constantemente com os desafios da histria e das circunstncias em um novo processo, cuja luta que o constitui enquanto tal a luta pela realizao da liberdade da multido, luta esta que mais que necessria, deve tornar-se hegemnica. No por acaso, portanto, que a abordagem metodolgica implcita no trabalho de Negri acontece a partir de uma camada que se coloca para alm da genealogia de corte foucaultiano, de resto explcita e reconhecida no decorrer do texto. O autor estabelece como base de anlise uma matriz epistemolgica de natureza conceitual, para a qual a histria poltica concebida em contraposio histria das idias e histria intelectual, e tem como objetivo aproximar-se da experincia de conjunturas particulares pelo estabelecimento da relao entre conceitos de contedo historicamente delimitvel - como cidado, estado, revoluo, ordem, sociedade, classe e direito - atravs de seus usos polticos e sociais especficos. Com isto, objetiva apontar as condies extralingsticas e pr-lingsticas que colocam a histria como umNovos Estudos Jurdicos - Volume 8 - N 1 - p.229-233, jan./abr. 2003

231

campo do conhecimento que no pode ser abarcado sem mais pela hermenutica, sendo autnomo em relao a esta. No se realizando atravs da lngua, estes elementos ou estas condies transcendentais das possveis histrias - caras tradio historiogrfica de Koselleck -, so estruturas formais que definem as possibilidades lingsticas para se compreender e interpretar a histria, que sempre ser previamente definida por elas.5 A construo de um Maquiavel democrtico o melhor exemplo: para Negri, o autor florentino percebe que o absoluto, enquanto elemento constitutivo e definidor da potncia e do poder constituinte, constantemente negado pelo poder institudo do novo Prncipe. A conceituao do poder constituinte - ao contrrio do que fez o direito de base liberal -, s pode se realizar na histria, e o processo de materializao de um conceito anteriormente dessubstancializado demonstra a alforria de camadas libertrias anteriormente apresadas pelo tradicional poder constituinte, camadas ou potncias estas que revelam a possibilidade constante da resistncia como proposta poltica concreta e concretizada. Neste sentido, o caminho que Negri toma no livro - a anlise do processo revolucionrio renascentista italiano, do estancar atlntico da revoluo na constituio de Harrington, das liberdades liberais que sustentaram o processo constitucional da revoluo americana, da oposio entre poder constituinte e soberania popular, presente na revoluo francesa e a contraposio do poder constituinte ideologia utpica da revoluo russa - o de fazer a reaproximao entre a potncia constituinte originria e o poder de resistncia, que histrico. Nesse sentido, o poder constituinte passa a ter o objetivo de transferir a sua potncia para a concretizao da vontade das massas oprimidas e de proporcionar uma alternativa concreta e politicamente vivel modernidade. Para alm das concluses do autor, pode-se sustentar que o livro um instrumento valioso por proporcionar uma releitura de autores clssicos teoria constitucional mais exigente. Esta releitura, de carter interdisciplinar e que aponta questes nem sempre reconhecidas pelos estudos exclusivamente jurdicos, destaca-se por obrigar a uma necessria autocrtica, relativa ao reconhecimento da dimenso poltica do direito. Desta forma, independentemente da proposta poltica geral de Negri - que, apesar das admoestaes do autor, no deixa de demandar uma responsabilidade coletiva de carter idealista - a qualidade do livro e das discusses doutrinrias que levanta j o recomendam como obrigatrio.232Novos Estudos Jurdicos - Volume 8 - N 1 - p.229-233, jan./abr. 2003

Notas1 2 NEGRI, A. O Poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Traduo de Adriano Pilatti. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. 468 p. Neste opsculo, Espinoza considerado por Negri como um precursor da democracia selvagem contempornea, caracterizada pelo reconhecimento da sociabilidade como sendo um elemento constitudo pelas prticas e pelos desejos coletivos da multido, capazes de realizar uma ordem social imanente, independente de qualquer hierarquia ou organizao externa (aqui nasce sua nova perspectiva de poder constituinte). Cf. NEGRI, A. The Savage Anomaly: The Power of Spinozas Metaphysics and Politics. Minnesota: University of Minnesota Press, 2000.

3 Tal perspectiva avultada pela simplicidade inocente, pela unio de cooperao e revoluo, do biopoder com o comunismo, capazes de esvaziar a misria do poder da nova ordem imposta pela globalizao econmica, pela reforma jurdico-constitucional e pela pasteurizao cultural, verdadeiro imperialismo sob nova roupagem, de resto, muito mais perversa, por estar encoberta com um discurso jurdico retoricamente democrtico. Cf. NEGRI, A.; HARDT, M. Imprio. Rio de Janeiro: Record, 2001. 4 5 KOSELLECK, R. Crtica e crise: uma contribuio patognese do mundo burgus. Rio de Janeiro: EDUERJ/Contraponto, 1999. Cf. TRIBE, K. Translators introduction. In: KOSELLECK, R. Futures past: on the semantics of historical times. Cambridge/London: The MIT Press, 1985, nota 1, p. xvi.

Novos Estudos Jurdicos - Volume 8 - N 1 - p.229-233, jan./abr. 2003

233

234

Novos Estudos Jurdicos - Volume 8 - N 1 - p.229-233, jan./abr. 2003