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/ SOCIEDADE

1934 - 1 9 7 4

BACALHAU A AVENTURA DOS PESCADORES NAS

ÁGUAS GELADAS DO ATLÂNTICO NORTE

TEXTO JOANA RATO • ILUSTRAÇÃO GONÇALO SEPÚLVEDA

ra jovem, nem 20 anos tinha quando,

em 1957 embarcou pela primeira vez no

"Elisabeth", o navio-motor bacalhoeiro

que partia de ílhavo rumo aos bancos

gelados da Terra Nova e da Gronelândia

para a pesca do bacalhau. José Miguel

Castro, conhecido como Zé Miguel, nas-

ceu na Costa Nova há 81 anos e mantém

bem vivas as memórias de um dos mais emblemáticos pro-

gramas de autarcia económica implementados pelo Estado

Novo: a Campanha do Bacalhau. "Naquele tempo, quem

fosse para o bacalhau não ia para Angola, havia lá a guer-

ra", explica-nos. Na verdade, ainda antes do Estado Novo,

em 1927, foi promulgada a primeira legislação pelos Go-

vernos da Ditadura Militar que isentava de serviço militar os

pescadores que fizessem seis campanhas consecutivas na

Terra Nova. A forte vaga de emigração dos anos 60, a natu-

reza obsoleta da pesca à linha, no período coincidente com

as guerras coloniais em África, fizeram com que surgissem

sérios problemas de recrutamento. Era difícil formar as tri-

pulações por falta de mão-de-obra. O decreto de 1927 vol-

tou a ser importante e "proporcionou a muitos homens um

$ t dilema humano que hoje nos impressiona: embarcar num

bacalhoeiro e escapar à guerra de África ou preferir a "guer-

ra do bacalhau" no Atlântico Norte?", como explica Álvaro

Garrido, professor da Universidade de Coimbra e consultor

do Museu Marítimo de ílhavo.

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Foi no cais dos pescadores da Costa Nova que

encontrámos Zé Miguel. Estava sentado junto

às casas de madeira onde os pescadores guar-

dam o material da pesca. O dia estava solarengo

e os homens já tinham regressado do mar. Com

ele trazia uma medalha que colocou orgulhosa-

mente ao peito. Tinha o símbolo do bacalhau

e foi-lhe oferecida numa homenagem feita no

Museu Marítimo de ílhavo aos atos de bravura e

sacrifício das gentes que viveram parte das suas

vidas no mar. "Fiz 15 viagens ao bacalhau", diz-

-nos. "A bordo iam cerca de 65 homens".

As viagens ao bacalhau eram campanhas sa-

zonais, cerca de seis meses, entre abril a ou-

tubro. "Dormíamos dois a dois e a comida era

sempre a mesma coisa: chá ou leite feito de

pó, grão, feijão e batatas. Foi assim a vida",

desabafa. Era no rancho, à proa do navio, onde

se comia e dormia. Os pescadores dormiam

vestidos, dois a dois normalmente por relações

de parentesco e o fogão estava sempre acesso

para aquecer os homens. Havia falta de água

potável, "tínhamos uma caneca de água por

dia, para lavar a cara, as mãos e para beber".

Os problemas de saúde eram frequentes e os

homens trabalhavam "até aos limites quando

havia peixe e o tempo o permitia, era um esfor-

ço sobrehumano", afirma Álvaro Garrido.

Atualmente professor da Faculdade de Econo-

mia da Universidade de Coimbra e consultor do

Museu Marítimo de flhavo, Álvaro Garrido tem-

-se dedicado ao estudo do mar e das pescas.

Numa conversa com o docente percebemos a

enorme importância social da pesca do baca-

lhau. Só no período entre 1935 e 1974 foram

mais de vinte mil homens como tripulantes

da frota bacalhoeira. Esse trabalho permitia-

-lhes "a possibilidade de um rendimento fixo

e regular que as outras pescas não davam",

explica-nos. Para a economia e vida social das

comunidades marítimas portuguesas, "foi um

modo de vida importante que reflete bem o

atraso do país, a miséria social que grassava

nas comunidades dos pescadores".

Zé Miguel ainda se lembra do seu primeiro orde-

nado, "foi 20 escudos por um quintal de baca-

lhau" ou seja, 12 mil quilos de bacalhau. "Quem

ultrapassasse os 100 quintais recebia mais 25

tostões. Era uma esmola na mão", diz-nos ao

mesmo tempo que dá uma pequena gargalhada.

É fácil sentir empatia pelas estórias destas gen-

tes que faziam campanhas de seis longos me-

ses em condições extremamente duras. Em mar

aberto, os pescadores afastavam-se duas a três

milhas do navio-mãe, tanto que "às vezes nem

o víamos, mesmo quando não existia nevoeiro".

O navio desviava-se indo atrás dos homens que

pescavam mais, "graças a Deus nunca me per-

di, mas muitos ficaram por lá", desabafa.

A bordo de dóris, pequenos barcos de fundo chato

que levavam apenas um homem, o trabalho era

penoso, talvez por isso se tenha tornado numa

lenda internacional. "Aquilo era duro! Às quatro

da manhã era quando o capitão mandava dar os

louvados e só às seis da tarde nos chamavam de

volta". No seu bote, Zé Miguel levava um cesto

com linhas e anzóis e "uma alcofa com o 'bicho'

cortado aos bocadinhos", que podia ser sardinha,

cavala ou lula. Para se orientar uma roda dos ven-

tos e para comer uma merenda de pão e peixe

frito. Um trabalho solitário onde as horas em alto

mar deixavam espaço para os desvaneios. "Pensa-

va na morte e na família, mas por vezes era melhor

nem pensar porque dava cabo de nós".

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"Eu ia morrendo afogado.

Foi na Gronelândia. Passou

uma tromba d'água que me

partiu o dóri, eu levei uma

pancada e fiquei sem senti-

dos. Caí ao mar e quem me

salvou foi um rapaz, era de

São Jacinto. Botou-me a mão

aos cabelos e salvou-me"

Zé Miguel recorda com pesar os homens que

não conseguiram regressar ao navio e exclama

de braços abertos quando questionado se tinha receio do nevoeiro, "Medo? Ai medo... então a

gente a ver a morte à frente dos olhos..." O pes-

cador que entrou para o "Elisabeth" pela mão

do primo relembra um dos momentos de maior

aflição. "Eu ia morrendo afogado. Foi na Gro-

nelândia. Passou uma tromba d' água que me partiu o dóri, eu levei uma pancada e fiquei sem

sentidos. Caí ao mar e quem me salvou foi um

rapaz, era de São Jacinto. Botou-me a mão aos cabelos e salvou-me".

O retorno dos dóris ao navio acontecia por volta das seis da tarde e a bordo ainda os esperava a segunda fase da produção que só terminava com o peixe escalado e salgado no porão. "Às

vezes dormia só duas ou três horas por noite

quando fazia a vigia. Aquilo era uma vida triste mas naquele tempo não havia melhor", admite. Álvaro Garrido relata ainda a forma como aos

dias de hoje nos parece irracional ou exagera-

da a opção de embarcar num navio bacalhoeiro durante dezenas de anos consecutivos, mas os

tempos eram outros, e "na verdade muitos ho-

mens que por lá andaram ainda hoje afirmam

que, se pudessem, repetiam a experiência. Eles

eram pescadores e habituavam-se às viagens e

às privações da vida a bordo dos lugres porque

tinham a motivação da soldada (fixa e comple-

mentar), o aforro, a família, os filhos.

Além disso, não conheciam outra vida, muitos eram filhos e netos de bacalhoeiros". Filho de pescador da Costa Nova, Zé Miguel diz

que da pesca do bacalhau tem "umas saudades

tristonhas. Basta que é mar, há ir e não voltar."

Saiu da faina maior quando conseguiu comprar

um barco, e diz com orgulho que na zona de Avei-

ro e Ílhavo todos o conhecem, "fui daqui o melhor

pescador de robalo, linguado, chocos, tudo!"

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