30-06-2019 | litoral magazine - universidade de coimbra · "elisabeth", o navio-motor...
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30-06-2019 | Litoral Magazine
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BACALHAU A AVENTURA DOS PESCADORES NAS
ÁGUAS GELADAS DO ATLÂNTICO NORTE
TEXTO JOANA RATO • ILUSTRAÇÃO GONÇALO SEPÚLVEDA
ra jovem, nem 20 anos tinha quando,
em 1957 embarcou pela primeira vez no
"Elisabeth", o navio-motor bacalhoeiro
que partia de ílhavo rumo aos bancos
gelados da Terra Nova e da Gronelândia
para a pesca do bacalhau. José Miguel
Castro, conhecido como Zé Miguel, nas-
ceu na Costa Nova há 81 anos e mantém
bem vivas as memórias de um dos mais emblemáticos pro-
gramas de autarcia económica implementados pelo Estado
Novo: a Campanha do Bacalhau. "Naquele tempo, quem
fosse para o bacalhau não ia para Angola, havia lá a guer-
ra", explica-nos. Na verdade, ainda antes do Estado Novo,
em 1927, foi promulgada a primeira legislação pelos Go-
vernos da Ditadura Militar que isentava de serviço militar os
pescadores que fizessem seis campanhas consecutivas na
Terra Nova. A forte vaga de emigração dos anos 60, a natu-
reza obsoleta da pesca à linha, no período coincidente com
as guerras coloniais em África, fizeram com que surgissem
sérios problemas de recrutamento. Era difícil formar as tri-
pulações por falta de mão-de-obra. O decreto de 1927 vol-
tou a ser importante e "proporcionou a muitos homens um
$ t dilema humano que hoje nos impressiona: embarcar num
bacalhoeiro e escapar à guerra de África ou preferir a "guer-
ra do bacalhau" no Atlântico Norte?", como explica Álvaro
Garrido, professor da Universidade de Coimbra e consultor
do Museu Marítimo de ílhavo.
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Foi no cais dos pescadores da Costa Nova que
encontrámos Zé Miguel. Estava sentado junto
às casas de madeira onde os pescadores guar-
dam o material da pesca. O dia estava solarengo
e os homens já tinham regressado do mar. Com
ele trazia uma medalha que colocou orgulhosa-
mente ao peito. Tinha o símbolo do bacalhau
e foi-lhe oferecida numa homenagem feita no
Museu Marítimo de ílhavo aos atos de bravura e
sacrifício das gentes que viveram parte das suas
vidas no mar. "Fiz 15 viagens ao bacalhau", diz-
-nos. "A bordo iam cerca de 65 homens".
As viagens ao bacalhau eram campanhas sa-
zonais, cerca de seis meses, entre abril a ou-
tubro. "Dormíamos dois a dois e a comida era
sempre a mesma coisa: chá ou leite feito de
pó, grão, feijão e batatas. Foi assim a vida",
desabafa. Era no rancho, à proa do navio, onde
se comia e dormia. Os pescadores dormiam
vestidos, dois a dois normalmente por relações
de parentesco e o fogão estava sempre acesso
para aquecer os homens. Havia falta de água
potável, "tínhamos uma caneca de água por
dia, para lavar a cara, as mãos e para beber".
Os problemas de saúde eram frequentes e os
homens trabalhavam "até aos limites quando
havia peixe e o tempo o permitia, era um esfor-
ço sobrehumano", afirma Álvaro Garrido.
Atualmente professor da Faculdade de Econo-
mia da Universidade de Coimbra e consultor do
Museu Marítimo de flhavo, Álvaro Garrido tem-
-se dedicado ao estudo do mar e das pescas.
Numa conversa com o docente percebemos a
enorme importância social da pesca do baca-
lhau. Só no período entre 1935 e 1974 foram
mais de vinte mil homens como tripulantes
da frota bacalhoeira. Esse trabalho permitia-
-lhes "a possibilidade de um rendimento fixo
e regular que as outras pescas não davam",
explica-nos. Para a economia e vida social das
comunidades marítimas portuguesas, "foi um
modo de vida importante que reflete bem o
atraso do país, a miséria social que grassava
nas comunidades dos pescadores".
Zé Miguel ainda se lembra do seu primeiro orde-
nado, "foi 20 escudos por um quintal de baca-
lhau" ou seja, 12 mil quilos de bacalhau. "Quem
ultrapassasse os 100 quintais recebia mais 25
tostões. Era uma esmola na mão", diz-nos ao
mesmo tempo que dá uma pequena gargalhada.
É fácil sentir empatia pelas estórias destas gen-
tes que faziam campanhas de seis longos me-
ses em condições extremamente duras. Em mar
aberto, os pescadores afastavam-se duas a três
milhas do navio-mãe, tanto que "às vezes nem
o víamos, mesmo quando não existia nevoeiro".
O navio desviava-se indo atrás dos homens que
pescavam mais, "graças a Deus nunca me per-
di, mas muitos ficaram por lá", desabafa.
A bordo de dóris, pequenos barcos de fundo chato
que levavam apenas um homem, o trabalho era
penoso, talvez por isso se tenha tornado numa
lenda internacional. "Aquilo era duro! Às quatro
da manhã era quando o capitão mandava dar os
louvados e só às seis da tarde nos chamavam de
volta". No seu bote, Zé Miguel levava um cesto
com linhas e anzóis e "uma alcofa com o 'bicho'
cortado aos bocadinhos", que podia ser sardinha,
cavala ou lula. Para se orientar uma roda dos ven-
tos e para comer uma merenda de pão e peixe
frito. Um trabalho solitário onde as horas em alto
mar deixavam espaço para os desvaneios. "Pensa-
va na morte e na família, mas por vezes era melhor
nem pensar porque dava cabo de nós".
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"Eu ia morrendo afogado.
Foi na Gronelândia. Passou
uma tromba d'água que me
partiu o dóri, eu levei uma
pancada e fiquei sem senti-
dos. Caí ao mar e quem me
salvou foi um rapaz, era de
São Jacinto. Botou-me a mão
aos cabelos e salvou-me"
Zé Miguel recorda com pesar os homens que
não conseguiram regressar ao navio e exclama
de braços abertos quando questionado se tinha receio do nevoeiro, "Medo? Ai medo... então a
gente a ver a morte à frente dos olhos..." O pes-
cador que entrou para o "Elisabeth" pela mão
do primo relembra um dos momentos de maior
aflição. "Eu ia morrendo afogado. Foi na Gro-
nelândia. Passou uma tromba d' água que me partiu o dóri, eu levei uma pancada e fiquei sem
sentidos. Caí ao mar e quem me salvou foi um
rapaz, era de São Jacinto. Botou-me a mão aos cabelos e salvou-me".
O retorno dos dóris ao navio acontecia por volta das seis da tarde e a bordo ainda os esperava a segunda fase da produção que só terminava com o peixe escalado e salgado no porão. "Às
vezes dormia só duas ou três horas por noite
quando fazia a vigia. Aquilo era uma vida triste mas naquele tempo não havia melhor", admite. Álvaro Garrido relata ainda a forma como aos
dias de hoje nos parece irracional ou exagera-
da a opção de embarcar num navio bacalhoeiro durante dezenas de anos consecutivos, mas os
tempos eram outros, e "na verdade muitos ho-
mens que por lá andaram ainda hoje afirmam
que, se pudessem, repetiam a experiência. Eles
eram pescadores e habituavam-se às viagens e
às privações da vida a bordo dos lugres porque
tinham a motivação da soldada (fixa e comple-
mentar), o aforro, a família, os filhos.
Além disso, não conheciam outra vida, muitos eram filhos e netos de bacalhoeiros". Filho de pescador da Costa Nova, Zé Miguel diz
que da pesca do bacalhau tem "umas saudades
tristonhas. Basta que é mar, há ir e não voltar."
Saiu da faina maior quando conseguiu comprar
um barco, e diz com orgulho que na zona de Avei-
ro e Ílhavo todos o conhecem, "fui daqui o melhor
pescador de robalo, linguado, chocos, tudo!"