3. a explicitação da ontologia socrática nos diálogos médios · 129 . 3.1. o discurso de...

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127 3. A Explicitação da Ontologia Socrática nos Diálogos Médios Os diálogos tradicionalmente considerados pertencentes à fase média de Platão são Banquete, Fédon, e República, somados ao Parmênides e ao Teeteto como diálogos de transição para última fase. 1 Como vimos no primeiro capítulo, os estudos estilométricos não suportam esta divisão da obra de Platão, pois colocam o Banquete e o Fédon nos mesmo grupo estilístico dos primeiros diálogos. Contudo, assim como acontece com as obras usualmente classificadas de “diálogos da juventude”, é inegável que sobretudo o Banquete, o Fédon e a República possuem semelhanças estruturais e dramáticas muito fortes. Nestes diálogos, Sócrates abandona o seu método de refutação (eÃlegxoj) 2 em nome de uma exposição mais professoral de suas doutrinas, o que se traduz textualmente na substituição das constantes perguntas e respostas que encontramos nos diálogos iniciais por falas mais prolongadas e mais ricas em descrições. Coerentemente, o caráter aporético dos diálogos inicias também é abandonado e substituído pela apresentação de hipóteses teóricas com um valor mais claramente positivo. Para a corrente de interpretação desenvolvimentista, estas mudanças refletem o despertar intelectual de Platão, como fica claro na seguinte explicação oferecida por Bostock: “Os diálogos iniciais não são construídos como uma exposição de, ou argumentos para, nenhuma doutrina particular. Certamente, há temas que recorrem com frequência (...) Mas uma das principais características destes diálogos iniciais é que eles são constantemente críticos (...) eles invariavelmente terminam negativamente com a conclusão de que nenhuma resposta satisfatória foi alcançada (…) Mas em direção ao fim deste período inicial, nós começamos a encontrar algo mais positivo (…) e nos diálogos médios a confiança de Platão 1 Esta é a listagem apresentada por Vlastos (1991, p.47). Para uma discussão mais detalhada sobre organização dos diálogos, consulte o primerio capítulo. 2 Na realidade, o eÃlegxoj socrático não desaparece completamente, pois podemos encontrá-lo no primeiro livro da República e na conversa entre Sócrates e Agatão, no Banquete. É muito claro, no entanto, que, nos diálogos médios, o eÃlegxoj perde o papel estrutural que possuia nos diálogos inicias e é substituído pelo chamado “método hipotético” (cf. o uso de u(poqe/menoj: Fed.100b5 e ti/qesqai: Rep.596a7). Um influente estudo sobre o método hipotético nos diálogos médios pode ser encontrado em Robinson (1941, p.97-192)

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3 A Explicitaccedilatildeo da Ontologia Socraacutetica nos Diaacutelogos Meacutedios

Os diaacutelogos tradicionalmente considerados pertencentes agrave fase meacutedia de

Platatildeo satildeo Banquete Feacutedon e Repuacuteblica somados ao Parmecircnides e ao Teeteto

como diaacutelogos de transiccedilatildeo para uacuteltima fase1 Como vimos no primeiro capiacutetulo

os estudos estilomeacutetricos natildeo suportam esta divisatildeo da obra de Platatildeo pois

colocam o Banquete e o Feacutedon nos mesmo grupo estiliacutestico dos primeiros

diaacutelogos Contudo assim como acontece com as obras usualmente classificadas

de ldquodiaacutelogos da juventuderdquo eacute inegaacutevel que sobretudo o Banquete o Feacutedon e a

Repuacuteblica possuem semelhanccedilas estruturais e dramaacuteticas muito fortes Nestes

diaacutelogos Soacutecrates abandona o seu meacutetodo de refutaccedilatildeo (eAtildelegxoj)2 em nome de

uma exposiccedilatildeo mais professoral de suas doutrinas o que se traduz textualmente

na substituiccedilatildeo das constantes perguntas e respostas que encontramos nos diaacutelogos

iniciais por falas mais prolongadas e mais ricas em descriccedilotildees Coerentemente o

caraacuteter aporeacutetico dos diaacutelogos inicias tambeacutem eacute abandonado e substituiacutedo pela

apresentaccedilatildeo de hipoacuteteses teoacutericas com um valor mais claramente positivo

Para a corrente de interpretaccedilatildeo desenvolvimentista estas mudanccedilas

refletem o despertar intelectual de Platatildeo como fica claro na seguinte explicaccedilatildeo

oferecida por Bostock

ldquoOs diaacutelogos iniciais natildeo satildeo construiacutedos como uma exposiccedilatildeo de ou argumentos para nenhuma doutrina particular Certamente haacute temas que recorrem com frequecircncia () Mas uma das principais caracteriacutesticas destes diaacutelogos iniciais eacute que eles satildeo constantemente criacuteticos () eles invariavelmente terminam negativamente com a conclusatildeo de que nenhuma resposta satisfatoacuteria foi alcanccedilada (hellip) Mas em direccedilatildeo ao fim deste periacuteodo inicial noacutes comeccedilamos a encontrar algo mais positivo (hellip) e nos diaacutelogos meacutedios a confianccedila de Platatildeo

1 Esta eacute a listagem apresentada por Vlastos (1991 p47) Para uma discussatildeo mais detalhada sobre organizaccedilatildeo dos diaacutelogos consulte o primerio capiacutetulo 2 Na realidade o eAtildelegxoj socraacutetico natildeo desaparece completamente pois podemos encontraacute-lo no primeiro livro da Repuacuteblica e na conversa entre Soacutecrates e Agatatildeo no Banquete Eacute muito claro no entanto que nos diaacutelogos meacutedios o eAtildelegxoj perde o papel estrutural que possuia nos diaacutelogos inicias e eacute substituiacutedo pelo chamado ldquomeacutetodo hipoteacuteticordquo (cf o uso de u(poqemenoj Fed100b5 e tiqesqai Rep596a7) Um influente estudo sobre o meacutetodo hipoteacutetico nos diaacutelogos meacutedios pode ser encontrado em Robinson (1941 p97-192)

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floresce Natildeo haacute duacutevida de que no Feacutedon no Banquete na Repuacuteblica e no Timeu3 Platatildeo estaacute definitivamente sugerindo um certo nuacutemero de doutrinas sobre uma variedade de toacutepicos Ele agora pensa que encontrou a soluccedilatildeo para seus problemas e o questionamento ceacutetico de Soacutecrates foi deixado para traacutesrdquo (Bostock 1988 p13)

Ora como nosso estudo identificou menccedilotildees agraves Formas platocircnicas nos

diaacutelogos iniciais natildeo devemos concordar com a descriccedilatildeo de Bostock segundo a

qual os diaacutelogos iniciais satildeo obras puramente criacuteticas sem exposiccedilatildeo de doutrinas

positivas Tampouco temos motivos para corroborar a descriccedilatildeo dos estados

emocionais de Platatildeo por ele realizada Por outro lado nossos resultados nos

permitem oferecer uma explicaccedilatildeo para a diferenccedila entre os dois primeiros grupos

de diaacutelogos que natildeo extrapola o acircmbito puramente textual e natildeo incorre no erro de

atribuir um valor puramente negativo aos primeiros diaacutelogos Para isto basta que

entendamos as mudanccedilas apontadas por Bostock como mudanccedilas no modo de

exposiccedilatildeo de uma mesma hipoacutetese teoacuterica Enquanto os primeiros diaacutelogos

mencionam as Formas de maneira sutil e antecipatoacuteria os diaacutelogos meacutedios

apresentam explicitamente a Teoria das Ideias Desta maneira como decorrecircncia

do modo de exposiccedilatildeo proleacuteptico que identificamos em Platatildeo podemos aceitar a

divisatildeo usual entre uma fase inicial e uma fase meacutedia que de fato parece refletir

corretamente certas caracteriacutesticas formais e dramaacuteticas dos diaacutelogos sem adotar

uma interpretaccedilatildeo de caraacuteter desenvolvimentista

Portanto segundo nossa compreensatildeo o presente capiacutetulo analisaraacute dois

diaacutelogos (Feacutedon e Banquete) em que Platatildeo expotildee de maneira mais expliacutecita e

sistemaacutetica as teses que compotildeem a Teoria das Ideias Como nosso interesse

limita-se ao que venho chamando de ldquonuacutecleo ontoloacutegicordquo desta teoria focaremos

nossa investigaccedilatildeo nas passagens em que o personagem Soacutecrates explica o que

satildeo as Formas expondo mais minuciosamente as diferenccedilas entre o modo de ser

destas entidades e o modo de ser das coisas sensiacuteveis

3 A inclusatildeo do Timeu nesta lista deve-se agrave argumentaccedilatildeo desenvolvida por Owen (1965) que Bostock reconhece como vaacutelida A identificaccedilatildeo do Timeu como um diaacutelogo da fase meacutedia eacute no entanto extremamente controversa e no meu entendimento errocircnea Para uma contra-

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31 O discurso de Diotima e a revelaccedilatildeo da Forma do Bel o

Dentre os diaacutelogos que compotildeem a fase meacutedia aquele em que as Formas

satildeo apresentadas de maneira mais resumida eacute certamente o Banquete Neste

diaacutelogo Soacutecrates participa de uma festa em celebraccedilatildeo agrave primeira vitoacuteria de

Agatatildeo em competiccedilotildees dramaacuteticas e se vecirc obrigado como cada um dos

participantes a oferecer um discurso em louvor (e)gkwmion177b ou e)painoj

177d) ao deus Eros No entanto ao inveacutes de compor seu proacuteprio discurso

Soacutecrates prefere recontar as palavras de Diotima uma sacerdotisa da Mantineacuteia

saacutebia nas coisas relativas a Eros e instrutora de Soacutecrates nas artes do amor (τὰ

ἐρωτικὰ) Relembrando as palavras de Diotima Soacutecrates desenvolve uma

surpreendente narrativa acerca do amor repleto de referecircncias miacutetico-religiosas

ao final da qual o leitor do diaacutelogo eacute apresentado agrave verdadeira natureza da Beleza

Seu discurso foca-se na revelaccedilatildeo de uma uacutenica Forma e sua estrateacutegia

argumentativa consiste em levar o ouvinte a ascender progressivamente do amor e

desejo eroacutetico pelas coisas sensiacuteveis ao amor e desejo eroacutetico pela Forma do Belo

Seraacute a contraposiccedilatildeo entre as muacuteltiplas coisas belas (corpos costumes leis e

ciecircncias) e o Belo ele mesmo si (αὐτὸ τὸ καλόν) o que daraacute a Soacutecrates o ensejo de

contrastar o modo de ser das coisas sensiacuteveis com o modo de ser das Formas

Antes de apresentar o Belo como o objeto uacuteltimo de todo desejo eroacutetico e

introduzir explicitamente o segundo poacutelo da disjunccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel

Soacutecrates nos fornece uma descriccedilatildeo da fraacutegil e passageira condiccedilatildeo do que eacute

mortal Segundo ele

ldquoquando dizemos de cada ser vivo que ele vive e permanece o mesmo - por exemplo dizemos que ele permanece o mesmo desde a infacircncia agrave velhice ele na realidade natildeo possui jamais em si as mesmas coisas (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) Mesmo se dizemos que ele permanece o mesmo ele natildeo cessa contudo de se renovar e perder certas coisas nos cabelos nas carnes nos ossos no sangue e em todo corpo E isto eacute vaacutelido natildeo somente para o corpo mas tambeacutem para a alma Os costumes as opiniotildees desejos prazeres afliccedilotildees temores cada um destes afetos jamais permanece o mesmo em cada um de noacutes mas uns nascem e outros morremrdquo4 ἐπεὶ καὶ ἐν ᾧ ἓν ἕκαστον τῶν ζῴων ζῆν καλεῖται καὶ εἶναι τὸ αὐτόndash οἷον ἐκ

argumentaccedilatildeo agrave Owen (cfCherniss 1965) 4 Nossa traduccedilatildeo segue o texto de Brisson (2007) que natildeo aceita a pontuaccedilatildeo estabelecida por

Burnet (cf Brisson 2007 p 212 n436)

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παιδαρίου ὁ αὐτὸς λέγεται ἕως ἂν πρεσβύτης γένηται οὗτος microέντοι οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ ὅmicroως ὁ αὐτὸς καλεῖται ἀλλὰ νέος ἀεὶ γιγνόmicroενος τὰ δὲ ἀπολλύς καὶ κατὰ τὰς τρίχας καὶ σάρκα καὶ ὀστᾶ καὶ αἷmicroα καὶ σύmicroπαν τὸ σῶmicroα καὶ microὴ ὅτι κατὰ τὸ σῶmicroα ἀλλὰ καὶ κατὰ τὴν ψυχὴν οἱ τρόποι τὰ ἤθη δόξαι ἐπιθυmicroίαι ἡδοναί λῦπαι φόβοι τούτων ἕκαστα οὐδέποτε τὰ αὐτὰ πάρεστιν ἑκάστῳ ἀλλὰ τὰ microὲν γίγνεται τὰ δὲ ἀπόλλυται (207d4-e5)

De acordo com as liccedilotildees de Diotima eacute na tentativa de superar esta

impermanecircncia inerente a tudo aquilo que eacute mortal que os animais bestas e

homens se lanccedilam com ardor no desejo de procriaccedilatildeo Afinal ldquoeacute deste modo que

tudo o que eacute mortal se conserva natildeo pelo fato de absolutamente ser sempre o

mesmo (οὐ τῷ παντάπασιν τὸ αὐτὸ ἀεὶ εἶναι) como o que eacute divino mas pelo fato

daquele que parte e envelhece deixar um outro ser novo tal como ele erardquo

(208a7-b2) Assim Soacutecrates contrasta a inconstacircncia daquilo que eacute mortal apenas

dito o mesmo (ὁ αὐτὸς καλεῖται) poreacutem ldquosem possuir jamais em si as mesmas

coisasrdquo (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) com a permanecircncia do que eacute imortal

(ἀθάνατον 208b4) que ldquoeacute absolutamente sempre o mesmordquo (παντάπασιν τὸ αὐτὸ

ἀεὶ εἶναι)

Os ouvintes de Soacutecrates tal como aquele que estaacute lendo o diaacutelogo pela

primeira vez natildeo reconhecem nesta comparaccedilatildeo entre o modo de existecircncia dos

seres mortais e modo de existecircncia do seres imortais o contraste entre Formas e

coisas que seraacute revelado ao final do discurso Contudo um leitor habituado ao

modo de escrita platocircnico pode facilmente identificar nesta fala uma antecipaccedilatildeo

da comparaccedilatildeo entre o modo de existecircncia das coisas belas sensiacuteveis e o modo de

existecircncia do Belo Este leitor seraacute capaz de reconhecer que o adjetivo ldquoimortalrdquo

(ἀθάνατον) utilizado na passagem acima citada como sinocircnimo de ldquodivinordquo

(θεῖον) natildeo se refere apenas aos deuses mas inclui em seu campo de aplicaccedilatildeo a

proacutepria Forma do Belo que como seraacute elucidado ao final do discurso tambeacutem ldquoeacute

para semprerdquo (ἀεὶ ὂν 211a1) Deste modo a relaccedilatildeo mortalimortal facilmente

compreensiacutevel para os representantes da elite cultural ateniense presentes no

banquete eacute utilizada para introduzir a distinccedilatildeo entre o modo de ser das muacuteltiplas

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo

O caminho que leva agrave revelaccedilatildeo do Belo inicia-se com o reconhecimento

da unidade subjacente a tudo aquilo que eacute belo em um movimento facilmente

identificaacutevel por um leitor familiarizado com a argumentaccedilatildeo dos diaacutelogos de

primeira fase O iniciado nas artes do amor (τὰ ἐρωτικὰ) comeccedilaraacute por amar a um

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soacute belo corpo e como resultado deste amor engendraraacute belos discursos Em

seguida ele seraacute levado a reconhecer que a beleza que reside em um corpo

qualquer eacute irmatilde (ἀδελφόν) da que estaacute em outro belo corpo e que portanto ldquoseria

muita tolice natildeo considerar uma soacute e a mesma (ἕν τε καὶ ταὐτὸν) a beleza que

reside em todos os corposrdquo (210b2-3) Apoacutes este momento ele passaraacute a

considerar a beleza presente nas almas mais valiosa do que aquela presente nos

corpos e seraacute capaz de ldquocontemplar o belo nos costumes e nas leis e ver que em si

mesmo o belo eacute sempre semelhante a si mesmo (πᾶν αὐτὸ αὑτῷ συγγενές ἐστιν)rdquo

(210c3-5) Por fim ele veraacute a beleza tambeacutem nos diversos ramos da ciecircncias

(ἐπιστηmicroῶν) ateacute que ldquoolhando agora para o belo nesta multiplicidade deixe de

amar como um escravo a beleza de um soacute jovem homem ou costume (hellip) e

contemple ele uma certa ciecircncia uacutenica tal que seu objeto eacute Belezardquo (210d1-e1)

Apesar do caraacuteter miacutestico-religioso5 do discurso de Diotima natildeo possuir

precedentes nos diaacutelogos da primeira fase podemos reconhecer no percurso de

ascensatildeo do iniciado nos ensinamentos do amor a busca pela unidade do εἶδος

que encontramos nos diaacutelogos definicionais Da mesma maneira que Laacuteques eacute

instigado por Soacutecrates a buscar ldquoaquilo que eacute idecircntico em todos os casos de

coragemrdquo (ἐν πᾶσι τούτοις ταὐτόν ἐστιν Laq191e4-11) e Ecircutifron a apresentar ldquoa

piedade ela mesma que eacute idecircntica a si mesma em toda accedilatildeo piedosardquo (ταὐτόν

ἐστιν ἐν πάσῃ πράξει τὸ ὅσιον αὐτὸ αὑτῷ Eut5d1-2)6 o iniciado nas artes do

amor eacute levado a reconhecer que a beleza que reside em tudo aquilo que eacute belo eacute

ldquouma soacute e a mesmardquo (ἕν τε καὶ ταὐτὸν) Ele enfim concluiraacute que ldquoem si mesmo o

belo eacute sempre semelhante a si mesmordquo (αὐτὸ αὑτῷ συγγενές ἐστιν) Pois apesar

de pertencerem a niacuteveis distintos na escala de revelaccedilatildeo dos misteacuterios do amor

sendo cada estaacutegio superior ao precedente o belo do corpo o belo da alma dos

costumes e das ciecircncias eacute o mesmo na medida em que todas estas coisas

participam (πάντα καλὰ microετέχοντα) do Belo em si Forma uacutenica e causa universal

de tudo aquilo que eacute belo

Assim ldquoaquele que tenha contemplado na sua ordem e sucessatildeo correta

as coisas belas chegando ao teacutermino dos ensinamentos concernentes agraves coisas do

amor subitamente enxergaraacute algo maravilhosamente belo por naturezardquo

5 Este caraacutete estaacute expesso textualmente pelo uso de um vocabulaacuterio fortemente inspirado nos misteacuterios e ritos de iniciaccedilatildeo da religiatildeo grega (cf Brisson 2007 p66-71) 6 Compare ainda com o uso de τι τὸ αὐτὸ e τὸ κοινὸν τοῦτο em HippMa 300a-b e Men

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(θεώmicroενος ἐφεξῆς τε καὶ ὀρθῶς τὰ καλά πρὸς τέλος ἤδη ἰὼν τῶν ἐρωτικῶν

ἐξαίφνης κατόψεταί τι θαυmicroαστὸν τὴν φύσιν καλόν 210e3-5) A partir desta

sentenccedila a prosa platocircnica repentinamente adquire a cadecircncia dos ditirambos agrave

maneira das odes entoadas pelos coros das trageacutedias (cf Allen 1991 p82) e

Soacutecrates inicia uma descriccedilatildeo das caracteriacutesticas ontoloacutegicas deste Belo em si

objetivo uacuteltimo da revelaccedilatildeo dos misteacuterios de Eros ldquoem vista do qual todos os

esforccedilos anteriores foram realizadosrdquo (οὗ δὴ ἕνεκεν καὶ οἱ ἔmicroπροσθεν πάντες

πόνοι ἦσαν)

ldquoprimeiramente eacute para sempre natildeo nascendo nem perecendo natildeo crescendo nem decrescendo depois natildeo eacute belo de um jeito7 e feio de outro nem ora belo e ora feio nem quanto a isso belo e quanto agravequilo feio nem belo aqui e feio ali como se a alguns fosse belo e a outros feio tampouco apareceraacute o Belo como um rosto ou matildeos nem como nada que pertence ao corpo nem como algum discurso ou alguma ciecircncia tambeacutem natildeo seraacute situado em uma outra coisa como em algum animal da terra ou do ceacuteu ou em qualquer outra coisa ao contraacuterio apareceraacute ele mesmo por si mesmo consigo mesmo sendo sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν) enquanto todas as outras coisas belas dele participam de uma maneira tal que ao passo que tudo mais que eacute belo nasce e perece ele em nada fica maior ou menor nem nada sofrerdquo πρῶτον microὲν ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον ἔπειτα οὐ τῇ microὲν καλόν τῇ δ αἰσχρόν οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν οὐδ αὖ φαντασθήσεται αὐτῷ τὸ καλὸν οἷον πρόσωπόν τι οὐδὲ χεῖρες οὐδὲ ἄλλο οὐδὲν ὧν σῶmicroα microετέχει οὐδέ τις λόγος οὐδέ τις ἐπιστήmicroη οὐδέ που ὂν ἐν ἑτέρῳ τινι οἷον ἐν ζώῳ ἢ ἐν γῇ ἢ ἐν οὐρανῷ ἢ ἔν τῳ ἄλλῳ ἀλλ αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν τὰ δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα τρόπον τινὰ τοιοῦτον οἷον γιγνοmicroένων τε τῶν ἄλλων καὶ ἀπολλυmicroένων microηδὲν ἐκεῖνο microήτε τι πλέον microήτε ἔλαττον γίγνεσθαι microηδὲ πάσχειν microηδέν (211a1-b5)

De todo o corpus platocircnico esta passagem pode ser considerada aquela em

que a ontologia das Formas eacute apresentada de maneira mais densa e direta Focada

na descriccedilatildeo de uma uacutenica Forma a revelaccedilatildeo final de Diotima apresenta de uma

soacute vez diversos temas da ontologia platocircnica A primeira caracteriacutestica atribuiacuteda

ao Belo ldquoser para sempre natildeo nascendo nem perecendordquo remete ao tradicional

contraste entre seres mortais e imortais evocado anteriormente Contudo Diotima

radicaliza ainda mais este contraste afirmando que a Forma do Belo natildeo apenas

ldquoeacute para semprerdquo (ἀεὶ ὂν) em um paralelo direto com a foacutermula homeacuterica para

72c 7 Para traduzaccedilatildeo de τῇ microὲν hellip τῇ δὲ (ldquodesta hellip daquela maneirardquo) (cf LSJ verbete o( A

VIII 1)

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imortalidade divina (qeoi ai)en e)ontej) como tambeacutem natildeo foi gerada nem eacute

passiacutevel de perecimento (οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον) Atraveacutes destas

determinaccedilotildees adicionais Diotima introduz um tipo de eternidade inerente agrave

Forma do Belo que ultrapassa em muito a imortalidade divina Pois como

sabemos pela Teogonia apesar de indestrutiacuteveis os deuses tiveram um momento

de nascimento A Forma do Belo por sua vez estaacute fora do tempo na medida em

que natildeo possui um momento de surgimento nem possuiraacute um momento de

destruiccedilatildeo8

Aleacutem de eternamente existente a Forma do Belo natildeo cresce nem diminui

(οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον) E enquanto as coisas belas nascem e perecem a

Forma do Belo permanece inafetada (πάσχειν microηδέν) sendo ela mesma por si

mesma consigo mesma sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς

ἀεὶ ὄν)

A foacutermula ldquoele mesmo por si mesmo consigo mesmordquo (αὐτὸ καθ αὑτὸ

microεθ αὑτοῦ) resume em si aquilo que estaacute expresso entre as linhas 211a5-b6 isto eacute

o fato de que a Forma do Belo natildeo pode ser confundida com a beleza que

encontramos nas coisas sensiacuteveis (matildeos rostos partes dos corpos discursos

ciecircncias animais da terra ou do ceacuteu ou qualquer outra coisa) pois eacute uma entidade

independente e separada destas coisas A estrutura reflexiva da expressatildeo αὐτὸ

καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ pretende sublinhar a independecircncia ontoloacutegica do Belo que

eacute ldquoem si e por sirdquo e portanto natildeo depende dos objetos sensiacuteveis para existir e ser

aquilo que ela eacute Os objetos belos sensiacuteveis por outro lado satildeo ontologicamente

dependentes e necessitam da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo no Belo para serem belos (τὰ

δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα) A unidade entre a argumentaccedilatildeo dos

primeiros diaacutelogos e a revelaccedilatildeo de Diotima se torna evidente quando lembramos

que a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ natildeo passa de uma intensificaccedilatildeo da

foacutermula αὐτὸ τὸ εἶδος utilizada por Soacutecrates nos primeiros diaacutelogos9 para

expressar exatamente o mesmo aspecto de sua teoria

Aleacutem de eternamente existente e ontologicamente independente o Belo

caracteriza-se por estar isento de qualquer mudanccedila sendo de maneira fixa e

8 De fato como observam Sprague (1971) e Solmsen (1971) a eternidade do Belo possui como

paralelo apenas o Ser de Parmecircnides e podemos ateacute considerar intencional a referecircncia ao poema parmeniacutedico nas palavras de Diotima Compare a foacutermula utilizada por Diotima para expressar a eternidade do Belo ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον com as palavras utilizadas por Parmenides ὡς ἀγένητον ἐὸν καὶ ἀνώλεθρόν ἐστιν (Frag B83)

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invariaacutevel aquilo que ele eacute Podemos descrever esta caracteriacutestica como a

estabilidade ontoloacutegica do Belo e tal qualidade distintiva eacute expressa por Diotima

por meio da enumeraccedilatildeo das diferentes maneiras em que esta Forma poderia

deixar de ser bela caso fosse apenas mais uma entidade sensiacutevel Assim Diotima

nos explica que o Belo natildeo eacute

1) belo em um aspecto poreacutem feio em outro aspecto (οὐ τῇ microὲν

καλόν τῇ δ αἰσχρόν)

2) belo em um determinado momento poreacutem feio em outro momento

(οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ)

3) belo em relaccedilatildeo a certas coisas poreacutem feio em relaccedilatildeo a outras

(οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν)

4) belo em um determinado local poreacutem feio em outro sendo belo

para uns e feio para outros (οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν

ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν)

Por natildeo estar sujeita a estas qualificaccedilotildees a Forma do Belo eacute caracterizada

como aquela entidade sobre a qual eacute sempre verdadeiro afirmar que ela eacute bela

Esta estabilidade no modo de ser das Formas eacute ressaltada por meio do emprego do

adjetivo microονοειδὲς que etimologicamente deve ser traduzido por ldquouniformerdquo mas

pode ter seu sentido exprimido pela locuccedilatildeo ldquouacutenico em aspectordquo Como explica

Diotima a unidade aspectual da Forma do Belo encontra-se em ela ser

exclusivamente bela natildeo se mostrando nunca feia (ou natildeo-bela) e estando imune a

qualquer tipo de perspectivismo ou relativismo

No decorrer deste capiacutetulo veremos que o termo microονοειδὲς eacute parte do

vocabulaacuterio teacutecnico da Teoria das Ideias e reapareceraacute no Feacutedon (78b4) como uma

expressatildeo cristalizada para indicar que a Forma F (Belo Justo Grande Pequeno

etc) eacute uacutenica e invariavelmente F (bela justa grande pequena etc) o que a

torna um tipo de entidade fundamentalmente distinta dos diversos particulares

sensiacuteveis que evidentemente possuem uma diversidade de aspectos e estatildeo

sujeitos a uma multiplicidade de predicaccedilotildees muitas delas contraacuterias entre si

Este mesmo fato ontoloacutegico estaacute relacionado agrave caracterizaccedilatildeo das Formas

9 cf Eut 6d10 Hipp Ma 286d8 288a9 289c3 292c3

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como ἐκεῖνο ὃ ἔστι Como vimos no Liacutesis esta expressatildeo eacute usada para diferenciar

as diversas coisas amadas-em-vista-de-outra-coisa do πρῶτον φίλον uacutenica

entidade amada em vista de si mesma Por natildeo ser amado de maneira relacional

em vista de outro objeto o πρῶτον φίλον eacute considerado a uacutenica entidade apta a

receber o predicado ldquoser-amadordquo de maneira sempre verdadeira (ἐκεῖνο τὸ

πρῶτον ὃ ὡς ἀληθῶς ἐστι φίλον Lis219d4-5) e portanto pode ser caracterizado

como ἐκεῖνο ὃ ἐστι φίλον No Banquete (211c7-d1) a locuccedilatildeo ἐκεῖνο ὃ ἔστι eacute

utilizada para explicar que o processo de revelaccedilatildeo ao qual o iniciado nas artes do

amor foi submetido ldquoacaba naquela ciecircncia que natildeo eacute ciecircncia de nada mais do que

daquele proacuteprio Belo e [o iniciado] termina por conhecer o que eacute belo [ou o que

Belo eacute] (ὃ ἔστι καλόν) rdquo10

Novamente o vocabulaacuterio relativo agrave formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias que

encontramos nos diaacutelogos da fase meacutedia se apresenta em completa continuidade

com a busca por definiccedilotildees dos diaacutelogos inicias A foacutermula ὃ ἔστι x natildeo passa da

inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι x que como vimos no capiacutetulo precedente

caracteriza a busca socraacutetica por definiccedilotildees Assim aquilo que soacute podiacuteamos

acessar indiretamente nos primeiros diaacutelogos nos eacute apresentado de maneira

expliacutecita nos diaacutelogos meacutedios e a busca socraacutetica expressa em questotildees do tipo ldquoo

que eacute belordquo (τί ἐστι καλόν) eacute diretamente solucionada pela identificaccedilatildeo da

Forma da Beleza como ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (ὃ ἔστι καλόν)

Em contraposiccedilatildeo agrave estabilidade ontoloacutegica do Belo que eacute sempre

unicamente belo somos levados a concluir que ldquotodas as outras coisas belasrdquo (τὰ

ἄλλα πάντα καλὰ) estatildeo sujeitas a uma ou a mais de uma das seguintes

indeterminaccedilotildees

1) Elas podem ser belas em um de seus aspectos poreacutem feias em

outro Por exemplo uma escultura pode ser bela em sua forma

poreacutem estar pintada com cores horrendas

10 Eacute importante notar que na locuccedilatildeo ὃ ἔστι καλόν o termo καλόν pode ocupar o lugar tanto de

sujeito quanto de predicado Na realidade isto natildeo se daacute por acaso e devemos considerar esta ambiguidade sintaacutetica como um resultado proposital do texto platocircnico Tal fato fica evidente quando notamos que apesar da foacutermula ὃ ἔστι F ser recorrentemente usada para designar as Formas nunca encontramos o termo seguinte ao verbo ἔστι introduzido por um artigo o que anularia a possibilidade de uma leitura predicativa (cf Kahn 2009 p80) Por meio deste artifiacutecio sintaacutetico Platatildeo pretende nos transmitir a ideia de que conhecer ldquoo que o Belo eacuterdquo (construccedilatildeo subjetiva) equivale a conhecer ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (construccedilatildeo predicativa)

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2) Elas podem ser belas em um momento poreacutem feias em outro Por

exemplo um Ipecirc pode ser belo na primavera quando em flor

poreacutem feio no inverno quando desfolhado

3) Elas podem ser belas quando comparadas a uma determinada coisa

poreacutem feias quando comparadas a outra Por exemplo a bela moccedila

descrita no Hiacuteppias Maior quando comparada a uma deusa deve

ser considerada feia

4) Elas podem ser belas em um determinado local poreacutem feias em

outro sendo belas para uns e feias para outros Por exemplo os

adornos de um iacutendio Xavante que satildeo belos para os membros de

sua tribo poreacutem feios para os frequentadores da feira de moda de

Milatildeo

Ora como todo objeto sensiacutevel possui uma multiplicidade de aspectos e

caracteriacutesticas eacute plenamente possiacutevel e ateacute mesmo esperado que estas entidades

sejam belas em um de seus aspectos e feias em outros Todo objeto sensiacutevel

possui por exemplo um formato uma cor um odor uma textura etc Sendo

assim devemos considerar natural o fato de que um mesmo objeto julgado belo

em sua forma possa natildeo parecer belo em sua cor ou em um outro aspecto

qualquer Note que o mesmo raciociacutenio vale para as accedilotildees que os interlocutores de

Soacutecrates oferecem como exemplos de virtudes nos diaacutelogos inicias Acusar

publicamente o seu proacuteprio pai pode ser um ato pio quando considerado a partir

dos aspectos legais de persecuccedilatildeo religiosa conforme argumenta Ecircutifron Poreacutem

quando analisado agrave luz dos laccedilos de consanguinidade e reverecircncia familiar este

mesmo ato eacute certamente um exemplo de impiedade

Do mesmo modo devido ao fato de todas as entidades sensiacuteveis estarem

sujeitas agrave passagem do tempo podemos considerar inevitaacutevel que coisas ou atos

considerados belos hoje deixaratildeo de secirc-lo em algum momento futuro ou mesmo

que natildeo tenham sido belos em algum instante do passado Um belo cavalo hoje

deixaraacute de ser belo quando velho ou morto e a escravizaccedilatildeo de um inimigo

derrotado em batalha considerada uma accedilatildeo justa em um passado natildeo muito

remoto eacute certamente julgada uma grande injusticcedila nos dias de hoje Estes poucos

exemplos satildeo suficientes para concluirmos que os dois primeiros itens da

enumeraccedilatildeo de Diotima representam casos plenamente compreensiacuteveis de

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diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel

Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as

entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves

diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas

No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros

de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente

justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto

Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua

sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com

Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os

exemplos acima mencionados

Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso

Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria

em a partir de

1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z

inferir

2) x eacute belo e natildeo belo

Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel

de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x

estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a

donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo

indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente

incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo

parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que

Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma

deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar

em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade

da sentenccedila

1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z

concluir que

2) x eacute belo e natildeo belo

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Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por

Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o

aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute

adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado

incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum

e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute

(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo

Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se

comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na

formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a

propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da

propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um

objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto

represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo

A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os

complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados

completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo

ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E

o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente

equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter

Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo

primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos

ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e

convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e

incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de

argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto

de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca

agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo

piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)

Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e

relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo

um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por

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meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como

veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados

incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates

para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o

modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em

mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que

argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar

entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias

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32 A inteligibilidade das Formas

Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica

da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter

inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo

estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu

discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar

esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela

razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo

Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o

Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com

aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)

Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da

Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido

apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um

caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma

passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender

que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo

(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem

esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de

Diotima

Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira

caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter

inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de

Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema

principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates

iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal

sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma

existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os

objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma

imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve

temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo

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conhecimento

As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando

Soacutecrates pergunta a Simmias

ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)

A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando

no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo

(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em

seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da

Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da

primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na

resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente

familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio

relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a

sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει

ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a

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expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na

qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso

sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde

diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das

expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de

designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do

personagem Simmias com a Teoria das Ideias13

A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates

afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das

expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por

meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal

afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em

busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a

mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que

tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos

De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir

esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das

belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave

vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo

natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave

espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber

informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas

Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este

ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar

11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a

given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)

12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico

13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades

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abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo

apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria

reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre

Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os

objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ

αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres

(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)

14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o

sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico

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33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis

A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute

particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua

exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates

desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar

como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos

oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo

(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente

traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas

natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os

oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis

enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo

assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las

conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um

momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o

intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel

Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui

algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem

argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como

move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas

por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos

tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a

possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas

simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa

condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento

(cf Bostock 1983 p60-63)

Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a

estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas

por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si

mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo

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de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e

74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates

pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras

Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos

sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos

objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode

ser esquematizado da seguinte maneira

1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada

propriedade P

2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P

3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a

mesma coisa

Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem

causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto

textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo

conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual

propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo

pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do

que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute

muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa

depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala

Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias

ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo

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Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)

Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a

existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da

Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo

afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de

que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais

a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo

ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto

certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na

conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes

de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural

devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados

para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )

enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)

Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as

ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo

tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo

parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo

Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com

tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf

Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como

ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p

134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que

chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor

exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente

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pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato

devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que

dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo

assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por

Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15

A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os

problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua

grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura

1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo

verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os

mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais

para outra pessoardquo

2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo

relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila

estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira

iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes

iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo

3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste

caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora

permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um

aspecto e desiguais em outro aspectordquo

As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo

com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada

pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da

Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura

parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o

mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para

um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a

15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees

estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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160

35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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floresce Natildeo haacute duacutevida de que no Feacutedon no Banquete na Repuacuteblica e no Timeu3 Platatildeo estaacute definitivamente sugerindo um certo nuacutemero de doutrinas sobre uma variedade de toacutepicos Ele agora pensa que encontrou a soluccedilatildeo para seus problemas e o questionamento ceacutetico de Soacutecrates foi deixado para traacutesrdquo (Bostock 1988 p13)

Ora como nosso estudo identificou menccedilotildees agraves Formas platocircnicas nos

diaacutelogos iniciais natildeo devemos concordar com a descriccedilatildeo de Bostock segundo a

qual os diaacutelogos iniciais satildeo obras puramente criacuteticas sem exposiccedilatildeo de doutrinas

positivas Tampouco temos motivos para corroborar a descriccedilatildeo dos estados

emocionais de Platatildeo por ele realizada Por outro lado nossos resultados nos

permitem oferecer uma explicaccedilatildeo para a diferenccedila entre os dois primeiros grupos

de diaacutelogos que natildeo extrapola o acircmbito puramente textual e natildeo incorre no erro de

atribuir um valor puramente negativo aos primeiros diaacutelogos Para isto basta que

entendamos as mudanccedilas apontadas por Bostock como mudanccedilas no modo de

exposiccedilatildeo de uma mesma hipoacutetese teoacuterica Enquanto os primeiros diaacutelogos

mencionam as Formas de maneira sutil e antecipatoacuteria os diaacutelogos meacutedios

apresentam explicitamente a Teoria das Ideias Desta maneira como decorrecircncia

do modo de exposiccedilatildeo proleacuteptico que identificamos em Platatildeo podemos aceitar a

divisatildeo usual entre uma fase inicial e uma fase meacutedia que de fato parece refletir

corretamente certas caracteriacutesticas formais e dramaacuteticas dos diaacutelogos sem adotar

uma interpretaccedilatildeo de caraacuteter desenvolvimentista

Portanto segundo nossa compreensatildeo o presente capiacutetulo analisaraacute dois

diaacutelogos (Feacutedon e Banquete) em que Platatildeo expotildee de maneira mais expliacutecita e

sistemaacutetica as teses que compotildeem a Teoria das Ideias Como nosso interesse

limita-se ao que venho chamando de ldquonuacutecleo ontoloacutegicordquo desta teoria focaremos

nossa investigaccedilatildeo nas passagens em que o personagem Soacutecrates explica o que

satildeo as Formas expondo mais minuciosamente as diferenccedilas entre o modo de ser

destas entidades e o modo de ser das coisas sensiacuteveis

3 A inclusatildeo do Timeu nesta lista deve-se agrave argumentaccedilatildeo desenvolvida por Owen (1965) que Bostock reconhece como vaacutelida A identificaccedilatildeo do Timeu como um diaacutelogo da fase meacutedia eacute no entanto extremamente controversa e no meu entendimento errocircnea Para uma contra-

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31 O discurso de Diotima e a revelaccedilatildeo da Forma do Bel o

Dentre os diaacutelogos que compotildeem a fase meacutedia aquele em que as Formas

satildeo apresentadas de maneira mais resumida eacute certamente o Banquete Neste

diaacutelogo Soacutecrates participa de uma festa em celebraccedilatildeo agrave primeira vitoacuteria de

Agatatildeo em competiccedilotildees dramaacuteticas e se vecirc obrigado como cada um dos

participantes a oferecer um discurso em louvor (e)gkwmion177b ou e)painoj

177d) ao deus Eros No entanto ao inveacutes de compor seu proacuteprio discurso

Soacutecrates prefere recontar as palavras de Diotima uma sacerdotisa da Mantineacuteia

saacutebia nas coisas relativas a Eros e instrutora de Soacutecrates nas artes do amor (τὰ

ἐρωτικὰ) Relembrando as palavras de Diotima Soacutecrates desenvolve uma

surpreendente narrativa acerca do amor repleto de referecircncias miacutetico-religiosas

ao final da qual o leitor do diaacutelogo eacute apresentado agrave verdadeira natureza da Beleza

Seu discurso foca-se na revelaccedilatildeo de uma uacutenica Forma e sua estrateacutegia

argumentativa consiste em levar o ouvinte a ascender progressivamente do amor e

desejo eroacutetico pelas coisas sensiacuteveis ao amor e desejo eroacutetico pela Forma do Belo

Seraacute a contraposiccedilatildeo entre as muacuteltiplas coisas belas (corpos costumes leis e

ciecircncias) e o Belo ele mesmo si (αὐτὸ τὸ καλόν) o que daraacute a Soacutecrates o ensejo de

contrastar o modo de ser das coisas sensiacuteveis com o modo de ser das Formas

Antes de apresentar o Belo como o objeto uacuteltimo de todo desejo eroacutetico e

introduzir explicitamente o segundo poacutelo da disjunccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel

Soacutecrates nos fornece uma descriccedilatildeo da fraacutegil e passageira condiccedilatildeo do que eacute

mortal Segundo ele

ldquoquando dizemos de cada ser vivo que ele vive e permanece o mesmo - por exemplo dizemos que ele permanece o mesmo desde a infacircncia agrave velhice ele na realidade natildeo possui jamais em si as mesmas coisas (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) Mesmo se dizemos que ele permanece o mesmo ele natildeo cessa contudo de se renovar e perder certas coisas nos cabelos nas carnes nos ossos no sangue e em todo corpo E isto eacute vaacutelido natildeo somente para o corpo mas tambeacutem para a alma Os costumes as opiniotildees desejos prazeres afliccedilotildees temores cada um destes afetos jamais permanece o mesmo em cada um de noacutes mas uns nascem e outros morremrdquo4 ἐπεὶ καὶ ἐν ᾧ ἓν ἕκαστον τῶν ζῴων ζῆν καλεῖται καὶ εἶναι τὸ αὐτόndash οἷον ἐκ

argumentaccedilatildeo agrave Owen (cfCherniss 1965) 4 Nossa traduccedilatildeo segue o texto de Brisson (2007) que natildeo aceita a pontuaccedilatildeo estabelecida por

Burnet (cf Brisson 2007 p 212 n436)

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παιδαρίου ὁ αὐτὸς λέγεται ἕως ἂν πρεσβύτης γένηται οὗτος microέντοι οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ ὅmicroως ὁ αὐτὸς καλεῖται ἀλλὰ νέος ἀεὶ γιγνόmicroενος τὰ δὲ ἀπολλύς καὶ κατὰ τὰς τρίχας καὶ σάρκα καὶ ὀστᾶ καὶ αἷmicroα καὶ σύmicroπαν τὸ σῶmicroα καὶ microὴ ὅτι κατὰ τὸ σῶmicroα ἀλλὰ καὶ κατὰ τὴν ψυχὴν οἱ τρόποι τὰ ἤθη δόξαι ἐπιθυmicroίαι ἡδοναί λῦπαι φόβοι τούτων ἕκαστα οὐδέποτε τὰ αὐτὰ πάρεστιν ἑκάστῳ ἀλλὰ τὰ microὲν γίγνεται τὰ δὲ ἀπόλλυται (207d4-e5)

De acordo com as liccedilotildees de Diotima eacute na tentativa de superar esta

impermanecircncia inerente a tudo aquilo que eacute mortal que os animais bestas e

homens se lanccedilam com ardor no desejo de procriaccedilatildeo Afinal ldquoeacute deste modo que

tudo o que eacute mortal se conserva natildeo pelo fato de absolutamente ser sempre o

mesmo (οὐ τῷ παντάπασιν τὸ αὐτὸ ἀεὶ εἶναι) como o que eacute divino mas pelo fato

daquele que parte e envelhece deixar um outro ser novo tal como ele erardquo

(208a7-b2) Assim Soacutecrates contrasta a inconstacircncia daquilo que eacute mortal apenas

dito o mesmo (ὁ αὐτὸς καλεῖται) poreacutem ldquosem possuir jamais em si as mesmas

coisasrdquo (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) com a permanecircncia do que eacute imortal

(ἀθάνατον 208b4) que ldquoeacute absolutamente sempre o mesmordquo (παντάπασιν τὸ αὐτὸ

ἀεὶ εἶναι)

Os ouvintes de Soacutecrates tal como aquele que estaacute lendo o diaacutelogo pela

primeira vez natildeo reconhecem nesta comparaccedilatildeo entre o modo de existecircncia dos

seres mortais e modo de existecircncia do seres imortais o contraste entre Formas e

coisas que seraacute revelado ao final do discurso Contudo um leitor habituado ao

modo de escrita platocircnico pode facilmente identificar nesta fala uma antecipaccedilatildeo

da comparaccedilatildeo entre o modo de existecircncia das coisas belas sensiacuteveis e o modo de

existecircncia do Belo Este leitor seraacute capaz de reconhecer que o adjetivo ldquoimortalrdquo

(ἀθάνατον) utilizado na passagem acima citada como sinocircnimo de ldquodivinordquo

(θεῖον) natildeo se refere apenas aos deuses mas inclui em seu campo de aplicaccedilatildeo a

proacutepria Forma do Belo que como seraacute elucidado ao final do discurso tambeacutem ldquoeacute

para semprerdquo (ἀεὶ ὂν 211a1) Deste modo a relaccedilatildeo mortalimortal facilmente

compreensiacutevel para os representantes da elite cultural ateniense presentes no

banquete eacute utilizada para introduzir a distinccedilatildeo entre o modo de ser das muacuteltiplas

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo

O caminho que leva agrave revelaccedilatildeo do Belo inicia-se com o reconhecimento

da unidade subjacente a tudo aquilo que eacute belo em um movimento facilmente

identificaacutevel por um leitor familiarizado com a argumentaccedilatildeo dos diaacutelogos de

primeira fase O iniciado nas artes do amor (τὰ ἐρωτικὰ) comeccedilaraacute por amar a um

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soacute belo corpo e como resultado deste amor engendraraacute belos discursos Em

seguida ele seraacute levado a reconhecer que a beleza que reside em um corpo

qualquer eacute irmatilde (ἀδελφόν) da que estaacute em outro belo corpo e que portanto ldquoseria

muita tolice natildeo considerar uma soacute e a mesma (ἕν τε καὶ ταὐτὸν) a beleza que

reside em todos os corposrdquo (210b2-3) Apoacutes este momento ele passaraacute a

considerar a beleza presente nas almas mais valiosa do que aquela presente nos

corpos e seraacute capaz de ldquocontemplar o belo nos costumes e nas leis e ver que em si

mesmo o belo eacute sempre semelhante a si mesmo (πᾶν αὐτὸ αὑτῷ συγγενές ἐστιν)rdquo

(210c3-5) Por fim ele veraacute a beleza tambeacutem nos diversos ramos da ciecircncias

(ἐπιστηmicroῶν) ateacute que ldquoolhando agora para o belo nesta multiplicidade deixe de

amar como um escravo a beleza de um soacute jovem homem ou costume (hellip) e

contemple ele uma certa ciecircncia uacutenica tal que seu objeto eacute Belezardquo (210d1-e1)

Apesar do caraacuteter miacutestico-religioso5 do discurso de Diotima natildeo possuir

precedentes nos diaacutelogos da primeira fase podemos reconhecer no percurso de

ascensatildeo do iniciado nos ensinamentos do amor a busca pela unidade do εἶδος

que encontramos nos diaacutelogos definicionais Da mesma maneira que Laacuteques eacute

instigado por Soacutecrates a buscar ldquoaquilo que eacute idecircntico em todos os casos de

coragemrdquo (ἐν πᾶσι τούτοις ταὐτόν ἐστιν Laq191e4-11) e Ecircutifron a apresentar ldquoa

piedade ela mesma que eacute idecircntica a si mesma em toda accedilatildeo piedosardquo (ταὐτόν

ἐστιν ἐν πάσῃ πράξει τὸ ὅσιον αὐτὸ αὑτῷ Eut5d1-2)6 o iniciado nas artes do

amor eacute levado a reconhecer que a beleza que reside em tudo aquilo que eacute belo eacute

ldquouma soacute e a mesmardquo (ἕν τε καὶ ταὐτὸν) Ele enfim concluiraacute que ldquoem si mesmo o

belo eacute sempre semelhante a si mesmordquo (αὐτὸ αὑτῷ συγγενές ἐστιν) Pois apesar

de pertencerem a niacuteveis distintos na escala de revelaccedilatildeo dos misteacuterios do amor

sendo cada estaacutegio superior ao precedente o belo do corpo o belo da alma dos

costumes e das ciecircncias eacute o mesmo na medida em que todas estas coisas

participam (πάντα καλὰ microετέχοντα) do Belo em si Forma uacutenica e causa universal

de tudo aquilo que eacute belo

Assim ldquoaquele que tenha contemplado na sua ordem e sucessatildeo correta

as coisas belas chegando ao teacutermino dos ensinamentos concernentes agraves coisas do

amor subitamente enxergaraacute algo maravilhosamente belo por naturezardquo

5 Este caraacutete estaacute expesso textualmente pelo uso de um vocabulaacuterio fortemente inspirado nos misteacuterios e ritos de iniciaccedilatildeo da religiatildeo grega (cf Brisson 2007 p66-71) 6 Compare ainda com o uso de τι τὸ αὐτὸ e τὸ κοινὸν τοῦτο em HippMa 300a-b e Men

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(θεώmicroενος ἐφεξῆς τε καὶ ὀρθῶς τὰ καλά πρὸς τέλος ἤδη ἰὼν τῶν ἐρωτικῶν

ἐξαίφνης κατόψεταί τι θαυmicroαστὸν τὴν φύσιν καλόν 210e3-5) A partir desta

sentenccedila a prosa platocircnica repentinamente adquire a cadecircncia dos ditirambos agrave

maneira das odes entoadas pelos coros das trageacutedias (cf Allen 1991 p82) e

Soacutecrates inicia uma descriccedilatildeo das caracteriacutesticas ontoloacutegicas deste Belo em si

objetivo uacuteltimo da revelaccedilatildeo dos misteacuterios de Eros ldquoem vista do qual todos os

esforccedilos anteriores foram realizadosrdquo (οὗ δὴ ἕνεκεν καὶ οἱ ἔmicroπροσθεν πάντες

πόνοι ἦσαν)

ldquoprimeiramente eacute para sempre natildeo nascendo nem perecendo natildeo crescendo nem decrescendo depois natildeo eacute belo de um jeito7 e feio de outro nem ora belo e ora feio nem quanto a isso belo e quanto agravequilo feio nem belo aqui e feio ali como se a alguns fosse belo e a outros feio tampouco apareceraacute o Belo como um rosto ou matildeos nem como nada que pertence ao corpo nem como algum discurso ou alguma ciecircncia tambeacutem natildeo seraacute situado em uma outra coisa como em algum animal da terra ou do ceacuteu ou em qualquer outra coisa ao contraacuterio apareceraacute ele mesmo por si mesmo consigo mesmo sendo sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν) enquanto todas as outras coisas belas dele participam de uma maneira tal que ao passo que tudo mais que eacute belo nasce e perece ele em nada fica maior ou menor nem nada sofrerdquo πρῶτον microὲν ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον ἔπειτα οὐ τῇ microὲν καλόν τῇ δ αἰσχρόν οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν οὐδ αὖ φαντασθήσεται αὐτῷ τὸ καλὸν οἷον πρόσωπόν τι οὐδὲ χεῖρες οὐδὲ ἄλλο οὐδὲν ὧν σῶmicroα microετέχει οὐδέ τις λόγος οὐδέ τις ἐπιστήmicroη οὐδέ που ὂν ἐν ἑτέρῳ τινι οἷον ἐν ζώῳ ἢ ἐν γῇ ἢ ἐν οὐρανῷ ἢ ἔν τῳ ἄλλῳ ἀλλ αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν τὰ δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα τρόπον τινὰ τοιοῦτον οἷον γιγνοmicroένων τε τῶν ἄλλων καὶ ἀπολλυmicroένων microηδὲν ἐκεῖνο microήτε τι πλέον microήτε ἔλαττον γίγνεσθαι microηδὲ πάσχειν microηδέν (211a1-b5)

De todo o corpus platocircnico esta passagem pode ser considerada aquela em

que a ontologia das Formas eacute apresentada de maneira mais densa e direta Focada

na descriccedilatildeo de uma uacutenica Forma a revelaccedilatildeo final de Diotima apresenta de uma

soacute vez diversos temas da ontologia platocircnica A primeira caracteriacutestica atribuiacuteda

ao Belo ldquoser para sempre natildeo nascendo nem perecendordquo remete ao tradicional

contraste entre seres mortais e imortais evocado anteriormente Contudo Diotima

radicaliza ainda mais este contraste afirmando que a Forma do Belo natildeo apenas

ldquoeacute para semprerdquo (ἀεὶ ὂν) em um paralelo direto com a foacutermula homeacuterica para

72c 7 Para traduzaccedilatildeo de τῇ microὲν hellip τῇ δὲ (ldquodesta hellip daquela maneirardquo) (cf LSJ verbete o( A

VIII 1)

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imortalidade divina (qeoi ai)en e)ontej) como tambeacutem natildeo foi gerada nem eacute

passiacutevel de perecimento (οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον) Atraveacutes destas

determinaccedilotildees adicionais Diotima introduz um tipo de eternidade inerente agrave

Forma do Belo que ultrapassa em muito a imortalidade divina Pois como

sabemos pela Teogonia apesar de indestrutiacuteveis os deuses tiveram um momento

de nascimento A Forma do Belo por sua vez estaacute fora do tempo na medida em

que natildeo possui um momento de surgimento nem possuiraacute um momento de

destruiccedilatildeo8

Aleacutem de eternamente existente a Forma do Belo natildeo cresce nem diminui

(οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον) E enquanto as coisas belas nascem e perecem a

Forma do Belo permanece inafetada (πάσχειν microηδέν) sendo ela mesma por si

mesma consigo mesma sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς

ἀεὶ ὄν)

A foacutermula ldquoele mesmo por si mesmo consigo mesmordquo (αὐτὸ καθ αὑτὸ

microεθ αὑτοῦ) resume em si aquilo que estaacute expresso entre as linhas 211a5-b6 isto eacute

o fato de que a Forma do Belo natildeo pode ser confundida com a beleza que

encontramos nas coisas sensiacuteveis (matildeos rostos partes dos corpos discursos

ciecircncias animais da terra ou do ceacuteu ou qualquer outra coisa) pois eacute uma entidade

independente e separada destas coisas A estrutura reflexiva da expressatildeo αὐτὸ

καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ pretende sublinhar a independecircncia ontoloacutegica do Belo que

eacute ldquoem si e por sirdquo e portanto natildeo depende dos objetos sensiacuteveis para existir e ser

aquilo que ela eacute Os objetos belos sensiacuteveis por outro lado satildeo ontologicamente

dependentes e necessitam da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo no Belo para serem belos (τὰ

δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα) A unidade entre a argumentaccedilatildeo dos

primeiros diaacutelogos e a revelaccedilatildeo de Diotima se torna evidente quando lembramos

que a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ natildeo passa de uma intensificaccedilatildeo da

foacutermula αὐτὸ τὸ εἶδος utilizada por Soacutecrates nos primeiros diaacutelogos9 para

expressar exatamente o mesmo aspecto de sua teoria

Aleacutem de eternamente existente e ontologicamente independente o Belo

caracteriza-se por estar isento de qualquer mudanccedila sendo de maneira fixa e

8 De fato como observam Sprague (1971) e Solmsen (1971) a eternidade do Belo possui como

paralelo apenas o Ser de Parmecircnides e podemos ateacute considerar intencional a referecircncia ao poema parmeniacutedico nas palavras de Diotima Compare a foacutermula utilizada por Diotima para expressar a eternidade do Belo ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον com as palavras utilizadas por Parmenides ὡς ἀγένητον ἐὸν καὶ ἀνώλεθρόν ἐστιν (Frag B83)

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invariaacutevel aquilo que ele eacute Podemos descrever esta caracteriacutestica como a

estabilidade ontoloacutegica do Belo e tal qualidade distintiva eacute expressa por Diotima

por meio da enumeraccedilatildeo das diferentes maneiras em que esta Forma poderia

deixar de ser bela caso fosse apenas mais uma entidade sensiacutevel Assim Diotima

nos explica que o Belo natildeo eacute

1) belo em um aspecto poreacutem feio em outro aspecto (οὐ τῇ microὲν

καλόν τῇ δ αἰσχρόν)

2) belo em um determinado momento poreacutem feio em outro momento

(οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ)

3) belo em relaccedilatildeo a certas coisas poreacutem feio em relaccedilatildeo a outras

(οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν)

4) belo em um determinado local poreacutem feio em outro sendo belo

para uns e feio para outros (οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν

ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν)

Por natildeo estar sujeita a estas qualificaccedilotildees a Forma do Belo eacute caracterizada

como aquela entidade sobre a qual eacute sempre verdadeiro afirmar que ela eacute bela

Esta estabilidade no modo de ser das Formas eacute ressaltada por meio do emprego do

adjetivo microονοειδὲς que etimologicamente deve ser traduzido por ldquouniformerdquo mas

pode ter seu sentido exprimido pela locuccedilatildeo ldquouacutenico em aspectordquo Como explica

Diotima a unidade aspectual da Forma do Belo encontra-se em ela ser

exclusivamente bela natildeo se mostrando nunca feia (ou natildeo-bela) e estando imune a

qualquer tipo de perspectivismo ou relativismo

No decorrer deste capiacutetulo veremos que o termo microονοειδὲς eacute parte do

vocabulaacuterio teacutecnico da Teoria das Ideias e reapareceraacute no Feacutedon (78b4) como uma

expressatildeo cristalizada para indicar que a Forma F (Belo Justo Grande Pequeno

etc) eacute uacutenica e invariavelmente F (bela justa grande pequena etc) o que a

torna um tipo de entidade fundamentalmente distinta dos diversos particulares

sensiacuteveis que evidentemente possuem uma diversidade de aspectos e estatildeo

sujeitos a uma multiplicidade de predicaccedilotildees muitas delas contraacuterias entre si

Este mesmo fato ontoloacutegico estaacute relacionado agrave caracterizaccedilatildeo das Formas

9 cf Eut 6d10 Hipp Ma 286d8 288a9 289c3 292c3

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como ἐκεῖνο ὃ ἔστι Como vimos no Liacutesis esta expressatildeo eacute usada para diferenciar

as diversas coisas amadas-em-vista-de-outra-coisa do πρῶτον φίλον uacutenica

entidade amada em vista de si mesma Por natildeo ser amado de maneira relacional

em vista de outro objeto o πρῶτον φίλον eacute considerado a uacutenica entidade apta a

receber o predicado ldquoser-amadordquo de maneira sempre verdadeira (ἐκεῖνο τὸ

πρῶτον ὃ ὡς ἀληθῶς ἐστι φίλον Lis219d4-5) e portanto pode ser caracterizado

como ἐκεῖνο ὃ ἐστι φίλον No Banquete (211c7-d1) a locuccedilatildeo ἐκεῖνο ὃ ἔστι eacute

utilizada para explicar que o processo de revelaccedilatildeo ao qual o iniciado nas artes do

amor foi submetido ldquoacaba naquela ciecircncia que natildeo eacute ciecircncia de nada mais do que

daquele proacuteprio Belo e [o iniciado] termina por conhecer o que eacute belo [ou o que

Belo eacute] (ὃ ἔστι καλόν) rdquo10

Novamente o vocabulaacuterio relativo agrave formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias que

encontramos nos diaacutelogos da fase meacutedia se apresenta em completa continuidade

com a busca por definiccedilotildees dos diaacutelogos inicias A foacutermula ὃ ἔστι x natildeo passa da

inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι x que como vimos no capiacutetulo precedente

caracteriza a busca socraacutetica por definiccedilotildees Assim aquilo que soacute podiacuteamos

acessar indiretamente nos primeiros diaacutelogos nos eacute apresentado de maneira

expliacutecita nos diaacutelogos meacutedios e a busca socraacutetica expressa em questotildees do tipo ldquoo

que eacute belordquo (τί ἐστι καλόν) eacute diretamente solucionada pela identificaccedilatildeo da

Forma da Beleza como ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (ὃ ἔστι καλόν)

Em contraposiccedilatildeo agrave estabilidade ontoloacutegica do Belo que eacute sempre

unicamente belo somos levados a concluir que ldquotodas as outras coisas belasrdquo (τὰ

ἄλλα πάντα καλὰ) estatildeo sujeitas a uma ou a mais de uma das seguintes

indeterminaccedilotildees

1) Elas podem ser belas em um de seus aspectos poreacutem feias em

outro Por exemplo uma escultura pode ser bela em sua forma

poreacutem estar pintada com cores horrendas

10 Eacute importante notar que na locuccedilatildeo ὃ ἔστι καλόν o termo καλόν pode ocupar o lugar tanto de

sujeito quanto de predicado Na realidade isto natildeo se daacute por acaso e devemos considerar esta ambiguidade sintaacutetica como um resultado proposital do texto platocircnico Tal fato fica evidente quando notamos que apesar da foacutermula ὃ ἔστι F ser recorrentemente usada para designar as Formas nunca encontramos o termo seguinte ao verbo ἔστι introduzido por um artigo o que anularia a possibilidade de uma leitura predicativa (cf Kahn 2009 p80) Por meio deste artifiacutecio sintaacutetico Platatildeo pretende nos transmitir a ideia de que conhecer ldquoo que o Belo eacuterdquo (construccedilatildeo subjetiva) equivale a conhecer ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (construccedilatildeo predicativa)

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2) Elas podem ser belas em um momento poreacutem feias em outro Por

exemplo um Ipecirc pode ser belo na primavera quando em flor

poreacutem feio no inverno quando desfolhado

3) Elas podem ser belas quando comparadas a uma determinada coisa

poreacutem feias quando comparadas a outra Por exemplo a bela moccedila

descrita no Hiacuteppias Maior quando comparada a uma deusa deve

ser considerada feia

4) Elas podem ser belas em um determinado local poreacutem feias em

outro sendo belas para uns e feias para outros Por exemplo os

adornos de um iacutendio Xavante que satildeo belos para os membros de

sua tribo poreacutem feios para os frequentadores da feira de moda de

Milatildeo

Ora como todo objeto sensiacutevel possui uma multiplicidade de aspectos e

caracteriacutesticas eacute plenamente possiacutevel e ateacute mesmo esperado que estas entidades

sejam belas em um de seus aspectos e feias em outros Todo objeto sensiacutevel

possui por exemplo um formato uma cor um odor uma textura etc Sendo

assim devemos considerar natural o fato de que um mesmo objeto julgado belo

em sua forma possa natildeo parecer belo em sua cor ou em um outro aspecto

qualquer Note que o mesmo raciociacutenio vale para as accedilotildees que os interlocutores de

Soacutecrates oferecem como exemplos de virtudes nos diaacutelogos inicias Acusar

publicamente o seu proacuteprio pai pode ser um ato pio quando considerado a partir

dos aspectos legais de persecuccedilatildeo religiosa conforme argumenta Ecircutifron Poreacutem

quando analisado agrave luz dos laccedilos de consanguinidade e reverecircncia familiar este

mesmo ato eacute certamente um exemplo de impiedade

Do mesmo modo devido ao fato de todas as entidades sensiacuteveis estarem

sujeitas agrave passagem do tempo podemos considerar inevitaacutevel que coisas ou atos

considerados belos hoje deixaratildeo de secirc-lo em algum momento futuro ou mesmo

que natildeo tenham sido belos em algum instante do passado Um belo cavalo hoje

deixaraacute de ser belo quando velho ou morto e a escravizaccedilatildeo de um inimigo

derrotado em batalha considerada uma accedilatildeo justa em um passado natildeo muito

remoto eacute certamente julgada uma grande injusticcedila nos dias de hoje Estes poucos

exemplos satildeo suficientes para concluirmos que os dois primeiros itens da

enumeraccedilatildeo de Diotima representam casos plenamente compreensiacuteveis de

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diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel

Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as

entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves

diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas

No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros

de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente

justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto

Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua

sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com

Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os

exemplos acima mencionados

Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso

Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria

em a partir de

1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z

inferir

2) x eacute belo e natildeo belo

Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel

de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x

estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a

donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo

indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente

incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo

parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que

Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma

deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar

em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade

da sentenccedila

1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z

concluir que

2) x eacute belo e natildeo belo

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Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por

Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o

aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute

adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado

incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum

e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute

(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo

Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se

comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na

formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a

propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da

propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um

objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto

represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo

A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os

complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados

completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo

ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E

o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente

equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter

Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo

primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos

ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e

convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e

incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de

argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto

de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca

agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo

piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)

Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e

relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo

um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por

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meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como

veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados

incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates

para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o

modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em

mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que

argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar

entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias

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32 A inteligibilidade das Formas

Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica

da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter

inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo

estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu

discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar

esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela

razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo

Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o

Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com

aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)

Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da

Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido

apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um

caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma

passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender

que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo

(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem

esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de

Diotima

Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira

caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter

inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de

Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema

principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates

iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal

sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma

existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os

objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma

imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve

temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo

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conhecimento

As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando

Soacutecrates pergunta a Simmias

ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)

A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando

no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo

(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em

seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da

Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da

primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na

resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente

familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio

relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a

sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει

ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a

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expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na

qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso

sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde

diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das

expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de

designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do

personagem Simmias com a Teoria das Ideias13

A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates

afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das

expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por

meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal

afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em

busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a

mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que

tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos

De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir

esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das

belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave

vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo

natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave

espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber

informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas

Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este

ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar

11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a

given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)

12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico

13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades

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abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo

apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria

reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre

Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os

objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ

αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres

(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)

14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o

sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico

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33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis

A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute

particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua

exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates

desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar

como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos

oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo

(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente

traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas

natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os

oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis

enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo

assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las

conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um

momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o

intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel

Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui

algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem

argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como

move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas

por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos

tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a

possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas

simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa

condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento

(cf Bostock 1983 p60-63)

Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a

estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas

por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si

mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo

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de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e

74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates

pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras

Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos

sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos

objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode

ser esquematizado da seguinte maneira

1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada

propriedade P

2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P

3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a

mesma coisa

Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem

causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto

textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo

conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual

propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo

pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do

que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute

muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa

depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala

Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias

ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo

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Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)

Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a

existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da

Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo

afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de

que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais

a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo

ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto

certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na

conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes

de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural

devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados

para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )

enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)

Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as

ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo

tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo

parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo

Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com

tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf

Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como

ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p

134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que

chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor

exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente

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pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato

devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que

dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo

assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por

Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15

A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os

problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua

grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura

1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo

verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os

mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais

para outra pessoardquo

2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo

relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila

estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira

iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes

iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo

3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste

caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora

permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um

aspecto e desiguais em outro aspectordquo

As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo

com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada

pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da

Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura

parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o

mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para

um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a

15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees

estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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31 O discurso de Diotima e a revelaccedilatildeo da Forma do Bel o

Dentre os diaacutelogos que compotildeem a fase meacutedia aquele em que as Formas

satildeo apresentadas de maneira mais resumida eacute certamente o Banquete Neste

diaacutelogo Soacutecrates participa de uma festa em celebraccedilatildeo agrave primeira vitoacuteria de

Agatatildeo em competiccedilotildees dramaacuteticas e se vecirc obrigado como cada um dos

participantes a oferecer um discurso em louvor (e)gkwmion177b ou e)painoj

177d) ao deus Eros No entanto ao inveacutes de compor seu proacuteprio discurso

Soacutecrates prefere recontar as palavras de Diotima uma sacerdotisa da Mantineacuteia

saacutebia nas coisas relativas a Eros e instrutora de Soacutecrates nas artes do amor (τὰ

ἐρωτικὰ) Relembrando as palavras de Diotima Soacutecrates desenvolve uma

surpreendente narrativa acerca do amor repleto de referecircncias miacutetico-religiosas

ao final da qual o leitor do diaacutelogo eacute apresentado agrave verdadeira natureza da Beleza

Seu discurso foca-se na revelaccedilatildeo de uma uacutenica Forma e sua estrateacutegia

argumentativa consiste em levar o ouvinte a ascender progressivamente do amor e

desejo eroacutetico pelas coisas sensiacuteveis ao amor e desejo eroacutetico pela Forma do Belo

Seraacute a contraposiccedilatildeo entre as muacuteltiplas coisas belas (corpos costumes leis e

ciecircncias) e o Belo ele mesmo si (αὐτὸ τὸ καλόν) o que daraacute a Soacutecrates o ensejo de

contrastar o modo de ser das coisas sensiacuteveis com o modo de ser das Formas

Antes de apresentar o Belo como o objeto uacuteltimo de todo desejo eroacutetico e

introduzir explicitamente o segundo poacutelo da disjunccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel

Soacutecrates nos fornece uma descriccedilatildeo da fraacutegil e passageira condiccedilatildeo do que eacute

mortal Segundo ele

ldquoquando dizemos de cada ser vivo que ele vive e permanece o mesmo - por exemplo dizemos que ele permanece o mesmo desde a infacircncia agrave velhice ele na realidade natildeo possui jamais em si as mesmas coisas (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) Mesmo se dizemos que ele permanece o mesmo ele natildeo cessa contudo de se renovar e perder certas coisas nos cabelos nas carnes nos ossos no sangue e em todo corpo E isto eacute vaacutelido natildeo somente para o corpo mas tambeacutem para a alma Os costumes as opiniotildees desejos prazeres afliccedilotildees temores cada um destes afetos jamais permanece o mesmo em cada um de noacutes mas uns nascem e outros morremrdquo4 ἐπεὶ καὶ ἐν ᾧ ἓν ἕκαστον τῶν ζῴων ζῆν καλεῖται καὶ εἶναι τὸ αὐτόndash οἷον ἐκ

argumentaccedilatildeo agrave Owen (cfCherniss 1965) 4 Nossa traduccedilatildeo segue o texto de Brisson (2007) que natildeo aceita a pontuaccedilatildeo estabelecida por

Burnet (cf Brisson 2007 p 212 n436)

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παιδαρίου ὁ αὐτὸς λέγεται ἕως ἂν πρεσβύτης γένηται οὗτος microέντοι οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ ὅmicroως ὁ αὐτὸς καλεῖται ἀλλὰ νέος ἀεὶ γιγνόmicroενος τὰ δὲ ἀπολλύς καὶ κατὰ τὰς τρίχας καὶ σάρκα καὶ ὀστᾶ καὶ αἷmicroα καὶ σύmicroπαν τὸ σῶmicroα καὶ microὴ ὅτι κατὰ τὸ σῶmicroα ἀλλὰ καὶ κατὰ τὴν ψυχὴν οἱ τρόποι τὰ ἤθη δόξαι ἐπιθυmicroίαι ἡδοναί λῦπαι φόβοι τούτων ἕκαστα οὐδέποτε τὰ αὐτὰ πάρεστιν ἑκάστῳ ἀλλὰ τὰ microὲν γίγνεται τὰ δὲ ἀπόλλυται (207d4-e5)

De acordo com as liccedilotildees de Diotima eacute na tentativa de superar esta

impermanecircncia inerente a tudo aquilo que eacute mortal que os animais bestas e

homens se lanccedilam com ardor no desejo de procriaccedilatildeo Afinal ldquoeacute deste modo que

tudo o que eacute mortal se conserva natildeo pelo fato de absolutamente ser sempre o

mesmo (οὐ τῷ παντάπασιν τὸ αὐτὸ ἀεὶ εἶναι) como o que eacute divino mas pelo fato

daquele que parte e envelhece deixar um outro ser novo tal como ele erardquo

(208a7-b2) Assim Soacutecrates contrasta a inconstacircncia daquilo que eacute mortal apenas

dito o mesmo (ὁ αὐτὸς καλεῖται) poreacutem ldquosem possuir jamais em si as mesmas

coisasrdquo (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) com a permanecircncia do que eacute imortal

(ἀθάνατον 208b4) que ldquoeacute absolutamente sempre o mesmordquo (παντάπασιν τὸ αὐτὸ

ἀεὶ εἶναι)

Os ouvintes de Soacutecrates tal como aquele que estaacute lendo o diaacutelogo pela

primeira vez natildeo reconhecem nesta comparaccedilatildeo entre o modo de existecircncia dos

seres mortais e modo de existecircncia do seres imortais o contraste entre Formas e

coisas que seraacute revelado ao final do discurso Contudo um leitor habituado ao

modo de escrita platocircnico pode facilmente identificar nesta fala uma antecipaccedilatildeo

da comparaccedilatildeo entre o modo de existecircncia das coisas belas sensiacuteveis e o modo de

existecircncia do Belo Este leitor seraacute capaz de reconhecer que o adjetivo ldquoimortalrdquo

(ἀθάνατον) utilizado na passagem acima citada como sinocircnimo de ldquodivinordquo

(θεῖον) natildeo se refere apenas aos deuses mas inclui em seu campo de aplicaccedilatildeo a

proacutepria Forma do Belo que como seraacute elucidado ao final do discurso tambeacutem ldquoeacute

para semprerdquo (ἀεὶ ὂν 211a1) Deste modo a relaccedilatildeo mortalimortal facilmente

compreensiacutevel para os representantes da elite cultural ateniense presentes no

banquete eacute utilizada para introduzir a distinccedilatildeo entre o modo de ser das muacuteltiplas

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo

O caminho que leva agrave revelaccedilatildeo do Belo inicia-se com o reconhecimento

da unidade subjacente a tudo aquilo que eacute belo em um movimento facilmente

identificaacutevel por um leitor familiarizado com a argumentaccedilatildeo dos diaacutelogos de

primeira fase O iniciado nas artes do amor (τὰ ἐρωτικὰ) comeccedilaraacute por amar a um

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soacute belo corpo e como resultado deste amor engendraraacute belos discursos Em

seguida ele seraacute levado a reconhecer que a beleza que reside em um corpo

qualquer eacute irmatilde (ἀδελφόν) da que estaacute em outro belo corpo e que portanto ldquoseria

muita tolice natildeo considerar uma soacute e a mesma (ἕν τε καὶ ταὐτὸν) a beleza que

reside em todos os corposrdquo (210b2-3) Apoacutes este momento ele passaraacute a

considerar a beleza presente nas almas mais valiosa do que aquela presente nos

corpos e seraacute capaz de ldquocontemplar o belo nos costumes e nas leis e ver que em si

mesmo o belo eacute sempre semelhante a si mesmo (πᾶν αὐτὸ αὑτῷ συγγενές ἐστιν)rdquo

(210c3-5) Por fim ele veraacute a beleza tambeacutem nos diversos ramos da ciecircncias

(ἐπιστηmicroῶν) ateacute que ldquoolhando agora para o belo nesta multiplicidade deixe de

amar como um escravo a beleza de um soacute jovem homem ou costume (hellip) e

contemple ele uma certa ciecircncia uacutenica tal que seu objeto eacute Belezardquo (210d1-e1)

Apesar do caraacuteter miacutestico-religioso5 do discurso de Diotima natildeo possuir

precedentes nos diaacutelogos da primeira fase podemos reconhecer no percurso de

ascensatildeo do iniciado nos ensinamentos do amor a busca pela unidade do εἶδος

que encontramos nos diaacutelogos definicionais Da mesma maneira que Laacuteques eacute

instigado por Soacutecrates a buscar ldquoaquilo que eacute idecircntico em todos os casos de

coragemrdquo (ἐν πᾶσι τούτοις ταὐτόν ἐστιν Laq191e4-11) e Ecircutifron a apresentar ldquoa

piedade ela mesma que eacute idecircntica a si mesma em toda accedilatildeo piedosardquo (ταὐτόν

ἐστιν ἐν πάσῃ πράξει τὸ ὅσιον αὐτὸ αὑτῷ Eut5d1-2)6 o iniciado nas artes do

amor eacute levado a reconhecer que a beleza que reside em tudo aquilo que eacute belo eacute

ldquouma soacute e a mesmardquo (ἕν τε καὶ ταὐτὸν) Ele enfim concluiraacute que ldquoem si mesmo o

belo eacute sempre semelhante a si mesmordquo (αὐτὸ αὑτῷ συγγενές ἐστιν) Pois apesar

de pertencerem a niacuteveis distintos na escala de revelaccedilatildeo dos misteacuterios do amor

sendo cada estaacutegio superior ao precedente o belo do corpo o belo da alma dos

costumes e das ciecircncias eacute o mesmo na medida em que todas estas coisas

participam (πάντα καλὰ microετέχοντα) do Belo em si Forma uacutenica e causa universal

de tudo aquilo que eacute belo

Assim ldquoaquele que tenha contemplado na sua ordem e sucessatildeo correta

as coisas belas chegando ao teacutermino dos ensinamentos concernentes agraves coisas do

amor subitamente enxergaraacute algo maravilhosamente belo por naturezardquo

5 Este caraacutete estaacute expesso textualmente pelo uso de um vocabulaacuterio fortemente inspirado nos misteacuterios e ritos de iniciaccedilatildeo da religiatildeo grega (cf Brisson 2007 p66-71) 6 Compare ainda com o uso de τι τὸ αὐτὸ e τὸ κοινὸν τοῦτο em HippMa 300a-b e Men

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(θεώmicroενος ἐφεξῆς τε καὶ ὀρθῶς τὰ καλά πρὸς τέλος ἤδη ἰὼν τῶν ἐρωτικῶν

ἐξαίφνης κατόψεταί τι θαυmicroαστὸν τὴν φύσιν καλόν 210e3-5) A partir desta

sentenccedila a prosa platocircnica repentinamente adquire a cadecircncia dos ditirambos agrave

maneira das odes entoadas pelos coros das trageacutedias (cf Allen 1991 p82) e

Soacutecrates inicia uma descriccedilatildeo das caracteriacutesticas ontoloacutegicas deste Belo em si

objetivo uacuteltimo da revelaccedilatildeo dos misteacuterios de Eros ldquoem vista do qual todos os

esforccedilos anteriores foram realizadosrdquo (οὗ δὴ ἕνεκεν καὶ οἱ ἔmicroπροσθεν πάντες

πόνοι ἦσαν)

ldquoprimeiramente eacute para sempre natildeo nascendo nem perecendo natildeo crescendo nem decrescendo depois natildeo eacute belo de um jeito7 e feio de outro nem ora belo e ora feio nem quanto a isso belo e quanto agravequilo feio nem belo aqui e feio ali como se a alguns fosse belo e a outros feio tampouco apareceraacute o Belo como um rosto ou matildeos nem como nada que pertence ao corpo nem como algum discurso ou alguma ciecircncia tambeacutem natildeo seraacute situado em uma outra coisa como em algum animal da terra ou do ceacuteu ou em qualquer outra coisa ao contraacuterio apareceraacute ele mesmo por si mesmo consigo mesmo sendo sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν) enquanto todas as outras coisas belas dele participam de uma maneira tal que ao passo que tudo mais que eacute belo nasce e perece ele em nada fica maior ou menor nem nada sofrerdquo πρῶτον microὲν ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον ἔπειτα οὐ τῇ microὲν καλόν τῇ δ αἰσχρόν οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν οὐδ αὖ φαντασθήσεται αὐτῷ τὸ καλὸν οἷον πρόσωπόν τι οὐδὲ χεῖρες οὐδὲ ἄλλο οὐδὲν ὧν σῶmicroα microετέχει οὐδέ τις λόγος οὐδέ τις ἐπιστήmicroη οὐδέ που ὂν ἐν ἑτέρῳ τινι οἷον ἐν ζώῳ ἢ ἐν γῇ ἢ ἐν οὐρανῷ ἢ ἔν τῳ ἄλλῳ ἀλλ αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν τὰ δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα τρόπον τινὰ τοιοῦτον οἷον γιγνοmicroένων τε τῶν ἄλλων καὶ ἀπολλυmicroένων microηδὲν ἐκεῖνο microήτε τι πλέον microήτε ἔλαττον γίγνεσθαι microηδὲ πάσχειν microηδέν (211a1-b5)

De todo o corpus platocircnico esta passagem pode ser considerada aquela em

que a ontologia das Formas eacute apresentada de maneira mais densa e direta Focada

na descriccedilatildeo de uma uacutenica Forma a revelaccedilatildeo final de Diotima apresenta de uma

soacute vez diversos temas da ontologia platocircnica A primeira caracteriacutestica atribuiacuteda

ao Belo ldquoser para sempre natildeo nascendo nem perecendordquo remete ao tradicional

contraste entre seres mortais e imortais evocado anteriormente Contudo Diotima

radicaliza ainda mais este contraste afirmando que a Forma do Belo natildeo apenas

ldquoeacute para semprerdquo (ἀεὶ ὂν) em um paralelo direto com a foacutermula homeacuterica para

72c 7 Para traduzaccedilatildeo de τῇ microὲν hellip τῇ δὲ (ldquodesta hellip daquela maneirardquo) (cf LSJ verbete o( A

VIII 1)

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imortalidade divina (qeoi ai)en e)ontej) como tambeacutem natildeo foi gerada nem eacute

passiacutevel de perecimento (οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον) Atraveacutes destas

determinaccedilotildees adicionais Diotima introduz um tipo de eternidade inerente agrave

Forma do Belo que ultrapassa em muito a imortalidade divina Pois como

sabemos pela Teogonia apesar de indestrutiacuteveis os deuses tiveram um momento

de nascimento A Forma do Belo por sua vez estaacute fora do tempo na medida em

que natildeo possui um momento de surgimento nem possuiraacute um momento de

destruiccedilatildeo8

Aleacutem de eternamente existente a Forma do Belo natildeo cresce nem diminui

(οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον) E enquanto as coisas belas nascem e perecem a

Forma do Belo permanece inafetada (πάσχειν microηδέν) sendo ela mesma por si

mesma consigo mesma sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς

ἀεὶ ὄν)

A foacutermula ldquoele mesmo por si mesmo consigo mesmordquo (αὐτὸ καθ αὑτὸ

microεθ αὑτοῦ) resume em si aquilo que estaacute expresso entre as linhas 211a5-b6 isto eacute

o fato de que a Forma do Belo natildeo pode ser confundida com a beleza que

encontramos nas coisas sensiacuteveis (matildeos rostos partes dos corpos discursos

ciecircncias animais da terra ou do ceacuteu ou qualquer outra coisa) pois eacute uma entidade

independente e separada destas coisas A estrutura reflexiva da expressatildeo αὐτὸ

καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ pretende sublinhar a independecircncia ontoloacutegica do Belo que

eacute ldquoem si e por sirdquo e portanto natildeo depende dos objetos sensiacuteveis para existir e ser

aquilo que ela eacute Os objetos belos sensiacuteveis por outro lado satildeo ontologicamente

dependentes e necessitam da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo no Belo para serem belos (τὰ

δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα) A unidade entre a argumentaccedilatildeo dos

primeiros diaacutelogos e a revelaccedilatildeo de Diotima se torna evidente quando lembramos

que a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ natildeo passa de uma intensificaccedilatildeo da

foacutermula αὐτὸ τὸ εἶδος utilizada por Soacutecrates nos primeiros diaacutelogos9 para

expressar exatamente o mesmo aspecto de sua teoria

Aleacutem de eternamente existente e ontologicamente independente o Belo

caracteriza-se por estar isento de qualquer mudanccedila sendo de maneira fixa e

8 De fato como observam Sprague (1971) e Solmsen (1971) a eternidade do Belo possui como

paralelo apenas o Ser de Parmecircnides e podemos ateacute considerar intencional a referecircncia ao poema parmeniacutedico nas palavras de Diotima Compare a foacutermula utilizada por Diotima para expressar a eternidade do Belo ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον com as palavras utilizadas por Parmenides ὡς ἀγένητον ἐὸν καὶ ἀνώλεθρόν ἐστιν (Frag B83)

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invariaacutevel aquilo que ele eacute Podemos descrever esta caracteriacutestica como a

estabilidade ontoloacutegica do Belo e tal qualidade distintiva eacute expressa por Diotima

por meio da enumeraccedilatildeo das diferentes maneiras em que esta Forma poderia

deixar de ser bela caso fosse apenas mais uma entidade sensiacutevel Assim Diotima

nos explica que o Belo natildeo eacute

1) belo em um aspecto poreacutem feio em outro aspecto (οὐ τῇ microὲν

καλόν τῇ δ αἰσχρόν)

2) belo em um determinado momento poreacutem feio em outro momento

(οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ)

3) belo em relaccedilatildeo a certas coisas poreacutem feio em relaccedilatildeo a outras

(οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν)

4) belo em um determinado local poreacutem feio em outro sendo belo

para uns e feio para outros (οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν

ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν)

Por natildeo estar sujeita a estas qualificaccedilotildees a Forma do Belo eacute caracterizada

como aquela entidade sobre a qual eacute sempre verdadeiro afirmar que ela eacute bela

Esta estabilidade no modo de ser das Formas eacute ressaltada por meio do emprego do

adjetivo microονοειδὲς que etimologicamente deve ser traduzido por ldquouniformerdquo mas

pode ter seu sentido exprimido pela locuccedilatildeo ldquouacutenico em aspectordquo Como explica

Diotima a unidade aspectual da Forma do Belo encontra-se em ela ser

exclusivamente bela natildeo se mostrando nunca feia (ou natildeo-bela) e estando imune a

qualquer tipo de perspectivismo ou relativismo

No decorrer deste capiacutetulo veremos que o termo microονοειδὲς eacute parte do

vocabulaacuterio teacutecnico da Teoria das Ideias e reapareceraacute no Feacutedon (78b4) como uma

expressatildeo cristalizada para indicar que a Forma F (Belo Justo Grande Pequeno

etc) eacute uacutenica e invariavelmente F (bela justa grande pequena etc) o que a

torna um tipo de entidade fundamentalmente distinta dos diversos particulares

sensiacuteveis que evidentemente possuem uma diversidade de aspectos e estatildeo

sujeitos a uma multiplicidade de predicaccedilotildees muitas delas contraacuterias entre si

Este mesmo fato ontoloacutegico estaacute relacionado agrave caracterizaccedilatildeo das Formas

9 cf Eut 6d10 Hipp Ma 286d8 288a9 289c3 292c3

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como ἐκεῖνο ὃ ἔστι Como vimos no Liacutesis esta expressatildeo eacute usada para diferenciar

as diversas coisas amadas-em-vista-de-outra-coisa do πρῶτον φίλον uacutenica

entidade amada em vista de si mesma Por natildeo ser amado de maneira relacional

em vista de outro objeto o πρῶτον φίλον eacute considerado a uacutenica entidade apta a

receber o predicado ldquoser-amadordquo de maneira sempre verdadeira (ἐκεῖνο τὸ

πρῶτον ὃ ὡς ἀληθῶς ἐστι φίλον Lis219d4-5) e portanto pode ser caracterizado

como ἐκεῖνο ὃ ἐστι φίλον No Banquete (211c7-d1) a locuccedilatildeo ἐκεῖνο ὃ ἔστι eacute

utilizada para explicar que o processo de revelaccedilatildeo ao qual o iniciado nas artes do

amor foi submetido ldquoacaba naquela ciecircncia que natildeo eacute ciecircncia de nada mais do que

daquele proacuteprio Belo e [o iniciado] termina por conhecer o que eacute belo [ou o que

Belo eacute] (ὃ ἔστι καλόν) rdquo10

Novamente o vocabulaacuterio relativo agrave formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias que

encontramos nos diaacutelogos da fase meacutedia se apresenta em completa continuidade

com a busca por definiccedilotildees dos diaacutelogos inicias A foacutermula ὃ ἔστι x natildeo passa da

inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι x que como vimos no capiacutetulo precedente

caracteriza a busca socraacutetica por definiccedilotildees Assim aquilo que soacute podiacuteamos

acessar indiretamente nos primeiros diaacutelogos nos eacute apresentado de maneira

expliacutecita nos diaacutelogos meacutedios e a busca socraacutetica expressa em questotildees do tipo ldquoo

que eacute belordquo (τί ἐστι καλόν) eacute diretamente solucionada pela identificaccedilatildeo da

Forma da Beleza como ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (ὃ ἔστι καλόν)

Em contraposiccedilatildeo agrave estabilidade ontoloacutegica do Belo que eacute sempre

unicamente belo somos levados a concluir que ldquotodas as outras coisas belasrdquo (τὰ

ἄλλα πάντα καλὰ) estatildeo sujeitas a uma ou a mais de uma das seguintes

indeterminaccedilotildees

1) Elas podem ser belas em um de seus aspectos poreacutem feias em

outro Por exemplo uma escultura pode ser bela em sua forma

poreacutem estar pintada com cores horrendas

10 Eacute importante notar que na locuccedilatildeo ὃ ἔστι καλόν o termo καλόν pode ocupar o lugar tanto de

sujeito quanto de predicado Na realidade isto natildeo se daacute por acaso e devemos considerar esta ambiguidade sintaacutetica como um resultado proposital do texto platocircnico Tal fato fica evidente quando notamos que apesar da foacutermula ὃ ἔστι F ser recorrentemente usada para designar as Formas nunca encontramos o termo seguinte ao verbo ἔστι introduzido por um artigo o que anularia a possibilidade de uma leitura predicativa (cf Kahn 2009 p80) Por meio deste artifiacutecio sintaacutetico Platatildeo pretende nos transmitir a ideia de que conhecer ldquoo que o Belo eacuterdquo (construccedilatildeo subjetiva) equivale a conhecer ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (construccedilatildeo predicativa)

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2) Elas podem ser belas em um momento poreacutem feias em outro Por

exemplo um Ipecirc pode ser belo na primavera quando em flor

poreacutem feio no inverno quando desfolhado

3) Elas podem ser belas quando comparadas a uma determinada coisa

poreacutem feias quando comparadas a outra Por exemplo a bela moccedila

descrita no Hiacuteppias Maior quando comparada a uma deusa deve

ser considerada feia

4) Elas podem ser belas em um determinado local poreacutem feias em

outro sendo belas para uns e feias para outros Por exemplo os

adornos de um iacutendio Xavante que satildeo belos para os membros de

sua tribo poreacutem feios para os frequentadores da feira de moda de

Milatildeo

Ora como todo objeto sensiacutevel possui uma multiplicidade de aspectos e

caracteriacutesticas eacute plenamente possiacutevel e ateacute mesmo esperado que estas entidades

sejam belas em um de seus aspectos e feias em outros Todo objeto sensiacutevel

possui por exemplo um formato uma cor um odor uma textura etc Sendo

assim devemos considerar natural o fato de que um mesmo objeto julgado belo

em sua forma possa natildeo parecer belo em sua cor ou em um outro aspecto

qualquer Note que o mesmo raciociacutenio vale para as accedilotildees que os interlocutores de

Soacutecrates oferecem como exemplos de virtudes nos diaacutelogos inicias Acusar

publicamente o seu proacuteprio pai pode ser um ato pio quando considerado a partir

dos aspectos legais de persecuccedilatildeo religiosa conforme argumenta Ecircutifron Poreacutem

quando analisado agrave luz dos laccedilos de consanguinidade e reverecircncia familiar este

mesmo ato eacute certamente um exemplo de impiedade

Do mesmo modo devido ao fato de todas as entidades sensiacuteveis estarem

sujeitas agrave passagem do tempo podemos considerar inevitaacutevel que coisas ou atos

considerados belos hoje deixaratildeo de secirc-lo em algum momento futuro ou mesmo

que natildeo tenham sido belos em algum instante do passado Um belo cavalo hoje

deixaraacute de ser belo quando velho ou morto e a escravizaccedilatildeo de um inimigo

derrotado em batalha considerada uma accedilatildeo justa em um passado natildeo muito

remoto eacute certamente julgada uma grande injusticcedila nos dias de hoje Estes poucos

exemplos satildeo suficientes para concluirmos que os dois primeiros itens da

enumeraccedilatildeo de Diotima representam casos plenamente compreensiacuteveis de

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diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel

Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as

entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves

diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas

No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros

de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente

justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto

Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua

sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com

Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os

exemplos acima mencionados

Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso

Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria

em a partir de

1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z

inferir

2) x eacute belo e natildeo belo

Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel

de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x

estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a

donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo

indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente

incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo

parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que

Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma

deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar

em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade

da sentenccedila

1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z

concluir que

2) x eacute belo e natildeo belo

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Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por

Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o

aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute

adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado

incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum

e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute

(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo

Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se

comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na

formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a

propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da

propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um

objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto

represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo

A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os

complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados

completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo

ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E

o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente

equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter

Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo

primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos

ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e

convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e

incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de

argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto

de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca

agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo

piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)

Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e

relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo

um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por

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meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como

veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados

incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates

para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o

modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em

mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que

argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar

entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias

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32 A inteligibilidade das Formas

Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica

da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter

inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo

estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu

discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar

esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela

razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo

Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o

Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com

aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)

Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da

Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido

apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um

caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma

passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender

que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo

(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem

esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de

Diotima

Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira

caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter

inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de

Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema

principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates

iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal

sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma

existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os

objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma

imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve

temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo

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conhecimento

As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando

Soacutecrates pergunta a Simmias

ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)

A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando

no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo

(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em

seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da

Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da

primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na

resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente

familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio

relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a

sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει

ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a

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expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na

qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso

sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde

diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das

expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de

designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do

personagem Simmias com a Teoria das Ideias13

A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates

afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das

expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por

meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal

afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em

busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a

mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que

tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos

De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir

esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das

belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave

vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo

natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave

espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber

informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas

Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este

ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar

11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a

given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)

12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico

13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades

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abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo

apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria

reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre

Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os

objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ

αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres

(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)

14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o

sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico

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33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis

A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute

particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua

exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates

desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar

como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos

oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo

(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente

traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas

natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os

oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis

enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo

assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las

conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um

momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o

intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel

Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui

algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem

argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como

move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas

por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos

tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a

possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas

simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa

condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento

(cf Bostock 1983 p60-63)

Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a

estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas

por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si

mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo

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de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e

74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates

pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras

Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos

sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos

objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode

ser esquematizado da seguinte maneira

1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada

propriedade P

2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P

3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a

mesma coisa

Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem

causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto

textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo

conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual

propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo

pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do

que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute

muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa

depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala

Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias

ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo

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Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)

Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a

existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da

Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo

afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de

que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais

a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo

ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto

certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na

conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes

de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural

devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados

para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )

enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)

Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as

ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo

tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo

parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo

Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com

tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf

Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como

ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p

134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que

chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor

exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente

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pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato

devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que

dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo

assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por

Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15

A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os

problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua

grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura

1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo

verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os

mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais

para outra pessoardquo

2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo

relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila

estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira

iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes

iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo

3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste

caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora

permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um

aspecto e desiguais em outro aspectordquo

As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo

com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada

pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da

Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura

parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o

mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para

um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a

15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees

estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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παιδαρίου ὁ αὐτὸς λέγεται ἕως ἂν πρεσβύτης γένηται οὗτος microέντοι οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ ὅmicroως ὁ αὐτὸς καλεῖται ἀλλὰ νέος ἀεὶ γιγνόmicroενος τὰ δὲ ἀπολλύς καὶ κατὰ τὰς τρίχας καὶ σάρκα καὶ ὀστᾶ καὶ αἷmicroα καὶ σύmicroπαν τὸ σῶmicroα καὶ microὴ ὅτι κατὰ τὸ σῶmicroα ἀλλὰ καὶ κατὰ τὴν ψυχὴν οἱ τρόποι τὰ ἤθη δόξαι ἐπιθυmicroίαι ἡδοναί λῦπαι φόβοι τούτων ἕκαστα οὐδέποτε τὰ αὐτὰ πάρεστιν ἑκάστῳ ἀλλὰ τὰ microὲν γίγνεται τὰ δὲ ἀπόλλυται (207d4-e5)

De acordo com as liccedilotildees de Diotima eacute na tentativa de superar esta

impermanecircncia inerente a tudo aquilo que eacute mortal que os animais bestas e

homens se lanccedilam com ardor no desejo de procriaccedilatildeo Afinal ldquoeacute deste modo que

tudo o que eacute mortal se conserva natildeo pelo fato de absolutamente ser sempre o

mesmo (οὐ τῷ παντάπασιν τὸ αὐτὸ ἀεὶ εἶναι) como o que eacute divino mas pelo fato

daquele que parte e envelhece deixar um outro ser novo tal como ele erardquo

(208a7-b2) Assim Soacutecrates contrasta a inconstacircncia daquilo que eacute mortal apenas

dito o mesmo (ὁ αὐτὸς καλεῖται) poreacutem ldquosem possuir jamais em si as mesmas

coisasrdquo (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) com a permanecircncia do que eacute imortal

(ἀθάνατον 208b4) que ldquoeacute absolutamente sempre o mesmordquo (παντάπασιν τὸ αὐτὸ

ἀεὶ εἶναι)

Os ouvintes de Soacutecrates tal como aquele que estaacute lendo o diaacutelogo pela

primeira vez natildeo reconhecem nesta comparaccedilatildeo entre o modo de existecircncia dos

seres mortais e modo de existecircncia do seres imortais o contraste entre Formas e

coisas que seraacute revelado ao final do discurso Contudo um leitor habituado ao

modo de escrita platocircnico pode facilmente identificar nesta fala uma antecipaccedilatildeo

da comparaccedilatildeo entre o modo de existecircncia das coisas belas sensiacuteveis e o modo de

existecircncia do Belo Este leitor seraacute capaz de reconhecer que o adjetivo ldquoimortalrdquo

(ἀθάνατον) utilizado na passagem acima citada como sinocircnimo de ldquodivinordquo

(θεῖον) natildeo se refere apenas aos deuses mas inclui em seu campo de aplicaccedilatildeo a

proacutepria Forma do Belo que como seraacute elucidado ao final do discurso tambeacutem ldquoeacute

para semprerdquo (ἀεὶ ὂν 211a1) Deste modo a relaccedilatildeo mortalimortal facilmente

compreensiacutevel para os representantes da elite cultural ateniense presentes no

banquete eacute utilizada para introduzir a distinccedilatildeo entre o modo de ser das muacuteltiplas

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo

O caminho que leva agrave revelaccedilatildeo do Belo inicia-se com o reconhecimento

da unidade subjacente a tudo aquilo que eacute belo em um movimento facilmente

identificaacutevel por um leitor familiarizado com a argumentaccedilatildeo dos diaacutelogos de

primeira fase O iniciado nas artes do amor (τὰ ἐρωτικὰ) comeccedilaraacute por amar a um

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soacute belo corpo e como resultado deste amor engendraraacute belos discursos Em

seguida ele seraacute levado a reconhecer que a beleza que reside em um corpo

qualquer eacute irmatilde (ἀδελφόν) da que estaacute em outro belo corpo e que portanto ldquoseria

muita tolice natildeo considerar uma soacute e a mesma (ἕν τε καὶ ταὐτὸν) a beleza que

reside em todos os corposrdquo (210b2-3) Apoacutes este momento ele passaraacute a

considerar a beleza presente nas almas mais valiosa do que aquela presente nos

corpos e seraacute capaz de ldquocontemplar o belo nos costumes e nas leis e ver que em si

mesmo o belo eacute sempre semelhante a si mesmo (πᾶν αὐτὸ αὑτῷ συγγενές ἐστιν)rdquo

(210c3-5) Por fim ele veraacute a beleza tambeacutem nos diversos ramos da ciecircncias

(ἐπιστηmicroῶν) ateacute que ldquoolhando agora para o belo nesta multiplicidade deixe de

amar como um escravo a beleza de um soacute jovem homem ou costume (hellip) e

contemple ele uma certa ciecircncia uacutenica tal que seu objeto eacute Belezardquo (210d1-e1)

Apesar do caraacuteter miacutestico-religioso5 do discurso de Diotima natildeo possuir

precedentes nos diaacutelogos da primeira fase podemos reconhecer no percurso de

ascensatildeo do iniciado nos ensinamentos do amor a busca pela unidade do εἶδος

que encontramos nos diaacutelogos definicionais Da mesma maneira que Laacuteques eacute

instigado por Soacutecrates a buscar ldquoaquilo que eacute idecircntico em todos os casos de

coragemrdquo (ἐν πᾶσι τούτοις ταὐτόν ἐστιν Laq191e4-11) e Ecircutifron a apresentar ldquoa

piedade ela mesma que eacute idecircntica a si mesma em toda accedilatildeo piedosardquo (ταὐτόν

ἐστιν ἐν πάσῃ πράξει τὸ ὅσιον αὐτὸ αὑτῷ Eut5d1-2)6 o iniciado nas artes do

amor eacute levado a reconhecer que a beleza que reside em tudo aquilo que eacute belo eacute

ldquouma soacute e a mesmardquo (ἕν τε καὶ ταὐτὸν) Ele enfim concluiraacute que ldquoem si mesmo o

belo eacute sempre semelhante a si mesmordquo (αὐτὸ αὑτῷ συγγενές ἐστιν) Pois apesar

de pertencerem a niacuteveis distintos na escala de revelaccedilatildeo dos misteacuterios do amor

sendo cada estaacutegio superior ao precedente o belo do corpo o belo da alma dos

costumes e das ciecircncias eacute o mesmo na medida em que todas estas coisas

participam (πάντα καλὰ microετέχοντα) do Belo em si Forma uacutenica e causa universal

de tudo aquilo que eacute belo

Assim ldquoaquele que tenha contemplado na sua ordem e sucessatildeo correta

as coisas belas chegando ao teacutermino dos ensinamentos concernentes agraves coisas do

amor subitamente enxergaraacute algo maravilhosamente belo por naturezardquo

5 Este caraacutete estaacute expesso textualmente pelo uso de um vocabulaacuterio fortemente inspirado nos misteacuterios e ritos de iniciaccedilatildeo da religiatildeo grega (cf Brisson 2007 p66-71) 6 Compare ainda com o uso de τι τὸ αὐτὸ e τὸ κοινὸν τοῦτο em HippMa 300a-b e Men

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(θεώmicroενος ἐφεξῆς τε καὶ ὀρθῶς τὰ καλά πρὸς τέλος ἤδη ἰὼν τῶν ἐρωτικῶν

ἐξαίφνης κατόψεταί τι θαυmicroαστὸν τὴν φύσιν καλόν 210e3-5) A partir desta

sentenccedila a prosa platocircnica repentinamente adquire a cadecircncia dos ditirambos agrave

maneira das odes entoadas pelos coros das trageacutedias (cf Allen 1991 p82) e

Soacutecrates inicia uma descriccedilatildeo das caracteriacutesticas ontoloacutegicas deste Belo em si

objetivo uacuteltimo da revelaccedilatildeo dos misteacuterios de Eros ldquoem vista do qual todos os

esforccedilos anteriores foram realizadosrdquo (οὗ δὴ ἕνεκεν καὶ οἱ ἔmicroπροσθεν πάντες

πόνοι ἦσαν)

ldquoprimeiramente eacute para sempre natildeo nascendo nem perecendo natildeo crescendo nem decrescendo depois natildeo eacute belo de um jeito7 e feio de outro nem ora belo e ora feio nem quanto a isso belo e quanto agravequilo feio nem belo aqui e feio ali como se a alguns fosse belo e a outros feio tampouco apareceraacute o Belo como um rosto ou matildeos nem como nada que pertence ao corpo nem como algum discurso ou alguma ciecircncia tambeacutem natildeo seraacute situado em uma outra coisa como em algum animal da terra ou do ceacuteu ou em qualquer outra coisa ao contraacuterio apareceraacute ele mesmo por si mesmo consigo mesmo sendo sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν) enquanto todas as outras coisas belas dele participam de uma maneira tal que ao passo que tudo mais que eacute belo nasce e perece ele em nada fica maior ou menor nem nada sofrerdquo πρῶτον microὲν ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον ἔπειτα οὐ τῇ microὲν καλόν τῇ δ αἰσχρόν οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν οὐδ αὖ φαντασθήσεται αὐτῷ τὸ καλὸν οἷον πρόσωπόν τι οὐδὲ χεῖρες οὐδὲ ἄλλο οὐδὲν ὧν σῶmicroα microετέχει οὐδέ τις λόγος οὐδέ τις ἐπιστήmicroη οὐδέ που ὂν ἐν ἑτέρῳ τινι οἷον ἐν ζώῳ ἢ ἐν γῇ ἢ ἐν οὐρανῷ ἢ ἔν τῳ ἄλλῳ ἀλλ αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν τὰ δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα τρόπον τινὰ τοιοῦτον οἷον γιγνοmicroένων τε τῶν ἄλλων καὶ ἀπολλυmicroένων microηδὲν ἐκεῖνο microήτε τι πλέον microήτε ἔλαττον γίγνεσθαι microηδὲ πάσχειν microηδέν (211a1-b5)

De todo o corpus platocircnico esta passagem pode ser considerada aquela em

que a ontologia das Formas eacute apresentada de maneira mais densa e direta Focada

na descriccedilatildeo de uma uacutenica Forma a revelaccedilatildeo final de Diotima apresenta de uma

soacute vez diversos temas da ontologia platocircnica A primeira caracteriacutestica atribuiacuteda

ao Belo ldquoser para sempre natildeo nascendo nem perecendordquo remete ao tradicional

contraste entre seres mortais e imortais evocado anteriormente Contudo Diotima

radicaliza ainda mais este contraste afirmando que a Forma do Belo natildeo apenas

ldquoeacute para semprerdquo (ἀεὶ ὂν) em um paralelo direto com a foacutermula homeacuterica para

72c 7 Para traduzaccedilatildeo de τῇ microὲν hellip τῇ δὲ (ldquodesta hellip daquela maneirardquo) (cf LSJ verbete o( A

VIII 1)

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imortalidade divina (qeoi ai)en e)ontej) como tambeacutem natildeo foi gerada nem eacute

passiacutevel de perecimento (οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον) Atraveacutes destas

determinaccedilotildees adicionais Diotima introduz um tipo de eternidade inerente agrave

Forma do Belo que ultrapassa em muito a imortalidade divina Pois como

sabemos pela Teogonia apesar de indestrutiacuteveis os deuses tiveram um momento

de nascimento A Forma do Belo por sua vez estaacute fora do tempo na medida em

que natildeo possui um momento de surgimento nem possuiraacute um momento de

destruiccedilatildeo8

Aleacutem de eternamente existente a Forma do Belo natildeo cresce nem diminui

(οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον) E enquanto as coisas belas nascem e perecem a

Forma do Belo permanece inafetada (πάσχειν microηδέν) sendo ela mesma por si

mesma consigo mesma sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς

ἀεὶ ὄν)

A foacutermula ldquoele mesmo por si mesmo consigo mesmordquo (αὐτὸ καθ αὑτὸ

microεθ αὑτοῦ) resume em si aquilo que estaacute expresso entre as linhas 211a5-b6 isto eacute

o fato de que a Forma do Belo natildeo pode ser confundida com a beleza que

encontramos nas coisas sensiacuteveis (matildeos rostos partes dos corpos discursos

ciecircncias animais da terra ou do ceacuteu ou qualquer outra coisa) pois eacute uma entidade

independente e separada destas coisas A estrutura reflexiva da expressatildeo αὐτὸ

καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ pretende sublinhar a independecircncia ontoloacutegica do Belo que

eacute ldquoem si e por sirdquo e portanto natildeo depende dos objetos sensiacuteveis para existir e ser

aquilo que ela eacute Os objetos belos sensiacuteveis por outro lado satildeo ontologicamente

dependentes e necessitam da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo no Belo para serem belos (τὰ

δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα) A unidade entre a argumentaccedilatildeo dos

primeiros diaacutelogos e a revelaccedilatildeo de Diotima se torna evidente quando lembramos

que a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ natildeo passa de uma intensificaccedilatildeo da

foacutermula αὐτὸ τὸ εἶδος utilizada por Soacutecrates nos primeiros diaacutelogos9 para

expressar exatamente o mesmo aspecto de sua teoria

Aleacutem de eternamente existente e ontologicamente independente o Belo

caracteriza-se por estar isento de qualquer mudanccedila sendo de maneira fixa e

8 De fato como observam Sprague (1971) e Solmsen (1971) a eternidade do Belo possui como

paralelo apenas o Ser de Parmecircnides e podemos ateacute considerar intencional a referecircncia ao poema parmeniacutedico nas palavras de Diotima Compare a foacutermula utilizada por Diotima para expressar a eternidade do Belo ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον com as palavras utilizadas por Parmenides ὡς ἀγένητον ἐὸν καὶ ἀνώλεθρόν ἐστιν (Frag B83)

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invariaacutevel aquilo que ele eacute Podemos descrever esta caracteriacutestica como a

estabilidade ontoloacutegica do Belo e tal qualidade distintiva eacute expressa por Diotima

por meio da enumeraccedilatildeo das diferentes maneiras em que esta Forma poderia

deixar de ser bela caso fosse apenas mais uma entidade sensiacutevel Assim Diotima

nos explica que o Belo natildeo eacute

1) belo em um aspecto poreacutem feio em outro aspecto (οὐ τῇ microὲν

καλόν τῇ δ αἰσχρόν)

2) belo em um determinado momento poreacutem feio em outro momento

(οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ)

3) belo em relaccedilatildeo a certas coisas poreacutem feio em relaccedilatildeo a outras

(οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν)

4) belo em um determinado local poreacutem feio em outro sendo belo

para uns e feio para outros (οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν

ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν)

Por natildeo estar sujeita a estas qualificaccedilotildees a Forma do Belo eacute caracterizada

como aquela entidade sobre a qual eacute sempre verdadeiro afirmar que ela eacute bela

Esta estabilidade no modo de ser das Formas eacute ressaltada por meio do emprego do

adjetivo microονοειδὲς que etimologicamente deve ser traduzido por ldquouniformerdquo mas

pode ter seu sentido exprimido pela locuccedilatildeo ldquouacutenico em aspectordquo Como explica

Diotima a unidade aspectual da Forma do Belo encontra-se em ela ser

exclusivamente bela natildeo se mostrando nunca feia (ou natildeo-bela) e estando imune a

qualquer tipo de perspectivismo ou relativismo

No decorrer deste capiacutetulo veremos que o termo microονοειδὲς eacute parte do

vocabulaacuterio teacutecnico da Teoria das Ideias e reapareceraacute no Feacutedon (78b4) como uma

expressatildeo cristalizada para indicar que a Forma F (Belo Justo Grande Pequeno

etc) eacute uacutenica e invariavelmente F (bela justa grande pequena etc) o que a

torna um tipo de entidade fundamentalmente distinta dos diversos particulares

sensiacuteveis que evidentemente possuem uma diversidade de aspectos e estatildeo

sujeitos a uma multiplicidade de predicaccedilotildees muitas delas contraacuterias entre si

Este mesmo fato ontoloacutegico estaacute relacionado agrave caracterizaccedilatildeo das Formas

9 cf Eut 6d10 Hipp Ma 286d8 288a9 289c3 292c3

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como ἐκεῖνο ὃ ἔστι Como vimos no Liacutesis esta expressatildeo eacute usada para diferenciar

as diversas coisas amadas-em-vista-de-outra-coisa do πρῶτον φίλον uacutenica

entidade amada em vista de si mesma Por natildeo ser amado de maneira relacional

em vista de outro objeto o πρῶτον φίλον eacute considerado a uacutenica entidade apta a

receber o predicado ldquoser-amadordquo de maneira sempre verdadeira (ἐκεῖνο τὸ

πρῶτον ὃ ὡς ἀληθῶς ἐστι φίλον Lis219d4-5) e portanto pode ser caracterizado

como ἐκεῖνο ὃ ἐστι φίλον No Banquete (211c7-d1) a locuccedilatildeo ἐκεῖνο ὃ ἔστι eacute

utilizada para explicar que o processo de revelaccedilatildeo ao qual o iniciado nas artes do

amor foi submetido ldquoacaba naquela ciecircncia que natildeo eacute ciecircncia de nada mais do que

daquele proacuteprio Belo e [o iniciado] termina por conhecer o que eacute belo [ou o que

Belo eacute] (ὃ ἔστι καλόν) rdquo10

Novamente o vocabulaacuterio relativo agrave formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias que

encontramos nos diaacutelogos da fase meacutedia se apresenta em completa continuidade

com a busca por definiccedilotildees dos diaacutelogos inicias A foacutermula ὃ ἔστι x natildeo passa da

inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι x que como vimos no capiacutetulo precedente

caracteriza a busca socraacutetica por definiccedilotildees Assim aquilo que soacute podiacuteamos

acessar indiretamente nos primeiros diaacutelogos nos eacute apresentado de maneira

expliacutecita nos diaacutelogos meacutedios e a busca socraacutetica expressa em questotildees do tipo ldquoo

que eacute belordquo (τί ἐστι καλόν) eacute diretamente solucionada pela identificaccedilatildeo da

Forma da Beleza como ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (ὃ ἔστι καλόν)

Em contraposiccedilatildeo agrave estabilidade ontoloacutegica do Belo que eacute sempre

unicamente belo somos levados a concluir que ldquotodas as outras coisas belasrdquo (τὰ

ἄλλα πάντα καλὰ) estatildeo sujeitas a uma ou a mais de uma das seguintes

indeterminaccedilotildees

1) Elas podem ser belas em um de seus aspectos poreacutem feias em

outro Por exemplo uma escultura pode ser bela em sua forma

poreacutem estar pintada com cores horrendas

10 Eacute importante notar que na locuccedilatildeo ὃ ἔστι καλόν o termo καλόν pode ocupar o lugar tanto de

sujeito quanto de predicado Na realidade isto natildeo se daacute por acaso e devemos considerar esta ambiguidade sintaacutetica como um resultado proposital do texto platocircnico Tal fato fica evidente quando notamos que apesar da foacutermula ὃ ἔστι F ser recorrentemente usada para designar as Formas nunca encontramos o termo seguinte ao verbo ἔστι introduzido por um artigo o que anularia a possibilidade de uma leitura predicativa (cf Kahn 2009 p80) Por meio deste artifiacutecio sintaacutetico Platatildeo pretende nos transmitir a ideia de que conhecer ldquoo que o Belo eacuterdquo (construccedilatildeo subjetiva) equivale a conhecer ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (construccedilatildeo predicativa)

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2) Elas podem ser belas em um momento poreacutem feias em outro Por

exemplo um Ipecirc pode ser belo na primavera quando em flor

poreacutem feio no inverno quando desfolhado

3) Elas podem ser belas quando comparadas a uma determinada coisa

poreacutem feias quando comparadas a outra Por exemplo a bela moccedila

descrita no Hiacuteppias Maior quando comparada a uma deusa deve

ser considerada feia

4) Elas podem ser belas em um determinado local poreacutem feias em

outro sendo belas para uns e feias para outros Por exemplo os

adornos de um iacutendio Xavante que satildeo belos para os membros de

sua tribo poreacutem feios para os frequentadores da feira de moda de

Milatildeo

Ora como todo objeto sensiacutevel possui uma multiplicidade de aspectos e

caracteriacutesticas eacute plenamente possiacutevel e ateacute mesmo esperado que estas entidades

sejam belas em um de seus aspectos e feias em outros Todo objeto sensiacutevel

possui por exemplo um formato uma cor um odor uma textura etc Sendo

assim devemos considerar natural o fato de que um mesmo objeto julgado belo

em sua forma possa natildeo parecer belo em sua cor ou em um outro aspecto

qualquer Note que o mesmo raciociacutenio vale para as accedilotildees que os interlocutores de

Soacutecrates oferecem como exemplos de virtudes nos diaacutelogos inicias Acusar

publicamente o seu proacuteprio pai pode ser um ato pio quando considerado a partir

dos aspectos legais de persecuccedilatildeo religiosa conforme argumenta Ecircutifron Poreacutem

quando analisado agrave luz dos laccedilos de consanguinidade e reverecircncia familiar este

mesmo ato eacute certamente um exemplo de impiedade

Do mesmo modo devido ao fato de todas as entidades sensiacuteveis estarem

sujeitas agrave passagem do tempo podemos considerar inevitaacutevel que coisas ou atos

considerados belos hoje deixaratildeo de secirc-lo em algum momento futuro ou mesmo

que natildeo tenham sido belos em algum instante do passado Um belo cavalo hoje

deixaraacute de ser belo quando velho ou morto e a escravizaccedilatildeo de um inimigo

derrotado em batalha considerada uma accedilatildeo justa em um passado natildeo muito

remoto eacute certamente julgada uma grande injusticcedila nos dias de hoje Estes poucos

exemplos satildeo suficientes para concluirmos que os dois primeiros itens da

enumeraccedilatildeo de Diotima representam casos plenamente compreensiacuteveis de

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diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel

Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as

entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves

diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas

No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros

de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente

justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto

Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua

sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com

Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os

exemplos acima mencionados

Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso

Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria

em a partir de

1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z

inferir

2) x eacute belo e natildeo belo

Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel

de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x

estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a

donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo

indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente

incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo

parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que

Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma

deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar

em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade

da sentenccedila

1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z

concluir que

2) x eacute belo e natildeo belo

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Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por

Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o

aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute

adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado

incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum

e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute

(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo

Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se

comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na

formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a

propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da

propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um

objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto

represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo

A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os

complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados

completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo

ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E

o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente

equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter

Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo

primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos

ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e

convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e

incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de

argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto

de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca

agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo

piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)

Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e

relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo

um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por

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meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como

veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados

incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates

para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o

modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em

mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que

argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar

entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias

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32 A inteligibilidade das Formas

Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica

da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter

inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo

estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu

discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar

esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela

razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo

Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o

Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com

aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)

Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da

Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido

apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um

caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma

passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender

que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo

(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem

esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de

Diotima

Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira

caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter

inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de

Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema

principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates

iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal

sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma

existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os

objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma

imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve

temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo

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conhecimento

As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando

Soacutecrates pergunta a Simmias

ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)

A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando

no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo

(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em

seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da

Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da

primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na

resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente

familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio

relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a

sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει

ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a

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expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na

qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso

sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde

diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das

expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de

designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do

personagem Simmias com a Teoria das Ideias13

A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates

afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das

expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por

meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal

afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em

busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a

mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que

tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos

De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir

esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das

belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave

vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo

natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave

espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber

informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas

Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este

ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar

11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a

given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)

12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico

13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades

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abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo

apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria

reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre

Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os

objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ

αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres

(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)

14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o

sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico

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33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis

A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute

particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua

exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates

desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar

como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos

oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo

(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente

traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas

natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os

oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis

enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo

assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las

conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um

momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o

intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel

Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui

algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem

argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como

move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas

por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos

tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a

possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas

simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa

condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento

(cf Bostock 1983 p60-63)

Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a

estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas

por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si

mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo

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de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e

74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates

pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras

Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos

sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos

objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode

ser esquematizado da seguinte maneira

1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada

propriedade P

2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P

3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a

mesma coisa

Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem

causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto

textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo

conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual

propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo

pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do

que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute

muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa

depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala

Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias

ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo

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Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)

Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a

existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da

Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo

afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de

que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais

a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo

ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto

certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na

conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes

de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural

devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados

para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )

enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)

Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as

ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo

tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo

parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo

Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com

tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf

Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como

ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p

134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que

chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor

exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente

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pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato

devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que

dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo

assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por

Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15

A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os

problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua

grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura

1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo

verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os

mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais

para outra pessoardquo

2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo

relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila

estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira

iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes

iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo

3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste

caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora

permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um

aspecto e desiguais em outro aspectordquo

As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo

com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada

pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da

Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura

parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o

mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para

um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a

15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees

estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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soacute belo corpo e como resultado deste amor engendraraacute belos discursos Em

seguida ele seraacute levado a reconhecer que a beleza que reside em um corpo

qualquer eacute irmatilde (ἀδελφόν) da que estaacute em outro belo corpo e que portanto ldquoseria

muita tolice natildeo considerar uma soacute e a mesma (ἕν τε καὶ ταὐτὸν) a beleza que

reside em todos os corposrdquo (210b2-3) Apoacutes este momento ele passaraacute a

considerar a beleza presente nas almas mais valiosa do que aquela presente nos

corpos e seraacute capaz de ldquocontemplar o belo nos costumes e nas leis e ver que em si

mesmo o belo eacute sempre semelhante a si mesmo (πᾶν αὐτὸ αὑτῷ συγγενές ἐστιν)rdquo

(210c3-5) Por fim ele veraacute a beleza tambeacutem nos diversos ramos da ciecircncias

(ἐπιστηmicroῶν) ateacute que ldquoolhando agora para o belo nesta multiplicidade deixe de

amar como um escravo a beleza de um soacute jovem homem ou costume (hellip) e

contemple ele uma certa ciecircncia uacutenica tal que seu objeto eacute Belezardquo (210d1-e1)

Apesar do caraacuteter miacutestico-religioso5 do discurso de Diotima natildeo possuir

precedentes nos diaacutelogos da primeira fase podemos reconhecer no percurso de

ascensatildeo do iniciado nos ensinamentos do amor a busca pela unidade do εἶδος

que encontramos nos diaacutelogos definicionais Da mesma maneira que Laacuteques eacute

instigado por Soacutecrates a buscar ldquoaquilo que eacute idecircntico em todos os casos de

coragemrdquo (ἐν πᾶσι τούτοις ταὐτόν ἐστιν Laq191e4-11) e Ecircutifron a apresentar ldquoa

piedade ela mesma que eacute idecircntica a si mesma em toda accedilatildeo piedosardquo (ταὐτόν

ἐστιν ἐν πάσῃ πράξει τὸ ὅσιον αὐτὸ αὑτῷ Eut5d1-2)6 o iniciado nas artes do

amor eacute levado a reconhecer que a beleza que reside em tudo aquilo que eacute belo eacute

ldquouma soacute e a mesmardquo (ἕν τε καὶ ταὐτὸν) Ele enfim concluiraacute que ldquoem si mesmo o

belo eacute sempre semelhante a si mesmordquo (αὐτὸ αὑτῷ συγγενές ἐστιν) Pois apesar

de pertencerem a niacuteveis distintos na escala de revelaccedilatildeo dos misteacuterios do amor

sendo cada estaacutegio superior ao precedente o belo do corpo o belo da alma dos

costumes e das ciecircncias eacute o mesmo na medida em que todas estas coisas

participam (πάντα καλὰ microετέχοντα) do Belo em si Forma uacutenica e causa universal

de tudo aquilo que eacute belo

Assim ldquoaquele que tenha contemplado na sua ordem e sucessatildeo correta

as coisas belas chegando ao teacutermino dos ensinamentos concernentes agraves coisas do

amor subitamente enxergaraacute algo maravilhosamente belo por naturezardquo

5 Este caraacutete estaacute expesso textualmente pelo uso de um vocabulaacuterio fortemente inspirado nos misteacuterios e ritos de iniciaccedilatildeo da religiatildeo grega (cf Brisson 2007 p66-71) 6 Compare ainda com o uso de τι τὸ αὐτὸ e τὸ κοινὸν τοῦτο em HippMa 300a-b e Men

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(θεώmicroενος ἐφεξῆς τε καὶ ὀρθῶς τὰ καλά πρὸς τέλος ἤδη ἰὼν τῶν ἐρωτικῶν

ἐξαίφνης κατόψεταί τι θαυmicroαστὸν τὴν φύσιν καλόν 210e3-5) A partir desta

sentenccedila a prosa platocircnica repentinamente adquire a cadecircncia dos ditirambos agrave

maneira das odes entoadas pelos coros das trageacutedias (cf Allen 1991 p82) e

Soacutecrates inicia uma descriccedilatildeo das caracteriacutesticas ontoloacutegicas deste Belo em si

objetivo uacuteltimo da revelaccedilatildeo dos misteacuterios de Eros ldquoem vista do qual todos os

esforccedilos anteriores foram realizadosrdquo (οὗ δὴ ἕνεκεν καὶ οἱ ἔmicroπροσθεν πάντες

πόνοι ἦσαν)

ldquoprimeiramente eacute para sempre natildeo nascendo nem perecendo natildeo crescendo nem decrescendo depois natildeo eacute belo de um jeito7 e feio de outro nem ora belo e ora feio nem quanto a isso belo e quanto agravequilo feio nem belo aqui e feio ali como se a alguns fosse belo e a outros feio tampouco apareceraacute o Belo como um rosto ou matildeos nem como nada que pertence ao corpo nem como algum discurso ou alguma ciecircncia tambeacutem natildeo seraacute situado em uma outra coisa como em algum animal da terra ou do ceacuteu ou em qualquer outra coisa ao contraacuterio apareceraacute ele mesmo por si mesmo consigo mesmo sendo sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν) enquanto todas as outras coisas belas dele participam de uma maneira tal que ao passo que tudo mais que eacute belo nasce e perece ele em nada fica maior ou menor nem nada sofrerdquo πρῶτον microὲν ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον ἔπειτα οὐ τῇ microὲν καλόν τῇ δ αἰσχρόν οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν οὐδ αὖ φαντασθήσεται αὐτῷ τὸ καλὸν οἷον πρόσωπόν τι οὐδὲ χεῖρες οὐδὲ ἄλλο οὐδὲν ὧν σῶmicroα microετέχει οὐδέ τις λόγος οὐδέ τις ἐπιστήmicroη οὐδέ που ὂν ἐν ἑτέρῳ τινι οἷον ἐν ζώῳ ἢ ἐν γῇ ἢ ἐν οὐρανῷ ἢ ἔν τῳ ἄλλῳ ἀλλ αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν τὰ δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα τρόπον τινὰ τοιοῦτον οἷον γιγνοmicroένων τε τῶν ἄλλων καὶ ἀπολλυmicroένων microηδὲν ἐκεῖνο microήτε τι πλέον microήτε ἔλαττον γίγνεσθαι microηδὲ πάσχειν microηδέν (211a1-b5)

De todo o corpus platocircnico esta passagem pode ser considerada aquela em

que a ontologia das Formas eacute apresentada de maneira mais densa e direta Focada

na descriccedilatildeo de uma uacutenica Forma a revelaccedilatildeo final de Diotima apresenta de uma

soacute vez diversos temas da ontologia platocircnica A primeira caracteriacutestica atribuiacuteda

ao Belo ldquoser para sempre natildeo nascendo nem perecendordquo remete ao tradicional

contraste entre seres mortais e imortais evocado anteriormente Contudo Diotima

radicaliza ainda mais este contraste afirmando que a Forma do Belo natildeo apenas

ldquoeacute para semprerdquo (ἀεὶ ὂν) em um paralelo direto com a foacutermula homeacuterica para

72c 7 Para traduzaccedilatildeo de τῇ microὲν hellip τῇ δὲ (ldquodesta hellip daquela maneirardquo) (cf LSJ verbete o( A

VIII 1)

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imortalidade divina (qeoi ai)en e)ontej) como tambeacutem natildeo foi gerada nem eacute

passiacutevel de perecimento (οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον) Atraveacutes destas

determinaccedilotildees adicionais Diotima introduz um tipo de eternidade inerente agrave

Forma do Belo que ultrapassa em muito a imortalidade divina Pois como

sabemos pela Teogonia apesar de indestrutiacuteveis os deuses tiveram um momento

de nascimento A Forma do Belo por sua vez estaacute fora do tempo na medida em

que natildeo possui um momento de surgimento nem possuiraacute um momento de

destruiccedilatildeo8

Aleacutem de eternamente existente a Forma do Belo natildeo cresce nem diminui

(οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον) E enquanto as coisas belas nascem e perecem a

Forma do Belo permanece inafetada (πάσχειν microηδέν) sendo ela mesma por si

mesma consigo mesma sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς

ἀεὶ ὄν)

A foacutermula ldquoele mesmo por si mesmo consigo mesmordquo (αὐτὸ καθ αὑτὸ

microεθ αὑτοῦ) resume em si aquilo que estaacute expresso entre as linhas 211a5-b6 isto eacute

o fato de que a Forma do Belo natildeo pode ser confundida com a beleza que

encontramos nas coisas sensiacuteveis (matildeos rostos partes dos corpos discursos

ciecircncias animais da terra ou do ceacuteu ou qualquer outra coisa) pois eacute uma entidade

independente e separada destas coisas A estrutura reflexiva da expressatildeo αὐτὸ

καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ pretende sublinhar a independecircncia ontoloacutegica do Belo que

eacute ldquoem si e por sirdquo e portanto natildeo depende dos objetos sensiacuteveis para existir e ser

aquilo que ela eacute Os objetos belos sensiacuteveis por outro lado satildeo ontologicamente

dependentes e necessitam da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo no Belo para serem belos (τὰ

δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα) A unidade entre a argumentaccedilatildeo dos

primeiros diaacutelogos e a revelaccedilatildeo de Diotima se torna evidente quando lembramos

que a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ natildeo passa de uma intensificaccedilatildeo da

foacutermula αὐτὸ τὸ εἶδος utilizada por Soacutecrates nos primeiros diaacutelogos9 para

expressar exatamente o mesmo aspecto de sua teoria

Aleacutem de eternamente existente e ontologicamente independente o Belo

caracteriza-se por estar isento de qualquer mudanccedila sendo de maneira fixa e

8 De fato como observam Sprague (1971) e Solmsen (1971) a eternidade do Belo possui como

paralelo apenas o Ser de Parmecircnides e podemos ateacute considerar intencional a referecircncia ao poema parmeniacutedico nas palavras de Diotima Compare a foacutermula utilizada por Diotima para expressar a eternidade do Belo ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον com as palavras utilizadas por Parmenides ὡς ἀγένητον ἐὸν καὶ ἀνώλεθρόν ἐστιν (Frag B83)

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invariaacutevel aquilo que ele eacute Podemos descrever esta caracteriacutestica como a

estabilidade ontoloacutegica do Belo e tal qualidade distintiva eacute expressa por Diotima

por meio da enumeraccedilatildeo das diferentes maneiras em que esta Forma poderia

deixar de ser bela caso fosse apenas mais uma entidade sensiacutevel Assim Diotima

nos explica que o Belo natildeo eacute

1) belo em um aspecto poreacutem feio em outro aspecto (οὐ τῇ microὲν

καλόν τῇ δ αἰσχρόν)

2) belo em um determinado momento poreacutem feio em outro momento

(οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ)

3) belo em relaccedilatildeo a certas coisas poreacutem feio em relaccedilatildeo a outras

(οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν)

4) belo em um determinado local poreacutem feio em outro sendo belo

para uns e feio para outros (οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν

ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν)

Por natildeo estar sujeita a estas qualificaccedilotildees a Forma do Belo eacute caracterizada

como aquela entidade sobre a qual eacute sempre verdadeiro afirmar que ela eacute bela

Esta estabilidade no modo de ser das Formas eacute ressaltada por meio do emprego do

adjetivo microονοειδὲς que etimologicamente deve ser traduzido por ldquouniformerdquo mas

pode ter seu sentido exprimido pela locuccedilatildeo ldquouacutenico em aspectordquo Como explica

Diotima a unidade aspectual da Forma do Belo encontra-se em ela ser

exclusivamente bela natildeo se mostrando nunca feia (ou natildeo-bela) e estando imune a

qualquer tipo de perspectivismo ou relativismo

No decorrer deste capiacutetulo veremos que o termo microονοειδὲς eacute parte do

vocabulaacuterio teacutecnico da Teoria das Ideias e reapareceraacute no Feacutedon (78b4) como uma

expressatildeo cristalizada para indicar que a Forma F (Belo Justo Grande Pequeno

etc) eacute uacutenica e invariavelmente F (bela justa grande pequena etc) o que a

torna um tipo de entidade fundamentalmente distinta dos diversos particulares

sensiacuteveis que evidentemente possuem uma diversidade de aspectos e estatildeo

sujeitos a uma multiplicidade de predicaccedilotildees muitas delas contraacuterias entre si

Este mesmo fato ontoloacutegico estaacute relacionado agrave caracterizaccedilatildeo das Formas

9 cf Eut 6d10 Hipp Ma 286d8 288a9 289c3 292c3

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como ἐκεῖνο ὃ ἔστι Como vimos no Liacutesis esta expressatildeo eacute usada para diferenciar

as diversas coisas amadas-em-vista-de-outra-coisa do πρῶτον φίλον uacutenica

entidade amada em vista de si mesma Por natildeo ser amado de maneira relacional

em vista de outro objeto o πρῶτον φίλον eacute considerado a uacutenica entidade apta a

receber o predicado ldquoser-amadordquo de maneira sempre verdadeira (ἐκεῖνο τὸ

πρῶτον ὃ ὡς ἀληθῶς ἐστι φίλον Lis219d4-5) e portanto pode ser caracterizado

como ἐκεῖνο ὃ ἐστι φίλον No Banquete (211c7-d1) a locuccedilatildeo ἐκεῖνο ὃ ἔστι eacute

utilizada para explicar que o processo de revelaccedilatildeo ao qual o iniciado nas artes do

amor foi submetido ldquoacaba naquela ciecircncia que natildeo eacute ciecircncia de nada mais do que

daquele proacuteprio Belo e [o iniciado] termina por conhecer o que eacute belo [ou o que

Belo eacute] (ὃ ἔστι καλόν) rdquo10

Novamente o vocabulaacuterio relativo agrave formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias que

encontramos nos diaacutelogos da fase meacutedia se apresenta em completa continuidade

com a busca por definiccedilotildees dos diaacutelogos inicias A foacutermula ὃ ἔστι x natildeo passa da

inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι x que como vimos no capiacutetulo precedente

caracteriza a busca socraacutetica por definiccedilotildees Assim aquilo que soacute podiacuteamos

acessar indiretamente nos primeiros diaacutelogos nos eacute apresentado de maneira

expliacutecita nos diaacutelogos meacutedios e a busca socraacutetica expressa em questotildees do tipo ldquoo

que eacute belordquo (τί ἐστι καλόν) eacute diretamente solucionada pela identificaccedilatildeo da

Forma da Beleza como ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (ὃ ἔστι καλόν)

Em contraposiccedilatildeo agrave estabilidade ontoloacutegica do Belo que eacute sempre

unicamente belo somos levados a concluir que ldquotodas as outras coisas belasrdquo (τὰ

ἄλλα πάντα καλὰ) estatildeo sujeitas a uma ou a mais de uma das seguintes

indeterminaccedilotildees

1) Elas podem ser belas em um de seus aspectos poreacutem feias em

outro Por exemplo uma escultura pode ser bela em sua forma

poreacutem estar pintada com cores horrendas

10 Eacute importante notar que na locuccedilatildeo ὃ ἔστι καλόν o termo καλόν pode ocupar o lugar tanto de

sujeito quanto de predicado Na realidade isto natildeo se daacute por acaso e devemos considerar esta ambiguidade sintaacutetica como um resultado proposital do texto platocircnico Tal fato fica evidente quando notamos que apesar da foacutermula ὃ ἔστι F ser recorrentemente usada para designar as Formas nunca encontramos o termo seguinte ao verbo ἔστι introduzido por um artigo o que anularia a possibilidade de uma leitura predicativa (cf Kahn 2009 p80) Por meio deste artifiacutecio sintaacutetico Platatildeo pretende nos transmitir a ideia de que conhecer ldquoo que o Belo eacuterdquo (construccedilatildeo subjetiva) equivale a conhecer ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (construccedilatildeo predicativa)

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2) Elas podem ser belas em um momento poreacutem feias em outro Por

exemplo um Ipecirc pode ser belo na primavera quando em flor

poreacutem feio no inverno quando desfolhado

3) Elas podem ser belas quando comparadas a uma determinada coisa

poreacutem feias quando comparadas a outra Por exemplo a bela moccedila

descrita no Hiacuteppias Maior quando comparada a uma deusa deve

ser considerada feia

4) Elas podem ser belas em um determinado local poreacutem feias em

outro sendo belas para uns e feias para outros Por exemplo os

adornos de um iacutendio Xavante que satildeo belos para os membros de

sua tribo poreacutem feios para os frequentadores da feira de moda de

Milatildeo

Ora como todo objeto sensiacutevel possui uma multiplicidade de aspectos e

caracteriacutesticas eacute plenamente possiacutevel e ateacute mesmo esperado que estas entidades

sejam belas em um de seus aspectos e feias em outros Todo objeto sensiacutevel

possui por exemplo um formato uma cor um odor uma textura etc Sendo

assim devemos considerar natural o fato de que um mesmo objeto julgado belo

em sua forma possa natildeo parecer belo em sua cor ou em um outro aspecto

qualquer Note que o mesmo raciociacutenio vale para as accedilotildees que os interlocutores de

Soacutecrates oferecem como exemplos de virtudes nos diaacutelogos inicias Acusar

publicamente o seu proacuteprio pai pode ser um ato pio quando considerado a partir

dos aspectos legais de persecuccedilatildeo religiosa conforme argumenta Ecircutifron Poreacutem

quando analisado agrave luz dos laccedilos de consanguinidade e reverecircncia familiar este

mesmo ato eacute certamente um exemplo de impiedade

Do mesmo modo devido ao fato de todas as entidades sensiacuteveis estarem

sujeitas agrave passagem do tempo podemos considerar inevitaacutevel que coisas ou atos

considerados belos hoje deixaratildeo de secirc-lo em algum momento futuro ou mesmo

que natildeo tenham sido belos em algum instante do passado Um belo cavalo hoje

deixaraacute de ser belo quando velho ou morto e a escravizaccedilatildeo de um inimigo

derrotado em batalha considerada uma accedilatildeo justa em um passado natildeo muito

remoto eacute certamente julgada uma grande injusticcedila nos dias de hoje Estes poucos

exemplos satildeo suficientes para concluirmos que os dois primeiros itens da

enumeraccedilatildeo de Diotima representam casos plenamente compreensiacuteveis de

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diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel

Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as

entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves

diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas

No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros

de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente

justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto

Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua

sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com

Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os

exemplos acima mencionados

Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso

Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria

em a partir de

1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z

inferir

2) x eacute belo e natildeo belo

Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel

de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x

estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a

donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo

indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente

incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo

parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que

Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma

deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar

em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade

da sentenccedila

1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z

concluir que

2) x eacute belo e natildeo belo

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Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por

Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o

aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute

adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado

incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum

e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute

(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo

Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se

comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na

formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a

propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da

propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um

objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto

represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo

A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os

complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados

completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo

ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E

o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente

equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter

Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo

primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos

ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e

convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e

incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de

argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto

de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca

agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo

piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)

Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e

relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo

um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por

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meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como

veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados

incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates

para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o

modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em

mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que

argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar

entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias

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32 A inteligibilidade das Formas

Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica

da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter

inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo

estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu

discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar

esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela

razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo

Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o

Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com

aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)

Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da

Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido

apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um

caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma

passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender

que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo

(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem

esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de

Diotima

Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira

caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter

inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de

Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema

principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates

iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal

sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma

existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os

objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma

imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve

temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo

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conhecimento

As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando

Soacutecrates pergunta a Simmias

ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)

A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando

no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo

(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em

seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da

Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da

primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na

resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente

familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio

relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a

sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει

ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a

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expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na

qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso

sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde

diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das

expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de

designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do

personagem Simmias com a Teoria das Ideias13

A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates

afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das

expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por

meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal

afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em

busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a

mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que

tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos

De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir

esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das

belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave

vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo

natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave

espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber

informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas

Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este

ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar

11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a

given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)

12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico

13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades

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abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo

apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria

reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre

Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os

objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ

αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres

(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)

14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o

sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico

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33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis

A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute

particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua

exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates

desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar

como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos

oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo

(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente

traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas

natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os

oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis

enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo

assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las

conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um

momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o

intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel

Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui

algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem

argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como

move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas

por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos

tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a

possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas

simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa

condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento

(cf Bostock 1983 p60-63)

Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a

estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas

por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si

mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo

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de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e

74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates

pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras

Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos

sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos

objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode

ser esquematizado da seguinte maneira

1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada

propriedade P

2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P

3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a

mesma coisa

Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem

causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto

textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo

conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual

propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo

pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do

que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute

muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa

depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala

Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias

ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo

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Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)

Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a

existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da

Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo

afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de

que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais

a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo

ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto

certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na

conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes

de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural

devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados

para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )

enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)

Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as

ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo

tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo

parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo

Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com

tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf

Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como

ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p

134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que

chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor

exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente

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pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato

devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que

dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo

assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por

Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15

A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os

problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua

grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura

1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo

verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os

mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais

para outra pessoardquo

2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo

relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila

estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira

iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes

iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo

3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste

caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora

permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um

aspecto e desiguais em outro aspectordquo

As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo

com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada

pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da

Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura

parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o

mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para

um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a

15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees

estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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(θεώmicroενος ἐφεξῆς τε καὶ ὀρθῶς τὰ καλά πρὸς τέλος ἤδη ἰὼν τῶν ἐρωτικῶν

ἐξαίφνης κατόψεταί τι θαυmicroαστὸν τὴν φύσιν καλόν 210e3-5) A partir desta

sentenccedila a prosa platocircnica repentinamente adquire a cadecircncia dos ditirambos agrave

maneira das odes entoadas pelos coros das trageacutedias (cf Allen 1991 p82) e

Soacutecrates inicia uma descriccedilatildeo das caracteriacutesticas ontoloacutegicas deste Belo em si

objetivo uacuteltimo da revelaccedilatildeo dos misteacuterios de Eros ldquoem vista do qual todos os

esforccedilos anteriores foram realizadosrdquo (οὗ δὴ ἕνεκεν καὶ οἱ ἔmicroπροσθεν πάντες

πόνοι ἦσαν)

ldquoprimeiramente eacute para sempre natildeo nascendo nem perecendo natildeo crescendo nem decrescendo depois natildeo eacute belo de um jeito7 e feio de outro nem ora belo e ora feio nem quanto a isso belo e quanto agravequilo feio nem belo aqui e feio ali como se a alguns fosse belo e a outros feio tampouco apareceraacute o Belo como um rosto ou matildeos nem como nada que pertence ao corpo nem como algum discurso ou alguma ciecircncia tambeacutem natildeo seraacute situado em uma outra coisa como em algum animal da terra ou do ceacuteu ou em qualquer outra coisa ao contraacuterio apareceraacute ele mesmo por si mesmo consigo mesmo sendo sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν) enquanto todas as outras coisas belas dele participam de uma maneira tal que ao passo que tudo mais que eacute belo nasce e perece ele em nada fica maior ou menor nem nada sofrerdquo πρῶτον microὲν ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον ἔπειτα οὐ τῇ microὲν καλόν τῇ δ αἰσχρόν οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν οὐδ αὖ φαντασθήσεται αὐτῷ τὸ καλὸν οἷον πρόσωπόν τι οὐδὲ χεῖρες οὐδὲ ἄλλο οὐδὲν ὧν σῶmicroα microετέχει οὐδέ τις λόγος οὐδέ τις ἐπιστήmicroη οὐδέ που ὂν ἐν ἑτέρῳ τινι οἷον ἐν ζώῳ ἢ ἐν γῇ ἢ ἐν οὐρανῷ ἢ ἔν τῳ ἄλλῳ ἀλλ αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν τὰ δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα τρόπον τινὰ τοιοῦτον οἷον γιγνοmicroένων τε τῶν ἄλλων καὶ ἀπολλυmicroένων microηδὲν ἐκεῖνο microήτε τι πλέον microήτε ἔλαττον γίγνεσθαι microηδὲ πάσχειν microηδέν (211a1-b5)

De todo o corpus platocircnico esta passagem pode ser considerada aquela em

que a ontologia das Formas eacute apresentada de maneira mais densa e direta Focada

na descriccedilatildeo de uma uacutenica Forma a revelaccedilatildeo final de Diotima apresenta de uma

soacute vez diversos temas da ontologia platocircnica A primeira caracteriacutestica atribuiacuteda

ao Belo ldquoser para sempre natildeo nascendo nem perecendordquo remete ao tradicional

contraste entre seres mortais e imortais evocado anteriormente Contudo Diotima

radicaliza ainda mais este contraste afirmando que a Forma do Belo natildeo apenas

ldquoeacute para semprerdquo (ἀεὶ ὂν) em um paralelo direto com a foacutermula homeacuterica para

72c 7 Para traduzaccedilatildeo de τῇ microὲν hellip τῇ δὲ (ldquodesta hellip daquela maneirardquo) (cf LSJ verbete o( A

VIII 1)

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imortalidade divina (qeoi ai)en e)ontej) como tambeacutem natildeo foi gerada nem eacute

passiacutevel de perecimento (οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον) Atraveacutes destas

determinaccedilotildees adicionais Diotima introduz um tipo de eternidade inerente agrave

Forma do Belo que ultrapassa em muito a imortalidade divina Pois como

sabemos pela Teogonia apesar de indestrutiacuteveis os deuses tiveram um momento

de nascimento A Forma do Belo por sua vez estaacute fora do tempo na medida em

que natildeo possui um momento de surgimento nem possuiraacute um momento de

destruiccedilatildeo8

Aleacutem de eternamente existente a Forma do Belo natildeo cresce nem diminui

(οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον) E enquanto as coisas belas nascem e perecem a

Forma do Belo permanece inafetada (πάσχειν microηδέν) sendo ela mesma por si

mesma consigo mesma sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς

ἀεὶ ὄν)

A foacutermula ldquoele mesmo por si mesmo consigo mesmordquo (αὐτὸ καθ αὑτὸ

microεθ αὑτοῦ) resume em si aquilo que estaacute expresso entre as linhas 211a5-b6 isto eacute

o fato de que a Forma do Belo natildeo pode ser confundida com a beleza que

encontramos nas coisas sensiacuteveis (matildeos rostos partes dos corpos discursos

ciecircncias animais da terra ou do ceacuteu ou qualquer outra coisa) pois eacute uma entidade

independente e separada destas coisas A estrutura reflexiva da expressatildeo αὐτὸ

καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ pretende sublinhar a independecircncia ontoloacutegica do Belo que

eacute ldquoem si e por sirdquo e portanto natildeo depende dos objetos sensiacuteveis para existir e ser

aquilo que ela eacute Os objetos belos sensiacuteveis por outro lado satildeo ontologicamente

dependentes e necessitam da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo no Belo para serem belos (τὰ

δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα) A unidade entre a argumentaccedilatildeo dos

primeiros diaacutelogos e a revelaccedilatildeo de Diotima se torna evidente quando lembramos

que a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ natildeo passa de uma intensificaccedilatildeo da

foacutermula αὐτὸ τὸ εἶδος utilizada por Soacutecrates nos primeiros diaacutelogos9 para

expressar exatamente o mesmo aspecto de sua teoria

Aleacutem de eternamente existente e ontologicamente independente o Belo

caracteriza-se por estar isento de qualquer mudanccedila sendo de maneira fixa e

8 De fato como observam Sprague (1971) e Solmsen (1971) a eternidade do Belo possui como

paralelo apenas o Ser de Parmecircnides e podemos ateacute considerar intencional a referecircncia ao poema parmeniacutedico nas palavras de Diotima Compare a foacutermula utilizada por Diotima para expressar a eternidade do Belo ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον com as palavras utilizadas por Parmenides ὡς ἀγένητον ἐὸν καὶ ἀνώλεθρόν ἐστιν (Frag B83)

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invariaacutevel aquilo que ele eacute Podemos descrever esta caracteriacutestica como a

estabilidade ontoloacutegica do Belo e tal qualidade distintiva eacute expressa por Diotima

por meio da enumeraccedilatildeo das diferentes maneiras em que esta Forma poderia

deixar de ser bela caso fosse apenas mais uma entidade sensiacutevel Assim Diotima

nos explica que o Belo natildeo eacute

1) belo em um aspecto poreacutem feio em outro aspecto (οὐ τῇ microὲν

καλόν τῇ δ αἰσχρόν)

2) belo em um determinado momento poreacutem feio em outro momento

(οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ)

3) belo em relaccedilatildeo a certas coisas poreacutem feio em relaccedilatildeo a outras

(οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν)

4) belo em um determinado local poreacutem feio em outro sendo belo

para uns e feio para outros (οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν

ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν)

Por natildeo estar sujeita a estas qualificaccedilotildees a Forma do Belo eacute caracterizada

como aquela entidade sobre a qual eacute sempre verdadeiro afirmar que ela eacute bela

Esta estabilidade no modo de ser das Formas eacute ressaltada por meio do emprego do

adjetivo microονοειδὲς que etimologicamente deve ser traduzido por ldquouniformerdquo mas

pode ter seu sentido exprimido pela locuccedilatildeo ldquouacutenico em aspectordquo Como explica

Diotima a unidade aspectual da Forma do Belo encontra-se em ela ser

exclusivamente bela natildeo se mostrando nunca feia (ou natildeo-bela) e estando imune a

qualquer tipo de perspectivismo ou relativismo

No decorrer deste capiacutetulo veremos que o termo microονοειδὲς eacute parte do

vocabulaacuterio teacutecnico da Teoria das Ideias e reapareceraacute no Feacutedon (78b4) como uma

expressatildeo cristalizada para indicar que a Forma F (Belo Justo Grande Pequeno

etc) eacute uacutenica e invariavelmente F (bela justa grande pequena etc) o que a

torna um tipo de entidade fundamentalmente distinta dos diversos particulares

sensiacuteveis que evidentemente possuem uma diversidade de aspectos e estatildeo

sujeitos a uma multiplicidade de predicaccedilotildees muitas delas contraacuterias entre si

Este mesmo fato ontoloacutegico estaacute relacionado agrave caracterizaccedilatildeo das Formas

9 cf Eut 6d10 Hipp Ma 286d8 288a9 289c3 292c3

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como ἐκεῖνο ὃ ἔστι Como vimos no Liacutesis esta expressatildeo eacute usada para diferenciar

as diversas coisas amadas-em-vista-de-outra-coisa do πρῶτον φίλον uacutenica

entidade amada em vista de si mesma Por natildeo ser amado de maneira relacional

em vista de outro objeto o πρῶτον φίλον eacute considerado a uacutenica entidade apta a

receber o predicado ldquoser-amadordquo de maneira sempre verdadeira (ἐκεῖνο τὸ

πρῶτον ὃ ὡς ἀληθῶς ἐστι φίλον Lis219d4-5) e portanto pode ser caracterizado

como ἐκεῖνο ὃ ἐστι φίλον No Banquete (211c7-d1) a locuccedilatildeo ἐκεῖνο ὃ ἔστι eacute

utilizada para explicar que o processo de revelaccedilatildeo ao qual o iniciado nas artes do

amor foi submetido ldquoacaba naquela ciecircncia que natildeo eacute ciecircncia de nada mais do que

daquele proacuteprio Belo e [o iniciado] termina por conhecer o que eacute belo [ou o que

Belo eacute] (ὃ ἔστι καλόν) rdquo10

Novamente o vocabulaacuterio relativo agrave formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias que

encontramos nos diaacutelogos da fase meacutedia se apresenta em completa continuidade

com a busca por definiccedilotildees dos diaacutelogos inicias A foacutermula ὃ ἔστι x natildeo passa da

inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι x que como vimos no capiacutetulo precedente

caracteriza a busca socraacutetica por definiccedilotildees Assim aquilo que soacute podiacuteamos

acessar indiretamente nos primeiros diaacutelogos nos eacute apresentado de maneira

expliacutecita nos diaacutelogos meacutedios e a busca socraacutetica expressa em questotildees do tipo ldquoo

que eacute belordquo (τί ἐστι καλόν) eacute diretamente solucionada pela identificaccedilatildeo da

Forma da Beleza como ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (ὃ ἔστι καλόν)

Em contraposiccedilatildeo agrave estabilidade ontoloacutegica do Belo que eacute sempre

unicamente belo somos levados a concluir que ldquotodas as outras coisas belasrdquo (τὰ

ἄλλα πάντα καλὰ) estatildeo sujeitas a uma ou a mais de uma das seguintes

indeterminaccedilotildees

1) Elas podem ser belas em um de seus aspectos poreacutem feias em

outro Por exemplo uma escultura pode ser bela em sua forma

poreacutem estar pintada com cores horrendas

10 Eacute importante notar que na locuccedilatildeo ὃ ἔστι καλόν o termo καλόν pode ocupar o lugar tanto de

sujeito quanto de predicado Na realidade isto natildeo se daacute por acaso e devemos considerar esta ambiguidade sintaacutetica como um resultado proposital do texto platocircnico Tal fato fica evidente quando notamos que apesar da foacutermula ὃ ἔστι F ser recorrentemente usada para designar as Formas nunca encontramos o termo seguinte ao verbo ἔστι introduzido por um artigo o que anularia a possibilidade de uma leitura predicativa (cf Kahn 2009 p80) Por meio deste artifiacutecio sintaacutetico Platatildeo pretende nos transmitir a ideia de que conhecer ldquoo que o Belo eacuterdquo (construccedilatildeo subjetiva) equivale a conhecer ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (construccedilatildeo predicativa)

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2) Elas podem ser belas em um momento poreacutem feias em outro Por

exemplo um Ipecirc pode ser belo na primavera quando em flor

poreacutem feio no inverno quando desfolhado

3) Elas podem ser belas quando comparadas a uma determinada coisa

poreacutem feias quando comparadas a outra Por exemplo a bela moccedila

descrita no Hiacuteppias Maior quando comparada a uma deusa deve

ser considerada feia

4) Elas podem ser belas em um determinado local poreacutem feias em

outro sendo belas para uns e feias para outros Por exemplo os

adornos de um iacutendio Xavante que satildeo belos para os membros de

sua tribo poreacutem feios para os frequentadores da feira de moda de

Milatildeo

Ora como todo objeto sensiacutevel possui uma multiplicidade de aspectos e

caracteriacutesticas eacute plenamente possiacutevel e ateacute mesmo esperado que estas entidades

sejam belas em um de seus aspectos e feias em outros Todo objeto sensiacutevel

possui por exemplo um formato uma cor um odor uma textura etc Sendo

assim devemos considerar natural o fato de que um mesmo objeto julgado belo

em sua forma possa natildeo parecer belo em sua cor ou em um outro aspecto

qualquer Note que o mesmo raciociacutenio vale para as accedilotildees que os interlocutores de

Soacutecrates oferecem como exemplos de virtudes nos diaacutelogos inicias Acusar

publicamente o seu proacuteprio pai pode ser um ato pio quando considerado a partir

dos aspectos legais de persecuccedilatildeo religiosa conforme argumenta Ecircutifron Poreacutem

quando analisado agrave luz dos laccedilos de consanguinidade e reverecircncia familiar este

mesmo ato eacute certamente um exemplo de impiedade

Do mesmo modo devido ao fato de todas as entidades sensiacuteveis estarem

sujeitas agrave passagem do tempo podemos considerar inevitaacutevel que coisas ou atos

considerados belos hoje deixaratildeo de secirc-lo em algum momento futuro ou mesmo

que natildeo tenham sido belos em algum instante do passado Um belo cavalo hoje

deixaraacute de ser belo quando velho ou morto e a escravizaccedilatildeo de um inimigo

derrotado em batalha considerada uma accedilatildeo justa em um passado natildeo muito

remoto eacute certamente julgada uma grande injusticcedila nos dias de hoje Estes poucos

exemplos satildeo suficientes para concluirmos que os dois primeiros itens da

enumeraccedilatildeo de Diotima representam casos plenamente compreensiacuteveis de

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diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel

Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as

entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves

diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas

No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros

de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente

justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto

Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua

sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com

Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os

exemplos acima mencionados

Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso

Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria

em a partir de

1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z

inferir

2) x eacute belo e natildeo belo

Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel

de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x

estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a

donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo

indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente

incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo

parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que

Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma

deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar

em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade

da sentenccedila

1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z

concluir que

2) x eacute belo e natildeo belo

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Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por

Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o

aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute

adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado

incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum

e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute

(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo

Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se

comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na

formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a

propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da

propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um

objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto

represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo

A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os

complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados

completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo

ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E

o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente

equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter

Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo

primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos

ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e

convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e

incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de

argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto

de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca

agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo

piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)

Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e

relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo

um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por

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meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como

veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados

incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates

para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o

modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em

mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que

argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar

entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias

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32 A inteligibilidade das Formas

Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica

da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter

inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo

estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu

discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar

esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela

razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo

Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o

Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com

aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)

Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da

Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido

apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um

caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma

passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender

que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo

(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem

esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de

Diotima

Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira

caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter

inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de

Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema

principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates

iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal

sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma

existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os

objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma

imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve

temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo

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conhecimento

As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando

Soacutecrates pergunta a Simmias

ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)

A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando

no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo

(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em

seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da

Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da

primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na

resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente

familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio

relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a

sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει

ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a

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expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na

qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso

sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde

diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das

expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de

designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do

personagem Simmias com a Teoria das Ideias13

A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates

afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das

expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por

meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal

afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em

busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a

mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que

tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos

De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir

esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das

belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave

vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo

natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave

espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber

informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas

Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este

ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar

11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a

given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)

12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico

13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades

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abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo

apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria

reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre

Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os

objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ

αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres

(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)

14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o

sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico

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33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis

A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute

particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua

exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates

desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar

como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos

oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo

(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente

traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas

natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os

oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis

enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo

assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las

conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um

momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o

intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel

Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui

algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem

argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como

move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas

por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos

tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a

possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas

simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa

condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento

(cf Bostock 1983 p60-63)

Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a

estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas

por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si

mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo

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de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e

74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates

pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras

Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos

sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos

objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode

ser esquematizado da seguinte maneira

1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada

propriedade P

2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P

3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a

mesma coisa

Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem

causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto

textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo

conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual

propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo

pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do

que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute

muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa

depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala

Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias

ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo

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Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)

Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a

existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da

Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo

afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de

que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais

a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo

ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto

certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na

conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes

de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural

devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados

para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )

enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)

Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as

ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo

tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo

parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo

Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com

tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf

Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como

ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p

134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que

chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor

exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente

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pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato

devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que

dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo

assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por

Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15

A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os

problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua

grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura

1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo

verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os

mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais

para outra pessoardquo

2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo

relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila

estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira

iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes

iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo

3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste

caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora

permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um

aspecto e desiguais em outro aspectordquo

As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo

com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada

pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da

Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura

parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o

mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para

um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a

15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees

estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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imortalidade divina (qeoi ai)en e)ontej) como tambeacutem natildeo foi gerada nem eacute

passiacutevel de perecimento (οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον) Atraveacutes destas

determinaccedilotildees adicionais Diotima introduz um tipo de eternidade inerente agrave

Forma do Belo que ultrapassa em muito a imortalidade divina Pois como

sabemos pela Teogonia apesar de indestrutiacuteveis os deuses tiveram um momento

de nascimento A Forma do Belo por sua vez estaacute fora do tempo na medida em

que natildeo possui um momento de surgimento nem possuiraacute um momento de

destruiccedilatildeo8

Aleacutem de eternamente existente a Forma do Belo natildeo cresce nem diminui

(οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον) E enquanto as coisas belas nascem e perecem a

Forma do Belo permanece inafetada (πάσχειν microηδέν) sendo ela mesma por si

mesma consigo mesma sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς

ἀεὶ ὄν)

A foacutermula ldquoele mesmo por si mesmo consigo mesmordquo (αὐτὸ καθ αὑτὸ

microεθ αὑτοῦ) resume em si aquilo que estaacute expresso entre as linhas 211a5-b6 isto eacute

o fato de que a Forma do Belo natildeo pode ser confundida com a beleza que

encontramos nas coisas sensiacuteveis (matildeos rostos partes dos corpos discursos

ciecircncias animais da terra ou do ceacuteu ou qualquer outra coisa) pois eacute uma entidade

independente e separada destas coisas A estrutura reflexiva da expressatildeo αὐτὸ

καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ pretende sublinhar a independecircncia ontoloacutegica do Belo que

eacute ldquoem si e por sirdquo e portanto natildeo depende dos objetos sensiacuteveis para existir e ser

aquilo que ela eacute Os objetos belos sensiacuteveis por outro lado satildeo ontologicamente

dependentes e necessitam da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo no Belo para serem belos (τὰ

δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα) A unidade entre a argumentaccedilatildeo dos

primeiros diaacutelogos e a revelaccedilatildeo de Diotima se torna evidente quando lembramos

que a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ natildeo passa de uma intensificaccedilatildeo da

foacutermula αὐτὸ τὸ εἶδος utilizada por Soacutecrates nos primeiros diaacutelogos9 para

expressar exatamente o mesmo aspecto de sua teoria

Aleacutem de eternamente existente e ontologicamente independente o Belo

caracteriza-se por estar isento de qualquer mudanccedila sendo de maneira fixa e

8 De fato como observam Sprague (1971) e Solmsen (1971) a eternidade do Belo possui como

paralelo apenas o Ser de Parmecircnides e podemos ateacute considerar intencional a referecircncia ao poema parmeniacutedico nas palavras de Diotima Compare a foacutermula utilizada por Diotima para expressar a eternidade do Belo ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον com as palavras utilizadas por Parmenides ὡς ἀγένητον ἐὸν καὶ ἀνώλεθρόν ἐστιν (Frag B83)

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invariaacutevel aquilo que ele eacute Podemos descrever esta caracteriacutestica como a

estabilidade ontoloacutegica do Belo e tal qualidade distintiva eacute expressa por Diotima

por meio da enumeraccedilatildeo das diferentes maneiras em que esta Forma poderia

deixar de ser bela caso fosse apenas mais uma entidade sensiacutevel Assim Diotima

nos explica que o Belo natildeo eacute

1) belo em um aspecto poreacutem feio em outro aspecto (οὐ τῇ microὲν

καλόν τῇ δ αἰσχρόν)

2) belo em um determinado momento poreacutem feio em outro momento

(οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ)

3) belo em relaccedilatildeo a certas coisas poreacutem feio em relaccedilatildeo a outras

(οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν)

4) belo em um determinado local poreacutem feio em outro sendo belo

para uns e feio para outros (οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν

ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν)

Por natildeo estar sujeita a estas qualificaccedilotildees a Forma do Belo eacute caracterizada

como aquela entidade sobre a qual eacute sempre verdadeiro afirmar que ela eacute bela

Esta estabilidade no modo de ser das Formas eacute ressaltada por meio do emprego do

adjetivo microονοειδὲς que etimologicamente deve ser traduzido por ldquouniformerdquo mas

pode ter seu sentido exprimido pela locuccedilatildeo ldquouacutenico em aspectordquo Como explica

Diotima a unidade aspectual da Forma do Belo encontra-se em ela ser

exclusivamente bela natildeo se mostrando nunca feia (ou natildeo-bela) e estando imune a

qualquer tipo de perspectivismo ou relativismo

No decorrer deste capiacutetulo veremos que o termo microονοειδὲς eacute parte do

vocabulaacuterio teacutecnico da Teoria das Ideias e reapareceraacute no Feacutedon (78b4) como uma

expressatildeo cristalizada para indicar que a Forma F (Belo Justo Grande Pequeno

etc) eacute uacutenica e invariavelmente F (bela justa grande pequena etc) o que a

torna um tipo de entidade fundamentalmente distinta dos diversos particulares

sensiacuteveis que evidentemente possuem uma diversidade de aspectos e estatildeo

sujeitos a uma multiplicidade de predicaccedilotildees muitas delas contraacuterias entre si

Este mesmo fato ontoloacutegico estaacute relacionado agrave caracterizaccedilatildeo das Formas

9 cf Eut 6d10 Hipp Ma 286d8 288a9 289c3 292c3

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como ἐκεῖνο ὃ ἔστι Como vimos no Liacutesis esta expressatildeo eacute usada para diferenciar

as diversas coisas amadas-em-vista-de-outra-coisa do πρῶτον φίλον uacutenica

entidade amada em vista de si mesma Por natildeo ser amado de maneira relacional

em vista de outro objeto o πρῶτον φίλον eacute considerado a uacutenica entidade apta a

receber o predicado ldquoser-amadordquo de maneira sempre verdadeira (ἐκεῖνο τὸ

πρῶτον ὃ ὡς ἀληθῶς ἐστι φίλον Lis219d4-5) e portanto pode ser caracterizado

como ἐκεῖνο ὃ ἐστι φίλον No Banquete (211c7-d1) a locuccedilatildeo ἐκεῖνο ὃ ἔστι eacute

utilizada para explicar que o processo de revelaccedilatildeo ao qual o iniciado nas artes do

amor foi submetido ldquoacaba naquela ciecircncia que natildeo eacute ciecircncia de nada mais do que

daquele proacuteprio Belo e [o iniciado] termina por conhecer o que eacute belo [ou o que

Belo eacute] (ὃ ἔστι καλόν) rdquo10

Novamente o vocabulaacuterio relativo agrave formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias que

encontramos nos diaacutelogos da fase meacutedia se apresenta em completa continuidade

com a busca por definiccedilotildees dos diaacutelogos inicias A foacutermula ὃ ἔστι x natildeo passa da

inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι x que como vimos no capiacutetulo precedente

caracteriza a busca socraacutetica por definiccedilotildees Assim aquilo que soacute podiacuteamos

acessar indiretamente nos primeiros diaacutelogos nos eacute apresentado de maneira

expliacutecita nos diaacutelogos meacutedios e a busca socraacutetica expressa em questotildees do tipo ldquoo

que eacute belordquo (τί ἐστι καλόν) eacute diretamente solucionada pela identificaccedilatildeo da

Forma da Beleza como ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (ὃ ἔστι καλόν)

Em contraposiccedilatildeo agrave estabilidade ontoloacutegica do Belo que eacute sempre

unicamente belo somos levados a concluir que ldquotodas as outras coisas belasrdquo (τὰ

ἄλλα πάντα καλὰ) estatildeo sujeitas a uma ou a mais de uma das seguintes

indeterminaccedilotildees

1) Elas podem ser belas em um de seus aspectos poreacutem feias em

outro Por exemplo uma escultura pode ser bela em sua forma

poreacutem estar pintada com cores horrendas

10 Eacute importante notar que na locuccedilatildeo ὃ ἔστι καλόν o termo καλόν pode ocupar o lugar tanto de

sujeito quanto de predicado Na realidade isto natildeo se daacute por acaso e devemos considerar esta ambiguidade sintaacutetica como um resultado proposital do texto platocircnico Tal fato fica evidente quando notamos que apesar da foacutermula ὃ ἔστι F ser recorrentemente usada para designar as Formas nunca encontramos o termo seguinte ao verbo ἔστι introduzido por um artigo o que anularia a possibilidade de uma leitura predicativa (cf Kahn 2009 p80) Por meio deste artifiacutecio sintaacutetico Platatildeo pretende nos transmitir a ideia de que conhecer ldquoo que o Belo eacuterdquo (construccedilatildeo subjetiva) equivale a conhecer ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (construccedilatildeo predicativa)

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2) Elas podem ser belas em um momento poreacutem feias em outro Por

exemplo um Ipecirc pode ser belo na primavera quando em flor

poreacutem feio no inverno quando desfolhado

3) Elas podem ser belas quando comparadas a uma determinada coisa

poreacutem feias quando comparadas a outra Por exemplo a bela moccedila

descrita no Hiacuteppias Maior quando comparada a uma deusa deve

ser considerada feia

4) Elas podem ser belas em um determinado local poreacutem feias em

outro sendo belas para uns e feias para outros Por exemplo os

adornos de um iacutendio Xavante que satildeo belos para os membros de

sua tribo poreacutem feios para os frequentadores da feira de moda de

Milatildeo

Ora como todo objeto sensiacutevel possui uma multiplicidade de aspectos e

caracteriacutesticas eacute plenamente possiacutevel e ateacute mesmo esperado que estas entidades

sejam belas em um de seus aspectos e feias em outros Todo objeto sensiacutevel

possui por exemplo um formato uma cor um odor uma textura etc Sendo

assim devemos considerar natural o fato de que um mesmo objeto julgado belo

em sua forma possa natildeo parecer belo em sua cor ou em um outro aspecto

qualquer Note que o mesmo raciociacutenio vale para as accedilotildees que os interlocutores de

Soacutecrates oferecem como exemplos de virtudes nos diaacutelogos inicias Acusar

publicamente o seu proacuteprio pai pode ser um ato pio quando considerado a partir

dos aspectos legais de persecuccedilatildeo religiosa conforme argumenta Ecircutifron Poreacutem

quando analisado agrave luz dos laccedilos de consanguinidade e reverecircncia familiar este

mesmo ato eacute certamente um exemplo de impiedade

Do mesmo modo devido ao fato de todas as entidades sensiacuteveis estarem

sujeitas agrave passagem do tempo podemos considerar inevitaacutevel que coisas ou atos

considerados belos hoje deixaratildeo de secirc-lo em algum momento futuro ou mesmo

que natildeo tenham sido belos em algum instante do passado Um belo cavalo hoje

deixaraacute de ser belo quando velho ou morto e a escravizaccedilatildeo de um inimigo

derrotado em batalha considerada uma accedilatildeo justa em um passado natildeo muito

remoto eacute certamente julgada uma grande injusticcedila nos dias de hoje Estes poucos

exemplos satildeo suficientes para concluirmos que os dois primeiros itens da

enumeraccedilatildeo de Diotima representam casos plenamente compreensiacuteveis de

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diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel

Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as

entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves

diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas

No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros

de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente

justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto

Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua

sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com

Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os

exemplos acima mencionados

Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso

Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria

em a partir de

1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z

inferir

2) x eacute belo e natildeo belo

Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel

de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x

estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a

donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo

indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente

incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo

parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que

Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma

deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar

em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade

da sentenccedila

1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z

concluir que

2) x eacute belo e natildeo belo

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Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por

Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o

aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute

adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado

incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum

e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute

(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo

Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se

comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na

formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a

propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da

propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um

objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto

represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo

A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os

complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados

completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo

ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E

o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente

equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter

Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo

primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos

ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e

convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e

incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de

argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto

de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca

agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo

piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)

Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e

relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo

um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por

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meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como

veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados

incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates

para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o

modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em

mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que

argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar

entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias

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32 A inteligibilidade das Formas

Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica

da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter

inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo

estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu

discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar

esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela

razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo

Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o

Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com

aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)

Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da

Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido

apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um

caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma

passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender

que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo

(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem

esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de

Diotima

Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira

caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter

inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de

Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema

principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates

iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal

sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma

existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os

objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma

imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve

temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo

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conhecimento

As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando

Soacutecrates pergunta a Simmias

ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)

A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando

no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo

(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em

seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da

Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da

primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na

resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente

familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio

relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a

sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει

ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a

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expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na

qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso

sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde

diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das

expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de

designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do

personagem Simmias com a Teoria das Ideias13

A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates

afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das

expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por

meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal

afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em

busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a

mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que

tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos

De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir

esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das

belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave

vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo

natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave

espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber

informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas

Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este

ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar

11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a

given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)

12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico

13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades

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abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo

apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria

reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre

Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os

objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ

αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres

(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)

14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o

sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico

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33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis

A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute

particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua

exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates

desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar

como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos

oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo

(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente

traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas

natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os

oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis

enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo

assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las

conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um

momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o

intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel

Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui

algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem

argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como

move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas

por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos

tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a

possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas

simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa

condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento

(cf Bostock 1983 p60-63)

Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a

estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas

por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si

mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo

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de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e

74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates

pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras

Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos

sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos

objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode

ser esquematizado da seguinte maneira

1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada

propriedade P

2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P

3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a

mesma coisa

Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem

causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto

textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo

conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual

propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo

pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do

que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute

muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa

depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala

Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias

ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo

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Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)

Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a

existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da

Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo

afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de

que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais

a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo

ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto

certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na

conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes

de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural

devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados

para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )

enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)

Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as

ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo

tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo

parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo

Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com

tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf

Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como

ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p

134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que

chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor

exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente

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pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato

devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que

dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo

assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por

Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15

A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os

problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua

grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura

1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo

verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os

mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais

para outra pessoardquo

2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo

relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila

estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira

iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes

iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo

3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste

caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora

permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um

aspecto e desiguais em outro aspectordquo

As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo

com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada

pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da

Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura

parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o

mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para

um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a

15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees

estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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invariaacutevel aquilo que ele eacute Podemos descrever esta caracteriacutestica como a

estabilidade ontoloacutegica do Belo e tal qualidade distintiva eacute expressa por Diotima

por meio da enumeraccedilatildeo das diferentes maneiras em que esta Forma poderia

deixar de ser bela caso fosse apenas mais uma entidade sensiacutevel Assim Diotima

nos explica que o Belo natildeo eacute

1) belo em um aspecto poreacutem feio em outro aspecto (οὐ τῇ microὲν

καλόν τῇ δ αἰσχρόν)

2) belo em um determinado momento poreacutem feio em outro momento

(οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ)

3) belo em relaccedilatildeo a certas coisas poreacutem feio em relaccedilatildeo a outras

(οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν)

4) belo em um determinado local poreacutem feio em outro sendo belo

para uns e feio para outros (οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν

ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν)

Por natildeo estar sujeita a estas qualificaccedilotildees a Forma do Belo eacute caracterizada

como aquela entidade sobre a qual eacute sempre verdadeiro afirmar que ela eacute bela

Esta estabilidade no modo de ser das Formas eacute ressaltada por meio do emprego do

adjetivo microονοειδὲς que etimologicamente deve ser traduzido por ldquouniformerdquo mas

pode ter seu sentido exprimido pela locuccedilatildeo ldquouacutenico em aspectordquo Como explica

Diotima a unidade aspectual da Forma do Belo encontra-se em ela ser

exclusivamente bela natildeo se mostrando nunca feia (ou natildeo-bela) e estando imune a

qualquer tipo de perspectivismo ou relativismo

No decorrer deste capiacutetulo veremos que o termo microονοειδὲς eacute parte do

vocabulaacuterio teacutecnico da Teoria das Ideias e reapareceraacute no Feacutedon (78b4) como uma

expressatildeo cristalizada para indicar que a Forma F (Belo Justo Grande Pequeno

etc) eacute uacutenica e invariavelmente F (bela justa grande pequena etc) o que a

torna um tipo de entidade fundamentalmente distinta dos diversos particulares

sensiacuteveis que evidentemente possuem uma diversidade de aspectos e estatildeo

sujeitos a uma multiplicidade de predicaccedilotildees muitas delas contraacuterias entre si

Este mesmo fato ontoloacutegico estaacute relacionado agrave caracterizaccedilatildeo das Formas

9 cf Eut 6d10 Hipp Ma 286d8 288a9 289c3 292c3

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como ἐκεῖνο ὃ ἔστι Como vimos no Liacutesis esta expressatildeo eacute usada para diferenciar

as diversas coisas amadas-em-vista-de-outra-coisa do πρῶτον φίλον uacutenica

entidade amada em vista de si mesma Por natildeo ser amado de maneira relacional

em vista de outro objeto o πρῶτον φίλον eacute considerado a uacutenica entidade apta a

receber o predicado ldquoser-amadordquo de maneira sempre verdadeira (ἐκεῖνο τὸ

πρῶτον ὃ ὡς ἀληθῶς ἐστι φίλον Lis219d4-5) e portanto pode ser caracterizado

como ἐκεῖνο ὃ ἐστι φίλον No Banquete (211c7-d1) a locuccedilatildeo ἐκεῖνο ὃ ἔστι eacute

utilizada para explicar que o processo de revelaccedilatildeo ao qual o iniciado nas artes do

amor foi submetido ldquoacaba naquela ciecircncia que natildeo eacute ciecircncia de nada mais do que

daquele proacuteprio Belo e [o iniciado] termina por conhecer o que eacute belo [ou o que

Belo eacute] (ὃ ἔστι καλόν) rdquo10

Novamente o vocabulaacuterio relativo agrave formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias que

encontramos nos diaacutelogos da fase meacutedia se apresenta em completa continuidade

com a busca por definiccedilotildees dos diaacutelogos inicias A foacutermula ὃ ἔστι x natildeo passa da

inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι x que como vimos no capiacutetulo precedente

caracteriza a busca socraacutetica por definiccedilotildees Assim aquilo que soacute podiacuteamos

acessar indiretamente nos primeiros diaacutelogos nos eacute apresentado de maneira

expliacutecita nos diaacutelogos meacutedios e a busca socraacutetica expressa em questotildees do tipo ldquoo

que eacute belordquo (τί ἐστι καλόν) eacute diretamente solucionada pela identificaccedilatildeo da

Forma da Beleza como ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (ὃ ἔστι καλόν)

Em contraposiccedilatildeo agrave estabilidade ontoloacutegica do Belo que eacute sempre

unicamente belo somos levados a concluir que ldquotodas as outras coisas belasrdquo (τὰ

ἄλλα πάντα καλὰ) estatildeo sujeitas a uma ou a mais de uma das seguintes

indeterminaccedilotildees

1) Elas podem ser belas em um de seus aspectos poreacutem feias em

outro Por exemplo uma escultura pode ser bela em sua forma

poreacutem estar pintada com cores horrendas

10 Eacute importante notar que na locuccedilatildeo ὃ ἔστι καλόν o termo καλόν pode ocupar o lugar tanto de

sujeito quanto de predicado Na realidade isto natildeo se daacute por acaso e devemos considerar esta ambiguidade sintaacutetica como um resultado proposital do texto platocircnico Tal fato fica evidente quando notamos que apesar da foacutermula ὃ ἔστι F ser recorrentemente usada para designar as Formas nunca encontramos o termo seguinte ao verbo ἔστι introduzido por um artigo o que anularia a possibilidade de uma leitura predicativa (cf Kahn 2009 p80) Por meio deste artifiacutecio sintaacutetico Platatildeo pretende nos transmitir a ideia de que conhecer ldquoo que o Belo eacuterdquo (construccedilatildeo subjetiva) equivale a conhecer ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (construccedilatildeo predicativa)

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2) Elas podem ser belas em um momento poreacutem feias em outro Por

exemplo um Ipecirc pode ser belo na primavera quando em flor

poreacutem feio no inverno quando desfolhado

3) Elas podem ser belas quando comparadas a uma determinada coisa

poreacutem feias quando comparadas a outra Por exemplo a bela moccedila

descrita no Hiacuteppias Maior quando comparada a uma deusa deve

ser considerada feia

4) Elas podem ser belas em um determinado local poreacutem feias em

outro sendo belas para uns e feias para outros Por exemplo os

adornos de um iacutendio Xavante que satildeo belos para os membros de

sua tribo poreacutem feios para os frequentadores da feira de moda de

Milatildeo

Ora como todo objeto sensiacutevel possui uma multiplicidade de aspectos e

caracteriacutesticas eacute plenamente possiacutevel e ateacute mesmo esperado que estas entidades

sejam belas em um de seus aspectos e feias em outros Todo objeto sensiacutevel

possui por exemplo um formato uma cor um odor uma textura etc Sendo

assim devemos considerar natural o fato de que um mesmo objeto julgado belo

em sua forma possa natildeo parecer belo em sua cor ou em um outro aspecto

qualquer Note que o mesmo raciociacutenio vale para as accedilotildees que os interlocutores de

Soacutecrates oferecem como exemplos de virtudes nos diaacutelogos inicias Acusar

publicamente o seu proacuteprio pai pode ser um ato pio quando considerado a partir

dos aspectos legais de persecuccedilatildeo religiosa conforme argumenta Ecircutifron Poreacutem

quando analisado agrave luz dos laccedilos de consanguinidade e reverecircncia familiar este

mesmo ato eacute certamente um exemplo de impiedade

Do mesmo modo devido ao fato de todas as entidades sensiacuteveis estarem

sujeitas agrave passagem do tempo podemos considerar inevitaacutevel que coisas ou atos

considerados belos hoje deixaratildeo de secirc-lo em algum momento futuro ou mesmo

que natildeo tenham sido belos em algum instante do passado Um belo cavalo hoje

deixaraacute de ser belo quando velho ou morto e a escravizaccedilatildeo de um inimigo

derrotado em batalha considerada uma accedilatildeo justa em um passado natildeo muito

remoto eacute certamente julgada uma grande injusticcedila nos dias de hoje Estes poucos

exemplos satildeo suficientes para concluirmos que os dois primeiros itens da

enumeraccedilatildeo de Diotima representam casos plenamente compreensiacuteveis de

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diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel

Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as

entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves

diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas

No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros

de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente

justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto

Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua

sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com

Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os

exemplos acima mencionados

Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso

Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria

em a partir de

1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z

inferir

2) x eacute belo e natildeo belo

Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel

de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x

estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a

donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo

indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente

incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo

parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que

Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma

deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar

em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade

da sentenccedila

1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z

concluir que

2) x eacute belo e natildeo belo

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Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por

Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o

aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute

adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado

incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum

e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute

(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo

Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se

comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na

formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a

propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da

propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um

objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto

represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo

A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os

complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados

completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo

ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E

o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente

equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter

Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo

primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos

ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e

convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e

incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de

argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto

de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca

agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo

piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)

Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e

relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo

um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por

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meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como

veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados

incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates

para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o

modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em

mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que

argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar

entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias

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32 A inteligibilidade das Formas

Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica

da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter

inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo

estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu

discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar

esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela

razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo

Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o

Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com

aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)

Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da

Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido

apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um

caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma

passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender

que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo

(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem

esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de

Diotima

Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira

caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter

inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de

Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema

principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates

iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal

sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma

existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os

objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma

imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve

temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo

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conhecimento

As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando

Soacutecrates pergunta a Simmias

ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)

A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando

no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo

(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em

seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da

Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da

primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na

resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente

familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio

relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a

sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει

ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a

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expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na

qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso

sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde

diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das

expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de

designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do

personagem Simmias com a Teoria das Ideias13

A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates

afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das

expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por

meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal

afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em

busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a

mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que

tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos

De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir

esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das

belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave

vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo

natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave

espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber

informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas

Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este

ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar

11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a

given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)

12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico

13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades

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abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo

apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria

reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre

Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os

objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ

αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres

(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)

14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o

sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico

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33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis

A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute

particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua

exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates

desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar

como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos

oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo

(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente

traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas

natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os

oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis

enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo

assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las

conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um

momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o

intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel

Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui

algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem

argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como

move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas

por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos

tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a

possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas

simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa

condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento

(cf Bostock 1983 p60-63)

Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a

estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas

por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si

mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo

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de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e

74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates

pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras

Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos

sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos

objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode

ser esquematizado da seguinte maneira

1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada

propriedade P

2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P

3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a

mesma coisa

Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem

causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto

textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo

conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual

propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo

pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do

que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute

muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa

depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala

Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias

ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo

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Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)

Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a

existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da

Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo

afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de

que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais

a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo

ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto

certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na

conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes

de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural

devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados

para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )

enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)

Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as

ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo

tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo

parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo

Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com

tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf

Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como

ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p

134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que

chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor

exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente

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pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato

devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que

dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo

assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por

Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15

A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os

problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua

grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura

1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo

verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os

mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais

para outra pessoardquo

2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo

relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila

estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira

iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes

iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo

3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste

caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora

permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um

aspecto e desiguais em outro aspectordquo

As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo

com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada

pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da

Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura

parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o

mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para

um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a

15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees

estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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como ἐκεῖνο ὃ ἔστι Como vimos no Liacutesis esta expressatildeo eacute usada para diferenciar

as diversas coisas amadas-em-vista-de-outra-coisa do πρῶτον φίλον uacutenica

entidade amada em vista de si mesma Por natildeo ser amado de maneira relacional

em vista de outro objeto o πρῶτον φίλον eacute considerado a uacutenica entidade apta a

receber o predicado ldquoser-amadordquo de maneira sempre verdadeira (ἐκεῖνο τὸ

πρῶτον ὃ ὡς ἀληθῶς ἐστι φίλον Lis219d4-5) e portanto pode ser caracterizado

como ἐκεῖνο ὃ ἐστι φίλον No Banquete (211c7-d1) a locuccedilatildeo ἐκεῖνο ὃ ἔστι eacute

utilizada para explicar que o processo de revelaccedilatildeo ao qual o iniciado nas artes do

amor foi submetido ldquoacaba naquela ciecircncia que natildeo eacute ciecircncia de nada mais do que

daquele proacuteprio Belo e [o iniciado] termina por conhecer o que eacute belo [ou o que

Belo eacute] (ὃ ἔστι καλόν) rdquo10

Novamente o vocabulaacuterio relativo agrave formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias que

encontramos nos diaacutelogos da fase meacutedia se apresenta em completa continuidade

com a busca por definiccedilotildees dos diaacutelogos inicias A foacutermula ὃ ἔστι x natildeo passa da

inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι x que como vimos no capiacutetulo precedente

caracteriza a busca socraacutetica por definiccedilotildees Assim aquilo que soacute podiacuteamos

acessar indiretamente nos primeiros diaacutelogos nos eacute apresentado de maneira

expliacutecita nos diaacutelogos meacutedios e a busca socraacutetica expressa em questotildees do tipo ldquoo

que eacute belordquo (τί ἐστι καλόν) eacute diretamente solucionada pela identificaccedilatildeo da

Forma da Beleza como ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (ὃ ἔστι καλόν)

Em contraposiccedilatildeo agrave estabilidade ontoloacutegica do Belo que eacute sempre

unicamente belo somos levados a concluir que ldquotodas as outras coisas belasrdquo (τὰ

ἄλλα πάντα καλὰ) estatildeo sujeitas a uma ou a mais de uma das seguintes

indeterminaccedilotildees

1) Elas podem ser belas em um de seus aspectos poreacutem feias em

outro Por exemplo uma escultura pode ser bela em sua forma

poreacutem estar pintada com cores horrendas

10 Eacute importante notar que na locuccedilatildeo ὃ ἔστι καλόν o termo καλόν pode ocupar o lugar tanto de

sujeito quanto de predicado Na realidade isto natildeo se daacute por acaso e devemos considerar esta ambiguidade sintaacutetica como um resultado proposital do texto platocircnico Tal fato fica evidente quando notamos que apesar da foacutermula ὃ ἔστι F ser recorrentemente usada para designar as Formas nunca encontramos o termo seguinte ao verbo ἔστι introduzido por um artigo o que anularia a possibilidade de uma leitura predicativa (cf Kahn 2009 p80) Por meio deste artifiacutecio sintaacutetico Platatildeo pretende nos transmitir a ideia de que conhecer ldquoo que o Belo eacuterdquo (construccedilatildeo subjetiva) equivale a conhecer ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (construccedilatildeo predicativa)

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2) Elas podem ser belas em um momento poreacutem feias em outro Por

exemplo um Ipecirc pode ser belo na primavera quando em flor

poreacutem feio no inverno quando desfolhado

3) Elas podem ser belas quando comparadas a uma determinada coisa

poreacutem feias quando comparadas a outra Por exemplo a bela moccedila

descrita no Hiacuteppias Maior quando comparada a uma deusa deve

ser considerada feia

4) Elas podem ser belas em um determinado local poreacutem feias em

outro sendo belas para uns e feias para outros Por exemplo os

adornos de um iacutendio Xavante que satildeo belos para os membros de

sua tribo poreacutem feios para os frequentadores da feira de moda de

Milatildeo

Ora como todo objeto sensiacutevel possui uma multiplicidade de aspectos e

caracteriacutesticas eacute plenamente possiacutevel e ateacute mesmo esperado que estas entidades

sejam belas em um de seus aspectos e feias em outros Todo objeto sensiacutevel

possui por exemplo um formato uma cor um odor uma textura etc Sendo

assim devemos considerar natural o fato de que um mesmo objeto julgado belo

em sua forma possa natildeo parecer belo em sua cor ou em um outro aspecto

qualquer Note que o mesmo raciociacutenio vale para as accedilotildees que os interlocutores de

Soacutecrates oferecem como exemplos de virtudes nos diaacutelogos inicias Acusar

publicamente o seu proacuteprio pai pode ser um ato pio quando considerado a partir

dos aspectos legais de persecuccedilatildeo religiosa conforme argumenta Ecircutifron Poreacutem

quando analisado agrave luz dos laccedilos de consanguinidade e reverecircncia familiar este

mesmo ato eacute certamente um exemplo de impiedade

Do mesmo modo devido ao fato de todas as entidades sensiacuteveis estarem

sujeitas agrave passagem do tempo podemos considerar inevitaacutevel que coisas ou atos

considerados belos hoje deixaratildeo de secirc-lo em algum momento futuro ou mesmo

que natildeo tenham sido belos em algum instante do passado Um belo cavalo hoje

deixaraacute de ser belo quando velho ou morto e a escravizaccedilatildeo de um inimigo

derrotado em batalha considerada uma accedilatildeo justa em um passado natildeo muito

remoto eacute certamente julgada uma grande injusticcedila nos dias de hoje Estes poucos

exemplos satildeo suficientes para concluirmos que os dois primeiros itens da

enumeraccedilatildeo de Diotima representam casos plenamente compreensiacuteveis de

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diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel

Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as

entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves

diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas

No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros

de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente

justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto

Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua

sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com

Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os

exemplos acima mencionados

Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso

Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria

em a partir de

1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z

inferir

2) x eacute belo e natildeo belo

Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel

de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x

estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a

donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo

indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente

incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo

parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que

Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma

deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar

em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade

da sentenccedila

1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z

concluir que

2) x eacute belo e natildeo belo

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Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por

Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o

aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute

adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado

incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum

e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute

(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo

Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se

comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na

formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a

propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da

propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um

objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto

represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo

A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os

complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados

completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo

ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E

o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente

equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter

Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo

primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos

ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e

convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e

incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de

argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto

de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca

agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo

piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)

Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e

relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo

um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por

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meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como

veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados

incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates

para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o

modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em

mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que

argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar

entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias

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32 A inteligibilidade das Formas

Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica

da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter

inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo

estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu

discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar

esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela

razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo

Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o

Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com

aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)

Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da

Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido

apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um

caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma

passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender

que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo

(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem

esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de

Diotima

Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira

caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter

inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de

Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema

principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates

iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal

sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma

existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os

objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma

imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve

temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo

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conhecimento

As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando

Soacutecrates pergunta a Simmias

ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)

A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando

no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo

(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em

seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da

Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da

primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na

resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente

familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio

relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a

sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει

ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a

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expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na

qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso

sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde

diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das

expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de

designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do

personagem Simmias com a Teoria das Ideias13

A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates

afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das

expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por

meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal

afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em

busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a

mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que

tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos

De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir

esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das

belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave

vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo

natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave

espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber

informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas

Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este

ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar

11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a

given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)

12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico

13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades

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abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo

apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria

reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre

Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os

objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ

αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres

(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)

14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o

sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico

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33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis

A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute

particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua

exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates

desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar

como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos

oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo

(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente

traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas

natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os

oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis

enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo

assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las

conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um

momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o

intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel

Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui

algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem

argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como

move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas

por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos

tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a

possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas

simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa

condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento

(cf Bostock 1983 p60-63)

Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a

estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas

por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si

mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo

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de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e

74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates

pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras

Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos

sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos

objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode

ser esquematizado da seguinte maneira

1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada

propriedade P

2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P

3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a

mesma coisa

Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem

causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto

textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo

conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual

propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo

pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do

que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute

muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa

depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala

Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias

ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo

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Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)

Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a

existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da

Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo

afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de

que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais

a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo

ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto

certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na

conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes

de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural

devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados

para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )

enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)

Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as

ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo

tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo

parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo

Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com

tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf

Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como

ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p

134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que

chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor

exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente

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pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato

devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que

dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo

assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por

Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15

A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os

problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua

grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura

1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo

verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os

mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais

para outra pessoardquo

2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo

relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila

estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira

iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes

iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo

3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste

caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora

permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um

aspecto e desiguais em outro aspectordquo

As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo

com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada

pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da

Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura

parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o

mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para

um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a

15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees

estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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2) Elas podem ser belas em um momento poreacutem feias em outro Por

exemplo um Ipecirc pode ser belo na primavera quando em flor

poreacutem feio no inverno quando desfolhado

3) Elas podem ser belas quando comparadas a uma determinada coisa

poreacutem feias quando comparadas a outra Por exemplo a bela moccedila

descrita no Hiacuteppias Maior quando comparada a uma deusa deve

ser considerada feia

4) Elas podem ser belas em um determinado local poreacutem feias em

outro sendo belas para uns e feias para outros Por exemplo os

adornos de um iacutendio Xavante que satildeo belos para os membros de

sua tribo poreacutem feios para os frequentadores da feira de moda de

Milatildeo

Ora como todo objeto sensiacutevel possui uma multiplicidade de aspectos e

caracteriacutesticas eacute plenamente possiacutevel e ateacute mesmo esperado que estas entidades

sejam belas em um de seus aspectos e feias em outros Todo objeto sensiacutevel

possui por exemplo um formato uma cor um odor uma textura etc Sendo

assim devemos considerar natural o fato de que um mesmo objeto julgado belo

em sua forma possa natildeo parecer belo em sua cor ou em um outro aspecto

qualquer Note que o mesmo raciociacutenio vale para as accedilotildees que os interlocutores de

Soacutecrates oferecem como exemplos de virtudes nos diaacutelogos inicias Acusar

publicamente o seu proacuteprio pai pode ser um ato pio quando considerado a partir

dos aspectos legais de persecuccedilatildeo religiosa conforme argumenta Ecircutifron Poreacutem

quando analisado agrave luz dos laccedilos de consanguinidade e reverecircncia familiar este

mesmo ato eacute certamente um exemplo de impiedade

Do mesmo modo devido ao fato de todas as entidades sensiacuteveis estarem

sujeitas agrave passagem do tempo podemos considerar inevitaacutevel que coisas ou atos

considerados belos hoje deixaratildeo de secirc-lo em algum momento futuro ou mesmo

que natildeo tenham sido belos em algum instante do passado Um belo cavalo hoje

deixaraacute de ser belo quando velho ou morto e a escravizaccedilatildeo de um inimigo

derrotado em batalha considerada uma accedilatildeo justa em um passado natildeo muito

remoto eacute certamente julgada uma grande injusticcedila nos dias de hoje Estes poucos

exemplos satildeo suficientes para concluirmos que os dois primeiros itens da

enumeraccedilatildeo de Diotima representam casos plenamente compreensiacuteveis de

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diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel

Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as

entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves

diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas

No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros

de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente

justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto

Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua

sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com

Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os

exemplos acima mencionados

Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso

Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria

em a partir de

1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z

inferir

2) x eacute belo e natildeo belo

Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel

de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x

estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a

donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo

indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente

incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo

parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que

Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma

deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar

em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade

da sentenccedila

1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z

concluir que

2) x eacute belo e natildeo belo

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Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por

Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o

aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute

adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado

incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum

e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute

(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo

Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se

comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na

formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a

propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da

propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um

objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto

represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo

A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os

complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados

completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo

ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E

o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente

equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter

Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo

primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos

ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e

convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e

incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de

argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto

de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca

agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo

piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)

Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e

relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo

um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por

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meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como

veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados

incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates

para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o

modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em

mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que

argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar

entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias

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32 A inteligibilidade das Formas

Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica

da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter

inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo

estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu

discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar

esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela

razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo

Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o

Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com

aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)

Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da

Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido

apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um

caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma

passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender

que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo

(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem

esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de

Diotima

Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira

caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter

inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de

Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema

principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates

iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal

sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma

existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os

objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma

imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve

temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo

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conhecimento

As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando

Soacutecrates pergunta a Simmias

ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)

A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando

no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo

(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em

seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da

Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da

primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na

resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente

familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio

relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a

sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει

ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a

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expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na

qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso

sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde

diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das

expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de

designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do

personagem Simmias com a Teoria das Ideias13

A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates

afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das

expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por

meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal

afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em

busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a

mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que

tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos

De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir

esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das

belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave

vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo

natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave

espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber

informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas

Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este

ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar

11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a

given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)

12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico

13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades

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abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo

apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria

reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre

Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os

objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ

αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres

(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)

14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o

sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico

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33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis

A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute

particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua

exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates

desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar

como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos

oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo

(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente

traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas

natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os

oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis

enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo

assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las

conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um

momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o

intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel

Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui

algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem

argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como

move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas

por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos

tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a

possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas

simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa

condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento

(cf Bostock 1983 p60-63)

Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a

estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas

por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si

mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo

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de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e

74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates

pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras

Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos

sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos

objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode

ser esquematizado da seguinte maneira

1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada

propriedade P

2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P

3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a

mesma coisa

Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem

causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto

textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo

conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual

propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo

pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do

que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute

muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa

depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala

Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias

ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo

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Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)

Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a

existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da

Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo

afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de

que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais

a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo

ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto

certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na

conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes

de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural

devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados

para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )

enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)

Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as

ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo

tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo

parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo

Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com

tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf

Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como

ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p

134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que

chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor

exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente

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pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato

devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que

dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo

assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por

Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15

A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os

problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua

grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura

1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo

verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os

mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais

para outra pessoardquo

2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo

relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila

estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira

iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes

iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo

3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste

caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora

permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um

aspecto e desiguais em outro aspectordquo

As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo

com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada

pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da

Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura

parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o

mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para

um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a

15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees

estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel

Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as

entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves

diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas

No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros

de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente

justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto

Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua

sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com

Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os

exemplos acima mencionados

Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso

Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria

em a partir de

1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z

inferir

2) x eacute belo e natildeo belo

Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel

de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x

estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a

donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo

indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente

incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo

parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que

Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma

deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar

em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade

da sentenccedila

1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z

concluir que

2) x eacute belo e natildeo belo

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Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por

Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o

aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute

adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado

incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum

e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute

(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo

Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se

comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na

formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a

propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da

propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um

objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto

represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo

A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os

complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados

completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo

ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E

o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente

equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter

Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo

primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos

ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e

convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e

incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de

argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto

de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca

agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo

piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)

Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e

relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo

um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por

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meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como

veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados

incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates

para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o

modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em

mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que

argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar

entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias

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32 A inteligibilidade das Formas

Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica

da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter

inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo

estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu

discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar

esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela

razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo

Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o

Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com

aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)

Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da

Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido

apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um

caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma

passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender

que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo

(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem

esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de

Diotima

Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira

caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter

inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de

Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema

principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates

iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal

sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma

existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os

objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma

imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve

temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo

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conhecimento

As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando

Soacutecrates pergunta a Simmias

ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)

A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando

no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo

(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em

seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da

Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da

primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na

resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente

familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio

relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a

sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει

ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a

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expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na

qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso

sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde

diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das

expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de

designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do

personagem Simmias com a Teoria das Ideias13

A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates

afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das

expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por

meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal

afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em

busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a

mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que

tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos

De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir

esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das

belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave

vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo

natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave

espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber

informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas

Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este

ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar

11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a

given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)

12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico

13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades

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abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo

apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria

reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre

Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os

objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ

αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres

(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)

14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o

sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico

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33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis

A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute

particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua

exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates

desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar

como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos

oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo

(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente

traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas

natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os

oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis

enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo

assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las

conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um

momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o

intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel

Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui

algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem

argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como

move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas

por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos

tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a

possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas

simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa

condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento

(cf Bostock 1983 p60-63)

Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a

estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas

por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si

mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo

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de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e

74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates

pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras

Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos

sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos

objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode

ser esquematizado da seguinte maneira

1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada

propriedade P

2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P

3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a

mesma coisa

Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem

causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto

textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo

conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual

propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo

pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do

que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute

muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa

depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala

Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias

ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo

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Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)

Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a

existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da

Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo

afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de

que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais

a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo

ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto

certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na

conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes

de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural

devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados

para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )

enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)

Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as

ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo

tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo

parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo

Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com

tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf

Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como

ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p

134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que

chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor

exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente

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pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato

devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que

dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo

assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por

Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15

A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os

problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua

grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura

1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo

verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os

mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais

para outra pessoardquo

2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo

relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila

estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira

iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes

iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo

3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste

caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora

permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um

aspecto e desiguais em outro aspectordquo

As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo

com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada

pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da

Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura

parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o

mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para

um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a

15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees

estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por

Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o

aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute

adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado

incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum

e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute

(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo

Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se

comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na

formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a

propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da

propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um

objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto

represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo

A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os

complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados

completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo

ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E

o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente

equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter

Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo

primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos

ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e

convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e

incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de

argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto

de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca

agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo

piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)

Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e

relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo

um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por

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meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como

veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados

incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates

para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o

modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em

mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que

argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar

entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias

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32 A inteligibilidade das Formas

Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica

da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter

inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo

estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu

discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar

esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela

razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo

Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o

Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com

aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)

Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da

Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido

apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um

caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma

passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender

que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo

(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem

esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de

Diotima

Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira

caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter

inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de

Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema

principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates

iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal

sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma

existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os

objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma

imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve

temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo

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conhecimento

As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando

Soacutecrates pergunta a Simmias

ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)

A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando

no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo

(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em

seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da

Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da

primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na

resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente

familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio

relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a

sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει

ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a

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expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na

qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso

sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde

diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das

expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de

designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do

personagem Simmias com a Teoria das Ideias13

A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates

afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das

expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por

meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal

afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em

busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a

mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que

tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos

De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir

esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das

belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave

vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo

natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave

espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber

informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas

Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este

ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar

11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a

given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)

12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico

13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades

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abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo

apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria

reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre

Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os

objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ

αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres

(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)

14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o

sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico

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33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis

A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute

particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua

exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates

desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar

como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos

oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo

(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente

traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas

natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os

oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis

enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo

assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las

conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um

momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o

intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel

Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui

algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem

argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como

move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas

por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos

tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a

possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas

simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa

condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento

(cf Bostock 1983 p60-63)

Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a

estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas

por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si

mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo

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de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e

74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates

pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras

Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos

sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos

objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode

ser esquematizado da seguinte maneira

1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada

propriedade P

2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P

3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a

mesma coisa

Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem

causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto

textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo

conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual

propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo

pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do

que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute

muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa

depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala

Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias

ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo

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Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)

Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a

existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da

Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo

afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de

que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais

a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo

ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto

certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na

conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes

de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural

devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados

para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )

enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)

Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as

ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo

tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo

parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo

Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com

tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf

Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como

ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p

134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que

chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor

exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente

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pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato

devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que

dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo

assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por

Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15

A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os

problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua

grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura

1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo

verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os

mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais

para outra pessoardquo

2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo

relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila

estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira

iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes

iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo

3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste

caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora

permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um

aspecto e desiguais em outro aspectordquo

As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo

com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada

pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da

Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura

parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o

mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para

um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a

15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees

estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como

veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados

incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates

para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o

modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em

mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que

argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar

entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias

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32 A inteligibilidade das Formas

Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica

da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter

inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo

estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu

discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar

esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela

razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo

Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o

Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com

aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)

Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da

Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido

apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um

caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma

passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender

que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo

(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem

esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de

Diotima

Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira

caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter

inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de

Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema

principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates

iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal

sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma

existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os

objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma

imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve

temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo

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conhecimento

As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando

Soacutecrates pergunta a Simmias

ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)

A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando

no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo

(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em

seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da

Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da

primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na

resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente

familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio

relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a

sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει

ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a

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expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na

qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso

sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde

diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das

expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de

designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do

personagem Simmias com a Teoria das Ideias13

A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates

afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das

expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por

meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal

afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em

busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a

mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que

tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos

De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir

esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das

belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave

vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo

natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave

espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber

informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas

Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este

ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar

11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a

given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)

12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico

13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades

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abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo

apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria

reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre

Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os

objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ

αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres

(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)

14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o

sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico

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33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis

A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute

particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua

exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates

desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar

como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos

oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo

(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente

traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas

natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os

oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis

enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo

assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las

conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um

momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o

intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel

Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui

algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem

argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como

move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas

por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos

tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a

possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas

simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa

condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento

(cf Bostock 1983 p60-63)

Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a

estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas

por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si

mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo

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de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e

74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates

pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras

Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos

sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos

objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode

ser esquematizado da seguinte maneira

1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada

propriedade P

2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P

3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a

mesma coisa

Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem

causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto

textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo

conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual

propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo

pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do

que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute

muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa

depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala

Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias

ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo

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Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)

Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a

existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da

Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo

afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de

que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais

a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo

ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto

certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na

conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes

de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural

devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados

para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )

enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)

Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as

ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo

tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo

parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo

Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com

tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf

Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como

ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p

134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que

chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor

exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente

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pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato

devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que

dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo

assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por

Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15

A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os

problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua

grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura

1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo

verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os

mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais

para outra pessoardquo

2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo

relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila

estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira

iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes

iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo

3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste

caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora

permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um

aspecto e desiguais em outro aspectordquo

As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo

com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada

pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da

Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura

parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o

mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para

um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a

15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees

estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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32 A inteligibilidade das Formas

Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica

da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter

inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo

estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu

discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar

esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela

razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo

Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o

Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com

aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)

Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da

Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido

apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um

caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma

passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender

que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo

(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem

esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de

Diotima

Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira

caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter

inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de

Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema

principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates

iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal

sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma

existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os

objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma

imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve

temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo

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conhecimento

As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando

Soacutecrates pergunta a Simmias

ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)

A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando

no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo

(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em

seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da

Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da

primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na

resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente

familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio

relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a

sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει

ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a

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expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na

qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso

sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde

diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das

expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de

designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do

personagem Simmias com a Teoria das Ideias13

A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates

afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das

expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por

meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal

afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em

busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a

mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que

tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos

De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir

esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das

belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave

vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo

natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave

espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber

informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas

Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este

ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar

11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a

given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)

12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico

13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades

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abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo

apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria

reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre

Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os

objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ

αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres

(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)

14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o

sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico

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33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis

A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute

particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua

exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates

desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar

como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos

oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo

(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente

traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas

natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os

oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis

enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo

assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las

conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um

momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o

intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel

Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui

algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem

argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como

move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas

por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos

tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a

possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas

simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa

condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento

(cf Bostock 1983 p60-63)

Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a

estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas

por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si

mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo

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de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e

74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates

pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras

Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos

sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos

objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode

ser esquematizado da seguinte maneira

1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada

propriedade P

2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P

3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a

mesma coisa

Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem

causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto

textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo

conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual

propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo

pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do

que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute

muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa

depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala

Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias

ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo

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Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)

Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a

existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da

Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo

afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de

que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais

a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo

ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto

certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na

conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes

de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural

devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados

para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )

enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)

Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as

ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo

tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo

parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo

Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com

tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf

Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como

ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p

134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que

chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor

exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente

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pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato

devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que

dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo

assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por

Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15

A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os

problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua

grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura

1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo

verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os

mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais

para outra pessoardquo

2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo

relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila

estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira

iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes

iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo

3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste

caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora

permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um

aspecto e desiguais em outro aspectordquo

As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo

com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada

pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da

Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura

parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o

mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para

um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a

15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees

estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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conhecimento

As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando

Soacutecrates pergunta a Simmias

ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)

A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando

no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo

(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em

seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da

Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da

primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na

resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente

familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio

relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a

sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει

ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a

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expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na

qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso

sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde

diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das

expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de

designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do

personagem Simmias com a Teoria das Ideias13

A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates

afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das

expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por

meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal

afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em

busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a

mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que

tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos

De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir

esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das

belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave

vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo

natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave

espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber

informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas

Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este

ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar

11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a

given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)

12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico

13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades

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abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo

apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria

reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre

Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os

objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ

αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres

(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)

14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o

sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico

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33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis

A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute

particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua

exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates

desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar

como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos

oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo

(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente

traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas

natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os

oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis

enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo

assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las

conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um

momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o

intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel

Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui

algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem

argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como

move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas

por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos

tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a

possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas

simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa

condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento

(cf Bostock 1983 p60-63)

Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a

estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas

por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si

mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo

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de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e

74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates

pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras

Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos

sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos

objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode

ser esquematizado da seguinte maneira

1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada

propriedade P

2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P

3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a

mesma coisa

Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem

causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto

textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo

conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual

propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo

pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do

que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute

muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa

depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala

Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias

ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo

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Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)

Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a

existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da

Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo

afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de

que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais

a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo

ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto

certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na

conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes

de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural

devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados

para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )

enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)

Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as

ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo

tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo

parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo

Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com

tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf

Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como

ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p

134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que

chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor

exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente

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pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato

devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que

dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo

assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por

Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15

A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os

problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua

grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura

1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo

verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os

mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais

para outra pessoardquo

2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo

relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila

estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira

iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes

iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo

3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste

caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora

permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um

aspecto e desiguais em outro aspectordquo

As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo

com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada

pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da

Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura

parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o

mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para

um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a

15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees

estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na

qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso

sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde

diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das

expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de

designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do

personagem Simmias com a Teoria das Ideias13

A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates

afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das

expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por

meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal

afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em

busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a

mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que

tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos

De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir

esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das

belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave

vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo

natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave

espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber

informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas

Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este

ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar

11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a

given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)

12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico

13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades

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abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo

apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria

reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre

Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os

objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ

αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres

(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)

14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o

sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico

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33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis

A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute

particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua

exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates

desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar

como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos

oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo

(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente

traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas

natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os

oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis

enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo

assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las

conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um

momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o

intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel

Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui

algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem

argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como

move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas

por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos

tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a

possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas

simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa

condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento

(cf Bostock 1983 p60-63)

Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a

estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas

por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si

mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo

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de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e

74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates

pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras

Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos

sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos

objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode

ser esquematizado da seguinte maneira

1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada

propriedade P

2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P

3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a

mesma coisa

Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem

causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto

textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo

conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual

propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo

pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do

que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute

muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa

depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala

Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias

ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo

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Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)

Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a

existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da

Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo

afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de

que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais

a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo

ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto

certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na

conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes

de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural

devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados

para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )

enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)

Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as

ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo

tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo

parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo

Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com

tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf

Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como

ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p

134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que

chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor

exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente

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pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato

devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que

dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo

assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por

Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15

A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os

problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua

grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura

1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo

verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os

mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais

para outra pessoardquo

2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo

relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila

estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira

iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes

iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo

3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste

caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora

permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um

aspecto e desiguais em outro aspectordquo

As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo

com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada

pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da

Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura

parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o

mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para

um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a

15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees

estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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166

36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo

apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria

reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre

Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os

objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ

αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres

(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)

14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o

sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico

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33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis

A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute

particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua

exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates

desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar

como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos

oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo

(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente

traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas

natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os

oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis

enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo

assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las

conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um

momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o

intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel

Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui

algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem

argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como

move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas

por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos

tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a

possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas

simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa

condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento

(cf Bostock 1983 p60-63)

Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a

estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas

por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si

mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo

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de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e

74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates

pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras

Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos

sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos

objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode

ser esquematizado da seguinte maneira

1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada

propriedade P

2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P

3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a

mesma coisa

Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem

causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto

textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo

conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual

propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo

pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do

que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute

muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa

depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala

Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias

ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo

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Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)

Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a

existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da

Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo

afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de

que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais

a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo

ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto

certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na

conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes

de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural

devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados

para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )

enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)

Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as

ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo

tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo

parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo

Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com

tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf

Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como

ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p

134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que

chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor

exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente

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pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato

devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que

dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo

assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por

Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15

A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os

problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua

grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura

1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo

verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os

mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais

para outra pessoardquo

2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo

relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila

estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira

iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes

iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo

3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste

caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora

permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um

aspecto e desiguais em outro aspectordquo

As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo

com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada

pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da

Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura

parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o

mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para

um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a

15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees

estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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161

receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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144

33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis

A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute

particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua

exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates

desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar

como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos

oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo

(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente

traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas

natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os

oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis

enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo

assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las

conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um

momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o

intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel

Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui

algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem

argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como

move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas

por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos

tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a

possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas

simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa

condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento

(cf Bostock 1983 p60-63)

Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a

estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas

por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si

mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo

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de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e

74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates

pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras

Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos

sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos

objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode

ser esquematizado da seguinte maneira

1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada

propriedade P

2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P

3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a

mesma coisa

Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem

causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto

textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo

conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual

propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo

pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do

que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute

muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa

depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala

Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias

ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo

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Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)

Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a

existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da

Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo

afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de

que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais

a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo

ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto

certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na

conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes

de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural

devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados

para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )

enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)

Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as

ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo

tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo

parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo

Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com

tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf

Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como

ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p

134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que

chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor

exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente

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pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato

devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que

dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo

assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por

Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15

A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os

problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua

grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura

1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo

verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os

mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais

para outra pessoardquo

2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo

relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila

estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira

iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes

iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo

3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste

caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora

permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um

aspecto e desiguais em outro aspectordquo

As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo

com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada

pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da

Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura

parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o

mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para

um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a

15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees

estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e

74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates

pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras

Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos

sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos

objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode

ser esquematizado da seguinte maneira

1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada

propriedade P

2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P

3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a

mesma coisa

Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem

causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto

textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo

conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual

propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo

pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do

que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute

muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa

depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala

Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias

ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo

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Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)

Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a

existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da

Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo

afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de

que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais

a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo

ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto

certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na

conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes

de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural

devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados

para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )

enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)

Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as

ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo

tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo

parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo

Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com

tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf

Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como

ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p

134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que

chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor

exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente

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pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato

devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que

dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo

assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por

Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15

A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os

problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua

grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura

1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo

verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os

mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais

para outra pessoardquo

2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo

relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila

estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira

iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes

iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo

3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste

caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora

permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um

aspecto e desiguais em outro aspectordquo

As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo

com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada

pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da

Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura

parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o

mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para

um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a

15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees

estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)

Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a

existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da

Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo

afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de

que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais

a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo

ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto

certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na

conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes

de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural

devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados

para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )

enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)

Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as

ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo

tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo

parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo

Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com

tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf

Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como

ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p

134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que

chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor

exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente

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pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato

devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que

dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo

assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por

Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15

A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os

problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua

grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura

1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo

verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os

mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais

para outra pessoardquo

2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo

relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila

estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira

iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes

iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo

3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste

caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora

permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um

aspecto e desiguais em outro aspectordquo

As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo

com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada

pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da

Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura

parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o

mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para

um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a

15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees

estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato

devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que

dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo

assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por

Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15

A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os

problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua

grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura

1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo

verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria

ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os

mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais

para outra pessoardquo

2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo

relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila

estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira

iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes

iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo

3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste

caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora

permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um

aspecto e desiguais em outro aspectordquo

As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo

com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada

pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da

Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura

parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o

mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para

um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a

15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees

estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos

pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A

desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um

indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira

Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom

exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica

inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo

podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo

justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees

enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos

De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia

de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os

particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16

A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista

gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas

de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a

outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo

comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute

78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma

caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que

as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira

y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura

encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre

igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra

ἐνίοτε (agraves vezes)

De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo

de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem

indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a

sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho

podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo

prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a

16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a

igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados

anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em

que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes

1964 p21)

A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser

gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no

Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock

caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo

certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A

despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando

ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de

definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)

irrelevante (cf Haynes 1964 p21)

Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a

passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento

De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre

Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos

sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em

contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que

elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas

proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a

predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no

caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou

quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo

Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas

estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das

coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal

(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento

de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como

conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma

passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de

demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis

Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em

detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar

que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre

simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por

Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos

pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em

nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta

ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de

madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais

Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e

desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos

sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis

podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo

modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que

outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E

podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas

opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ

cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as

indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a

proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a

linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos

sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)

O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica

de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta

com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma

caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave

predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se

encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo

(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς

δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)

A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio

de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os

objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de

maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das

Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na

designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes

Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon

podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que

mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis

parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu

argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca

parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade

natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da

realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos

natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a

afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram

desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)

Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a

premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da

Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a

sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a

seguinte forma loacutegica

1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P

(ser desigual)

2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o

atributo P

3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)

4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A

Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute

escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a

conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais

sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser

17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates

fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo

menos minimamente compreensiacutevel

Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa

principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades

ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a

Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura

de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de

desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)

(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade

P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade

natildeo possui

Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para

decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se

referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois

tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma

redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e

consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores

Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo

plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-

270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida

em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa

ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo

se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de

Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo

de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o

argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser

ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso

contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)

Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar

αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a

despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a

Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que

αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para

significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o

substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965

p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa

alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj

(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)

Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute

importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar

perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em

questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e

do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo

naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo

belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas

correspondentes18

De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre

expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular

No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico

vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ

τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a

locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade

Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo

αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de

objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a

locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos

sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o

pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ

18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo

nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf

Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)

Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos

que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa

inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais

sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles

mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob

pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica

Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao

mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo

plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados

ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica

citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um

triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta

interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao

argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades

matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A

dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e

desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio

proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de

doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo

estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19

Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser

resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ

τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical

da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para

discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como

notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da

expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a

19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante

improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo

(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)

Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes

ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)

De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas

propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui

grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui

pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e

presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que

determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da

grandeza quanto da pequenez

Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca

um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas

ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)

A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a

grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato

teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates

estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis

adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que

qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada

Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a

expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir

ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf

Dancy 1991 p14-18)

Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de

que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem

(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta

oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de

entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades

em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave

predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de

particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo

perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que

a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que

raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto

sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma

Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico

destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram

localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν

ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante

evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou

20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas

com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel

depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser

confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo

podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias

digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando

comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m

de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo

entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo

localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes

da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos

Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de

opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia

buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c

pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da

apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo

possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis

eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo

Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram

desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo

Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as

propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a

mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute

sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso

ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos

tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades

imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas

entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis

natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo

considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo

que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este

objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y

Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao

objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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166

36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica

Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y

(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo

que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves

propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento

de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que

se mostra relevante para discussatildeo

21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual

z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis

Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de

74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que

propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre

Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis

serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que

natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a

literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos

sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos

1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem

apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo

exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados

simultaneamente iguais e desiguais

2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da

desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente

(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma

pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto

poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y

iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde

Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso

entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas

tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos

(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior

ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de

raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que

ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais

proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)

Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades

apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria

sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como

nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e

aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria

ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis

iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como

ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem

iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι

[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)

Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado

um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente

superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas

coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo

parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo

comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o

mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema

precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos

pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute

precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia

sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)

desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo

considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja

exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais

e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a

meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de

precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para

questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada

para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade

numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco

natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por

fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos

imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os

objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-

los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque

diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso

perfeito de curva

Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos

sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior

que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute

exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso

Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato

deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no

fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional

Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em

relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu

comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de

um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com

outras entidades do mundo sensiacutevel

Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas

para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo

Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que

mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ

αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra

entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute

demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada

uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema

consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como

evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave

grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis

apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um

mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades

imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas

entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando

comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς

Rep612a Feacuted78d Banq211b)

Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer

uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ

διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por

naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se

desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um

aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes

partes separadas e sua unidade dissolvida

Soacutecrates entatildeo diz

ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες

Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as

expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)

sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida

confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros

diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada

coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)

A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira

geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo

empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de

cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22

Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma

por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de

alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)

Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as

quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia

ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos

(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo

sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo

estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a

uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e

em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de

propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas

(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor

tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι

ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)

Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma

caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas

propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com

outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a

complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes

Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas

mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer

tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo

(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que

22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo

objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a

constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo

(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se

decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees

em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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36 O poder causal das Formas

Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os

diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder

causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do

Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos

1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)

que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela

Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as

coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)

2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute

bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)

3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)

4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9

297a1-7 297a8 297b1-2)

Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias

pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a

ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das

Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia

com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua

decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo

Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees

causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o

desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos

Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava

uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao

lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo

Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se

adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos

eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo

Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees

devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza

ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou

diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem

faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas

unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a

grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da

diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer

Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma

unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο

γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma

causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem

poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos

causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute

considerado um contra-senso para Soacutecrates

Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois

princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as

explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas

por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por

outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem

explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas

teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos

explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem

outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a

divisatildeo

Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa

necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez

contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser

usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo

do mesmo nuacutemero oito em seis

Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma

causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de

causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa

um determinado efeito

Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o

estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em

apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos

opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha

muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates

como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo

apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem

plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de

caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do

maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais

explicativos

Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para

causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de

αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando

ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua

grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que

algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande

seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo

lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto

certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute

pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)

A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente

absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo

apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela

mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza

Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa

busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de

contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter

causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve

estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma

gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta

Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a

concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna

encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou

universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um

niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas

como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser

apresentado como a αἰτία de algo

De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como

causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece

muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e

citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que

poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por

outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo

surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa

como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel

pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece

tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir

a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23

Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de

causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute

diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos

contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo

designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo

(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso

atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de

coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz

para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de

Soacutecrates

Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado

(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as

circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta

23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como

causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou

pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira

como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a

dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais

ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo

tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de

determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido

Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados

por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica

nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de

uma causa

1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos

2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito

3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em

seu efeito

Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre

causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a

infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como

causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo

Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees

estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x

podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que

identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x

Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por

Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem

adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico

A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das

entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de

qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento

em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave

caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma

entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de

consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta

senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24

Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos

por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo

podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os

objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de

relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades

internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo

inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e

detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que

Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada

propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo

objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F

Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis

seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a

propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com

a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis

natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar

de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira

responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo

fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza

As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de

necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo

causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de

suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute

bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum

outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o

restordquo (100c4-6)

24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo

o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo

Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau

de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos

meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como

ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos

diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula

αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica

das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para

busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia

ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas

representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental

continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado

com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas

Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a

relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida

em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e

apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute

estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos

perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem

Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se

manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente

Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo

socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus

interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos

iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas

minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates

Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a

plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas

possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O

Metafiacutesica Z 9

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta

ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e

companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e

a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale

abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que

seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que

estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada

O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da

intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos

(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico

(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua

contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros

Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida

estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e

devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre

matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da

Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e

com ares de revelaccedilatildeo

Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que

Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com

uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo

Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e

interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece

arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado

orador

Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de

inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo

dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas

socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos

diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o

esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido

delineada nos diaacutelogos iniciais

Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por

definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este

leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade

ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante

e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel

(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo

nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura

incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)

completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre

como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)

Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades

compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a

nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo

da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras

entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)

Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente

auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma

do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute

sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos

sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a

propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc

No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz

criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da

argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas

nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia

apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e

natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com

base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias

eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-

relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer

tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo

Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer

que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a

copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas

fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias

Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem

fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De

acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento

de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis

ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este

tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos

justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre

manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais

afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute

grande simpliciter

A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo

dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias

somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente

Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser

apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou

tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade

inclusive de si proacuteprio

A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele

mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por

ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o

Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela

pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo

pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os

objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo

ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila

de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto

(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a

qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu

papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca

socraacutetica por definiccedilotildees

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