3 processo de elaboraÇÃo do produto “prÁticas

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25 3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS INVESTIGATIVAS NO ENSINO DE MICROBIOLOGIA: UMA PROPOSTA METODOLÓGICA PARA INICIAÇÃO À PESQUISA E À DOCÊNCIA”. Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino, continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso pra constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso pra conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade. (FREIRE, 1997, p. 32) 3.1 Ensinando, buscando ... reprocurando Em nossa vida profissional, desde a educação básica até o ensino superior, temos continuamente procurado maneiras para melhorar a qualidade da nossa prática docente. Acreditamos que em tudo que fazemos, a forma como fazemos está intimamente ligada à nossa subjetividade. Como apreciamos muito teatro, música, poesia, enfim, arte em geral, em diversas de nossas tentativas de inovação recorremos a esses recursos, combinando-os com outros de caráter mais técnico. Das reflexões sobre nossas vivências pessoais e profissionais ao longo do tempo, percebemos que houve um significativo amadurecimento em nossa práxis pedagógica: as tentativas foram se mostrando mais elaboradas, melhor fundamentadas e, sem deixar de dar vazão à criatividade, com maior rigor. Consideramos o produto apresentado nesta dissertação como o mais sólido e atribuímos isso às reflexões que o mestrado nos propiciou, às intensas interlocuções que mantivemos com professores e colegas desse curso. No que se refere a inovações metodológicas que tentamos no ensino superior, o grande desafio encontrado na formação de professores tem sido o enorme abismo entre o “saber dizer” e o “saber fazer”. A discussão do processo ensino-aprendizagem avança e, na maioria das vezes, o discurso de um ensino que auxilie o aluno no processo de construção e significação do conteúdo é apropriado. Contudo, quando os alunos vão exercer a ação docente, pouquíssimos conseguem

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Page 1: 3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS

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3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS INVESTIGATIVAS

NO ENSINO DE MICROBIOLOGIA: UMA PROPOSTA METODOLÓGICA PARA

INICIAÇÃO À PESQUISA E À DOCÊNCIA”.

Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino, continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso pra constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso pra conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade. (FREIRE, 1997, p. 32)

3.1 Ensinando, buscando ... reprocurando

Em nossa vida profissional, desde a educação básica até o ensino superior,

temos continuamente procurado maneiras para melhorar a qualidade da nossa

prática docente. Acreditamos que em tudo que fazemos, a forma como fazemos está

intimamente ligada à nossa subjetividade. Como apreciamos muito teatro, música,

poesia, enfim, arte em geral, em diversas de nossas tentativas de inovação

recorremos a esses recursos, combinando-os com outros de caráter mais técnico.

Das reflexões sobre nossas vivências pessoais e profissionais ao longo do

tempo, percebemos que houve um significativo amadurecimento em nossa práxis

pedagógica: as tentativas foram se mostrando mais elaboradas, melhor

fundamentadas e, sem deixar de dar vazão à criatividade, com maior rigor.

Consideramos o produto apresentado nesta dissertação como o mais sólido e

atribuímos isso às reflexões que o mestrado nos propiciou, às intensas interlocuções

que mantivemos com professores e colegas desse curso.

No que se refere a inovações metodológicas que tentamos no ensino

superior, o grande desafio encontrado na formação de professores tem sido o

enorme abismo entre o “saber dizer” e o “saber fazer”. A discussão do processo

ensino-aprendizagem avança e, na maioria das vezes, o discurso de um ensino que

auxilie o aluno no processo de construção e significação do conteúdo é apropriado.

Contudo, quando os alunos vão exercer a ação docente, pouquíssimos conseguem

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incorporar o discurso às suas práticas, ou romper com modelos que eles mesmos

criticam.

Em vista disso, nossa intenção nas últimas experiências realizadas tem sido

tentar diminuir o abismo entre o “saber dizer” e o “saber fazer”, propondo situações

de ensino-aprendizagem nas quais o aluno entre em conflito conceitual,

procedimental e também atitudinal, buscando por meio da análise dessas situações

mostrar a incoerência entre discurso /prática e possíveis modalidades de superação.

A proposta ora exposta tem como referência um trabalho realizado em 2005

na disciplina de microbiologia, no curso de Licenciatura em Ciências Biológicas do

PROGRAMA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES DO ESTADO (PROESP)

destinado a professores não licenciados do Estado da Bahia, realizado pela

UNEB/CAMPUS X. A proposta tinha suporte metodológico em Freire (1997) e Pozo

(2002), concebendo a prática educativa como meio para proporcionar a autonomia

do educando e enfatizando seu contexto de vida. Apesar de ser um curso de

formação de professores de Biologia, muitos lecionavam outras disciplinas e um dos

pontos positivos da proposta foi o fato de a turma ter-se envolvido bastante com o

curso e demonstrado maior identificação e interesse na área.

O objetivo geral consistia em propiciar a esses professores-discentes um

novo olhar sobre a realidade, usando os conhecimentos adquiridos na disciplina

microbiologia, contextualizando-os e interrelacionando-os com os aspectos

socioculturais, além de enfatizar a importância da relação entre ensino e pesquisa

na formação docente. Seus objetivos específicos foram: utilizar o estudo do meio,

como metodologia no ensino da biologia; incentivar a pesquisa bibliográfica para

responder a uma necessidade concreta; perceber as diferentes variáveis que

propiciam a transmissão e a manutenção de doenças infecciosas em um

comunidade; incentivar a produção escrita por meio de um trabalho de natureza

investigativa; incentivar a cooperação e o trabalho em equipe. Devemos esclarecer

que nessa proposta os objetivos não envolviam procedimentos laboratoriais, e sim

as condições higiênico-sanitárias de alimentos comercializados em feiras livres,

praças ou ruas das localidades onde residiam os professores-discentes.

Na ocasião, os participantes do curso avaliaram de forma muito positiva a

proposta. Os objetivos foram alcançados, embora a qualidade da escrita e da

metodologia de pesquisa não fosse plenamente satisfatória, em virtude da

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dificuldade de orientação personalizada para cada grupo. Quando essa proposta

foi aplicada não dispúnhamos de monitor para a disciplina. Nossa avaliação foi que

para melhorar a qualidade da escrita e a metodologia científica, seria essencial um

acompanhamento sistematizado e com regularidade para que percebêssemos as

dificuldades específicas dos grupos de trabalho e fizéssemos as intervenções

necessárias.

3.2 Pesquisando para conhecer

A discussão de que os estudantes cada dia aprendem menos é questionada

por diversos autores, inclusive Pozo (2002) que, ao refletir sobre isso, argumenta

que a sociedade em que vivemos hoje demanda que aprendamos a lidar com uma

série de informações jamais conhecidas na história humana, sob pena de sermos

excluídos até mesmo de atividades cotidianas, como lidar com nosso dinheiro, se

não aprendermos a usar, por exemplo, um caixa eletrônico.

É inegável que as crianças chegam à escola dominando muito mais

informações do que outrora. Mas, por que o ensino escolar parece regredir à medida

que a necessidade de conhecimento aumenta? Na maioria das escolas, o ensinar e

o aprender estão centrados na oralidade e na memorização e parecem não ter

mudado muito desde a instituição da escola. Não se questiona a necessidade de

memorização em determinadas situações, contudo, memorizar informações não

quer dizer ter a capacidade de usá-las quando necessário. Apesar disso, a escola

continua valorizando a memorização mecânica. A sociedade mudou, suas

demandas mudaram, mas a escola valoriza principalmente habilidades que uma

sociedade de outrora valorizava, quando o acesso aos escritos e sua necessidade

na vida cotidiana eram muito limitados se comparados aos atuais. A mudança da

sociedade e suas demandas implicam diretamente questionar por que e para que

ensinar e aprender na sociedade atual. O que é realmente importante ensinar numa

sociedade onde o acesso e a quantidade de informação são imensos, e que

requisita que saibamos usar o conhecimento em situações cada vez mais diversas?

Pozo (2002) defende que o processo ensino-aprendizagem deva priorizar o

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ensino de estratégias para aprender a aprender e lidar com as informações e

conhecimentos adquiridos. Mas para que o aluno se aproprie das estratégias de

aprendizagem é preciso que o professor tenha atitudes estratégicas em relação ao

seu fazer pedagógico. Para tanto, é preciso que o ofício do ensinar e do aprender

seja concebido como um problema, uma tarefa complexa e aberta, que pode ter

diversas respostas dependendo das intenções e estratégias escolhidas para resolvê-

lo.

3.2.1 Práticas investigativas como estratégia de ensino-aprendizagem

Partilhando das idéias de Pozo (2002), acreditamos que as práticas

investigativas na graduação podem funcionar como uma metodologia mais

adequada para o ensino-aprendizagem na sociedade da informação, o que também

é defendido por Galiazzi (2003) e Demo (1996), que tratam do como educar pela

pesquisa, e Freire (1997) que nos alerta para o fato de que é a curiosidade que nos

move para aprender e que ensino e pesquisa não devem ser dissociados.

O educar pela pesquisa “como uma possibilidade de transformação da

formação inicial dos professores”, é defendido por Galiazzi (2003) porque, em sua

compreensão, “se pode fazer da sala de aula um lugar de aproximação do ensino e

da pesquisa, desde que o aluno se construa e se constitua pesquisador nesse

processo” (GALIAZZI, 2003, p. 111). A autora tem como suportes teóricos Demo

(1998) e Habermas (1989) e usa a proposta desses estudiosos para estabelecer

diferentes níveis de pesquisa (GALIAZZI, 2003, p. 92):

1. A interpretação reprodutiva.

2. A interpretação própria.

3. A reconstrução.

4. A construção.

5. A criação de novos paradigmas.

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Galiazzi (2003,p. 92)) propõe a pesquisa em três situações:

1. No planejamento e avaliação dos projetos curriculares;

2. Como parte da função do professor, sendo instrumento para seu

aperfeiçoamento profissional;

3. Como metodologia para a aprendizagem dos alunos.

Galiazzi fundamenta-se, ainda, em Porlán e Rivero (1998), Porlán e outros

(1997-1998) Cañal e outros (1997) para defender que a pesquisa surge como

principio articulador dos demais, superando teorias reducionistas, limitadas à

reprodução de conhecimento cientifico. (GALIAZZI, 2003, p. 93-94). Os autores

propõem que a metodologia de pesquisa escolar constitua a estratégia de ensino

prioritário para o ensino de ciências, considerando os seguintes momentos no

planejamento das atividades de ensino:

1. Orientação de unidade: o ponto de partida da pesquisa é um problema de

interesse intelectual e afetivo dos alunos.

2. Expressão e contraste dos conhecimentos iniciais dos alunos: estes

precisam expor aos demais as idéias que têm sobre o problema a ser estudado.

3. Planejamento do trabalho: construir conceitos e hipóteses baseados nas

concepções iniciais dos alunos, contrastando-os; aqui se incluem o planejamento

sobre a obtenção de novas informações, a análise dos dados, a comunicação dos

resultados e a avaliação do processo desenvolvido.

4. Execução do planejamento, que inclui a obtenção de novas informações, a

análise dos dados, interpretação dos recursos obtidos e a obtenção de conclusões.

5. Estruturação secundária: usar os conhecimentos produzidos em situações

variadas, incluindo sínteses, elaboração do produto e a formulação de novos

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problemas.

6. Comunicação dos resultados: os alunos precisam comunicar seus

resultados com a própria sala ou com comunidades mais amplas.

7. Avaliação do processo de pesquisa, incluindo processos metacognitivos

sobre as aprendizagens alcançadas.

Neste trabalho optamos por usar a expressão práticas investigativas em lugar

de pesquisa para diferenciá-las da atividade de pesquisa, que é realizada na pós-

graduação. Sobre esta questão, Dias Sobrinho enfatiza que:

Não se trata, aqui, da grande pesquisa em áreas nobres que os centros de excelência e instituições científicas internacionalmente reconhecidas produzem; porém, mais propriamente daquela produção e reconstrução do conhecimento vinculadas com a docência e quase sempre orientadas às realidades mais próximas. Não se trata, porém, de atividades menos nobres ou menos importantes que aquelas desenvolvidas pelas prestigiosas universidades de fama internacional. Certamente correspondem essas atividades ao que faz a maioria das instituições superiores com vocação pública e que pretendem fazer um trabalho educacional sério. (DIAS SOBRINHO, 2000, p. 45).

A iniciação à pesquisa científica pode ser uma excelente oportunidade para o

desenvolvimento do trabalho de equipe e para favorecer as interações entre os

alunos, o respeito às diferenças, a autodisciplina e a autonomia. Além disso, oferece

condições para que haja uma desmitificação da pesquisa e do pesquisador, para

esclarecer a freqüente confusão entre técnicas e pesquisa e possibilita a discussão

da ética na pesquisa.

A indicação para lidar com práticas investigativas na graduação encontra na

LDBEN Lei 9.394/1996 seus princípios: (i) fortalecimento da articulação da teoria

com a prática, valorizando a pesquisa individual e coletiva, assim como os estágios

e as atividades de extensão, as quais poderão ser incluídas como parte da carga

horária curricular; (ii) estímulo das práticas de estudo independente, visando a uma

progressiva autonomia profissional e intelectual do aluno; (iii) incentivo de sólida

formação geral, necessária para que o futuro graduado possa vir a superar os

desafios de renovadas condições de exercício profissional e de produção do

conhecimento, permitindo variados tipos de formação e habilitações diferenciadas

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em um mesmo programa.

O Parecer Câmara de Ensino Superior do Conselho Nacional de Educação

(CES/CNE ) nº. 1.070/99, aprovado em 23.11.99, também reforça a implementação

de práticas investigativas como procedimentos pedagógicos no ensino superior e

descreve que:

As práticas investigativas como pesquisa bibliográfica, estudos de caso, pequenos trabalhos de campo sob a orientação dos docentes, o trabalho em escritórios de advocacia associados aos cursos de Direito, trabalhos individuais ou coletivos de experiências nos laboratórios constituem procedimentos pedagógicos essenciais para ensino de qualidade e para a formação adequada de futuros profissionais e devem ser estimulados, tanto nas universidades quanto em outras instituições de ensino.

As práticas investigativas encontram-se ainda defendidas em diversas

Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação. A esse respeito,

citem-se, por exemplo, as Diretrizes para a Formação de Professores da Educação

Básica, instituída pela Resolução 1 do Conselho Nacional de Educação – Conselho

Pleno (CNE/CP), de 18 de fevereiro de 2002, que no seu artigo 2º preconiza

diversas formas de orientação inerentes à formação para a atividade docente, entre

as quais o preparo para o aprimoramento em práticas investigativas, constituindo-se

em procedimentos que propiciam a desejada articulação entre ensino, pesquisa e

extensão.

A proposta aqui apresentada envolveu os alunos numa prática investigativa,

em que o conhecimento científico foi requisitado para responder as questões do dia-

a-dia e, em contrapartida, refutá-lo, validá-lo ou ampliá-lo, à medida que as

observações empíricas buscam nas referências bibliográficas suporte para

sistematizar e fundamentar tais observações e dados levantados.

Retomando Freire (1997, p. 32), lembramos que ele enfatiza a intrínseca

relação entre ensino e pesquisa - “se encontram um no corpo do outro”-, diz ele.

Mas mesmo no cotidiano da Universidade há ruptura entre ensino e pesquisa, e,

muitas vezes, os professores não se dão conta de que, ao ensinar, fazem uma

transposição didática de conhecimentos que são fruto de pesquisa, que surgiram

das indagações acerca do mundo. Nesse contexto do desconhecimento, o

pesquisador, o cientista é considerado um ser diferente dos demais.

Mas o professor também não pesquisa? Não deveria ser o ensino de Ciências

e Biologia uma forma de incentivar a curiosidade natural, como Freire (1997) sugere,

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promovendo a superação do senso comum de forma que a curiosidade, que não

deixa de ser curiosidade, criticiza-se a partir da aproximação com o conhecimento

científico?

É uma queixa generalizada entre os universitários o fato de os conteúdos

pedagógicos não serem vivenciados em sua vida estudantil. A diversificação de

metodologias, a avaliação usando diferentes instrumentos, por exemplo, não são

aplicadas na universidade. As teorias pedagógicas não encontram na universidade

seu espaço de aplicação.

Por isso, esta proposta defende que “o profissional da educação seja

pesquisador, isto é, que maneje a pesquisa como princípio científico e educativo e a

tenha como atitude cotidiana” (DEMO, 1998, p. 2). Assim é que compreendemos e

justificamos o uso de práticas investigativas no ensino superior como meio para o

desenvolvimento de estratégias produtivas de ensino-aprendizagem.

3.2.2 A natureza dos conteúdos curriculares

Observando os parâmetros curriculares nacionais, e comparando-os com a

ação da maioria dos professores da Educação Básica, vemos que o discurso da

moda pode ser incorporado, algumas atividades também, mas isto não é suficiente

para dizer que houve um rompimento com um modelo tradicional de ensino adotado.

Na perspectiva que defendemos, acreditamos que seja necessário primeiro

apropriar-se das concepções de uma prática construtivista, identificar-se com ela,

para, então, executá-la. É preciso urgentemente buscar a coerência nas práticas

educativas. Alguns professores são bons professores, mas rotulados de

tradicionais em virtude do tipo de atividade de ensino que executam. Apesar de

optarmos por outra posição, julgamos melhor que continuem sendo bons

professores, ao invés de se perderem em modelos de ensino cujas concepções não

se apropriaram e com os quais não se identificam.

Isto não quer dizer que as mudanças não possam acontecer. Além do

cuidado com o superficialismo de algumas tentativas de inovação que chegam à

escola, a mudança depende da vontade do professor e de formação continuada

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adequada, para que não levantemos questionamentos de práticas que são tomadas

pela metade, como “remendo novo em vestido velho”. Talvez seja possível impor

uma ação, mas mudança de concepção e postura não pode ser imposta,

dependendo da adesão dos professores.

É certo que a teoria por si só não modifica a prática docente, nem tampouco a

prática por si só garante a qualidade de ensino. É grande a dificuldade dos

estudantes para contextualizarem no dia-a-dia e em sua prática docente os

conhecimentos aprendidos na vida acadêmica. São perguntas muito comuns entre

os alunos, em especial quando estão realizando o estágio supervisionado, como

poderão executar na sala de aula as teorias e metodologias estudadas em termos

conceituais durante o curso, se não tiveram experiência enquanto alunos com as

mesmas? Se não sabem como fazer? Se não aprenderam o procedimento?

Na concepção defendida por Zabala (1999), tudo que pode ser aprendido

pode ser considerado como conteúdo. Entretanto, o elenco de um currículo escolar

seleciona o que é relevante para ser ensinado na escola, restando saber que

critérios são usados nessa seleção? Não podemos perder de vista que todo

currículo é socialmente construído; por isso mesmo, a relevância dos conteúdos

escolares é questionável.

No presente trabalho mantêm-se os conteúdos conceituais constantes das

ementas dos programas das disciplinas da maioria das universidades e faculdades,

conforme levantamento na Internet. Insistimos que esta proposta reconhece outros

conteúdos além dos conceituais e, por isso, usa a discriminação tipológica como

critério de classificação: o quê os discentes devem saber dizer, saber fazer e ser

(ZABALA, 1999, p. 161): o saber dizer define os conteúdos conceituais ligados

principalmente a conteúdos que são verbalizados, ou utilizam-se da escrita para

serem expressos; saber fazer define os conteúdos procedimentais, isto é, conjuntos

de ações ordenadas destinadas à consecução de um fim, incluem técnicas,

métodos, destrezas ou habilidades; saber ser define os conteúdos atitudinais que se

referem a valores, normas, atitudes .

De acordo com Pozo (2002), conteúdos conceituais, procedimentais e

atitudinais são de natureza distinta, as formas de aprendê-los envolvem processos

cognitivos também distintos, de maneira que se apropriar do conteúdo conceitual

não implica apropriação do procedimental ou vice-versa. Por isso alguns sabem

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dizer como fazer, mas não sabem fazer; enquanto outros sabem fazer, embora não

saibam explicar como e porque fazem.

Defendemos que para se apropriar dos conteúdos procedimentais e

atitudinais, tão discutidos e proclamados pelas disciplinas pedagógicas nos cursos

de licenciatura, os alunos precisam aprender a fazer e a ser. Só se aprende a fazer

fazendo ou tentando fazer, e a ser sendo ou tentado ser.

A universidade deveria ser o espaço para que esses conteúdos sejam

efetivamente trabalhados. Como o aluno aprenderá a se expressar de forma escrita,

se esta não é uma habilidade requisitada pelos professores? Como poderão fazer

pesquisa se só aprendem os conteúdos conceituais da metodologia científica, se

não puderam aplicar essa metodologia em uma situação concreta? Como saber se o

aluno consegue aplicar o conteúdo conceitual ensinado em situações diversas, se

ele não é desafiado a fazê-lo?

Buscando superar os desafios do processo ensino-aprendizagem

compartilhamos com Pozo (2002), que sintetiza, em dois “mandamentos”, os

princípios que deveriam ser observados para que mais estudantes pudessem

aprender (p. 272-273):

I – Refletirás sobre as dificuldades que teus aprendizes enfrentam e buscarás meios de ajudá-los a superá-las. II – Transferirás progressivamente para os alunos o controle de sua aprendizagem, sabendo que a meta última de todo mestre é se tornar desnecessário.

Compreendemos que a finalidade de todo processo educativo é promover os

estudantes em todos os aspectos humanos e na educação formal, especialmente, o

desenvolvimento da autonomia intelectual (FREIRE, 1997; POZO, 2002; DEMO,

1998; GALIAZZI, 2003). A autonomia intelectual deve ser um objetivo explícito a

alcançar quando decidimos pelas estratégias de ensino mais adequadas. Um

mesmo conteúdo pode ter diversas abordagens e nossas escolhas têm razões que

muitas vezes não estão explícitas, mas, com certeza, estão ligadas à nossa

formação inicial, à nossa vivência como discentes e ao contexto social.

Uma vez que tenhamos nossos objetivos bem estabelecidos, como escolher

entre diferentes atividades de ensino? Raths (1973) citado por Zabala (1999, p. 157),

elenca os critérios para comparar diferentes tipos de atividades de ensino,

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pressupondo que:

Em iguais condições, uma atividade é preferível a outra se: 1. Permite que o aluno tome decisões razoáveis sobre como desenvolvê-la e

veja as conseqüências de sua escolha. 2. Atribui ao aluno um papel ativo em sua realização. 3. Exige do aluno uma pesquisa de idéias, processos intelectuais,

acontecimentos ou fenômenos de ordem pessoal ou social o estimula a envolver-se nela.

4. Obriga o aluno a interagir com sua realidade. 5. Pode ser realizada por alunos de diversos níveis de capacidade e

interesses diferentes. 6. Obriga o aluno a examinar, em um novo contexto, uma idéia, conceito, lei

etc., que já conhece. 7. Obriga o aluno a examinar idéias ou acontecimentos normalmente aceitos

sem questionamento pela sociedade. 8. Coloca o aluno e o educador em uma posição de êxito, fracasso ou crítica. 9. Obriga o aluno a reconsiderar e rever seus esforços iniciais. 10. Obriga a aplicar e dominar regras significativas, normas ou disciplinas. 11. Oferece ao aluno a possibilidade de planejá-la com outros, participar do

seu desenvolvimento e comparar os resultados obtidos. 12. For relevante para os propósitos e interesses explícitos dos alunos.

Os critérios citados anteriormente nortearam o produto proposto e testado que

ora dissertamos.

3.2.3 A organização cooperativa – os pequenos grupos

Todo trabalho foi estruturado com base no conceito de “pequeno grupo”, ou

“grupo de interação face a face” (AFONSO, 2002, p. 14), pois o processo ensino-

aprendizagem é, em sua essência, o encontro com o outro (GIUSTA, 2003), uma

prática social, que, como tal, não ocorre de forma solitária (FIGURA 2).

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FIGURA 2: Alunos organizados em pequenos grupos durante a execução dos trabalhos laboratoriais.

Fonte: Foto da autora

Afonso (2002) concebe a constituição do grupo de interação face a face como

uma “rede de relações” com poucas pessoas partilhando objetivos em comum,

algum traço de identidade e vinculados pela interdependência de sua condição,

projeto e/ou trajetória social. Em nosso trabalho, o objetivo comum era a proposta da

prática investigativa e da aquisição dos conhecimentos e estratégias para alcançá-

lo. Todos os participantes eram estudantes matriculados na disciplina, sendo esse o

vínculo de interdependência. A execução dos trabalhos se deu em grupos de três a

cinco pessoas, grupos estes formados por afinidades, sem a interferência da

professora ou das monitoras. A composição dos grupos guarda relação, também,

com a seguinte definição de Piaget:

O método do trabalho em grupo consiste numa organização de trabalhos em comum. Um certo número (quatro ou cinco por exemplo) se junta para resolver um problema, recolher a documentação de um tema de história ou de geografia, para fazer uma experiência de química ou de física, etc. A experiência mostra que os fracos e preguiçosos, não são abandonados à própria sorte, são então estimulados e mesmo obrigados pela equipe, enquanto os adiantados aprendem a explicar e dirigir, muito melhor do que permanecessem na situação de alunos solitários. Além do benefício intelectual e da crítica mútua do aprendizado, da discussão e da verificação, adquire-se desta forma um sentido da liberdade e da responsabilidade

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conjuntas, da autonomia na disciplina livremente estabelecida. (PIAGET, 1944, p. 203).

A aprendizagem se dá, desta maneira, em um contexto social no qual a

interação entre os atores do processo ensino-aprendizagem é uma condição

necessária para que a aprendizagem ocorra, e este contexto afeta os resultados do

processo. (POZO, 2002; FREIRE, 1997). Compartilhamos, ainda, com Wallon (1979)

a afirmação segundo a qual “o indivíduo, se se compreende como tal, é

essencialmente social, não na seqüência de contingências exteriores, mas na

seqüência de uma necessidade íntima. Ele é biologicamente social” (WALLON,

1979, p.156).

Apesar da importância do contexto social, tradicionalmente as atividades de

ensino-aprendizagem são prioritariamente individuais, tendendo para a organização

competitiva, mas vários autores têm apontado as vantagens da organização

cooperativa, sobretudo para aprendizagens sociais. O rendimento acadêmico, de

forma geral, é melhor quando apoiado na cooperação do que na atividade individual

em contextos de aprendizagem construtiva. (SLAVIN, 1990; WEINSTEIN, 1991;

COLL; COLOMINA, 1990; MELERO; FERNÁNDEZ BERROCAL, 1995 apud POZO,

2002). A eficiência da organização cooperativa de ensino-aprendizagem reside em

dois processos fundamentais: o conflito cognitivo e o suporte para solução de

problemas e conflitos. (POZO, 2002) .

Entre colegas, durante a realização de uma atividade, as explicações são

confrontadas e o surgimento do conflito cognitivo desequilibra os conceitos

alternativos dos alunos, que buscarão soluções para superá-los, podendo assim

alcançar os conceitos científicos que se pretendem ensinar. Além de superar os

conflitos cognitivos, devem também superar conflitos de natureza diversa, razão

porque Pozo (2002) chama esses conflitos de sociocognitivos.

Refletindo sobre a organização cooperativa de ensino-aprendizagem a partir

das zonas de desenvolvimento propostas por Vigotsky, devemos considerar que a

sala de aula apresenta alunos em diversos níveis de desenvolvimento cognitivo, e,

diante de uma situação de aprendizagem mediada por problemas, eles podem

interagir e auxiliarem-se mutuamente (GIUSTA, 2003). Os alunos que conseguem

responder primeiro conseguem, também, entender melhor as dificuldades dos

colegas e explicar como fizeram para resolvê-las, pois as zonas de desenvolvimento

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estão mais próximas entre eles do que em relação ao professor. (POZO, 2002).

Há uma tendência dos professores a acreditar que somente os que se

encontram em zona de desenvolvimento real menos desenvolvida são favorecidos

em uma organização cooperativa de ensino-aprendizagem. Entretanto, as pesquisas

têm demonstrado que os mais aptos no que diz respeito ao tema ou ao problema

sob sua responsabilidade desenvolverão iniciativa, habilidades de orientação e

socioafetivas, à medida que ajudam os colegas. Melero e Fernández Berrocal

(1995), citados por Pozo (2002), pontuaram que, nessas experiências, o aluno que

atua como orientador é o que mais aprende.

Considerando que os conhecimentos prévios dos estudantes são

heterogêneos, a organização cooperativa permite partilhar vivências sociais

diferenciadas, podendo contribuir de forma variada na resolução do problema e na

ampliação das possibilidades de aprendizagem pensadas para a atividade, pois

durante o processo interativo o professor não tem controle sobre o conteúdo das

interações. Além dos processos já citados, a organização cooperativa permitirá “a

aprendizagem por modelos e o planejamento estratégico da aprendizagem” (POZO,

2002, p. 259), uma vez que para concluir o problema proposto é necessário que o

grupo se organize.

Apesar de todas as vantagens citadas, vários autores (COLL apud POZO,

2002) concordam que a cooperação por si só não produz aprendizagem. A partir das

contribuições de Slavin (1990), Echeita (1995) e Melero e Fernández Berrocal

(1995), Pozo (2002) estabelece as condições para o sucesso de uma organização

cooperativa:

a) A tarefa dever ser comum para todo o grupo, trabalhando de forma sistêmica e não cartesiana; b) Evitar que os aprendizes se escondam no grupo, avaliando o trabalho em conjunto, mas não esquecendo a contribuição individual para o coletivo; c) O acesso ao êxito na atividade proposta deve ser democrático, em que o aluno seja avaliado pelo seu desempenho e não pela comparação com os demais;

As atividades em grupos oportunizam a cooperação e a autonomia, sendo,

portanto, conteúdos atitudinais privilegiados neste tipo de organização de trabalho:

A cooperação é o conjunto das interações entre indivíduos iguais (por oposição às interações entre superiores e inferiores) e diferenciados (por oposição ao conformismo obrigatório). A cooperação supõe então

Page 15: 3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS

39

autonomia dos indivíduos, isto é, a liberdade de pensamento, a liberdade moral e a liberdade política. ”“Mas é preciso compreender que a liberdade, que surgiu da cooperação, não é a-nomia ou a anarquia; ela é a autonomia; isto é, a submissão do indivíduo a uma disciplina que ele próprio escolhe e à constituição da qual ele colabora com sua personalidade. (PIAGET, 1944, p. 201)

Nesta proposta, fundamentamo-nos no conceito de autonomia defendido por

Maturana (1995), segundo o qual as pessoas são sistemas autônomos, isto é,

sistemas que se auto-organizam e estão constantemente trocando informações com

o meio, buscando melhor condição de adaptação. Por isso, Morin sugere o uso de

uma expressão mais ampla e mais expressiva, ou seja, sistemas auto-eco-

organizadores, em lugar de simplesmente sistemas auto-organizadores. (MORIN

apud GIUSTA, 2003).

Acreditamos, ainda, que o desenvolvimento da autonomia é a condição para o

surgimento da cooperação entre as pessoas e de uma educação que conduza à

prática da liberdade (FREIRE, 1997; PIAGET, 1944).

3.2.4 A mediação do professor

Para alcançar o fim a que se propõe, uma organização cooperativa deve

atender determinadas condições, entre as quais ressaltamos a mediação do

professor. É arriscado deixar o grupo entregue a si mesmo, crendo que na troca

entre iguais o conhecimento pretendido será automaticamente apropriado pelos

alunos, pois sem a participação direta do professor que planeja, orienta e

acompanha é menos provável atingir-se o objetivo proposto.

A relação ensino-aprendizagem é uma relação altamente complexa e, por isso, incerta e, na maioria das vezes, tensa. Se tivéssemos que resumir, diríamos com muita adequação que essa relação é probabilística e, portanto, o problema que se coloca para os profissionais do ensino, antes de tudo, é: como aumentar a probabilidade para que a relação ensino/ aprendizagem ocorra ? e, além disso, o que se deve priorizar para tirar o máximo de proveito possível dos momentos em que ela ocorre ? (GIUSTA, 2003 , p. 25)

Ao concordamos com a afirmação de Giusta (2003), não cabe imaginar que

procedimentos técnicos são atividades mecânicas, que uma vez ensinadas qualquer

Page 16: 3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS

40

pessoa é capaz de aprendê-los e repeti-los. Isso nos leva, nesta proposta, a partilhar

que:

Para imitar, é necessário possuir os meios para se passar de algo que já se conhece para algo novo. Com o auxílio de uma outra pessoa, toda criança pode fazer mais do que faria sozinha – ainda que se restringindo aos limites estabelecidos pelo grau de seu desenvolvimento (VYGOTSKY, 1987, p.89).

Defendemos, portanto, que a execução de um procedimento técnico depende

dos meios que o aprendiz já possui, e que é necessário um mediador, uma pessoa

que o auxilie para que ele possa ir além do que ele já sabe. No caso da educação

formal, o mediador de direito e de fato não pode deixar de ser o professor.

Assim, deve-se considerar que em uma organização cooperativa de ensino-

aprendizagem o papel do professor é muito mais do que o de prover informações,

cabendo-lhe planejar, administrar e supervisionar os grupos de trabalho. Ao exercer

seu papel nesses termos, a legitimação da autoridade do professor, questão crucial

nesse tipo de organização, é preservada. Tardif (1991), analisando os saberes dos

professores afirma que a autoridade do professor é concedida pela sociedade, em

virtude de uma formação que o capacita para ministrar determinados conteúdos,

mas que essa autoridade precisa ser legitimada no seu ambiente de trabalho.

Vale lembrar que como os alunos não estão acostumados com este tipo de

prática, poderão se sentir entregues a si mesmos em atividades que acham que é só

para ocupar o precioso tempo de aprender (daqueles que assim desejam), ou uma

desculpa para o professor não trabalhar e ludibriar os alunos. Sendo assim, a prática

investigativa é vista como sem importância e eles vão preferir usar seu tempo para

fazer coisas mais interessantes. Por isso é essencial que o mediador assuma

plenamente sua função no processo (FIGURA 3).

Page 17: 3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS

41

FIGURA 3: Monitoras (jaleco rosa) acompanhando as práticas investigativas desenvolvidas pelos alunos.

Fonte: Foto da autora

Pozo (2002) chama a atenção para o fato de que um mestre que trabalha

lançando mão de estratégias deve, aos poucos, ensinar a elaboração de estratégias

aos alunos de forma que estes cada vez mais ganhem autonomia e possam criar

estratégias próprias para aprender. Desta forma, mestres estratégicos podem formar

aprendizes estratégicos.

3.3 A intervenção - educando os atores do processo

3.3.1 Vivenciando práticas investigativas no ensino de microbiologia

A disciplina microbiologia1, por sua própria definição, tem conteúdos explícitos

1 Ementa da disciplina Microbiologia (60 h): Estuda a biologia, importância e distribuição dos microorganismos.

Page 18: 3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS

42

de natureza conceitual e procedimental e, na proposta de trabalho que estamos

apresentando, destacamos também os atitudinais. Os conteúdos conceituais e

procedimentais classicamente trabalhados na disciplina não foram alterados.

Entretanto, a proposta traça um trabalho diferenciado para a abordagem dos

conteúdos procedimentais e atitudinais fundamentada nos pressupostos teóricos

que adotamos.

A maioria dos cursos de microbiologia nas universidades separa créditos

teóricos e práticos, o que nos leva a deduzir que o caráter procedimental é também

trabalhado na disciplina. A separação dos créditos pode ter razões diversas, mas se

não se tomar cuidado, a disciplina acaba se desdobrando em duas. Em alguns

cursos, um professor trabalha os créditos teóricos e um outro os créditos práticos,

indicando que a concepção cartesiana ainda é muito forte na área, não sendo raros

os casos em que existem aula teórica e aula prática em horários separados. Muitas

vezes essa separação é necessária para organização do tempo/espaço escolar, já

que não é possível trabalhar procedimentos com uma turma grande em laboratório

de microbiologia, porém, muitas vezes, ela reflete realmente a dicotomia entre o

“saber dizer” e o “saber e o fazer”.

Os conteúdos procedimentais “aulas práticas” referem-se a: meios de

cultura/semeadura; provas bioquímicas; coloração e bacterioscopia. Apesar da

ementa mais ampla, em microbiologia as “práticas”, na maioria dos cursos, são

direcionadas para a bacteriologia.

Os conteúdos procedimentais e a vivência no laboratório de microbiologia são

importantes para desenvolver, também, conteúdos atitudinais, como disciplina

cooperação, organização, entre outros. É arriscado para professores e alunos

trabalhar neste ambiente sem incorporar práticas de autocuidado, cuidado coletivo,

organização e principalmente disciplina.

Levando em conta o risco dos procedimentos, questões de biossegurança e

prevenção de acidentes devem estar sempre em primeiro plano, pois lidamos com

gás inflamável, fogo, substâncias voláteis, vidros e microrganismos. Quando uma

amostra é contaminada propositalmente para uma aula, podemos até ter certeza de

que o microrganismo não é patogênico, mas quando analisamos uma amostra

coletada no ambiente, não podemos garantir. É, portanto, essencial a adoção de

medidas preventivas. Este é um grande problema com alunos novatos, quando o

Page 19: 3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS

43

imaginário parece estar repleto de idéias de filmes que mostram um ambiente

excitante e cheio de novidades, que pesquisadores e técnicos são pessoas

extravagantes, malucos e muito divertidos. No entanto, diante da realidade

percebem que é justamente o oposto. O ambiente pede concentração, disciplina,

não admite brincadeiras, conversas, sob risco de não se conseguir cumprir o

protocolo do procedimento ou sofrer algum acidente. A observação no microscópio,

antes tão imaginada, é um exercício que poucos alunos do nosso curso têm a

paciência necessária para a ela se dedicar e adquirir destreza, pois exige muito mais

exercício do que eles estão dispostos a fazer, e não desperta empolgação nenhuma

em procurar algo que, muitas vezes, não sabem do que se trata.

Podemos comparar um laboratório de microbiologia com uma grande cozinha:

pesamos e levamos ao fogo meios de cultura, semeamos, colocamos na estufa,

levamos à geladeira - muitos materiais estragam em ambientes inadequados,

amostras são perdidas, materiais precisam ser lavados, secados e o ambiente deve

ser mantido constantemente limpo e em ordem. Incorporar essa rotina é um

processo lento e, neste momento, muitos alunos reconhecem que não é essa a área

da Biologia com que se identificam.

Os conteúdos procedimentais precisam ser exercitados para serem

aprendidos; não basta “dar” a receita, é preciso executá-la. É na execução que os

alunos aprendem “como semear o meio, abraçando o fogo” e outras coisas que a

observação da execução ajuda a entender, mas isso só não garante o

desenvolvimento da habilidade. Exercitar a técnica é essencial para incorporá-la de

forma que seja automatizada. Nessa proposta defendemos que o exercício da

técnica se dê em um contexto de prática investigativa, onde os alunos, em grupos,

escolhem o objeto da investigação de acordo com as condições e recursos

disponíveis, pois a escolha implicará métodos, reagentes, tempo etc.

É pouco provável ensinar adequadamente os conteúdos procedimentais e

atitudinais necessários em uma turma de quase 50 alunos. Por isto, a turma foi

dividida em três para aula prática, com aproximadamente 15 alunos cada. Por sua

vez, cada turma de aula prática foi subdividida em grupos de três a cinco pessoas,

que se organizaram por afinidade pessoal e que deveriam ser mantidos durante

todas as atividades da prática investigativa.

As monitoras de ensino trabalharam nesta etapa planejando e organizando os

Page 20: 3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS

44

materiais necessários para as aulas “práticas” e executando-as com a supervisão da

professora-pesquisadora (FIGURA 4). Após o término da aula havia uma reunião de

reflexão e avaliação entre monitoras e professora/pesquisadora. Desta reunião

saiam os encaminhamentos para o planejamento e providências para a aula

subseqüente. As aulas práticas ocorriam uma vez por semana e eram agendados

horários extras, quando necessário, para acompanhar o crescimento das culturas e

outras rotinas pertinentes. As monitoras também acompanharam e avaliaram, com a

supervisão da professora, os relatórios das aulas, de acordo com modelo e critérios

estabelecidos.

FIGURA 4: Monitoras organizando o laboratório para as aulas práticas. Fonte: Fotos da autora

Além de permitir exercitar as técnicas aprendidas, a proposta de uma prática

investigativa objetivou ir além da técnica, oportunizando o desenvolvimento de

estratégias, pois para escolher o objeto de investigação precisariam pesquisar em

bases disponíveis na Internet, monografias disponíveis no curso e revistas

especializadas e, diante das possibilidades e condições de execução, dos interesses

dos membros do grupo etc., propor um problema para investigação. Uma vez feita a

escolha, o grupo deveria organizar as informações coletadas em uma planilha

analítica para nortear a investigação e a execução do planejamento. Após a

Page 21: 3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS

45

execução, deveriam planejar a apresentação dos resultados alcançados,

descrevendo o processo que foi utilizado, para socialização com os demais colegas.

Na tentativa de tornar o processo mais didático possível, separamos o seu

desenvolvimento por etapas. Ressaltamos a importância das monitoras nesta fase

do trabalho, pois suas vivências como estudantes e bolsistas de iniciação científica

em microbiologia foram essenciais para chegar a uma organização didática que

favorecesse ao máximo a aprendizagem, articulando todas as etapas de forma que,

no encerramento das atividades, os alunos se apropriassem do processo como um

todo (FIGURA 5).

Page 22: 3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS

46

FIGURA 5: Etapas da iniciação à pesquisa.

Iniciação à Docência

Iniciação à Pesquisa

Planejamento

Planejamento da prática

investigativa

Execução do planejamento

Socialização dos

resultados

Organização e divisão das tarefas

Pesquisa bibliográfica

Elaboração do relatório

Coloração Gram e bacterioscopia

Meios de cultura e semeadura

Provas bioquímicas

Coleta e análise das amostras

Confecção da planilha analítica

Capacitação técnica

Proposta do problema

Práticas Investigativas em

Microbiologia Planejamento das aulas práticas

Preparação do laboratório

Org. e elaboração do seminário

Orientar o planejamento

Escolha do problema

Execução das aulas laboratoriais

Tutoria aos grupos de alunos

Avaliação dos grupos

Refletir os encaminhamentos

Orientar a confecção das planilhas

Avaliação das aulas

Orientar a coleta e análise

Execução

Socialização

Problema de investigação

Capacitação técnica

Avaliar o desempenho

Orientar a elaboração do relatório

Orientar a elab. das apresentações

Refletir os encaminhamentos

Avaliar as apresentações

Avaliar e refletir todo o processo

Refletir os encaminhamentos

Refletir os encaminhamentos

Avaliar o desempenho

Acompanhar os grupos

Page 23: 3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS

47

Nesse momento, as monitoras puderam sistematizar conhecimentos

procedimentais e rever alguns aspectos de biossegurança considerados

inadequados. A elaboração conjunta da professora-pesquisadora e monitoras deu

acesso, de forma democrática ao processo: elas foram co-autoras e tinham o

conhecimento de toda estrutura do processo, não tendo sido simplesmente

executoras. Consideramos esse fato decisivo para os resultados indicados na

avaliação alunos.

A proposta teria que se adequar ao calendário acadêmico, por isso o

planejamento foi pensado, organizado e reorganizado várias vezes antes da

execução, buscando chegar num formato mais sistêmico possível. A prática

investigativa realizada pelos alunos teve 30 h/aula e a iniciação à docência 50

h/aula. Assim, quando iniciamos a execução, todo o processo já tinha sido definido e

em seu desenvolvimento foi ajustando-se à medida que os problemas apareciam.

3.3.1.1 Etapas do trabalho

Na intenção de apresentar didaticamente as atividades, pontuamos as etapas

na seqüência cronológica em que foram executadas e os principais conteúdos

enfocados. Isso não restringe os conteúdos trabalhados, principalmente os

atitudinais; apenas destacamos os que seriam indispensáveis para que cada grupo

pudesse chegar ao final do cronograma proposto com um trabalho para ser

socializado na culminância da atividade. As etapas foram as seguintes:

1. Capacitação técnica

2. Proposta do problema de investigação

3. Planejamento da prática investigativa

4. Execução do planejamento proposto

5. Socialização dos resultados da prática investigativa

Page 24: 3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS

48

3.3.1.1.1 A Capacitação técnica

Nesta etapa foram contemplados os conteúdos conceituais, procedimentais

e atitudinais elementares para o desenvolvimento da prática investigativa, embora a

ênfase tenha recaído no “saber fazer” e “saber ser”. Os conteúdos trabalhados

foram: Conteúdos conceituais (meios de cultura; provas bioquímicas; coloração e

bacterioscopia); Conteúdos procedimentais (técnicas relacionadas aos conteúdos

conceituais); Conteúdos atitudinais (normas de biossegurança, normas de utilização

do laboratório de microbiologia, cooperação, disciplina e organização).

Acreditamos, conforme já dito, que, “na aprendizagem das matérias

escolares, a imitação é indispensável” (VYGOTSKY, 1987, p.89), e que as

condições de aprendizagem que permitem a cooperação e a ação do mediador

podem aumentar a probabilidade de que o aluno passe da imitação para novos

níveis de desenvolvimento.

A primeira etapa do projeto foi organizada em quatro blocos, de acordo com

os conteúdos conceituais e procedimentais a serem abordados, de forma que

houvesse coerência interna. Os blocos tinham número de aulas variado, em função

dos conteúdos e do tempo disponível dentro da disciplina: as aulas aconteciam uma

vez por semana, no período vespertino, com duração de 50 minutos. A seguir serão

apresentados tais blocos e os assuntos tratados por cada um deles:

Bloco 1 - apresentação do laboratório de microbiologia (equipamentos, materiais,

normas de utilização) e normas de biossegurança.

Bloco 2 – meios de cultura e semeadura.

Bloco 3 – provas bioquímicas.

Bloco 4 – coloração de Gram e bacterioscopia.

O bloco 1 teve uma aula concebida como introdutória e obrigatória e

Page 25: 3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS

49

nenhum aluno poderia desenvolver as demais atividades sem assisti-la, uma vez

que os conteúdos dessa aula seriam requisitados ao longo de todo o trabalho e a

execução das normas avaliada em todas as aulas seguintes. Em virtude disso,

compreendemos que não haveria necessidade de relatório, pois a avaliação seria

processual e os conteúdos retomados, sempre que necessário, nas aulas

posteriores. O objetivo principal deste bloco era despertar o cuidado individual e

coletivo durante os procedimentos laboratoriais.

Os blocos 2, 3 e 4 apresentaram as técnicas e os alunos deveriam

executá-las com roteiro preparado pelas monitoras (ênfase procedimental), e aplicar

as normas de biossegurança e de uso do laboratório, além da cooperação (ênfase

atitudinal). Compreendemos que os conteúdos conceituais foram trabalhados, pois

todas as aulas começavam com uma fundamentação teórica do que seria visto nas

técnicas (FIGURA 6), mas, no transcorrer da aula, eram os conteúdos

procedimentais e atitudinais que estavam em primeiro plano.

As técnicas usadas na proposta são clássicas e demandam poucos recursos

de infraestrutura, pois o laboratório de microbiologia do DEDC-X não dispõe dos

equipamentos necessários para todas as análises microbiológicas.

FIGURA 6: Monitoras (próximas ao quadro) explicando aos alunos os aspectos teóricos das atividades práticas que seriam realizadas por eles, posteriormente.

Fonte: foto da autora

Page 26: 3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS

50

3.3.1.1.2 Proposta do problema de investigação

Nesta etapa foram realizadas a pesquisa bibliográfica, a escolha do

problema para a prática investigativa de cada grupo e a confecção da planilha

analítica. A ênfase desta etapa estaria no “saber dizer/escrever”, embora a estrutura

de escrita acadêmica também possa ser considerada um procedimento. Os

conteúdos trabalhados foram: de ordem conceitual (métodos em microbiologia,

relação entre microrganismos e o homem - doenças, indicadores, produção de

alimentos etc., relação entre a ação metabólica dos microrganismos e sua relação

com o homem; metodologia científica); de ordem atitudinal (cooperação, autonomia,

fazer escolhas, defender interesses, negociar respeitando as diferenças)

Embora os conteúdos conceituais programados tenham sido esses, como a

atividade é do tipo aberta, muitos outros podem surgir à medida que os alunos se

aprofundam na pesquisa bibliográfica como, por exemplo: boa parte dos artigos

sobre contaminação de alimentos introduz o assunto falando da importância

daquele alimento.

Uma primeira limitação para os estudantes proporem temas para a prática

investigativa foi que somente poderíamos analisar materiais líquidos ou diluídos,

uma vez que não dispúnhamos de equipamentos para análises microbiológicas de

materiais sólidos.

Outro limite foi à quantidade de amostras e repetições, pois devido à

quantidade de alunos não teríamos o material de consumo suficiente para todos A

solução foi, então, dividir a sala em grupos de trabalho, que eram fixos em todas

aulas de laboratório e que, na sua maioria, se mantiveram na prática investigativa .

Apesar de a atividade ser realizada em grupos, ainda assim o número de amostras

analisadas precisou ser limitado, duas por equipe, em virtude da disponibilidade dos

meios de cultura.

Page 27: 3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS

51

3.3.1.1.3 Planejamento da prática investigativa

Nesta etapa a ênfase estaria no saber fazer e ser. Os alunos realizaram o

levantamento das atividades necessárias à prática investigativa, organizaram o

cronograma com os responsáveis pela execução da coleta de amostras, seu

processamento, resultados e análise. Os conteúdos abordados foram: conteúdos

procedimentais (planejamento, levantamento e alocação de recursos, definição de

tarefas) e conteúdos atitudinais (cooperação, liderança).

A intenção durante esta etapa era que os alunos desenvolvessem estratégias

para alcançar um objetivo estabelecido, considerando “os problemas” envolvidos na

escolha do tema da prática investigativa. Acreditamos que formando profissionais

que vivenciam o processo de elaboração de estratégias, eles também poderão

repetir o processo, o que é essencial quando refletimos que estamos trabalhando

com futuros professores. A elaboração de estratégias ultrapassa a fronteira do

componente curricular e passa a ser uma habilidade aplicada nas mais diversas

situações, sejam elas escolares ou não (POZO, 2002).

3.3.1.1.4 Execução do planejamento proposto

Nesta etapa os grupos colocaram em prática o planejamento da prática

investigativa, cuja ênfase estaria no “saber fazer”. Os conteúdos programáticos

foram de natureza procedimental (execução de atividades planejadas, execução de

técnicas) e atitudinal (disciplina, compromisso com horários e colegas, normas de

biossegurança e uso do laboratório, cooperação, respeito nas relações pessoais).

Todos os procedimentos laboratoriais aconteceram com a tutoria das monitoras.

Diante de uma situação concreta, os alunos puderem repetir as técnicas

aprendidas na primeira etapa, a da capacitação, mas o ensino e o domínio da

técnica ou procedimento são insuficientes para que elas sejam aplicados nas mais

diversas situações com que nos deparamos. Um exemplo disso é quando os

resultados esperados para as análises microbiológicas não demonstram

Page 28: 3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS

52

concordância com informações das condições do ambiente, e o estudante não

consegue analisar o procedimento para localizar o problema: nos meios de cultura?

nos aparelhos? na coleta? na amostra? É essencial ir além do ensino da técnica e

ensinar estratégias (POZO, 2002). Por isso, foi preciso contar com a tutoria das

monitoras.

3.3.1.1.5 Socialização dos resultados da prática investigativa

Esta etapa foi dedicada à escrita do relatório do trabalho, resultados

encontrados, discussão, confrontação com outras pesquisas publicadas;

organização e preparação da apresentação do material produzido para o seminário

de socialização de práticas investigativas, com ênfase no “saber dizer/escrever”.

Os conteúdos trabalhados foram de natureza conceitual - metodologia

científica e conteúdos específicos de cada tema escolhido pelos grupos; de natureza

procedimental - planejamento das atividades necessárias, execução das normas de

escrita acadêmica; de ordem atitudinal (disciplina, compromisso com horários, com

colegas, cooperação, respeito nas relações pessoais)

O seminário foi organizado como atividade de culminância do processo para a

apresentação das práticas investigativas e envolveu os alunos, as monitoras de

ensino e a professora-pesquisadora. Como a ênfase da etapa era no “saber dizer”,

os grupos deveriam apresentar oralmente, durante 20 minutos, o problema escolhido

e os resultados alcançados. Esta etapa pressupõe o domínio teórico do conteúdo

pesquisado, e engloba, também, os conteúdos procedimentais - as normas de

apresentação - e os atitudinais: autoconfiança para se expor diante dos colegas,

monitoras e professora, para ser avaliado e saber lidar com críticas e respeito nas

relações pessoais, pois a apresentação exigiria a participação de todos os membros

do grupo.

Page 29: 3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS

53

3.3.1.2 A avaliação do processo

A avaliação das atividades foi feita, na sua maioria, considerando o

desempenho do grupo, por entendemos que a forma escolhida é coerente com os

princípios de uma organização cooperativa e enfatiza o caráter sistêmico da

proposta (POZO, 2002). Os instrumentos para essa avaliação foram:

1. Relatório de aula prática (três relatórios): cada um dos blocos foi avaliado

por meio de um relatório, com modelo e aspectos que deveriam ser incluídos, com

exceção do bloco 1 (Apêndice C).

2. Proposta, planejamento e execução da prática investigativa: avaliação feita

pelas monitoras durante os encontros de acompanhamento das atividades.

3. Relatório e socialização da prática investigativa: foram avaliados o trabalho

escrito e a apresentação durante o seminário de socialização (Anexo B).

O desempenho individual foi avaliado no transcurso do processo com critérios

esclarecidos para toda a turma, sobretudo os conteúdos atitudinais, por meio do

acompanhamento das monitoras que faziam as anotações após cada aula. Cada

monitora era responsável por quatro grupos fixos formados por três a quatro

pessoas. O cumprimento de normas de biossegurança e do uso do laboratório, que

implicavam a questão de segurança pessoal e do grupo, era avaliado em termos

quantitativos e qualitativos, o que foi declarado para os alunos na primeira aula.

Compreendemos que normas e regras, principalmente quando implicam

questões de segurança, são obrigatórias e estão implícitas nos procedimentos que

deveriam ser executados, pois os comportamentos individuais não podem ser

“escondidos” pelo grupo, e, de acordo com Pozo (2002), não podemos esquecer a

contribuição individual para o coletivo. Quando ocorreram comportamentos

inadequados, os estudantes foram chamados para tomarem ciência da avaliação

que foi feita e para que refletissem sobre as conseqüências dos atos em relação à

segurança pessoal e coletiva.

Page 30: 3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS

54

3.3.1.2.1 Os relatórios de aula prática

Após as aulas que compunham o bloco, os alunos deveriam entregar um

relatório cujo modelo lhes fora encaminhado. Entendemos que, nesse momento, o

conceitual prevalecia, pois eles precisavam “saber dizer” o quê fora executado. No

relatório, pedia-se um referencial teórico dos procedimentos executados, resgatando

assim os conceitos e “porquês” do fazer.

O relatório também tinha uma intenção de verificar procedimentos, pois a

culminância da proposta pedia um relatório da prática investigativa que tivesse

estreita relação com as normas exigidas pelas revistas da área de microbiologia

para o envio de artigos. Consistia num exercício, tinha a finalidade de resgatar o

conteúdo conceitual das “aulas práticas” do bloco, mas também de aprender a fazer

um relatório da prática investigativa que seria realizada.

O relatório do bloco 2 foi corrigido e devolvido com observações para que os

grupos pudessem adequá-lo ao que tinha sido solicitado, sendo facultado aos

grupos corrigi-lo, já que todos estavam esclarecidos de que seria uma das notas da

disciplina. Enfatizamos a necessidade de alguns relatórios serem refeitos, pois

estavam muito abaixo da média de aprovação da instituição (sete). Já para os

alunos que tinham aproveitamento acima de 80%, não se exigia correção, contanto

que as observações fossem aplicadas no relatório subsequente.

3.3.1.2.2 Proposta, planejamento e execução da prática investigativa

Esta etapa foi avaliada por meio do acompanhamento processual de cada

grupo pelas monitoras. Os contatos entre estas e os grupos aconteceram em

horários previamente agendados e via e-mail. Elas acompanharam o levantamento

de referências bibliográficas e organização da planilha analítica, além de auxiliá-los

no planejamento do cronograma e da execução da prática investigativa. Desta

maneira, tinham elementos para avaliar o desempenho do grupo durante o

processo.

Page 31: 3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS

55

3.3.1.2.3 Relatório e socialização da prática investigativa

Conforme já dito, o relatório da prática investigativa foi avaliado por critérios

pré-estabelecidos e conhecidos pela turma. Cada monitora fez uma avaliação

preliminar dos grupos que acompanhou, havendo, depois, uma discussão da qual

participaram a professora-pesquisadora e todas as monitoras.

A culminância do processo se deu através de um seminário, com a presença

da professora-pesquisadora, das monitoras, dos alunos e do professor das

disciplinas Projeto de Pesquisa I e II, que colaborou conosco avaliando

qualitativamente os trabalhos e indicando possibilidades de aperfeiçoamento, caso

os estudantes tivessem interesse em realizar a monografia de conclusão de curso a

partir da prática investigativa apresentada.

3.3.2 Vivenciando novas possibilidades para a ação docente

Partimos da suposição de que a monitoria de ensino possa ser um meio para

formar professores pela e para a pesquisa, desenvolvendo autonomia e, para além

do domínio da técnica, formar profissionais estratégicos. (POZO, 2002).

Lembramos que a disciplina de microbiologia dispõe de uma bolsista monitora

de ensino cujas atividades a serem desenvolvidas, ao longo do semestre, cabe ao

professor definir. Ao percebermos a necessidade de mais apoio, optamos pelas

monitoras voluntárias. Pode-se pensar que “quanto mais, melhor”, mas na prática

não é bem assim. O trabalho em equipe é muito enriquecedor, contudo, é bastante

complexo; é preciso, antes de qualquer coisa, esforço para lidar com os nossos

limites e os dos outros. Trabalhar a compreensão do processo que se deseja

construir, seus objetivos e superar conflitos pessoais em prol desses objetivos, foram

a tarefa mais difícil. Em nosso projeto, as atividades da monitoria de ensino estavam

relacionadas às etapas da proposta de práticas investigativas com os graduandos,

tendo como funções as relatadas a seguir:

Page 32: 3 PROCESSO DE ELABORAÇÃO DO PRODUTO “PRÁTICAS

56

Etapa 1 - Capacitação prioritariamente técnica

• Escrever o projeto da monitoria.

• Propor cronograma das atividades e o prazo para serem desenvolvidas.

• Planejar as aulas práticas semanais e confeccionar os roteiros.

• Preparar laboratório e materiais de consumo necessários para a aula

planejada.

• Executar as aulas planejadas.

• Prestar tutoria aos alunos durante a semana, acompanhando a elaboração

dos relatórios de aula prática.

• Avaliar, usando planilha específica, o desenvolvimento dos grupos, suas

notas de relatório, a incorporação dos procedimentos de biossegurança e

das técnicas realizadas.

• Avaliar e refletir cada aula semanal com a professora-pesquisadora para

os encaminhamentos da aula seguinte.

Etapa 2 - Proposta do problema de investigação:

• Acompanhar, semanalmente, 16 grupos durante a atividade de pesquisa

bibliográfica;

• Orientar a confecção de planilha analítica para a atividade da prática

investigativa;

• Avaliar o desempenho dos grupos e dos alunos durante o processo;

• Discutir semanalmente com a professora-pesquisadora as planilhas analíticas

propostas, avaliar e refletir sobre o processo desenvolvido e discutir os

encaminhamentos necessários.

Etapa 3 - Planejamento da prática investigativa:

• Orientar o planejamento da execução da prática, em especial do

cronograma de execução;

• Avaliar o desempenho dos grupos e dos alunos durante o processo;

• Discutir semanalmente com a professora-pesquisadora os planejamentos

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dos grupos, avaliar e refletir sobre o processo desenvolvido, discutindo os

encaminhamentos necessários.

Etapa 4 - Execução do planejamento proposto:

• Orientar e acompanhar a coleta de amostras e as análises microbiológicas;

• Avaliar o desempenho dos grupos e alunos durante o processo;

• Discutir semanalmente com a professora-pesquisadora a execução dos

planejamentos dos grupos, avaliar e refletir sobre o processo desenvolvido

discutindo os encaminhamentos necessários.

Etapa 5 - Socialização dos resultados da prática investigativa:

• Orientar e acompanhar a confecção dos relatórios das atividades de

pesquisa.;

• Orientar e acompanhar o planejamento da apresentação dos grupos para

seminário de socialização;

• Discutir semanalmente com a professora-pesquisadora a execução dos

planejamentos dos grupos, avaliar e refletir sobre o processo desenvolvido

discutindo os encaminhamentos necessários;

• Assistir e avaliar qualitativa e quantitativamente as apresentações, fazendo as

observações pertinentes para o aperfeiçoamento do trabalho.

Além das atividades relacionadas às etapas da proposta da prática

investigativa com os alunos, ao final do processo as monitoras deveriam:

• Avaliar e refletir sobre todo processo desenvolvido com a professora-

pesquisadora;

• Produzir uma reflexão escrita, com pressupostos teóricos indicados, sobre a

experiência vivenciada.

As ações propriamente ditas iniciaram-se com a apresentação da proposta de

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trabalho para as monitoras, que deveriam sistematizar suas atividades em uma

programação com referenciais teóricos, no modelo utilizado para o estágio

supervisionado, e o cronograma de trabalho para as aulas, já que o tempo era

escasso e as aulas práticas deveriam ser agrupadas e sequenciadas de forma a

permitir aos alunos refazerem o caminho, quando propusessem a atividade de

pesquisa.

Elas também tiveram a responsabilidade de propor um cronograma para a

organização das atividades no laboratório, uma vez que desde a coleta de amostras

até o crescimento das culturas deveria haver tempo hábil para cada etapa,

considerando a data prevista para o fechamento do trabalho. Algumas coisas, elas

receberam prontas, como, por exemplo, o esquema de datas de aulas práticas e de

encerramento da disciplina, que seria marcado pela apresentação de seminário de

socialização do projeto de pesquisa e dos resultados preliminares, em virtude das

datas do semestre letivo.

As aulas de laboratório aconteciam com grupos de 15 alunos, com duração

de 50 minutos, eram ministradas no turno da tarde, sendo três aulas práticas, uma

para cada turma de 15 alunos. Para que os conteúdos teórico-práticos pudessem

ser plenamente desenvolvidos sem correr o risco de comprometer o planejamento

total do projeto, as aulas eram planejadas com rigor para o tempo destinado a cada

ponto da aula, nunca perdendo de foco o seu objetivo. Na primeira aula isso não

funcionou plenamente, mas, após as aulas de cada dia, havia uma reunião de

reflexão e avaliação para encaminhamentos da aula seguinte. Desta forma,

conseguimos detectar as dificuldades desde a primeira aula e os ajustes

funcionaram nas aulas posteriores.

Esse esquema de acompanhamento foi um ganho considerável para as

monitoras, pois mesmo durante os estágios curriculares os planejamentos eram

feitos mais para dar satisfação às professoras de estágio do que para ser seguido.

Durante essa monitoria elas puderam reconhecer o real valor de um planejamento

bem feito, seja para uma aula, seja para um projeto inteiro, porque com os reparos

necessários foi possível executar tudo que tinha sido previsto.

Na programação das aulas, todas as monitoras deveriam desempenhar

alguma atividade durante a execução das mesmas. Assim, em cada aula, elas se

revezavam: uma fazia a introdução teórica da aula, outra explicava os

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procedimentos que seriam executados e outra dava suporte (FIGURA 7). No

momento da execução da técnica, as três ficavam disponíveis para tirar dúvidas e

garantir que os alunos, em sua totalidade, conseguissem cumprir a meta

estabelecida para a aula. Todas as aulas foram acompanhadas pela professora-

pesquisadora.

O processo foi feito com o acompanhamento sistemático e sempre em grupo.

Como as monitoras já tinham experiência em pesquisa microbiológica, pensamos

que seria mais fácil, mas percebemos que pensar sobre o processo é diferente de

realizá-lo. Elas relataram que foi a primeira vez que tiveram tanta autonomia na

execução de uma atividade acadêmica. A questão da autonomia, tão defendida por

Piaget (1944), Freire (1997) e Pozo (2002), mostrou-se o grande desafio para elas,

que relataram não estar acostumadas nem se sentir preparadas para tanta

responsabilidade. Por diversas vezes, o “problema” da autonomia apareceu.

FIGURA 7: Monitora (à esquerda) auxiliando o grupo de alunos a fazer a leitura dos resultados microbiológicos

Fonte: Fotos da autora

Uma das exigências para as aulas práticas era que as monitoras

organizassem um roteiro do procedimento de tal forma que ele pudesse ser seguido

sem orientações verbais no momento da execução, no moldes de procedimentos

operacionais padrão (POP) usados em laboratório (Apêndice D). Assim, os grupos

de trabalho deveriam tentar executar o procedimento descrito e só pedir a ajuda das

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monitoras quando se defrontassem com algo que não pudessem resolver sozinhos.

Na descrição da proposta aqui relatada e analisada, podemos ver que se trata

de uma atividade bastante complexa, que exige do professor organização e

planejamento muito maiores do que em aulas baseadas em uma organização

competitiva. Em contrapartida, dá-nos a dimensão do que poderia ser um trabalho

do profissional de educação, se ele encarasse as situações de ensino-aprendizagem

como problemas que lhe cabem analisar, propor soluções, aplicá-las, supervisionar

e analisar os resultados, ou seja, gerir processos de ensino-aprendizagem.

As práticas vivenciadas e os conflitos gerados na tomada de decisões tinham

como intenção pedagógica aumentar a probabilidade para a ocorrência da

aprendizagem e tirar o melhor proveito da situação que a monitoria de ensino

propicia (GIUSTA, 2003), pois neste momento era necessário articular conteúdos de

microbiologia com conteúdos pedagógicos estudados durante o curso. Para Pozo

(2002), existe uma grande diferença entre “conhecimento declarativo”, que enuncia

“saber dizer”, a exposição verbal consciente, e o “conhecimento procedimental” que

é o “saber fazer”, muitas vezes automático, para sustentar a distinção entre os dois

tipos de conhecimento: “a idéia básica é que dispomos de duas formas diferentes, e

nem sempre relacionadas, de conhecer o mundo” (RYLE, 1949; ANDERSON,1983

apud POZO, 2002, p. 229).

Apesar disso, muitas vezes declaramos conhecimentos que não conseguem

influenciar nossas ações. O autor mencionado também cita um fato que todos nós,

professores, já vivenciamos, frustramo-nos em sala de aula e que muitos estudos

comprovam: “os alunos não sabem transformar seus conhecimentos acadêmicos

descritivos e conceituais em ações ou previsões eficazes” (POZO, 2002, p. 229).

Talvez esteja aí a enorme dificuldade de aplicação dos conhecimentos pedagógicos

estudados. Existe um conhecimento declarativo, mas não o conhecimento

procedimental. Eram intenções deste trabalho que o conhecimento procedimental da

ação pedagógica fosse vivenciado de forma mais intensa, em quantidade e

qualidade; que o planejamento sistemático e contínuo das atividades de

aprendizagem (geral e diário) ocorresse de fato, assim como as intervenções que

incentivam a autonomia. Em resumo, que fosse exercido um papel de “planejador”,

assessor e orientador de atividades de aprendizagem ao invés de um simples

provedor de informações. Os termos aqui usados foram tomados de Pozo (2002)

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que estabelece cinco papéis para o professor: provedor, treinador, modelo, assessor

e orientador.

Não desmerecemos o papel do professor na transmissão do conhecimento,

mas compreendemos que, apenas isso, não é suficiente para atender a demanda de

aprendizagem escolar da sociedade da informação. Nesta, destacam-se as

exigências de que esses papéis estejam integrados e que o professor tenha

consciência deles para que as situações de ensino-aprendizagem sejam vistas como

problemas que precisam de planejamento estratégico, aumentando, assim, as

chances de sucesso para todos os alunos.

Concordamos com Pozo (2002) que as situações de ensino-aprendizagem

devem ser analisadas como problemas que podem ter várias respostas. O que

importa, na verdade, não é ensinar as respostas, uma vez que vivemos em

condições de incerteza e o tempo todo surge novos problemas, mas que o

conhecimento seja visto com possibilidade para organizar estratégias para a solução

dos problemas.

A resposta dependerá da natureza do problema, portanto, precisamos

desenvolver a capacidade de análise das circunstâncias, dos recursos de que

dispomos, do que precisamos, para dar a melhor resposta em uma dada situação.

Estarmos prontos para refletir sobre o caminho escolhido, avaliarmos, corrigir a rota,

num processo que pede que estejamos envolvidos na dinâmica e na novidade do

dia-a-dia. Isso é muito diferente de pensar a ação docente como uma prática

monótona “que corrói o desejo de aprender dos que se veem submetidos a ela,

como também de ensinar dos que vivem seu trabalho de modo rotineiro” (POZO,

2002, p. 260).