3. a explicitação da ontologia socrática nos diálogos médios · 129 . 3.1. o discurso de...
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3 A Explicitaccedilatildeo da Ontologia Socraacutetica nos Diaacutelogos Meacutedios
Os diaacutelogos tradicionalmente considerados pertencentes agrave fase meacutedia de
Platatildeo satildeo Banquete Feacutedon e Repuacuteblica somados ao Parmecircnides e ao Teeteto
como diaacutelogos de transiccedilatildeo para uacuteltima fase1 Como vimos no primeiro capiacutetulo
os estudos estilomeacutetricos natildeo suportam esta divisatildeo da obra de Platatildeo pois
colocam o Banquete e o Feacutedon nos mesmo grupo estiliacutestico dos primeiros
diaacutelogos Contudo assim como acontece com as obras usualmente classificadas
de ldquodiaacutelogos da juventuderdquo eacute inegaacutevel que sobretudo o Banquete o Feacutedon e a
Repuacuteblica possuem semelhanccedilas estruturais e dramaacuteticas muito fortes Nestes
diaacutelogos Soacutecrates abandona o seu meacutetodo de refutaccedilatildeo (eAtildelegxoj)2 em nome de
uma exposiccedilatildeo mais professoral de suas doutrinas o que se traduz textualmente
na substituiccedilatildeo das constantes perguntas e respostas que encontramos nos diaacutelogos
iniciais por falas mais prolongadas e mais ricas em descriccedilotildees Coerentemente o
caraacuteter aporeacutetico dos diaacutelogos inicias tambeacutem eacute abandonado e substituiacutedo pela
apresentaccedilatildeo de hipoacuteteses teoacutericas com um valor mais claramente positivo
Para a corrente de interpretaccedilatildeo desenvolvimentista estas mudanccedilas
refletem o despertar intelectual de Platatildeo como fica claro na seguinte explicaccedilatildeo
oferecida por Bostock
ldquoOs diaacutelogos iniciais natildeo satildeo construiacutedos como uma exposiccedilatildeo de ou argumentos para nenhuma doutrina particular Certamente haacute temas que recorrem com frequecircncia () Mas uma das principais caracteriacutesticas destes diaacutelogos iniciais eacute que eles satildeo constantemente criacuteticos () eles invariavelmente terminam negativamente com a conclusatildeo de que nenhuma resposta satisfatoacuteria foi alcanccedilada (hellip) Mas em direccedilatildeo ao fim deste periacuteodo inicial noacutes comeccedilamos a encontrar algo mais positivo (hellip) e nos diaacutelogos meacutedios a confianccedila de Platatildeo
1 Esta eacute a listagem apresentada por Vlastos (1991 p47) Para uma discussatildeo mais detalhada sobre organizaccedilatildeo dos diaacutelogos consulte o primerio capiacutetulo 2 Na realidade o eAtildelegxoj socraacutetico natildeo desaparece completamente pois podemos encontraacute-lo no primeiro livro da Repuacuteblica e na conversa entre Soacutecrates e Agatatildeo no Banquete Eacute muito claro no entanto que nos diaacutelogos meacutedios o eAtildelegxoj perde o papel estrutural que possuia nos diaacutelogos inicias e eacute substituiacutedo pelo chamado ldquomeacutetodo hipoteacuteticordquo (cf o uso de u(poqemenoj Fed100b5 e tiqesqai Rep596a7) Um influente estudo sobre o meacutetodo hipoteacutetico nos diaacutelogos meacutedios pode ser encontrado em Robinson (1941 p97-192)
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floresce Natildeo haacute duacutevida de que no Feacutedon no Banquete na Repuacuteblica e no Timeu3 Platatildeo estaacute definitivamente sugerindo um certo nuacutemero de doutrinas sobre uma variedade de toacutepicos Ele agora pensa que encontrou a soluccedilatildeo para seus problemas e o questionamento ceacutetico de Soacutecrates foi deixado para traacutesrdquo (Bostock 1988 p13)
Ora como nosso estudo identificou menccedilotildees agraves Formas platocircnicas nos
diaacutelogos iniciais natildeo devemos concordar com a descriccedilatildeo de Bostock segundo a
qual os diaacutelogos iniciais satildeo obras puramente criacuteticas sem exposiccedilatildeo de doutrinas
positivas Tampouco temos motivos para corroborar a descriccedilatildeo dos estados
emocionais de Platatildeo por ele realizada Por outro lado nossos resultados nos
permitem oferecer uma explicaccedilatildeo para a diferenccedila entre os dois primeiros grupos
de diaacutelogos que natildeo extrapola o acircmbito puramente textual e natildeo incorre no erro de
atribuir um valor puramente negativo aos primeiros diaacutelogos Para isto basta que
entendamos as mudanccedilas apontadas por Bostock como mudanccedilas no modo de
exposiccedilatildeo de uma mesma hipoacutetese teoacuterica Enquanto os primeiros diaacutelogos
mencionam as Formas de maneira sutil e antecipatoacuteria os diaacutelogos meacutedios
apresentam explicitamente a Teoria das Ideias Desta maneira como decorrecircncia
do modo de exposiccedilatildeo proleacuteptico que identificamos em Platatildeo podemos aceitar a
divisatildeo usual entre uma fase inicial e uma fase meacutedia que de fato parece refletir
corretamente certas caracteriacutesticas formais e dramaacuteticas dos diaacutelogos sem adotar
uma interpretaccedilatildeo de caraacuteter desenvolvimentista
Portanto segundo nossa compreensatildeo o presente capiacutetulo analisaraacute dois
diaacutelogos (Feacutedon e Banquete) em que Platatildeo expotildee de maneira mais expliacutecita e
sistemaacutetica as teses que compotildeem a Teoria das Ideias Como nosso interesse
limita-se ao que venho chamando de ldquonuacutecleo ontoloacutegicordquo desta teoria focaremos
nossa investigaccedilatildeo nas passagens em que o personagem Soacutecrates explica o que
satildeo as Formas expondo mais minuciosamente as diferenccedilas entre o modo de ser
destas entidades e o modo de ser das coisas sensiacuteveis
3 A inclusatildeo do Timeu nesta lista deve-se agrave argumentaccedilatildeo desenvolvida por Owen (1965) que Bostock reconhece como vaacutelida A identificaccedilatildeo do Timeu como um diaacutelogo da fase meacutedia eacute no entanto extremamente controversa e no meu entendimento errocircnea Para uma contra-
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31 O discurso de Diotima e a revelaccedilatildeo da Forma do Bel o
Dentre os diaacutelogos que compotildeem a fase meacutedia aquele em que as Formas
satildeo apresentadas de maneira mais resumida eacute certamente o Banquete Neste
diaacutelogo Soacutecrates participa de uma festa em celebraccedilatildeo agrave primeira vitoacuteria de
Agatatildeo em competiccedilotildees dramaacuteticas e se vecirc obrigado como cada um dos
participantes a oferecer um discurso em louvor (e)gkwmion177b ou e)painoj
177d) ao deus Eros No entanto ao inveacutes de compor seu proacuteprio discurso
Soacutecrates prefere recontar as palavras de Diotima uma sacerdotisa da Mantineacuteia
saacutebia nas coisas relativas a Eros e instrutora de Soacutecrates nas artes do amor (τὰ
ἐρωτικὰ) Relembrando as palavras de Diotima Soacutecrates desenvolve uma
surpreendente narrativa acerca do amor repleto de referecircncias miacutetico-religiosas
ao final da qual o leitor do diaacutelogo eacute apresentado agrave verdadeira natureza da Beleza
Seu discurso foca-se na revelaccedilatildeo de uma uacutenica Forma e sua estrateacutegia
argumentativa consiste em levar o ouvinte a ascender progressivamente do amor e
desejo eroacutetico pelas coisas sensiacuteveis ao amor e desejo eroacutetico pela Forma do Belo
Seraacute a contraposiccedilatildeo entre as muacuteltiplas coisas belas (corpos costumes leis e
ciecircncias) e o Belo ele mesmo si (αὐτὸ τὸ καλόν) o que daraacute a Soacutecrates o ensejo de
contrastar o modo de ser das coisas sensiacuteveis com o modo de ser das Formas
Antes de apresentar o Belo como o objeto uacuteltimo de todo desejo eroacutetico e
introduzir explicitamente o segundo poacutelo da disjunccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel
Soacutecrates nos fornece uma descriccedilatildeo da fraacutegil e passageira condiccedilatildeo do que eacute
mortal Segundo ele
ldquoquando dizemos de cada ser vivo que ele vive e permanece o mesmo - por exemplo dizemos que ele permanece o mesmo desde a infacircncia agrave velhice ele na realidade natildeo possui jamais em si as mesmas coisas (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) Mesmo se dizemos que ele permanece o mesmo ele natildeo cessa contudo de se renovar e perder certas coisas nos cabelos nas carnes nos ossos no sangue e em todo corpo E isto eacute vaacutelido natildeo somente para o corpo mas tambeacutem para a alma Os costumes as opiniotildees desejos prazeres afliccedilotildees temores cada um destes afetos jamais permanece o mesmo em cada um de noacutes mas uns nascem e outros morremrdquo4 ἐπεὶ καὶ ἐν ᾧ ἓν ἕκαστον τῶν ζῴων ζῆν καλεῖται καὶ εἶναι τὸ αὐτόndash οἷον ἐκ
argumentaccedilatildeo agrave Owen (cfCherniss 1965) 4 Nossa traduccedilatildeo segue o texto de Brisson (2007) que natildeo aceita a pontuaccedilatildeo estabelecida por
Burnet (cf Brisson 2007 p 212 n436)
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παιδαρίου ὁ αὐτὸς λέγεται ἕως ἂν πρεσβύτης γένηται οὗτος microέντοι οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ ὅmicroως ὁ αὐτὸς καλεῖται ἀλλὰ νέος ἀεὶ γιγνόmicroενος τὰ δὲ ἀπολλύς καὶ κατὰ τὰς τρίχας καὶ σάρκα καὶ ὀστᾶ καὶ αἷmicroα καὶ σύmicroπαν τὸ σῶmicroα καὶ microὴ ὅτι κατὰ τὸ σῶmicroα ἀλλὰ καὶ κατὰ τὴν ψυχὴν οἱ τρόποι τὰ ἤθη δόξαι ἐπιθυmicroίαι ἡδοναί λῦπαι φόβοι τούτων ἕκαστα οὐδέποτε τὰ αὐτὰ πάρεστιν ἑκάστῳ ἀλλὰ τὰ microὲν γίγνεται τὰ δὲ ἀπόλλυται (207d4-e5)
De acordo com as liccedilotildees de Diotima eacute na tentativa de superar esta
impermanecircncia inerente a tudo aquilo que eacute mortal que os animais bestas e
homens se lanccedilam com ardor no desejo de procriaccedilatildeo Afinal ldquoeacute deste modo que
tudo o que eacute mortal se conserva natildeo pelo fato de absolutamente ser sempre o
mesmo (οὐ τῷ παντάπασιν τὸ αὐτὸ ἀεὶ εἶναι) como o que eacute divino mas pelo fato
daquele que parte e envelhece deixar um outro ser novo tal como ele erardquo
(208a7-b2) Assim Soacutecrates contrasta a inconstacircncia daquilo que eacute mortal apenas
dito o mesmo (ὁ αὐτὸς καλεῖται) poreacutem ldquosem possuir jamais em si as mesmas
coisasrdquo (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) com a permanecircncia do que eacute imortal
(ἀθάνατον 208b4) que ldquoeacute absolutamente sempre o mesmordquo (παντάπασιν τὸ αὐτὸ
ἀεὶ εἶναι)
Os ouvintes de Soacutecrates tal como aquele que estaacute lendo o diaacutelogo pela
primeira vez natildeo reconhecem nesta comparaccedilatildeo entre o modo de existecircncia dos
seres mortais e modo de existecircncia do seres imortais o contraste entre Formas e
coisas que seraacute revelado ao final do discurso Contudo um leitor habituado ao
modo de escrita platocircnico pode facilmente identificar nesta fala uma antecipaccedilatildeo
da comparaccedilatildeo entre o modo de existecircncia das coisas belas sensiacuteveis e o modo de
existecircncia do Belo Este leitor seraacute capaz de reconhecer que o adjetivo ldquoimortalrdquo
(ἀθάνατον) utilizado na passagem acima citada como sinocircnimo de ldquodivinordquo
(θεῖον) natildeo se refere apenas aos deuses mas inclui em seu campo de aplicaccedilatildeo a
proacutepria Forma do Belo que como seraacute elucidado ao final do discurso tambeacutem ldquoeacute
para semprerdquo (ἀεὶ ὂν 211a1) Deste modo a relaccedilatildeo mortalimortal facilmente
compreensiacutevel para os representantes da elite cultural ateniense presentes no
banquete eacute utilizada para introduzir a distinccedilatildeo entre o modo de ser das muacuteltiplas
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo
O caminho que leva agrave revelaccedilatildeo do Belo inicia-se com o reconhecimento
da unidade subjacente a tudo aquilo que eacute belo em um movimento facilmente
identificaacutevel por um leitor familiarizado com a argumentaccedilatildeo dos diaacutelogos de
primeira fase O iniciado nas artes do amor (τὰ ἐρωτικὰ) comeccedilaraacute por amar a um
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soacute belo corpo e como resultado deste amor engendraraacute belos discursos Em
seguida ele seraacute levado a reconhecer que a beleza que reside em um corpo
qualquer eacute irmatilde (ἀδελφόν) da que estaacute em outro belo corpo e que portanto ldquoseria
muita tolice natildeo considerar uma soacute e a mesma (ἕν τε καὶ ταὐτὸν) a beleza que
reside em todos os corposrdquo (210b2-3) Apoacutes este momento ele passaraacute a
considerar a beleza presente nas almas mais valiosa do que aquela presente nos
corpos e seraacute capaz de ldquocontemplar o belo nos costumes e nas leis e ver que em si
mesmo o belo eacute sempre semelhante a si mesmo (πᾶν αὐτὸ αὑτῷ συγγενές ἐστιν)rdquo
(210c3-5) Por fim ele veraacute a beleza tambeacutem nos diversos ramos da ciecircncias
(ἐπιστηmicroῶν) ateacute que ldquoolhando agora para o belo nesta multiplicidade deixe de
amar como um escravo a beleza de um soacute jovem homem ou costume (hellip) e
contemple ele uma certa ciecircncia uacutenica tal que seu objeto eacute Belezardquo (210d1-e1)
Apesar do caraacuteter miacutestico-religioso5 do discurso de Diotima natildeo possuir
precedentes nos diaacutelogos da primeira fase podemos reconhecer no percurso de
ascensatildeo do iniciado nos ensinamentos do amor a busca pela unidade do εἶδος
que encontramos nos diaacutelogos definicionais Da mesma maneira que Laacuteques eacute
instigado por Soacutecrates a buscar ldquoaquilo que eacute idecircntico em todos os casos de
coragemrdquo (ἐν πᾶσι τούτοις ταὐτόν ἐστιν Laq191e4-11) e Ecircutifron a apresentar ldquoa
piedade ela mesma que eacute idecircntica a si mesma em toda accedilatildeo piedosardquo (ταὐτόν
ἐστιν ἐν πάσῃ πράξει τὸ ὅσιον αὐτὸ αὑτῷ Eut5d1-2)6 o iniciado nas artes do
amor eacute levado a reconhecer que a beleza que reside em tudo aquilo que eacute belo eacute
ldquouma soacute e a mesmardquo (ἕν τε καὶ ταὐτὸν) Ele enfim concluiraacute que ldquoem si mesmo o
belo eacute sempre semelhante a si mesmordquo (αὐτὸ αὑτῷ συγγενές ἐστιν) Pois apesar
de pertencerem a niacuteveis distintos na escala de revelaccedilatildeo dos misteacuterios do amor
sendo cada estaacutegio superior ao precedente o belo do corpo o belo da alma dos
costumes e das ciecircncias eacute o mesmo na medida em que todas estas coisas
participam (πάντα καλὰ microετέχοντα) do Belo em si Forma uacutenica e causa universal
de tudo aquilo que eacute belo
Assim ldquoaquele que tenha contemplado na sua ordem e sucessatildeo correta
as coisas belas chegando ao teacutermino dos ensinamentos concernentes agraves coisas do
amor subitamente enxergaraacute algo maravilhosamente belo por naturezardquo
5 Este caraacutete estaacute expesso textualmente pelo uso de um vocabulaacuterio fortemente inspirado nos misteacuterios e ritos de iniciaccedilatildeo da religiatildeo grega (cf Brisson 2007 p66-71) 6 Compare ainda com o uso de τι τὸ αὐτὸ e τὸ κοινὸν τοῦτο em HippMa 300a-b e Men
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(θεώmicroενος ἐφεξῆς τε καὶ ὀρθῶς τὰ καλά πρὸς τέλος ἤδη ἰὼν τῶν ἐρωτικῶν
ἐξαίφνης κατόψεταί τι θαυmicroαστὸν τὴν φύσιν καλόν 210e3-5) A partir desta
sentenccedila a prosa platocircnica repentinamente adquire a cadecircncia dos ditirambos agrave
maneira das odes entoadas pelos coros das trageacutedias (cf Allen 1991 p82) e
Soacutecrates inicia uma descriccedilatildeo das caracteriacutesticas ontoloacutegicas deste Belo em si
objetivo uacuteltimo da revelaccedilatildeo dos misteacuterios de Eros ldquoem vista do qual todos os
esforccedilos anteriores foram realizadosrdquo (οὗ δὴ ἕνεκεν καὶ οἱ ἔmicroπροσθεν πάντες
πόνοι ἦσαν)
ldquoprimeiramente eacute para sempre natildeo nascendo nem perecendo natildeo crescendo nem decrescendo depois natildeo eacute belo de um jeito7 e feio de outro nem ora belo e ora feio nem quanto a isso belo e quanto agravequilo feio nem belo aqui e feio ali como se a alguns fosse belo e a outros feio tampouco apareceraacute o Belo como um rosto ou matildeos nem como nada que pertence ao corpo nem como algum discurso ou alguma ciecircncia tambeacutem natildeo seraacute situado em uma outra coisa como em algum animal da terra ou do ceacuteu ou em qualquer outra coisa ao contraacuterio apareceraacute ele mesmo por si mesmo consigo mesmo sendo sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν) enquanto todas as outras coisas belas dele participam de uma maneira tal que ao passo que tudo mais que eacute belo nasce e perece ele em nada fica maior ou menor nem nada sofrerdquo πρῶτον microὲν ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον ἔπειτα οὐ τῇ microὲν καλόν τῇ δ αἰσχρόν οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν οὐδ αὖ φαντασθήσεται αὐτῷ τὸ καλὸν οἷον πρόσωπόν τι οὐδὲ χεῖρες οὐδὲ ἄλλο οὐδὲν ὧν σῶmicroα microετέχει οὐδέ τις λόγος οὐδέ τις ἐπιστήmicroη οὐδέ που ὂν ἐν ἑτέρῳ τινι οἷον ἐν ζώῳ ἢ ἐν γῇ ἢ ἐν οὐρανῷ ἢ ἔν τῳ ἄλλῳ ἀλλ αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν τὰ δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα τρόπον τινὰ τοιοῦτον οἷον γιγνοmicroένων τε τῶν ἄλλων καὶ ἀπολλυmicroένων microηδὲν ἐκεῖνο microήτε τι πλέον microήτε ἔλαττον γίγνεσθαι microηδὲ πάσχειν microηδέν (211a1-b5)
De todo o corpus platocircnico esta passagem pode ser considerada aquela em
que a ontologia das Formas eacute apresentada de maneira mais densa e direta Focada
na descriccedilatildeo de uma uacutenica Forma a revelaccedilatildeo final de Diotima apresenta de uma
soacute vez diversos temas da ontologia platocircnica A primeira caracteriacutestica atribuiacuteda
ao Belo ldquoser para sempre natildeo nascendo nem perecendordquo remete ao tradicional
contraste entre seres mortais e imortais evocado anteriormente Contudo Diotima
radicaliza ainda mais este contraste afirmando que a Forma do Belo natildeo apenas
ldquoeacute para semprerdquo (ἀεὶ ὂν) em um paralelo direto com a foacutermula homeacuterica para
72c 7 Para traduzaccedilatildeo de τῇ microὲν hellip τῇ δὲ (ldquodesta hellip daquela maneirardquo) (cf LSJ verbete o( A
VIII 1)
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imortalidade divina (qeoi ai)en e)ontej) como tambeacutem natildeo foi gerada nem eacute
passiacutevel de perecimento (οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον) Atraveacutes destas
determinaccedilotildees adicionais Diotima introduz um tipo de eternidade inerente agrave
Forma do Belo que ultrapassa em muito a imortalidade divina Pois como
sabemos pela Teogonia apesar de indestrutiacuteveis os deuses tiveram um momento
de nascimento A Forma do Belo por sua vez estaacute fora do tempo na medida em
que natildeo possui um momento de surgimento nem possuiraacute um momento de
destruiccedilatildeo8
Aleacutem de eternamente existente a Forma do Belo natildeo cresce nem diminui
(οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον) E enquanto as coisas belas nascem e perecem a
Forma do Belo permanece inafetada (πάσχειν microηδέν) sendo ela mesma por si
mesma consigo mesma sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς
ἀεὶ ὄν)
A foacutermula ldquoele mesmo por si mesmo consigo mesmordquo (αὐτὸ καθ αὑτὸ
microεθ αὑτοῦ) resume em si aquilo que estaacute expresso entre as linhas 211a5-b6 isto eacute
o fato de que a Forma do Belo natildeo pode ser confundida com a beleza que
encontramos nas coisas sensiacuteveis (matildeos rostos partes dos corpos discursos
ciecircncias animais da terra ou do ceacuteu ou qualquer outra coisa) pois eacute uma entidade
independente e separada destas coisas A estrutura reflexiva da expressatildeo αὐτὸ
καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ pretende sublinhar a independecircncia ontoloacutegica do Belo que
eacute ldquoem si e por sirdquo e portanto natildeo depende dos objetos sensiacuteveis para existir e ser
aquilo que ela eacute Os objetos belos sensiacuteveis por outro lado satildeo ontologicamente
dependentes e necessitam da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo no Belo para serem belos (τὰ
δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα) A unidade entre a argumentaccedilatildeo dos
primeiros diaacutelogos e a revelaccedilatildeo de Diotima se torna evidente quando lembramos
que a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ natildeo passa de uma intensificaccedilatildeo da
foacutermula αὐτὸ τὸ εἶδος utilizada por Soacutecrates nos primeiros diaacutelogos9 para
expressar exatamente o mesmo aspecto de sua teoria
Aleacutem de eternamente existente e ontologicamente independente o Belo
caracteriza-se por estar isento de qualquer mudanccedila sendo de maneira fixa e
8 De fato como observam Sprague (1971) e Solmsen (1971) a eternidade do Belo possui como
paralelo apenas o Ser de Parmecircnides e podemos ateacute considerar intencional a referecircncia ao poema parmeniacutedico nas palavras de Diotima Compare a foacutermula utilizada por Diotima para expressar a eternidade do Belo ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον com as palavras utilizadas por Parmenides ὡς ἀγένητον ἐὸν καὶ ἀνώλεθρόν ἐστιν (Frag B83)
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invariaacutevel aquilo que ele eacute Podemos descrever esta caracteriacutestica como a
estabilidade ontoloacutegica do Belo e tal qualidade distintiva eacute expressa por Diotima
por meio da enumeraccedilatildeo das diferentes maneiras em que esta Forma poderia
deixar de ser bela caso fosse apenas mais uma entidade sensiacutevel Assim Diotima
nos explica que o Belo natildeo eacute
1) belo em um aspecto poreacutem feio em outro aspecto (οὐ τῇ microὲν
καλόν τῇ δ αἰσχρόν)
2) belo em um determinado momento poreacutem feio em outro momento
(οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ)
3) belo em relaccedilatildeo a certas coisas poreacutem feio em relaccedilatildeo a outras
(οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν)
4) belo em um determinado local poreacutem feio em outro sendo belo
para uns e feio para outros (οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν
ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν)
Por natildeo estar sujeita a estas qualificaccedilotildees a Forma do Belo eacute caracterizada
como aquela entidade sobre a qual eacute sempre verdadeiro afirmar que ela eacute bela
Esta estabilidade no modo de ser das Formas eacute ressaltada por meio do emprego do
adjetivo microονοειδὲς que etimologicamente deve ser traduzido por ldquouniformerdquo mas
pode ter seu sentido exprimido pela locuccedilatildeo ldquouacutenico em aspectordquo Como explica
Diotima a unidade aspectual da Forma do Belo encontra-se em ela ser
exclusivamente bela natildeo se mostrando nunca feia (ou natildeo-bela) e estando imune a
qualquer tipo de perspectivismo ou relativismo
No decorrer deste capiacutetulo veremos que o termo microονοειδὲς eacute parte do
vocabulaacuterio teacutecnico da Teoria das Ideias e reapareceraacute no Feacutedon (78b4) como uma
expressatildeo cristalizada para indicar que a Forma F (Belo Justo Grande Pequeno
etc) eacute uacutenica e invariavelmente F (bela justa grande pequena etc) o que a
torna um tipo de entidade fundamentalmente distinta dos diversos particulares
sensiacuteveis que evidentemente possuem uma diversidade de aspectos e estatildeo
sujeitos a uma multiplicidade de predicaccedilotildees muitas delas contraacuterias entre si
Este mesmo fato ontoloacutegico estaacute relacionado agrave caracterizaccedilatildeo das Formas
9 cf Eut 6d10 Hipp Ma 286d8 288a9 289c3 292c3
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como ἐκεῖνο ὃ ἔστι Como vimos no Liacutesis esta expressatildeo eacute usada para diferenciar
as diversas coisas amadas-em-vista-de-outra-coisa do πρῶτον φίλον uacutenica
entidade amada em vista de si mesma Por natildeo ser amado de maneira relacional
em vista de outro objeto o πρῶτον φίλον eacute considerado a uacutenica entidade apta a
receber o predicado ldquoser-amadordquo de maneira sempre verdadeira (ἐκεῖνο τὸ
πρῶτον ὃ ὡς ἀληθῶς ἐστι φίλον Lis219d4-5) e portanto pode ser caracterizado
como ἐκεῖνο ὃ ἐστι φίλον No Banquete (211c7-d1) a locuccedilatildeo ἐκεῖνο ὃ ἔστι eacute
utilizada para explicar que o processo de revelaccedilatildeo ao qual o iniciado nas artes do
amor foi submetido ldquoacaba naquela ciecircncia que natildeo eacute ciecircncia de nada mais do que
daquele proacuteprio Belo e [o iniciado] termina por conhecer o que eacute belo [ou o que
Belo eacute] (ὃ ἔστι καλόν) rdquo10
Novamente o vocabulaacuterio relativo agrave formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias que
encontramos nos diaacutelogos da fase meacutedia se apresenta em completa continuidade
com a busca por definiccedilotildees dos diaacutelogos inicias A foacutermula ὃ ἔστι x natildeo passa da
inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι x que como vimos no capiacutetulo precedente
caracteriza a busca socraacutetica por definiccedilotildees Assim aquilo que soacute podiacuteamos
acessar indiretamente nos primeiros diaacutelogos nos eacute apresentado de maneira
expliacutecita nos diaacutelogos meacutedios e a busca socraacutetica expressa em questotildees do tipo ldquoo
que eacute belordquo (τί ἐστι καλόν) eacute diretamente solucionada pela identificaccedilatildeo da
Forma da Beleza como ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (ὃ ἔστι καλόν)
Em contraposiccedilatildeo agrave estabilidade ontoloacutegica do Belo que eacute sempre
unicamente belo somos levados a concluir que ldquotodas as outras coisas belasrdquo (τὰ
ἄλλα πάντα καλὰ) estatildeo sujeitas a uma ou a mais de uma das seguintes
indeterminaccedilotildees
1) Elas podem ser belas em um de seus aspectos poreacutem feias em
outro Por exemplo uma escultura pode ser bela em sua forma
poreacutem estar pintada com cores horrendas
10 Eacute importante notar que na locuccedilatildeo ὃ ἔστι καλόν o termo καλόν pode ocupar o lugar tanto de
sujeito quanto de predicado Na realidade isto natildeo se daacute por acaso e devemos considerar esta ambiguidade sintaacutetica como um resultado proposital do texto platocircnico Tal fato fica evidente quando notamos que apesar da foacutermula ὃ ἔστι F ser recorrentemente usada para designar as Formas nunca encontramos o termo seguinte ao verbo ἔστι introduzido por um artigo o que anularia a possibilidade de uma leitura predicativa (cf Kahn 2009 p80) Por meio deste artifiacutecio sintaacutetico Platatildeo pretende nos transmitir a ideia de que conhecer ldquoo que o Belo eacuterdquo (construccedilatildeo subjetiva) equivale a conhecer ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (construccedilatildeo predicativa)
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2) Elas podem ser belas em um momento poreacutem feias em outro Por
exemplo um Ipecirc pode ser belo na primavera quando em flor
poreacutem feio no inverno quando desfolhado
3) Elas podem ser belas quando comparadas a uma determinada coisa
poreacutem feias quando comparadas a outra Por exemplo a bela moccedila
descrita no Hiacuteppias Maior quando comparada a uma deusa deve
ser considerada feia
4) Elas podem ser belas em um determinado local poreacutem feias em
outro sendo belas para uns e feias para outros Por exemplo os
adornos de um iacutendio Xavante que satildeo belos para os membros de
sua tribo poreacutem feios para os frequentadores da feira de moda de
Milatildeo
Ora como todo objeto sensiacutevel possui uma multiplicidade de aspectos e
caracteriacutesticas eacute plenamente possiacutevel e ateacute mesmo esperado que estas entidades
sejam belas em um de seus aspectos e feias em outros Todo objeto sensiacutevel
possui por exemplo um formato uma cor um odor uma textura etc Sendo
assim devemos considerar natural o fato de que um mesmo objeto julgado belo
em sua forma possa natildeo parecer belo em sua cor ou em um outro aspecto
qualquer Note que o mesmo raciociacutenio vale para as accedilotildees que os interlocutores de
Soacutecrates oferecem como exemplos de virtudes nos diaacutelogos inicias Acusar
publicamente o seu proacuteprio pai pode ser um ato pio quando considerado a partir
dos aspectos legais de persecuccedilatildeo religiosa conforme argumenta Ecircutifron Poreacutem
quando analisado agrave luz dos laccedilos de consanguinidade e reverecircncia familiar este
mesmo ato eacute certamente um exemplo de impiedade
Do mesmo modo devido ao fato de todas as entidades sensiacuteveis estarem
sujeitas agrave passagem do tempo podemos considerar inevitaacutevel que coisas ou atos
considerados belos hoje deixaratildeo de secirc-lo em algum momento futuro ou mesmo
que natildeo tenham sido belos em algum instante do passado Um belo cavalo hoje
deixaraacute de ser belo quando velho ou morto e a escravizaccedilatildeo de um inimigo
derrotado em batalha considerada uma accedilatildeo justa em um passado natildeo muito
remoto eacute certamente julgada uma grande injusticcedila nos dias de hoje Estes poucos
exemplos satildeo suficientes para concluirmos que os dois primeiros itens da
enumeraccedilatildeo de Diotima representam casos plenamente compreensiacuteveis de
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diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel
Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as
entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves
diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas
No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros
de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente
justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto
Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua
sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com
Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os
exemplos acima mencionados
Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso
Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria
em a partir de
1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z
inferir
2) x eacute belo e natildeo belo
Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel
de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x
estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a
donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo
indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente
incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo
parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que
Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma
deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar
em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade
da sentenccedila
1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z
concluir que
2) x eacute belo e natildeo belo
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Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por
Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o
aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute
adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado
incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum
e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute
(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo
Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se
comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na
formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a
propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da
propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um
objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto
represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo
A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os
complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados
completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo
ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E
o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente
equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter
Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo
primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos
ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e
convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e
incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de
argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto
de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca
agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo
piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)
Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e
relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo
um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por
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meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como
veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados
incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates
para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o
modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em
mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que
argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar
entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias
140
32 A inteligibilidade das Formas
Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica
da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter
inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo
estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu
discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar
esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela
razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo
Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o
Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com
aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)
Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da
Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido
apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um
caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma
passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender
que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo
(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem
esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de
Diotima
Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira
caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter
inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de
Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema
principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates
iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal
sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma
existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os
objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma
imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve
temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo
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conhecimento
As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando
Soacutecrates pergunta a Simmias
ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)
A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando
no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo
(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em
seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da
Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da
primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na
resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente
familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio
relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a
sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει
ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a
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expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na
qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso
sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde
diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das
expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de
designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do
personagem Simmias com a Teoria das Ideias13
A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates
afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das
expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por
meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal
afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em
busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a
mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que
tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos
De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir
esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das
belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave
vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo
natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave
espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber
informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas
Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este
ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar
11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a
given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)
12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico
13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades
143
abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo
apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria
reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre
Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os
objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ
αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres
(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)
14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o
sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico
144
33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis
A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute
particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua
exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates
desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar
como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos
oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo
(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente
traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas
natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os
oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis
enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo
assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las
conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um
momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o
intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel
Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui
algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem
argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como
move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas
por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos
tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a
possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas
simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa
condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento
(cf Bostock 1983 p60-63)
Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a
estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas
por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si
mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo
145
de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e
74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates
pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras
Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos
sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos
objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode
ser esquematizado da seguinte maneira
1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada
propriedade P
2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P
3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a
mesma coisa
Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem
causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto
textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo
conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual
propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo
pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do
que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute
muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa
depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala
Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias
ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo
146
Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)
Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a
existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da
Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo
afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de
que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais
a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo
ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto
certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na
conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes
de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural
devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados
para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )
enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)
Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as
ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo
tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo
parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo
Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com
tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf
Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como
ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p
134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que
chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor
exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente
147
pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato
devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que
dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo
assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por
Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15
A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os
problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua
grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura
1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo
verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os
mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais
para outra pessoardquo
2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo
relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila
estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira
iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes
iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo
3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste
caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora
permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um
aspecto e desiguais em outro aspectordquo
As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo
com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada
pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da
Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura
parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o
mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para
um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a
15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees
estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
128
floresce Natildeo haacute duacutevida de que no Feacutedon no Banquete na Repuacuteblica e no Timeu3 Platatildeo estaacute definitivamente sugerindo um certo nuacutemero de doutrinas sobre uma variedade de toacutepicos Ele agora pensa que encontrou a soluccedilatildeo para seus problemas e o questionamento ceacutetico de Soacutecrates foi deixado para traacutesrdquo (Bostock 1988 p13)
Ora como nosso estudo identificou menccedilotildees agraves Formas platocircnicas nos
diaacutelogos iniciais natildeo devemos concordar com a descriccedilatildeo de Bostock segundo a
qual os diaacutelogos iniciais satildeo obras puramente criacuteticas sem exposiccedilatildeo de doutrinas
positivas Tampouco temos motivos para corroborar a descriccedilatildeo dos estados
emocionais de Platatildeo por ele realizada Por outro lado nossos resultados nos
permitem oferecer uma explicaccedilatildeo para a diferenccedila entre os dois primeiros grupos
de diaacutelogos que natildeo extrapola o acircmbito puramente textual e natildeo incorre no erro de
atribuir um valor puramente negativo aos primeiros diaacutelogos Para isto basta que
entendamos as mudanccedilas apontadas por Bostock como mudanccedilas no modo de
exposiccedilatildeo de uma mesma hipoacutetese teoacuterica Enquanto os primeiros diaacutelogos
mencionam as Formas de maneira sutil e antecipatoacuteria os diaacutelogos meacutedios
apresentam explicitamente a Teoria das Ideias Desta maneira como decorrecircncia
do modo de exposiccedilatildeo proleacuteptico que identificamos em Platatildeo podemos aceitar a
divisatildeo usual entre uma fase inicial e uma fase meacutedia que de fato parece refletir
corretamente certas caracteriacutesticas formais e dramaacuteticas dos diaacutelogos sem adotar
uma interpretaccedilatildeo de caraacuteter desenvolvimentista
Portanto segundo nossa compreensatildeo o presente capiacutetulo analisaraacute dois
diaacutelogos (Feacutedon e Banquete) em que Platatildeo expotildee de maneira mais expliacutecita e
sistemaacutetica as teses que compotildeem a Teoria das Ideias Como nosso interesse
limita-se ao que venho chamando de ldquonuacutecleo ontoloacutegicordquo desta teoria focaremos
nossa investigaccedilatildeo nas passagens em que o personagem Soacutecrates explica o que
satildeo as Formas expondo mais minuciosamente as diferenccedilas entre o modo de ser
destas entidades e o modo de ser das coisas sensiacuteveis
3 A inclusatildeo do Timeu nesta lista deve-se agrave argumentaccedilatildeo desenvolvida por Owen (1965) que Bostock reconhece como vaacutelida A identificaccedilatildeo do Timeu como um diaacutelogo da fase meacutedia eacute no entanto extremamente controversa e no meu entendimento errocircnea Para uma contra-
129
31 O discurso de Diotima e a revelaccedilatildeo da Forma do Bel o
Dentre os diaacutelogos que compotildeem a fase meacutedia aquele em que as Formas
satildeo apresentadas de maneira mais resumida eacute certamente o Banquete Neste
diaacutelogo Soacutecrates participa de uma festa em celebraccedilatildeo agrave primeira vitoacuteria de
Agatatildeo em competiccedilotildees dramaacuteticas e se vecirc obrigado como cada um dos
participantes a oferecer um discurso em louvor (e)gkwmion177b ou e)painoj
177d) ao deus Eros No entanto ao inveacutes de compor seu proacuteprio discurso
Soacutecrates prefere recontar as palavras de Diotima uma sacerdotisa da Mantineacuteia
saacutebia nas coisas relativas a Eros e instrutora de Soacutecrates nas artes do amor (τὰ
ἐρωτικὰ) Relembrando as palavras de Diotima Soacutecrates desenvolve uma
surpreendente narrativa acerca do amor repleto de referecircncias miacutetico-religiosas
ao final da qual o leitor do diaacutelogo eacute apresentado agrave verdadeira natureza da Beleza
Seu discurso foca-se na revelaccedilatildeo de uma uacutenica Forma e sua estrateacutegia
argumentativa consiste em levar o ouvinte a ascender progressivamente do amor e
desejo eroacutetico pelas coisas sensiacuteveis ao amor e desejo eroacutetico pela Forma do Belo
Seraacute a contraposiccedilatildeo entre as muacuteltiplas coisas belas (corpos costumes leis e
ciecircncias) e o Belo ele mesmo si (αὐτὸ τὸ καλόν) o que daraacute a Soacutecrates o ensejo de
contrastar o modo de ser das coisas sensiacuteveis com o modo de ser das Formas
Antes de apresentar o Belo como o objeto uacuteltimo de todo desejo eroacutetico e
introduzir explicitamente o segundo poacutelo da disjunccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel
Soacutecrates nos fornece uma descriccedilatildeo da fraacutegil e passageira condiccedilatildeo do que eacute
mortal Segundo ele
ldquoquando dizemos de cada ser vivo que ele vive e permanece o mesmo - por exemplo dizemos que ele permanece o mesmo desde a infacircncia agrave velhice ele na realidade natildeo possui jamais em si as mesmas coisas (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) Mesmo se dizemos que ele permanece o mesmo ele natildeo cessa contudo de se renovar e perder certas coisas nos cabelos nas carnes nos ossos no sangue e em todo corpo E isto eacute vaacutelido natildeo somente para o corpo mas tambeacutem para a alma Os costumes as opiniotildees desejos prazeres afliccedilotildees temores cada um destes afetos jamais permanece o mesmo em cada um de noacutes mas uns nascem e outros morremrdquo4 ἐπεὶ καὶ ἐν ᾧ ἓν ἕκαστον τῶν ζῴων ζῆν καλεῖται καὶ εἶναι τὸ αὐτόndash οἷον ἐκ
argumentaccedilatildeo agrave Owen (cfCherniss 1965) 4 Nossa traduccedilatildeo segue o texto de Brisson (2007) que natildeo aceita a pontuaccedilatildeo estabelecida por
Burnet (cf Brisson 2007 p 212 n436)
130
παιδαρίου ὁ αὐτὸς λέγεται ἕως ἂν πρεσβύτης γένηται οὗτος microέντοι οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ ὅmicroως ὁ αὐτὸς καλεῖται ἀλλὰ νέος ἀεὶ γιγνόmicroενος τὰ δὲ ἀπολλύς καὶ κατὰ τὰς τρίχας καὶ σάρκα καὶ ὀστᾶ καὶ αἷmicroα καὶ σύmicroπαν τὸ σῶmicroα καὶ microὴ ὅτι κατὰ τὸ σῶmicroα ἀλλὰ καὶ κατὰ τὴν ψυχὴν οἱ τρόποι τὰ ἤθη δόξαι ἐπιθυmicroίαι ἡδοναί λῦπαι φόβοι τούτων ἕκαστα οὐδέποτε τὰ αὐτὰ πάρεστιν ἑκάστῳ ἀλλὰ τὰ microὲν γίγνεται τὰ δὲ ἀπόλλυται (207d4-e5)
De acordo com as liccedilotildees de Diotima eacute na tentativa de superar esta
impermanecircncia inerente a tudo aquilo que eacute mortal que os animais bestas e
homens se lanccedilam com ardor no desejo de procriaccedilatildeo Afinal ldquoeacute deste modo que
tudo o que eacute mortal se conserva natildeo pelo fato de absolutamente ser sempre o
mesmo (οὐ τῷ παντάπασιν τὸ αὐτὸ ἀεὶ εἶναι) como o que eacute divino mas pelo fato
daquele que parte e envelhece deixar um outro ser novo tal como ele erardquo
(208a7-b2) Assim Soacutecrates contrasta a inconstacircncia daquilo que eacute mortal apenas
dito o mesmo (ὁ αὐτὸς καλεῖται) poreacutem ldquosem possuir jamais em si as mesmas
coisasrdquo (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) com a permanecircncia do que eacute imortal
(ἀθάνατον 208b4) que ldquoeacute absolutamente sempre o mesmordquo (παντάπασιν τὸ αὐτὸ
ἀεὶ εἶναι)
Os ouvintes de Soacutecrates tal como aquele que estaacute lendo o diaacutelogo pela
primeira vez natildeo reconhecem nesta comparaccedilatildeo entre o modo de existecircncia dos
seres mortais e modo de existecircncia do seres imortais o contraste entre Formas e
coisas que seraacute revelado ao final do discurso Contudo um leitor habituado ao
modo de escrita platocircnico pode facilmente identificar nesta fala uma antecipaccedilatildeo
da comparaccedilatildeo entre o modo de existecircncia das coisas belas sensiacuteveis e o modo de
existecircncia do Belo Este leitor seraacute capaz de reconhecer que o adjetivo ldquoimortalrdquo
(ἀθάνατον) utilizado na passagem acima citada como sinocircnimo de ldquodivinordquo
(θεῖον) natildeo se refere apenas aos deuses mas inclui em seu campo de aplicaccedilatildeo a
proacutepria Forma do Belo que como seraacute elucidado ao final do discurso tambeacutem ldquoeacute
para semprerdquo (ἀεὶ ὂν 211a1) Deste modo a relaccedilatildeo mortalimortal facilmente
compreensiacutevel para os representantes da elite cultural ateniense presentes no
banquete eacute utilizada para introduzir a distinccedilatildeo entre o modo de ser das muacuteltiplas
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo
O caminho que leva agrave revelaccedilatildeo do Belo inicia-se com o reconhecimento
da unidade subjacente a tudo aquilo que eacute belo em um movimento facilmente
identificaacutevel por um leitor familiarizado com a argumentaccedilatildeo dos diaacutelogos de
primeira fase O iniciado nas artes do amor (τὰ ἐρωτικὰ) comeccedilaraacute por amar a um
131
soacute belo corpo e como resultado deste amor engendraraacute belos discursos Em
seguida ele seraacute levado a reconhecer que a beleza que reside em um corpo
qualquer eacute irmatilde (ἀδελφόν) da que estaacute em outro belo corpo e que portanto ldquoseria
muita tolice natildeo considerar uma soacute e a mesma (ἕν τε καὶ ταὐτὸν) a beleza que
reside em todos os corposrdquo (210b2-3) Apoacutes este momento ele passaraacute a
considerar a beleza presente nas almas mais valiosa do que aquela presente nos
corpos e seraacute capaz de ldquocontemplar o belo nos costumes e nas leis e ver que em si
mesmo o belo eacute sempre semelhante a si mesmo (πᾶν αὐτὸ αὑτῷ συγγενές ἐστιν)rdquo
(210c3-5) Por fim ele veraacute a beleza tambeacutem nos diversos ramos da ciecircncias
(ἐπιστηmicroῶν) ateacute que ldquoolhando agora para o belo nesta multiplicidade deixe de
amar como um escravo a beleza de um soacute jovem homem ou costume (hellip) e
contemple ele uma certa ciecircncia uacutenica tal que seu objeto eacute Belezardquo (210d1-e1)
Apesar do caraacuteter miacutestico-religioso5 do discurso de Diotima natildeo possuir
precedentes nos diaacutelogos da primeira fase podemos reconhecer no percurso de
ascensatildeo do iniciado nos ensinamentos do amor a busca pela unidade do εἶδος
que encontramos nos diaacutelogos definicionais Da mesma maneira que Laacuteques eacute
instigado por Soacutecrates a buscar ldquoaquilo que eacute idecircntico em todos os casos de
coragemrdquo (ἐν πᾶσι τούτοις ταὐτόν ἐστιν Laq191e4-11) e Ecircutifron a apresentar ldquoa
piedade ela mesma que eacute idecircntica a si mesma em toda accedilatildeo piedosardquo (ταὐτόν
ἐστιν ἐν πάσῃ πράξει τὸ ὅσιον αὐτὸ αὑτῷ Eut5d1-2)6 o iniciado nas artes do
amor eacute levado a reconhecer que a beleza que reside em tudo aquilo que eacute belo eacute
ldquouma soacute e a mesmardquo (ἕν τε καὶ ταὐτὸν) Ele enfim concluiraacute que ldquoem si mesmo o
belo eacute sempre semelhante a si mesmordquo (αὐτὸ αὑτῷ συγγενές ἐστιν) Pois apesar
de pertencerem a niacuteveis distintos na escala de revelaccedilatildeo dos misteacuterios do amor
sendo cada estaacutegio superior ao precedente o belo do corpo o belo da alma dos
costumes e das ciecircncias eacute o mesmo na medida em que todas estas coisas
participam (πάντα καλὰ microετέχοντα) do Belo em si Forma uacutenica e causa universal
de tudo aquilo que eacute belo
Assim ldquoaquele que tenha contemplado na sua ordem e sucessatildeo correta
as coisas belas chegando ao teacutermino dos ensinamentos concernentes agraves coisas do
amor subitamente enxergaraacute algo maravilhosamente belo por naturezardquo
5 Este caraacutete estaacute expesso textualmente pelo uso de um vocabulaacuterio fortemente inspirado nos misteacuterios e ritos de iniciaccedilatildeo da religiatildeo grega (cf Brisson 2007 p66-71) 6 Compare ainda com o uso de τι τὸ αὐτὸ e τὸ κοινὸν τοῦτο em HippMa 300a-b e Men
132
(θεώmicroενος ἐφεξῆς τε καὶ ὀρθῶς τὰ καλά πρὸς τέλος ἤδη ἰὼν τῶν ἐρωτικῶν
ἐξαίφνης κατόψεταί τι θαυmicroαστὸν τὴν φύσιν καλόν 210e3-5) A partir desta
sentenccedila a prosa platocircnica repentinamente adquire a cadecircncia dos ditirambos agrave
maneira das odes entoadas pelos coros das trageacutedias (cf Allen 1991 p82) e
Soacutecrates inicia uma descriccedilatildeo das caracteriacutesticas ontoloacutegicas deste Belo em si
objetivo uacuteltimo da revelaccedilatildeo dos misteacuterios de Eros ldquoem vista do qual todos os
esforccedilos anteriores foram realizadosrdquo (οὗ δὴ ἕνεκεν καὶ οἱ ἔmicroπροσθεν πάντες
πόνοι ἦσαν)
ldquoprimeiramente eacute para sempre natildeo nascendo nem perecendo natildeo crescendo nem decrescendo depois natildeo eacute belo de um jeito7 e feio de outro nem ora belo e ora feio nem quanto a isso belo e quanto agravequilo feio nem belo aqui e feio ali como se a alguns fosse belo e a outros feio tampouco apareceraacute o Belo como um rosto ou matildeos nem como nada que pertence ao corpo nem como algum discurso ou alguma ciecircncia tambeacutem natildeo seraacute situado em uma outra coisa como em algum animal da terra ou do ceacuteu ou em qualquer outra coisa ao contraacuterio apareceraacute ele mesmo por si mesmo consigo mesmo sendo sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν) enquanto todas as outras coisas belas dele participam de uma maneira tal que ao passo que tudo mais que eacute belo nasce e perece ele em nada fica maior ou menor nem nada sofrerdquo πρῶτον microὲν ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον ἔπειτα οὐ τῇ microὲν καλόν τῇ δ αἰσχρόν οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν οὐδ αὖ φαντασθήσεται αὐτῷ τὸ καλὸν οἷον πρόσωπόν τι οὐδὲ χεῖρες οὐδὲ ἄλλο οὐδὲν ὧν σῶmicroα microετέχει οὐδέ τις λόγος οὐδέ τις ἐπιστήmicroη οὐδέ που ὂν ἐν ἑτέρῳ τινι οἷον ἐν ζώῳ ἢ ἐν γῇ ἢ ἐν οὐρανῷ ἢ ἔν τῳ ἄλλῳ ἀλλ αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν τὰ δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα τρόπον τινὰ τοιοῦτον οἷον γιγνοmicroένων τε τῶν ἄλλων καὶ ἀπολλυmicroένων microηδὲν ἐκεῖνο microήτε τι πλέον microήτε ἔλαττον γίγνεσθαι microηδὲ πάσχειν microηδέν (211a1-b5)
De todo o corpus platocircnico esta passagem pode ser considerada aquela em
que a ontologia das Formas eacute apresentada de maneira mais densa e direta Focada
na descriccedilatildeo de uma uacutenica Forma a revelaccedilatildeo final de Diotima apresenta de uma
soacute vez diversos temas da ontologia platocircnica A primeira caracteriacutestica atribuiacuteda
ao Belo ldquoser para sempre natildeo nascendo nem perecendordquo remete ao tradicional
contraste entre seres mortais e imortais evocado anteriormente Contudo Diotima
radicaliza ainda mais este contraste afirmando que a Forma do Belo natildeo apenas
ldquoeacute para semprerdquo (ἀεὶ ὂν) em um paralelo direto com a foacutermula homeacuterica para
72c 7 Para traduzaccedilatildeo de τῇ microὲν hellip τῇ δὲ (ldquodesta hellip daquela maneirardquo) (cf LSJ verbete o( A
VIII 1)
133
imortalidade divina (qeoi ai)en e)ontej) como tambeacutem natildeo foi gerada nem eacute
passiacutevel de perecimento (οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον) Atraveacutes destas
determinaccedilotildees adicionais Diotima introduz um tipo de eternidade inerente agrave
Forma do Belo que ultrapassa em muito a imortalidade divina Pois como
sabemos pela Teogonia apesar de indestrutiacuteveis os deuses tiveram um momento
de nascimento A Forma do Belo por sua vez estaacute fora do tempo na medida em
que natildeo possui um momento de surgimento nem possuiraacute um momento de
destruiccedilatildeo8
Aleacutem de eternamente existente a Forma do Belo natildeo cresce nem diminui
(οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον) E enquanto as coisas belas nascem e perecem a
Forma do Belo permanece inafetada (πάσχειν microηδέν) sendo ela mesma por si
mesma consigo mesma sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς
ἀεὶ ὄν)
A foacutermula ldquoele mesmo por si mesmo consigo mesmordquo (αὐτὸ καθ αὑτὸ
microεθ αὑτοῦ) resume em si aquilo que estaacute expresso entre as linhas 211a5-b6 isto eacute
o fato de que a Forma do Belo natildeo pode ser confundida com a beleza que
encontramos nas coisas sensiacuteveis (matildeos rostos partes dos corpos discursos
ciecircncias animais da terra ou do ceacuteu ou qualquer outra coisa) pois eacute uma entidade
independente e separada destas coisas A estrutura reflexiva da expressatildeo αὐτὸ
καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ pretende sublinhar a independecircncia ontoloacutegica do Belo que
eacute ldquoem si e por sirdquo e portanto natildeo depende dos objetos sensiacuteveis para existir e ser
aquilo que ela eacute Os objetos belos sensiacuteveis por outro lado satildeo ontologicamente
dependentes e necessitam da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo no Belo para serem belos (τὰ
δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα) A unidade entre a argumentaccedilatildeo dos
primeiros diaacutelogos e a revelaccedilatildeo de Diotima se torna evidente quando lembramos
que a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ natildeo passa de uma intensificaccedilatildeo da
foacutermula αὐτὸ τὸ εἶδος utilizada por Soacutecrates nos primeiros diaacutelogos9 para
expressar exatamente o mesmo aspecto de sua teoria
Aleacutem de eternamente existente e ontologicamente independente o Belo
caracteriza-se por estar isento de qualquer mudanccedila sendo de maneira fixa e
8 De fato como observam Sprague (1971) e Solmsen (1971) a eternidade do Belo possui como
paralelo apenas o Ser de Parmecircnides e podemos ateacute considerar intencional a referecircncia ao poema parmeniacutedico nas palavras de Diotima Compare a foacutermula utilizada por Diotima para expressar a eternidade do Belo ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον com as palavras utilizadas por Parmenides ὡς ἀγένητον ἐὸν καὶ ἀνώλεθρόν ἐστιν (Frag B83)
134
invariaacutevel aquilo que ele eacute Podemos descrever esta caracteriacutestica como a
estabilidade ontoloacutegica do Belo e tal qualidade distintiva eacute expressa por Diotima
por meio da enumeraccedilatildeo das diferentes maneiras em que esta Forma poderia
deixar de ser bela caso fosse apenas mais uma entidade sensiacutevel Assim Diotima
nos explica que o Belo natildeo eacute
1) belo em um aspecto poreacutem feio em outro aspecto (οὐ τῇ microὲν
καλόν τῇ δ αἰσχρόν)
2) belo em um determinado momento poreacutem feio em outro momento
(οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ)
3) belo em relaccedilatildeo a certas coisas poreacutem feio em relaccedilatildeo a outras
(οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν)
4) belo em um determinado local poreacutem feio em outro sendo belo
para uns e feio para outros (οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν
ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν)
Por natildeo estar sujeita a estas qualificaccedilotildees a Forma do Belo eacute caracterizada
como aquela entidade sobre a qual eacute sempre verdadeiro afirmar que ela eacute bela
Esta estabilidade no modo de ser das Formas eacute ressaltada por meio do emprego do
adjetivo microονοειδὲς que etimologicamente deve ser traduzido por ldquouniformerdquo mas
pode ter seu sentido exprimido pela locuccedilatildeo ldquouacutenico em aspectordquo Como explica
Diotima a unidade aspectual da Forma do Belo encontra-se em ela ser
exclusivamente bela natildeo se mostrando nunca feia (ou natildeo-bela) e estando imune a
qualquer tipo de perspectivismo ou relativismo
No decorrer deste capiacutetulo veremos que o termo microονοειδὲς eacute parte do
vocabulaacuterio teacutecnico da Teoria das Ideias e reapareceraacute no Feacutedon (78b4) como uma
expressatildeo cristalizada para indicar que a Forma F (Belo Justo Grande Pequeno
etc) eacute uacutenica e invariavelmente F (bela justa grande pequena etc) o que a
torna um tipo de entidade fundamentalmente distinta dos diversos particulares
sensiacuteveis que evidentemente possuem uma diversidade de aspectos e estatildeo
sujeitos a uma multiplicidade de predicaccedilotildees muitas delas contraacuterias entre si
Este mesmo fato ontoloacutegico estaacute relacionado agrave caracterizaccedilatildeo das Formas
9 cf Eut 6d10 Hipp Ma 286d8 288a9 289c3 292c3
135
como ἐκεῖνο ὃ ἔστι Como vimos no Liacutesis esta expressatildeo eacute usada para diferenciar
as diversas coisas amadas-em-vista-de-outra-coisa do πρῶτον φίλον uacutenica
entidade amada em vista de si mesma Por natildeo ser amado de maneira relacional
em vista de outro objeto o πρῶτον φίλον eacute considerado a uacutenica entidade apta a
receber o predicado ldquoser-amadordquo de maneira sempre verdadeira (ἐκεῖνο τὸ
πρῶτον ὃ ὡς ἀληθῶς ἐστι φίλον Lis219d4-5) e portanto pode ser caracterizado
como ἐκεῖνο ὃ ἐστι φίλον No Banquete (211c7-d1) a locuccedilatildeo ἐκεῖνο ὃ ἔστι eacute
utilizada para explicar que o processo de revelaccedilatildeo ao qual o iniciado nas artes do
amor foi submetido ldquoacaba naquela ciecircncia que natildeo eacute ciecircncia de nada mais do que
daquele proacuteprio Belo e [o iniciado] termina por conhecer o que eacute belo [ou o que
Belo eacute] (ὃ ἔστι καλόν) rdquo10
Novamente o vocabulaacuterio relativo agrave formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias que
encontramos nos diaacutelogos da fase meacutedia se apresenta em completa continuidade
com a busca por definiccedilotildees dos diaacutelogos inicias A foacutermula ὃ ἔστι x natildeo passa da
inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι x que como vimos no capiacutetulo precedente
caracteriza a busca socraacutetica por definiccedilotildees Assim aquilo que soacute podiacuteamos
acessar indiretamente nos primeiros diaacutelogos nos eacute apresentado de maneira
expliacutecita nos diaacutelogos meacutedios e a busca socraacutetica expressa em questotildees do tipo ldquoo
que eacute belordquo (τί ἐστι καλόν) eacute diretamente solucionada pela identificaccedilatildeo da
Forma da Beleza como ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (ὃ ἔστι καλόν)
Em contraposiccedilatildeo agrave estabilidade ontoloacutegica do Belo que eacute sempre
unicamente belo somos levados a concluir que ldquotodas as outras coisas belasrdquo (τὰ
ἄλλα πάντα καλὰ) estatildeo sujeitas a uma ou a mais de uma das seguintes
indeterminaccedilotildees
1) Elas podem ser belas em um de seus aspectos poreacutem feias em
outro Por exemplo uma escultura pode ser bela em sua forma
poreacutem estar pintada com cores horrendas
10 Eacute importante notar que na locuccedilatildeo ὃ ἔστι καλόν o termo καλόν pode ocupar o lugar tanto de
sujeito quanto de predicado Na realidade isto natildeo se daacute por acaso e devemos considerar esta ambiguidade sintaacutetica como um resultado proposital do texto platocircnico Tal fato fica evidente quando notamos que apesar da foacutermula ὃ ἔστι F ser recorrentemente usada para designar as Formas nunca encontramos o termo seguinte ao verbo ἔστι introduzido por um artigo o que anularia a possibilidade de uma leitura predicativa (cf Kahn 2009 p80) Por meio deste artifiacutecio sintaacutetico Platatildeo pretende nos transmitir a ideia de que conhecer ldquoo que o Belo eacuterdquo (construccedilatildeo subjetiva) equivale a conhecer ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (construccedilatildeo predicativa)
136
2) Elas podem ser belas em um momento poreacutem feias em outro Por
exemplo um Ipecirc pode ser belo na primavera quando em flor
poreacutem feio no inverno quando desfolhado
3) Elas podem ser belas quando comparadas a uma determinada coisa
poreacutem feias quando comparadas a outra Por exemplo a bela moccedila
descrita no Hiacuteppias Maior quando comparada a uma deusa deve
ser considerada feia
4) Elas podem ser belas em um determinado local poreacutem feias em
outro sendo belas para uns e feias para outros Por exemplo os
adornos de um iacutendio Xavante que satildeo belos para os membros de
sua tribo poreacutem feios para os frequentadores da feira de moda de
Milatildeo
Ora como todo objeto sensiacutevel possui uma multiplicidade de aspectos e
caracteriacutesticas eacute plenamente possiacutevel e ateacute mesmo esperado que estas entidades
sejam belas em um de seus aspectos e feias em outros Todo objeto sensiacutevel
possui por exemplo um formato uma cor um odor uma textura etc Sendo
assim devemos considerar natural o fato de que um mesmo objeto julgado belo
em sua forma possa natildeo parecer belo em sua cor ou em um outro aspecto
qualquer Note que o mesmo raciociacutenio vale para as accedilotildees que os interlocutores de
Soacutecrates oferecem como exemplos de virtudes nos diaacutelogos inicias Acusar
publicamente o seu proacuteprio pai pode ser um ato pio quando considerado a partir
dos aspectos legais de persecuccedilatildeo religiosa conforme argumenta Ecircutifron Poreacutem
quando analisado agrave luz dos laccedilos de consanguinidade e reverecircncia familiar este
mesmo ato eacute certamente um exemplo de impiedade
Do mesmo modo devido ao fato de todas as entidades sensiacuteveis estarem
sujeitas agrave passagem do tempo podemos considerar inevitaacutevel que coisas ou atos
considerados belos hoje deixaratildeo de secirc-lo em algum momento futuro ou mesmo
que natildeo tenham sido belos em algum instante do passado Um belo cavalo hoje
deixaraacute de ser belo quando velho ou morto e a escravizaccedilatildeo de um inimigo
derrotado em batalha considerada uma accedilatildeo justa em um passado natildeo muito
remoto eacute certamente julgada uma grande injusticcedila nos dias de hoje Estes poucos
exemplos satildeo suficientes para concluirmos que os dois primeiros itens da
enumeraccedilatildeo de Diotima representam casos plenamente compreensiacuteveis de
137
diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel
Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as
entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves
diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas
No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros
de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente
justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto
Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua
sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com
Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os
exemplos acima mencionados
Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso
Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria
em a partir de
1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z
inferir
2) x eacute belo e natildeo belo
Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel
de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x
estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a
donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo
indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente
incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo
parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que
Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma
deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar
em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade
da sentenccedila
1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z
concluir que
2) x eacute belo e natildeo belo
138
Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por
Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o
aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute
adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado
incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum
e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute
(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo
Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se
comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na
formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a
propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da
propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um
objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto
represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo
A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os
complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados
completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo
ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E
o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente
equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter
Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo
primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos
ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e
convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e
incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de
argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto
de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca
agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo
piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)
Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e
relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo
um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por
139
meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como
veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados
incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates
para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o
modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em
mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que
argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar
entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias
140
32 A inteligibilidade das Formas
Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica
da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter
inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo
estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu
discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar
esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela
razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo
Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o
Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com
aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)
Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da
Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido
apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um
caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma
passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender
que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo
(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem
esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de
Diotima
Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira
caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter
inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de
Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema
principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates
iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal
sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma
existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os
objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma
imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve
temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo
141
conhecimento
As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando
Soacutecrates pergunta a Simmias
ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)
A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando
no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo
(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em
seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da
Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da
primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na
resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente
familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio
relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a
sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει
ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a
142
expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na
qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso
sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde
diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das
expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de
designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do
personagem Simmias com a Teoria das Ideias13
A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates
afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das
expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por
meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal
afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em
busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a
mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que
tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos
De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir
esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das
belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave
vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo
natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave
espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber
informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas
Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este
ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar
11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a
given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)
12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico
13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades
143
abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo
apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria
reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre
Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os
objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ
αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres
(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)
14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o
sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico
144
33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis
A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute
particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua
exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates
desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar
como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos
oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo
(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente
traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas
natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os
oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis
enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo
assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las
conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um
momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o
intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel
Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui
algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem
argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como
move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas
por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos
tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a
possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas
simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa
condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento
(cf Bostock 1983 p60-63)
Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a
estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas
por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si
mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo
145
de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e
74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates
pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras
Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos
sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos
objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode
ser esquematizado da seguinte maneira
1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada
propriedade P
2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P
3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a
mesma coisa
Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem
causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto
textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo
conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual
propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo
pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do
que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute
muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa
depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala
Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias
ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo
146
Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)
Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a
existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da
Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo
afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de
que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais
a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo
ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto
certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na
conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes
de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural
devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados
para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )
enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)
Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as
ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo
tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo
parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo
Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com
tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf
Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como
ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p
134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que
chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor
exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente
147
pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato
devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que
dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo
assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por
Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15
A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os
problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua
grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura
1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo
verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os
mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais
para outra pessoardquo
2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo
relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila
estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira
iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes
iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo
3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste
caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora
permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um
aspecto e desiguais em outro aspectordquo
As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo
com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada
pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da
Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura
parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o
mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para
um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a
15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees
estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
129
31 O discurso de Diotima e a revelaccedilatildeo da Forma do Bel o
Dentre os diaacutelogos que compotildeem a fase meacutedia aquele em que as Formas
satildeo apresentadas de maneira mais resumida eacute certamente o Banquete Neste
diaacutelogo Soacutecrates participa de uma festa em celebraccedilatildeo agrave primeira vitoacuteria de
Agatatildeo em competiccedilotildees dramaacuteticas e se vecirc obrigado como cada um dos
participantes a oferecer um discurso em louvor (e)gkwmion177b ou e)painoj
177d) ao deus Eros No entanto ao inveacutes de compor seu proacuteprio discurso
Soacutecrates prefere recontar as palavras de Diotima uma sacerdotisa da Mantineacuteia
saacutebia nas coisas relativas a Eros e instrutora de Soacutecrates nas artes do amor (τὰ
ἐρωτικὰ) Relembrando as palavras de Diotima Soacutecrates desenvolve uma
surpreendente narrativa acerca do amor repleto de referecircncias miacutetico-religiosas
ao final da qual o leitor do diaacutelogo eacute apresentado agrave verdadeira natureza da Beleza
Seu discurso foca-se na revelaccedilatildeo de uma uacutenica Forma e sua estrateacutegia
argumentativa consiste em levar o ouvinte a ascender progressivamente do amor e
desejo eroacutetico pelas coisas sensiacuteveis ao amor e desejo eroacutetico pela Forma do Belo
Seraacute a contraposiccedilatildeo entre as muacuteltiplas coisas belas (corpos costumes leis e
ciecircncias) e o Belo ele mesmo si (αὐτὸ τὸ καλόν) o que daraacute a Soacutecrates o ensejo de
contrastar o modo de ser das coisas sensiacuteveis com o modo de ser das Formas
Antes de apresentar o Belo como o objeto uacuteltimo de todo desejo eroacutetico e
introduzir explicitamente o segundo poacutelo da disjunccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel
Soacutecrates nos fornece uma descriccedilatildeo da fraacutegil e passageira condiccedilatildeo do que eacute
mortal Segundo ele
ldquoquando dizemos de cada ser vivo que ele vive e permanece o mesmo - por exemplo dizemos que ele permanece o mesmo desde a infacircncia agrave velhice ele na realidade natildeo possui jamais em si as mesmas coisas (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) Mesmo se dizemos que ele permanece o mesmo ele natildeo cessa contudo de se renovar e perder certas coisas nos cabelos nas carnes nos ossos no sangue e em todo corpo E isto eacute vaacutelido natildeo somente para o corpo mas tambeacutem para a alma Os costumes as opiniotildees desejos prazeres afliccedilotildees temores cada um destes afetos jamais permanece o mesmo em cada um de noacutes mas uns nascem e outros morremrdquo4 ἐπεὶ καὶ ἐν ᾧ ἓν ἕκαστον τῶν ζῴων ζῆν καλεῖται καὶ εἶναι τὸ αὐτόndash οἷον ἐκ
argumentaccedilatildeo agrave Owen (cfCherniss 1965) 4 Nossa traduccedilatildeo segue o texto de Brisson (2007) que natildeo aceita a pontuaccedilatildeo estabelecida por
Burnet (cf Brisson 2007 p 212 n436)
130
παιδαρίου ὁ αὐτὸς λέγεται ἕως ἂν πρεσβύτης γένηται οὗτος microέντοι οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ ὅmicroως ὁ αὐτὸς καλεῖται ἀλλὰ νέος ἀεὶ γιγνόmicroενος τὰ δὲ ἀπολλύς καὶ κατὰ τὰς τρίχας καὶ σάρκα καὶ ὀστᾶ καὶ αἷmicroα καὶ σύmicroπαν τὸ σῶmicroα καὶ microὴ ὅτι κατὰ τὸ σῶmicroα ἀλλὰ καὶ κατὰ τὴν ψυχὴν οἱ τρόποι τὰ ἤθη δόξαι ἐπιθυmicroίαι ἡδοναί λῦπαι φόβοι τούτων ἕκαστα οὐδέποτε τὰ αὐτὰ πάρεστιν ἑκάστῳ ἀλλὰ τὰ microὲν γίγνεται τὰ δὲ ἀπόλλυται (207d4-e5)
De acordo com as liccedilotildees de Diotima eacute na tentativa de superar esta
impermanecircncia inerente a tudo aquilo que eacute mortal que os animais bestas e
homens se lanccedilam com ardor no desejo de procriaccedilatildeo Afinal ldquoeacute deste modo que
tudo o que eacute mortal se conserva natildeo pelo fato de absolutamente ser sempre o
mesmo (οὐ τῷ παντάπασιν τὸ αὐτὸ ἀεὶ εἶναι) como o que eacute divino mas pelo fato
daquele que parte e envelhece deixar um outro ser novo tal como ele erardquo
(208a7-b2) Assim Soacutecrates contrasta a inconstacircncia daquilo que eacute mortal apenas
dito o mesmo (ὁ αὐτὸς καλεῖται) poreacutem ldquosem possuir jamais em si as mesmas
coisasrdquo (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) com a permanecircncia do que eacute imortal
(ἀθάνατον 208b4) que ldquoeacute absolutamente sempre o mesmordquo (παντάπασιν τὸ αὐτὸ
ἀεὶ εἶναι)
Os ouvintes de Soacutecrates tal como aquele que estaacute lendo o diaacutelogo pela
primeira vez natildeo reconhecem nesta comparaccedilatildeo entre o modo de existecircncia dos
seres mortais e modo de existecircncia do seres imortais o contraste entre Formas e
coisas que seraacute revelado ao final do discurso Contudo um leitor habituado ao
modo de escrita platocircnico pode facilmente identificar nesta fala uma antecipaccedilatildeo
da comparaccedilatildeo entre o modo de existecircncia das coisas belas sensiacuteveis e o modo de
existecircncia do Belo Este leitor seraacute capaz de reconhecer que o adjetivo ldquoimortalrdquo
(ἀθάνατον) utilizado na passagem acima citada como sinocircnimo de ldquodivinordquo
(θεῖον) natildeo se refere apenas aos deuses mas inclui em seu campo de aplicaccedilatildeo a
proacutepria Forma do Belo que como seraacute elucidado ao final do discurso tambeacutem ldquoeacute
para semprerdquo (ἀεὶ ὂν 211a1) Deste modo a relaccedilatildeo mortalimortal facilmente
compreensiacutevel para os representantes da elite cultural ateniense presentes no
banquete eacute utilizada para introduzir a distinccedilatildeo entre o modo de ser das muacuteltiplas
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo
O caminho que leva agrave revelaccedilatildeo do Belo inicia-se com o reconhecimento
da unidade subjacente a tudo aquilo que eacute belo em um movimento facilmente
identificaacutevel por um leitor familiarizado com a argumentaccedilatildeo dos diaacutelogos de
primeira fase O iniciado nas artes do amor (τὰ ἐρωτικὰ) comeccedilaraacute por amar a um
131
soacute belo corpo e como resultado deste amor engendraraacute belos discursos Em
seguida ele seraacute levado a reconhecer que a beleza que reside em um corpo
qualquer eacute irmatilde (ἀδελφόν) da que estaacute em outro belo corpo e que portanto ldquoseria
muita tolice natildeo considerar uma soacute e a mesma (ἕν τε καὶ ταὐτὸν) a beleza que
reside em todos os corposrdquo (210b2-3) Apoacutes este momento ele passaraacute a
considerar a beleza presente nas almas mais valiosa do que aquela presente nos
corpos e seraacute capaz de ldquocontemplar o belo nos costumes e nas leis e ver que em si
mesmo o belo eacute sempre semelhante a si mesmo (πᾶν αὐτὸ αὑτῷ συγγενές ἐστιν)rdquo
(210c3-5) Por fim ele veraacute a beleza tambeacutem nos diversos ramos da ciecircncias
(ἐπιστηmicroῶν) ateacute que ldquoolhando agora para o belo nesta multiplicidade deixe de
amar como um escravo a beleza de um soacute jovem homem ou costume (hellip) e
contemple ele uma certa ciecircncia uacutenica tal que seu objeto eacute Belezardquo (210d1-e1)
Apesar do caraacuteter miacutestico-religioso5 do discurso de Diotima natildeo possuir
precedentes nos diaacutelogos da primeira fase podemos reconhecer no percurso de
ascensatildeo do iniciado nos ensinamentos do amor a busca pela unidade do εἶδος
que encontramos nos diaacutelogos definicionais Da mesma maneira que Laacuteques eacute
instigado por Soacutecrates a buscar ldquoaquilo que eacute idecircntico em todos os casos de
coragemrdquo (ἐν πᾶσι τούτοις ταὐτόν ἐστιν Laq191e4-11) e Ecircutifron a apresentar ldquoa
piedade ela mesma que eacute idecircntica a si mesma em toda accedilatildeo piedosardquo (ταὐτόν
ἐστιν ἐν πάσῃ πράξει τὸ ὅσιον αὐτὸ αὑτῷ Eut5d1-2)6 o iniciado nas artes do
amor eacute levado a reconhecer que a beleza que reside em tudo aquilo que eacute belo eacute
ldquouma soacute e a mesmardquo (ἕν τε καὶ ταὐτὸν) Ele enfim concluiraacute que ldquoem si mesmo o
belo eacute sempre semelhante a si mesmordquo (αὐτὸ αὑτῷ συγγενές ἐστιν) Pois apesar
de pertencerem a niacuteveis distintos na escala de revelaccedilatildeo dos misteacuterios do amor
sendo cada estaacutegio superior ao precedente o belo do corpo o belo da alma dos
costumes e das ciecircncias eacute o mesmo na medida em que todas estas coisas
participam (πάντα καλὰ microετέχοντα) do Belo em si Forma uacutenica e causa universal
de tudo aquilo que eacute belo
Assim ldquoaquele que tenha contemplado na sua ordem e sucessatildeo correta
as coisas belas chegando ao teacutermino dos ensinamentos concernentes agraves coisas do
amor subitamente enxergaraacute algo maravilhosamente belo por naturezardquo
5 Este caraacutete estaacute expesso textualmente pelo uso de um vocabulaacuterio fortemente inspirado nos misteacuterios e ritos de iniciaccedilatildeo da religiatildeo grega (cf Brisson 2007 p66-71) 6 Compare ainda com o uso de τι τὸ αὐτὸ e τὸ κοινὸν τοῦτο em HippMa 300a-b e Men
132
(θεώmicroενος ἐφεξῆς τε καὶ ὀρθῶς τὰ καλά πρὸς τέλος ἤδη ἰὼν τῶν ἐρωτικῶν
ἐξαίφνης κατόψεταί τι θαυmicroαστὸν τὴν φύσιν καλόν 210e3-5) A partir desta
sentenccedila a prosa platocircnica repentinamente adquire a cadecircncia dos ditirambos agrave
maneira das odes entoadas pelos coros das trageacutedias (cf Allen 1991 p82) e
Soacutecrates inicia uma descriccedilatildeo das caracteriacutesticas ontoloacutegicas deste Belo em si
objetivo uacuteltimo da revelaccedilatildeo dos misteacuterios de Eros ldquoem vista do qual todos os
esforccedilos anteriores foram realizadosrdquo (οὗ δὴ ἕνεκεν καὶ οἱ ἔmicroπροσθεν πάντες
πόνοι ἦσαν)
ldquoprimeiramente eacute para sempre natildeo nascendo nem perecendo natildeo crescendo nem decrescendo depois natildeo eacute belo de um jeito7 e feio de outro nem ora belo e ora feio nem quanto a isso belo e quanto agravequilo feio nem belo aqui e feio ali como se a alguns fosse belo e a outros feio tampouco apareceraacute o Belo como um rosto ou matildeos nem como nada que pertence ao corpo nem como algum discurso ou alguma ciecircncia tambeacutem natildeo seraacute situado em uma outra coisa como em algum animal da terra ou do ceacuteu ou em qualquer outra coisa ao contraacuterio apareceraacute ele mesmo por si mesmo consigo mesmo sendo sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν) enquanto todas as outras coisas belas dele participam de uma maneira tal que ao passo que tudo mais que eacute belo nasce e perece ele em nada fica maior ou menor nem nada sofrerdquo πρῶτον microὲν ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον ἔπειτα οὐ τῇ microὲν καλόν τῇ δ αἰσχρόν οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν οὐδ αὖ φαντασθήσεται αὐτῷ τὸ καλὸν οἷον πρόσωπόν τι οὐδὲ χεῖρες οὐδὲ ἄλλο οὐδὲν ὧν σῶmicroα microετέχει οὐδέ τις λόγος οὐδέ τις ἐπιστήmicroη οὐδέ που ὂν ἐν ἑτέρῳ τινι οἷον ἐν ζώῳ ἢ ἐν γῇ ἢ ἐν οὐρανῷ ἢ ἔν τῳ ἄλλῳ ἀλλ αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν τὰ δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα τρόπον τινὰ τοιοῦτον οἷον γιγνοmicroένων τε τῶν ἄλλων καὶ ἀπολλυmicroένων microηδὲν ἐκεῖνο microήτε τι πλέον microήτε ἔλαττον γίγνεσθαι microηδὲ πάσχειν microηδέν (211a1-b5)
De todo o corpus platocircnico esta passagem pode ser considerada aquela em
que a ontologia das Formas eacute apresentada de maneira mais densa e direta Focada
na descriccedilatildeo de uma uacutenica Forma a revelaccedilatildeo final de Diotima apresenta de uma
soacute vez diversos temas da ontologia platocircnica A primeira caracteriacutestica atribuiacuteda
ao Belo ldquoser para sempre natildeo nascendo nem perecendordquo remete ao tradicional
contraste entre seres mortais e imortais evocado anteriormente Contudo Diotima
radicaliza ainda mais este contraste afirmando que a Forma do Belo natildeo apenas
ldquoeacute para semprerdquo (ἀεὶ ὂν) em um paralelo direto com a foacutermula homeacuterica para
72c 7 Para traduzaccedilatildeo de τῇ microὲν hellip τῇ δὲ (ldquodesta hellip daquela maneirardquo) (cf LSJ verbete o( A
VIII 1)
133
imortalidade divina (qeoi ai)en e)ontej) como tambeacutem natildeo foi gerada nem eacute
passiacutevel de perecimento (οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον) Atraveacutes destas
determinaccedilotildees adicionais Diotima introduz um tipo de eternidade inerente agrave
Forma do Belo que ultrapassa em muito a imortalidade divina Pois como
sabemos pela Teogonia apesar de indestrutiacuteveis os deuses tiveram um momento
de nascimento A Forma do Belo por sua vez estaacute fora do tempo na medida em
que natildeo possui um momento de surgimento nem possuiraacute um momento de
destruiccedilatildeo8
Aleacutem de eternamente existente a Forma do Belo natildeo cresce nem diminui
(οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον) E enquanto as coisas belas nascem e perecem a
Forma do Belo permanece inafetada (πάσχειν microηδέν) sendo ela mesma por si
mesma consigo mesma sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς
ἀεὶ ὄν)
A foacutermula ldquoele mesmo por si mesmo consigo mesmordquo (αὐτὸ καθ αὑτὸ
microεθ αὑτοῦ) resume em si aquilo que estaacute expresso entre as linhas 211a5-b6 isto eacute
o fato de que a Forma do Belo natildeo pode ser confundida com a beleza que
encontramos nas coisas sensiacuteveis (matildeos rostos partes dos corpos discursos
ciecircncias animais da terra ou do ceacuteu ou qualquer outra coisa) pois eacute uma entidade
independente e separada destas coisas A estrutura reflexiva da expressatildeo αὐτὸ
καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ pretende sublinhar a independecircncia ontoloacutegica do Belo que
eacute ldquoem si e por sirdquo e portanto natildeo depende dos objetos sensiacuteveis para existir e ser
aquilo que ela eacute Os objetos belos sensiacuteveis por outro lado satildeo ontologicamente
dependentes e necessitam da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo no Belo para serem belos (τὰ
δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα) A unidade entre a argumentaccedilatildeo dos
primeiros diaacutelogos e a revelaccedilatildeo de Diotima se torna evidente quando lembramos
que a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ natildeo passa de uma intensificaccedilatildeo da
foacutermula αὐτὸ τὸ εἶδος utilizada por Soacutecrates nos primeiros diaacutelogos9 para
expressar exatamente o mesmo aspecto de sua teoria
Aleacutem de eternamente existente e ontologicamente independente o Belo
caracteriza-se por estar isento de qualquer mudanccedila sendo de maneira fixa e
8 De fato como observam Sprague (1971) e Solmsen (1971) a eternidade do Belo possui como
paralelo apenas o Ser de Parmecircnides e podemos ateacute considerar intencional a referecircncia ao poema parmeniacutedico nas palavras de Diotima Compare a foacutermula utilizada por Diotima para expressar a eternidade do Belo ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον com as palavras utilizadas por Parmenides ὡς ἀγένητον ἐὸν καὶ ἀνώλεθρόν ἐστιν (Frag B83)
134
invariaacutevel aquilo que ele eacute Podemos descrever esta caracteriacutestica como a
estabilidade ontoloacutegica do Belo e tal qualidade distintiva eacute expressa por Diotima
por meio da enumeraccedilatildeo das diferentes maneiras em que esta Forma poderia
deixar de ser bela caso fosse apenas mais uma entidade sensiacutevel Assim Diotima
nos explica que o Belo natildeo eacute
1) belo em um aspecto poreacutem feio em outro aspecto (οὐ τῇ microὲν
καλόν τῇ δ αἰσχρόν)
2) belo em um determinado momento poreacutem feio em outro momento
(οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ)
3) belo em relaccedilatildeo a certas coisas poreacutem feio em relaccedilatildeo a outras
(οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν)
4) belo em um determinado local poreacutem feio em outro sendo belo
para uns e feio para outros (οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν
ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν)
Por natildeo estar sujeita a estas qualificaccedilotildees a Forma do Belo eacute caracterizada
como aquela entidade sobre a qual eacute sempre verdadeiro afirmar que ela eacute bela
Esta estabilidade no modo de ser das Formas eacute ressaltada por meio do emprego do
adjetivo microονοειδὲς que etimologicamente deve ser traduzido por ldquouniformerdquo mas
pode ter seu sentido exprimido pela locuccedilatildeo ldquouacutenico em aspectordquo Como explica
Diotima a unidade aspectual da Forma do Belo encontra-se em ela ser
exclusivamente bela natildeo se mostrando nunca feia (ou natildeo-bela) e estando imune a
qualquer tipo de perspectivismo ou relativismo
No decorrer deste capiacutetulo veremos que o termo microονοειδὲς eacute parte do
vocabulaacuterio teacutecnico da Teoria das Ideias e reapareceraacute no Feacutedon (78b4) como uma
expressatildeo cristalizada para indicar que a Forma F (Belo Justo Grande Pequeno
etc) eacute uacutenica e invariavelmente F (bela justa grande pequena etc) o que a
torna um tipo de entidade fundamentalmente distinta dos diversos particulares
sensiacuteveis que evidentemente possuem uma diversidade de aspectos e estatildeo
sujeitos a uma multiplicidade de predicaccedilotildees muitas delas contraacuterias entre si
Este mesmo fato ontoloacutegico estaacute relacionado agrave caracterizaccedilatildeo das Formas
9 cf Eut 6d10 Hipp Ma 286d8 288a9 289c3 292c3
135
como ἐκεῖνο ὃ ἔστι Como vimos no Liacutesis esta expressatildeo eacute usada para diferenciar
as diversas coisas amadas-em-vista-de-outra-coisa do πρῶτον φίλον uacutenica
entidade amada em vista de si mesma Por natildeo ser amado de maneira relacional
em vista de outro objeto o πρῶτον φίλον eacute considerado a uacutenica entidade apta a
receber o predicado ldquoser-amadordquo de maneira sempre verdadeira (ἐκεῖνο τὸ
πρῶτον ὃ ὡς ἀληθῶς ἐστι φίλον Lis219d4-5) e portanto pode ser caracterizado
como ἐκεῖνο ὃ ἐστι φίλον No Banquete (211c7-d1) a locuccedilatildeo ἐκεῖνο ὃ ἔστι eacute
utilizada para explicar que o processo de revelaccedilatildeo ao qual o iniciado nas artes do
amor foi submetido ldquoacaba naquela ciecircncia que natildeo eacute ciecircncia de nada mais do que
daquele proacuteprio Belo e [o iniciado] termina por conhecer o que eacute belo [ou o que
Belo eacute] (ὃ ἔστι καλόν) rdquo10
Novamente o vocabulaacuterio relativo agrave formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias que
encontramos nos diaacutelogos da fase meacutedia se apresenta em completa continuidade
com a busca por definiccedilotildees dos diaacutelogos inicias A foacutermula ὃ ἔστι x natildeo passa da
inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι x que como vimos no capiacutetulo precedente
caracteriza a busca socraacutetica por definiccedilotildees Assim aquilo que soacute podiacuteamos
acessar indiretamente nos primeiros diaacutelogos nos eacute apresentado de maneira
expliacutecita nos diaacutelogos meacutedios e a busca socraacutetica expressa em questotildees do tipo ldquoo
que eacute belordquo (τί ἐστι καλόν) eacute diretamente solucionada pela identificaccedilatildeo da
Forma da Beleza como ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (ὃ ἔστι καλόν)
Em contraposiccedilatildeo agrave estabilidade ontoloacutegica do Belo que eacute sempre
unicamente belo somos levados a concluir que ldquotodas as outras coisas belasrdquo (τὰ
ἄλλα πάντα καλὰ) estatildeo sujeitas a uma ou a mais de uma das seguintes
indeterminaccedilotildees
1) Elas podem ser belas em um de seus aspectos poreacutem feias em
outro Por exemplo uma escultura pode ser bela em sua forma
poreacutem estar pintada com cores horrendas
10 Eacute importante notar que na locuccedilatildeo ὃ ἔστι καλόν o termo καλόν pode ocupar o lugar tanto de
sujeito quanto de predicado Na realidade isto natildeo se daacute por acaso e devemos considerar esta ambiguidade sintaacutetica como um resultado proposital do texto platocircnico Tal fato fica evidente quando notamos que apesar da foacutermula ὃ ἔστι F ser recorrentemente usada para designar as Formas nunca encontramos o termo seguinte ao verbo ἔστι introduzido por um artigo o que anularia a possibilidade de uma leitura predicativa (cf Kahn 2009 p80) Por meio deste artifiacutecio sintaacutetico Platatildeo pretende nos transmitir a ideia de que conhecer ldquoo que o Belo eacuterdquo (construccedilatildeo subjetiva) equivale a conhecer ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (construccedilatildeo predicativa)
136
2) Elas podem ser belas em um momento poreacutem feias em outro Por
exemplo um Ipecirc pode ser belo na primavera quando em flor
poreacutem feio no inverno quando desfolhado
3) Elas podem ser belas quando comparadas a uma determinada coisa
poreacutem feias quando comparadas a outra Por exemplo a bela moccedila
descrita no Hiacuteppias Maior quando comparada a uma deusa deve
ser considerada feia
4) Elas podem ser belas em um determinado local poreacutem feias em
outro sendo belas para uns e feias para outros Por exemplo os
adornos de um iacutendio Xavante que satildeo belos para os membros de
sua tribo poreacutem feios para os frequentadores da feira de moda de
Milatildeo
Ora como todo objeto sensiacutevel possui uma multiplicidade de aspectos e
caracteriacutesticas eacute plenamente possiacutevel e ateacute mesmo esperado que estas entidades
sejam belas em um de seus aspectos e feias em outros Todo objeto sensiacutevel
possui por exemplo um formato uma cor um odor uma textura etc Sendo
assim devemos considerar natural o fato de que um mesmo objeto julgado belo
em sua forma possa natildeo parecer belo em sua cor ou em um outro aspecto
qualquer Note que o mesmo raciociacutenio vale para as accedilotildees que os interlocutores de
Soacutecrates oferecem como exemplos de virtudes nos diaacutelogos inicias Acusar
publicamente o seu proacuteprio pai pode ser um ato pio quando considerado a partir
dos aspectos legais de persecuccedilatildeo religiosa conforme argumenta Ecircutifron Poreacutem
quando analisado agrave luz dos laccedilos de consanguinidade e reverecircncia familiar este
mesmo ato eacute certamente um exemplo de impiedade
Do mesmo modo devido ao fato de todas as entidades sensiacuteveis estarem
sujeitas agrave passagem do tempo podemos considerar inevitaacutevel que coisas ou atos
considerados belos hoje deixaratildeo de secirc-lo em algum momento futuro ou mesmo
que natildeo tenham sido belos em algum instante do passado Um belo cavalo hoje
deixaraacute de ser belo quando velho ou morto e a escravizaccedilatildeo de um inimigo
derrotado em batalha considerada uma accedilatildeo justa em um passado natildeo muito
remoto eacute certamente julgada uma grande injusticcedila nos dias de hoje Estes poucos
exemplos satildeo suficientes para concluirmos que os dois primeiros itens da
enumeraccedilatildeo de Diotima representam casos plenamente compreensiacuteveis de
137
diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel
Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as
entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves
diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas
No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros
de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente
justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto
Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua
sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com
Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os
exemplos acima mencionados
Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso
Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria
em a partir de
1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z
inferir
2) x eacute belo e natildeo belo
Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel
de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x
estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a
donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo
indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente
incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo
parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que
Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma
deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar
em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade
da sentenccedila
1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z
concluir que
2) x eacute belo e natildeo belo
138
Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por
Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o
aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute
adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado
incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum
e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute
(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo
Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se
comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na
formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a
propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da
propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um
objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto
represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo
A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os
complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados
completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo
ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E
o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente
equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter
Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo
primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos
ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e
convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e
incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de
argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto
de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca
agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo
piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)
Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e
relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo
um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por
139
meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como
veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados
incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates
para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o
modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em
mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que
argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar
entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias
140
32 A inteligibilidade das Formas
Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica
da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter
inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo
estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu
discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar
esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela
razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo
Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o
Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com
aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)
Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da
Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido
apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um
caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma
passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender
que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo
(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem
esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de
Diotima
Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira
caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter
inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de
Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema
principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates
iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal
sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma
existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os
objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma
imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve
temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo
141
conhecimento
As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando
Soacutecrates pergunta a Simmias
ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)
A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando
no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo
(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em
seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da
Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da
primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na
resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente
familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio
relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a
sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει
ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a
142
expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na
qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso
sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde
diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das
expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de
designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do
personagem Simmias com a Teoria das Ideias13
A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates
afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das
expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por
meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal
afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em
busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a
mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que
tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos
De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir
esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das
belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave
vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo
natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave
espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber
informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas
Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este
ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar
11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a
given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)
12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico
13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades
143
abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo
apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria
reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre
Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os
objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ
αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres
(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)
14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o
sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico
144
33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis
A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute
particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua
exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates
desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar
como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos
oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo
(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente
traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas
natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os
oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis
enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo
assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las
conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um
momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o
intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel
Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui
algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem
argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como
move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas
por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos
tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a
possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas
simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa
condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento
(cf Bostock 1983 p60-63)
Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a
estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas
por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si
mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo
145
de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e
74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates
pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras
Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos
sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos
objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode
ser esquematizado da seguinte maneira
1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada
propriedade P
2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P
3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a
mesma coisa
Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem
causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto
textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo
conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual
propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo
pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do
que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute
muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa
depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala
Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias
ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo
146
Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)
Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a
existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da
Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo
afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de
que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais
a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo
ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto
certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na
conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes
de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural
devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados
para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )
enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)
Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as
ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo
tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo
parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo
Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com
tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf
Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como
ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p
134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que
chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor
exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente
147
pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato
devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que
dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo
assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por
Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15
A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os
problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua
grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura
1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo
verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os
mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais
para outra pessoardquo
2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo
relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila
estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira
iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes
iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo
3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste
caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora
permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um
aspecto e desiguais em outro aspectordquo
As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo
com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada
pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da
Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura
parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o
mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para
um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a
15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees
estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
130
παιδαρίου ὁ αὐτὸς λέγεται ἕως ἂν πρεσβύτης γένηται οὗτος microέντοι οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ ὅmicroως ὁ αὐτὸς καλεῖται ἀλλὰ νέος ἀεὶ γιγνόmicroενος τὰ δὲ ἀπολλύς καὶ κατὰ τὰς τρίχας καὶ σάρκα καὶ ὀστᾶ καὶ αἷmicroα καὶ σύmicroπαν τὸ σῶmicroα καὶ microὴ ὅτι κατὰ τὸ σῶmicroα ἀλλὰ καὶ κατὰ τὴν ψυχὴν οἱ τρόποι τὰ ἤθη δόξαι ἐπιθυmicroίαι ἡδοναί λῦπαι φόβοι τούτων ἕκαστα οὐδέποτε τὰ αὐτὰ πάρεστιν ἑκάστῳ ἀλλὰ τὰ microὲν γίγνεται τὰ δὲ ἀπόλλυται (207d4-e5)
De acordo com as liccedilotildees de Diotima eacute na tentativa de superar esta
impermanecircncia inerente a tudo aquilo que eacute mortal que os animais bestas e
homens se lanccedilam com ardor no desejo de procriaccedilatildeo Afinal ldquoeacute deste modo que
tudo o que eacute mortal se conserva natildeo pelo fato de absolutamente ser sempre o
mesmo (οὐ τῷ παντάπασιν τὸ αὐτὸ ἀεὶ εἶναι) como o que eacute divino mas pelo fato
daquele que parte e envelhece deixar um outro ser novo tal como ele erardquo
(208a7-b2) Assim Soacutecrates contrasta a inconstacircncia daquilo que eacute mortal apenas
dito o mesmo (ὁ αὐτὸς καλεῖται) poreacutem ldquosem possuir jamais em si as mesmas
coisasrdquo (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) com a permanecircncia do que eacute imortal
(ἀθάνατον 208b4) que ldquoeacute absolutamente sempre o mesmordquo (παντάπασιν τὸ αὐτὸ
ἀεὶ εἶναι)
Os ouvintes de Soacutecrates tal como aquele que estaacute lendo o diaacutelogo pela
primeira vez natildeo reconhecem nesta comparaccedilatildeo entre o modo de existecircncia dos
seres mortais e modo de existecircncia do seres imortais o contraste entre Formas e
coisas que seraacute revelado ao final do discurso Contudo um leitor habituado ao
modo de escrita platocircnico pode facilmente identificar nesta fala uma antecipaccedilatildeo
da comparaccedilatildeo entre o modo de existecircncia das coisas belas sensiacuteveis e o modo de
existecircncia do Belo Este leitor seraacute capaz de reconhecer que o adjetivo ldquoimortalrdquo
(ἀθάνατον) utilizado na passagem acima citada como sinocircnimo de ldquodivinordquo
(θεῖον) natildeo se refere apenas aos deuses mas inclui em seu campo de aplicaccedilatildeo a
proacutepria Forma do Belo que como seraacute elucidado ao final do discurso tambeacutem ldquoeacute
para semprerdquo (ἀεὶ ὂν 211a1) Deste modo a relaccedilatildeo mortalimortal facilmente
compreensiacutevel para os representantes da elite cultural ateniense presentes no
banquete eacute utilizada para introduzir a distinccedilatildeo entre o modo de ser das muacuteltiplas
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo
O caminho que leva agrave revelaccedilatildeo do Belo inicia-se com o reconhecimento
da unidade subjacente a tudo aquilo que eacute belo em um movimento facilmente
identificaacutevel por um leitor familiarizado com a argumentaccedilatildeo dos diaacutelogos de
primeira fase O iniciado nas artes do amor (τὰ ἐρωτικὰ) comeccedilaraacute por amar a um
131
soacute belo corpo e como resultado deste amor engendraraacute belos discursos Em
seguida ele seraacute levado a reconhecer que a beleza que reside em um corpo
qualquer eacute irmatilde (ἀδελφόν) da que estaacute em outro belo corpo e que portanto ldquoseria
muita tolice natildeo considerar uma soacute e a mesma (ἕν τε καὶ ταὐτὸν) a beleza que
reside em todos os corposrdquo (210b2-3) Apoacutes este momento ele passaraacute a
considerar a beleza presente nas almas mais valiosa do que aquela presente nos
corpos e seraacute capaz de ldquocontemplar o belo nos costumes e nas leis e ver que em si
mesmo o belo eacute sempre semelhante a si mesmo (πᾶν αὐτὸ αὑτῷ συγγενές ἐστιν)rdquo
(210c3-5) Por fim ele veraacute a beleza tambeacutem nos diversos ramos da ciecircncias
(ἐπιστηmicroῶν) ateacute que ldquoolhando agora para o belo nesta multiplicidade deixe de
amar como um escravo a beleza de um soacute jovem homem ou costume (hellip) e
contemple ele uma certa ciecircncia uacutenica tal que seu objeto eacute Belezardquo (210d1-e1)
Apesar do caraacuteter miacutestico-religioso5 do discurso de Diotima natildeo possuir
precedentes nos diaacutelogos da primeira fase podemos reconhecer no percurso de
ascensatildeo do iniciado nos ensinamentos do amor a busca pela unidade do εἶδος
que encontramos nos diaacutelogos definicionais Da mesma maneira que Laacuteques eacute
instigado por Soacutecrates a buscar ldquoaquilo que eacute idecircntico em todos os casos de
coragemrdquo (ἐν πᾶσι τούτοις ταὐτόν ἐστιν Laq191e4-11) e Ecircutifron a apresentar ldquoa
piedade ela mesma que eacute idecircntica a si mesma em toda accedilatildeo piedosardquo (ταὐτόν
ἐστιν ἐν πάσῃ πράξει τὸ ὅσιον αὐτὸ αὑτῷ Eut5d1-2)6 o iniciado nas artes do
amor eacute levado a reconhecer que a beleza que reside em tudo aquilo que eacute belo eacute
ldquouma soacute e a mesmardquo (ἕν τε καὶ ταὐτὸν) Ele enfim concluiraacute que ldquoem si mesmo o
belo eacute sempre semelhante a si mesmordquo (αὐτὸ αὑτῷ συγγενές ἐστιν) Pois apesar
de pertencerem a niacuteveis distintos na escala de revelaccedilatildeo dos misteacuterios do amor
sendo cada estaacutegio superior ao precedente o belo do corpo o belo da alma dos
costumes e das ciecircncias eacute o mesmo na medida em que todas estas coisas
participam (πάντα καλὰ microετέχοντα) do Belo em si Forma uacutenica e causa universal
de tudo aquilo que eacute belo
Assim ldquoaquele que tenha contemplado na sua ordem e sucessatildeo correta
as coisas belas chegando ao teacutermino dos ensinamentos concernentes agraves coisas do
amor subitamente enxergaraacute algo maravilhosamente belo por naturezardquo
5 Este caraacutete estaacute expesso textualmente pelo uso de um vocabulaacuterio fortemente inspirado nos misteacuterios e ritos de iniciaccedilatildeo da religiatildeo grega (cf Brisson 2007 p66-71) 6 Compare ainda com o uso de τι τὸ αὐτὸ e τὸ κοινὸν τοῦτο em HippMa 300a-b e Men
132
(θεώmicroενος ἐφεξῆς τε καὶ ὀρθῶς τὰ καλά πρὸς τέλος ἤδη ἰὼν τῶν ἐρωτικῶν
ἐξαίφνης κατόψεταί τι θαυmicroαστὸν τὴν φύσιν καλόν 210e3-5) A partir desta
sentenccedila a prosa platocircnica repentinamente adquire a cadecircncia dos ditirambos agrave
maneira das odes entoadas pelos coros das trageacutedias (cf Allen 1991 p82) e
Soacutecrates inicia uma descriccedilatildeo das caracteriacutesticas ontoloacutegicas deste Belo em si
objetivo uacuteltimo da revelaccedilatildeo dos misteacuterios de Eros ldquoem vista do qual todos os
esforccedilos anteriores foram realizadosrdquo (οὗ δὴ ἕνεκεν καὶ οἱ ἔmicroπροσθεν πάντες
πόνοι ἦσαν)
ldquoprimeiramente eacute para sempre natildeo nascendo nem perecendo natildeo crescendo nem decrescendo depois natildeo eacute belo de um jeito7 e feio de outro nem ora belo e ora feio nem quanto a isso belo e quanto agravequilo feio nem belo aqui e feio ali como se a alguns fosse belo e a outros feio tampouco apareceraacute o Belo como um rosto ou matildeos nem como nada que pertence ao corpo nem como algum discurso ou alguma ciecircncia tambeacutem natildeo seraacute situado em uma outra coisa como em algum animal da terra ou do ceacuteu ou em qualquer outra coisa ao contraacuterio apareceraacute ele mesmo por si mesmo consigo mesmo sendo sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν) enquanto todas as outras coisas belas dele participam de uma maneira tal que ao passo que tudo mais que eacute belo nasce e perece ele em nada fica maior ou menor nem nada sofrerdquo πρῶτον microὲν ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον ἔπειτα οὐ τῇ microὲν καλόν τῇ δ αἰσχρόν οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν οὐδ αὖ φαντασθήσεται αὐτῷ τὸ καλὸν οἷον πρόσωπόν τι οὐδὲ χεῖρες οὐδὲ ἄλλο οὐδὲν ὧν σῶmicroα microετέχει οὐδέ τις λόγος οὐδέ τις ἐπιστήmicroη οὐδέ που ὂν ἐν ἑτέρῳ τινι οἷον ἐν ζώῳ ἢ ἐν γῇ ἢ ἐν οὐρανῷ ἢ ἔν τῳ ἄλλῳ ἀλλ αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν τὰ δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα τρόπον τινὰ τοιοῦτον οἷον γιγνοmicroένων τε τῶν ἄλλων καὶ ἀπολλυmicroένων microηδὲν ἐκεῖνο microήτε τι πλέον microήτε ἔλαττον γίγνεσθαι microηδὲ πάσχειν microηδέν (211a1-b5)
De todo o corpus platocircnico esta passagem pode ser considerada aquela em
que a ontologia das Formas eacute apresentada de maneira mais densa e direta Focada
na descriccedilatildeo de uma uacutenica Forma a revelaccedilatildeo final de Diotima apresenta de uma
soacute vez diversos temas da ontologia platocircnica A primeira caracteriacutestica atribuiacuteda
ao Belo ldquoser para sempre natildeo nascendo nem perecendordquo remete ao tradicional
contraste entre seres mortais e imortais evocado anteriormente Contudo Diotima
radicaliza ainda mais este contraste afirmando que a Forma do Belo natildeo apenas
ldquoeacute para semprerdquo (ἀεὶ ὂν) em um paralelo direto com a foacutermula homeacuterica para
72c 7 Para traduzaccedilatildeo de τῇ microὲν hellip τῇ δὲ (ldquodesta hellip daquela maneirardquo) (cf LSJ verbete o( A
VIII 1)
133
imortalidade divina (qeoi ai)en e)ontej) como tambeacutem natildeo foi gerada nem eacute
passiacutevel de perecimento (οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον) Atraveacutes destas
determinaccedilotildees adicionais Diotima introduz um tipo de eternidade inerente agrave
Forma do Belo que ultrapassa em muito a imortalidade divina Pois como
sabemos pela Teogonia apesar de indestrutiacuteveis os deuses tiveram um momento
de nascimento A Forma do Belo por sua vez estaacute fora do tempo na medida em
que natildeo possui um momento de surgimento nem possuiraacute um momento de
destruiccedilatildeo8
Aleacutem de eternamente existente a Forma do Belo natildeo cresce nem diminui
(οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον) E enquanto as coisas belas nascem e perecem a
Forma do Belo permanece inafetada (πάσχειν microηδέν) sendo ela mesma por si
mesma consigo mesma sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς
ἀεὶ ὄν)
A foacutermula ldquoele mesmo por si mesmo consigo mesmordquo (αὐτὸ καθ αὑτὸ
microεθ αὑτοῦ) resume em si aquilo que estaacute expresso entre as linhas 211a5-b6 isto eacute
o fato de que a Forma do Belo natildeo pode ser confundida com a beleza que
encontramos nas coisas sensiacuteveis (matildeos rostos partes dos corpos discursos
ciecircncias animais da terra ou do ceacuteu ou qualquer outra coisa) pois eacute uma entidade
independente e separada destas coisas A estrutura reflexiva da expressatildeo αὐτὸ
καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ pretende sublinhar a independecircncia ontoloacutegica do Belo que
eacute ldquoem si e por sirdquo e portanto natildeo depende dos objetos sensiacuteveis para existir e ser
aquilo que ela eacute Os objetos belos sensiacuteveis por outro lado satildeo ontologicamente
dependentes e necessitam da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo no Belo para serem belos (τὰ
δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα) A unidade entre a argumentaccedilatildeo dos
primeiros diaacutelogos e a revelaccedilatildeo de Diotima se torna evidente quando lembramos
que a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ natildeo passa de uma intensificaccedilatildeo da
foacutermula αὐτὸ τὸ εἶδος utilizada por Soacutecrates nos primeiros diaacutelogos9 para
expressar exatamente o mesmo aspecto de sua teoria
Aleacutem de eternamente existente e ontologicamente independente o Belo
caracteriza-se por estar isento de qualquer mudanccedila sendo de maneira fixa e
8 De fato como observam Sprague (1971) e Solmsen (1971) a eternidade do Belo possui como
paralelo apenas o Ser de Parmecircnides e podemos ateacute considerar intencional a referecircncia ao poema parmeniacutedico nas palavras de Diotima Compare a foacutermula utilizada por Diotima para expressar a eternidade do Belo ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον com as palavras utilizadas por Parmenides ὡς ἀγένητον ἐὸν καὶ ἀνώλεθρόν ἐστιν (Frag B83)
134
invariaacutevel aquilo que ele eacute Podemos descrever esta caracteriacutestica como a
estabilidade ontoloacutegica do Belo e tal qualidade distintiva eacute expressa por Diotima
por meio da enumeraccedilatildeo das diferentes maneiras em que esta Forma poderia
deixar de ser bela caso fosse apenas mais uma entidade sensiacutevel Assim Diotima
nos explica que o Belo natildeo eacute
1) belo em um aspecto poreacutem feio em outro aspecto (οὐ τῇ microὲν
καλόν τῇ δ αἰσχρόν)
2) belo em um determinado momento poreacutem feio em outro momento
(οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ)
3) belo em relaccedilatildeo a certas coisas poreacutem feio em relaccedilatildeo a outras
(οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν)
4) belo em um determinado local poreacutem feio em outro sendo belo
para uns e feio para outros (οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν
ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν)
Por natildeo estar sujeita a estas qualificaccedilotildees a Forma do Belo eacute caracterizada
como aquela entidade sobre a qual eacute sempre verdadeiro afirmar que ela eacute bela
Esta estabilidade no modo de ser das Formas eacute ressaltada por meio do emprego do
adjetivo microονοειδὲς que etimologicamente deve ser traduzido por ldquouniformerdquo mas
pode ter seu sentido exprimido pela locuccedilatildeo ldquouacutenico em aspectordquo Como explica
Diotima a unidade aspectual da Forma do Belo encontra-se em ela ser
exclusivamente bela natildeo se mostrando nunca feia (ou natildeo-bela) e estando imune a
qualquer tipo de perspectivismo ou relativismo
No decorrer deste capiacutetulo veremos que o termo microονοειδὲς eacute parte do
vocabulaacuterio teacutecnico da Teoria das Ideias e reapareceraacute no Feacutedon (78b4) como uma
expressatildeo cristalizada para indicar que a Forma F (Belo Justo Grande Pequeno
etc) eacute uacutenica e invariavelmente F (bela justa grande pequena etc) o que a
torna um tipo de entidade fundamentalmente distinta dos diversos particulares
sensiacuteveis que evidentemente possuem uma diversidade de aspectos e estatildeo
sujeitos a uma multiplicidade de predicaccedilotildees muitas delas contraacuterias entre si
Este mesmo fato ontoloacutegico estaacute relacionado agrave caracterizaccedilatildeo das Formas
9 cf Eut 6d10 Hipp Ma 286d8 288a9 289c3 292c3
135
como ἐκεῖνο ὃ ἔστι Como vimos no Liacutesis esta expressatildeo eacute usada para diferenciar
as diversas coisas amadas-em-vista-de-outra-coisa do πρῶτον φίλον uacutenica
entidade amada em vista de si mesma Por natildeo ser amado de maneira relacional
em vista de outro objeto o πρῶτον φίλον eacute considerado a uacutenica entidade apta a
receber o predicado ldquoser-amadordquo de maneira sempre verdadeira (ἐκεῖνο τὸ
πρῶτον ὃ ὡς ἀληθῶς ἐστι φίλον Lis219d4-5) e portanto pode ser caracterizado
como ἐκεῖνο ὃ ἐστι φίλον No Banquete (211c7-d1) a locuccedilatildeo ἐκεῖνο ὃ ἔστι eacute
utilizada para explicar que o processo de revelaccedilatildeo ao qual o iniciado nas artes do
amor foi submetido ldquoacaba naquela ciecircncia que natildeo eacute ciecircncia de nada mais do que
daquele proacuteprio Belo e [o iniciado] termina por conhecer o que eacute belo [ou o que
Belo eacute] (ὃ ἔστι καλόν) rdquo10
Novamente o vocabulaacuterio relativo agrave formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias que
encontramos nos diaacutelogos da fase meacutedia se apresenta em completa continuidade
com a busca por definiccedilotildees dos diaacutelogos inicias A foacutermula ὃ ἔστι x natildeo passa da
inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι x que como vimos no capiacutetulo precedente
caracteriza a busca socraacutetica por definiccedilotildees Assim aquilo que soacute podiacuteamos
acessar indiretamente nos primeiros diaacutelogos nos eacute apresentado de maneira
expliacutecita nos diaacutelogos meacutedios e a busca socraacutetica expressa em questotildees do tipo ldquoo
que eacute belordquo (τί ἐστι καλόν) eacute diretamente solucionada pela identificaccedilatildeo da
Forma da Beleza como ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (ὃ ἔστι καλόν)
Em contraposiccedilatildeo agrave estabilidade ontoloacutegica do Belo que eacute sempre
unicamente belo somos levados a concluir que ldquotodas as outras coisas belasrdquo (τὰ
ἄλλα πάντα καλὰ) estatildeo sujeitas a uma ou a mais de uma das seguintes
indeterminaccedilotildees
1) Elas podem ser belas em um de seus aspectos poreacutem feias em
outro Por exemplo uma escultura pode ser bela em sua forma
poreacutem estar pintada com cores horrendas
10 Eacute importante notar que na locuccedilatildeo ὃ ἔστι καλόν o termo καλόν pode ocupar o lugar tanto de
sujeito quanto de predicado Na realidade isto natildeo se daacute por acaso e devemos considerar esta ambiguidade sintaacutetica como um resultado proposital do texto platocircnico Tal fato fica evidente quando notamos que apesar da foacutermula ὃ ἔστι F ser recorrentemente usada para designar as Formas nunca encontramos o termo seguinte ao verbo ἔστι introduzido por um artigo o que anularia a possibilidade de uma leitura predicativa (cf Kahn 2009 p80) Por meio deste artifiacutecio sintaacutetico Platatildeo pretende nos transmitir a ideia de que conhecer ldquoo que o Belo eacuterdquo (construccedilatildeo subjetiva) equivale a conhecer ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (construccedilatildeo predicativa)
136
2) Elas podem ser belas em um momento poreacutem feias em outro Por
exemplo um Ipecirc pode ser belo na primavera quando em flor
poreacutem feio no inverno quando desfolhado
3) Elas podem ser belas quando comparadas a uma determinada coisa
poreacutem feias quando comparadas a outra Por exemplo a bela moccedila
descrita no Hiacuteppias Maior quando comparada a uma deusa deve
ser considerada feia
4) Elas podem ser belas em um determinado local poreacutem feias em
outro sendo belas para uns e feias para outros Por exemplo os
adornos de um iacutendio Xavante que satildeo belos para os membros de
sua tribo poreacutem feios para os frequentadores da feira de moda de
Milatildeo
Ora como todo objeto sensiacutevel possui uma multiplicidade de aspectos e
caracteriacutesticas eacute plenamente possiacutevel e ateacute mesmo esperado que estas entidades
sejam belas em um de seus aspectos e feias em outros Todo objeto sensiacutevel
possui por exemplo um formato uma cor um odor uma textura etc Sendo
assim devemos considerar natural o fato de que um mesmo objeto julgado belo
em sua forma possa natildeo parecer belo em sua cor ou em um outro aspecto
qualquer Note que o mesmo raciociacutenio vale para as accedilotildees que os interlocutores de
Soacutecrates oferecem como exemplos de virtudes nos diaacutelogos inicias Acusar
publicamente o seu proacuteprio pai pode ser um ato pio quando considerado a partir
dos aspectos legais de persecuccedilatildeo religiosa conforme argumenta Ecircutifron Poreacutem
quando analisado agrave luz dos laccedilos de consanguinidade e reverecircncia familiar este
mesmo ato eacute certamente um exemplo de impiedade
Do mesmo modo devido ao fato de todas as entidades sensiacuteveis estarem
sujeitas agrave passagem do tempo podemos considerar inevitaacutevel que coisas ou atos
considerados belos hoje deixaratildeo de secirc-lo em algum momento futuro ou mesmo
que natildeo tenham sido belos em algum instante do passado Um belo cavalo hoje
deixaraacute de ser belo quando velho ou morto e a escravizaccedilatildeo de um inimigo
derrotado em batalha considerada uma accedilatildeo justa em um passado natildeo muito
remoto eacute certamente julgada uma grande injusticcedila nos dias de hoje Estes poucos
exemplos satildeo suficientes para concluirmos que os dois primeiros itens da
enumeraccedilatildeo de Diotima representam casos plenamente compreensiacuteveis de
137
diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel
Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as
entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves
diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas
No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros
de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente
justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto
Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua
sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com
Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os
exemplos acima mencionados
Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso
Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria
em a partir de
1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z
inferir
2) x eacute belo e natildeo belo
Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel
de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x
estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a
donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo
indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente
incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo
parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que
Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma
deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar
em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade
da sentenccedila
1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z
concluir que
2) x eacute belo e natildeo belo
138
Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por
Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o
aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute
adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado
incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum
e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute
(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo
Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se
comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na
formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a
propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da
propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um
objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto
represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo
A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os
complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados
completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo
ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E
o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente
equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter
Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo
primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos
ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e
convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e
incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de
argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto
de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca
agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo
piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)
Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e
relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo
um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por
139
meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como
veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados
incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates
para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o
modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em
mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que
argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar
entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias
140
32 A inteligibilidade das Formas
Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica
da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter
inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo
estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu
discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar
esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela
razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo
Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o
Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com
aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)
Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da
Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido
apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um
caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma
passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender
que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo
(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem
esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de
Diotima
Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira
caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter
inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de
Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema
principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates
iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal
sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma
existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os
objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma
imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve
temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo
141
conhecimento
As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando
Soacutecrates pergunta a Simmias
ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)
A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando
no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo
(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em
seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da
Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da
primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na
resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente
familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio
relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a
sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει
ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a
142
expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na
qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso
sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde
diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das
expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de
designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do
personagem Simmias com a Teoria das Ideias13
A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates
afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das
expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por
meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal
afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em
busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a
mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que
tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos
De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir
esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das
belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave
vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo
natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave
espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber
informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas
Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este
ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar
11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a
given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)
12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico
13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades
143
abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo
apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria
reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre
Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os
objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ
αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres
(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)
14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o
sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico
144
33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis
A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute
particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua
exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates
desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar
como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos
oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo
(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente
traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas
natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os
oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis
enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo
assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las
conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um
momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o
intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel
Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui
algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem
argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como
move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas
por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos
tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a
possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas
simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa
condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento
(cf Bostock 1983 p60-63)
Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a
estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas
por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si
mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo
145
de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e
74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates
pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras
Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos
sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos
objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode
ser esquematizado da seguinte maneira
1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada
propriedade P
2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P
3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a
mesma coisa
Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem
causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto
textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo
conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual
propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo
pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do
que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute
muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa
depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala
Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias
ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo
146
Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)
Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a
existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da
Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo
afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de
que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais
a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo
ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto
certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na
conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes
de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural
devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados
para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )
enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)
Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as
ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo
tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo
parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo
Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com
tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf
Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como
ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p
134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que
chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor
exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente
147
pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato
devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que
dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo
assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por
Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15
A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os
problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua
grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura
1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo
verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os
mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais
para outra pessoardquo
2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo
relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila
estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira
iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes
iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo
3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste
caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora
permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um
aspecto e desiguais em outro aspectordquo
As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo
com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada
pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da
Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura
parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o
mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para
um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a
15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees
estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
131
soacute belo corpo e como resultado deste amor engendraraacute belos discursos Em
seguida ele seraacute levado a reconhecer que a beleza que reside em um corpo
qualquer eacute irmatilde (ἀδελφόν) da que estaacute em outro belo corpo e que portanto ldquoseria
muita tolice natildeo considerar uma soacute e a mesma (ἕν τε καὶ ταὐτὸν) a beleza que
reside em todos os corposrdquo (210b2-3) Apoacutes este momento ele passaraacute a
considerar a beleza presente nas almas mais valiosa do que aquela presente nos
corpos e seraacute capaz de ldquocontemplar o belo nos costumes e nas leis e ver que em si
mesmo o belo eacute sempre semelhante a si mesmo (πᾶν αὐτὸ αὑτῷ συγγενές ἐστιν)rdquo
(210c3-5) Por fim ele veraacute a beleza tambeacutem nos diversos ramos da ciecircncias
(ἐπιστηmicroῶν) ateacute que ldquoolhando agora para o belo nesta multiplicidade deixe de
amar como um escravo a beleza de um soacute jovem homem ou costume (hellip) e
contemple ele uma certa ciecircncia uacutenica tal que seu objeto eacute Belezardquo (210d1-e1)
Apesar do caraacuteter miacutestico-religioso5 do discurso de Diotima natildeo possuir
precedentes nos diaacutelogos da primeira fase podemos reconhecer no percurso de
ascensatildeo do iniciado nos ensinamentos do amor a busca pela unidade do εἶδος
que encontramos nos diaacutelogos definicionais Da mesma maneira que Laacuteques eacute
instigado por Soacutecrates a buscar ldquoaquilo que eacute idecircntico em todos os casos de
coragemrdquo (ἐν πᾶσι τούτοις ταὐτόν ἐστιν Laq191e4-11) e Ecircutifron a apresentar ldquoa
piedade ela mesma que eacute idecircntica a si mesma em toda accedilatildeo piedosardquo (ταὐτόν
ἐστιν ἐν πάσῃ πράξει τὸ ὅσιον αὐτὸ αὑτῷ Eut5d1-2)6 o iniciado nas artes do
amor eacute levado a reconhecer que a beleza que reside em tudo aquilo que eacute belo eacute
ldquouma soacute e a mesmardquo (ἕν τε καὶ ταὐτὸν) Ele enfim concluiraacute que ldquoem si mesmo o
belo eacute sempre semelhante a si mesmordquo (αὐτὸ αὑτῷ συγγενές ἐστιν) Pois apesar
de pertencerem a niacuteveis distintos na escala de revelaccedilatildeo dos misteacuterios do amor
sendo cada estaacutegio superior ao precedente o belo do corpo o belo da alma dos
costumes e das ciecircncias eacute o mesmo na medida em que todas estas coisas
participam (πάντα καλὰ microετέχοντα) do Belo em si Forma uacutenica e causa universal
de tudo aquilo que eacute belo
Assim ldquoaquele que tenha contemplado na sua ordem e sucessatildeo correta
as coisas belas chegando ao teacutermino dos ensinamentos concernentes agraves coisas do
amor subitamente enxergaraacute algo maravilhosamente belo por naturezardquo
5 Este caraacutete estaacute expesso textualmente pelo uso de um vocabulaacuterio fortemente inspirado nos misteacuterios e ritos de iniciaccedilatildeo da religiatildeo grega (cf Brisson 2007 p66-71) 6 Compare ainda com o uso de τι τὸ αὐτὸ e τὸ κοινὸν τοῦτο em HippMa 300a-b e Men
132
(θεώmicroενος ἐφεξῆς τε καὶ ὀρθῶς τὰ καλά πρὸς τέλος ἤδη ἰὼν τῶν ἐρωτικῶν
ἐξαίφνης κατόψεταί τι θαυmicroαστὸν τὴν φύσιν καλόν 210e3-5) A partir desta
sentenccedila a prosa platocircnica repentinamente adquire a cadecircncia dos ditirambos agrave
maneira das odes entoadas pelos coros das trageacutedias (cf Allen 1991 p82) e
Soacutecrates inicia uma descriccedilatildeo das caracteriacutesticas ontoloacutegicas deste Belo em si
objetivo uacuteltimo da revelaccedilatildeo dos misteacuterios de Eros ldquoem vista do qual todos os
esforccedilos anteriores foram realizadosrdquo (οὗ δὴ ἕνεκεν καὶ οἱ ἔmicroπροσθεν πάντες
πόνοι ἦσαν)
ldquoprimeiramente eacute para sempre natildeo nascendo nem perecendo natildeo crescendo nem decrescendo depois natildeo eacute belo de um jeito7 e feio de outro nem ora belo e ora feio nem quanto a isso belo e quanto agravequilo feio nem belo aqui e feio ali como se a alguns fosse belo e a outros feio tampouco apareceraacute o Belo como um rosto ou matildeos nem como nada que pertence ao corpo nem como algum discurso ou alguma ciecircncia tambeacutem natildeo seraacute situado em uma outra coisa como em algum animal da terra ou do ceacuteu ou em qualquer outra coisa ao contraacuterio apareceraacute ele mesmo por si mesmo consigo mesmo sendo sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν) enquanto todas as outras coisas belas dele participam de uma maneira tal que ao passo que tudo mais que eacute belo nasce e perece ele em nada fica maior ou menor nem nada sofrerdquo πρῶτον microὲν ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον ἔπειτα οὐ τῇ microὲν καλόν τῇ δ αἰσχρόν οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν οὐδ αὖ φαντασθήσεται αὐτῷ τὸ καλὸν οἷον πρόσωπόν τι οὐδὲ χεῖρες οὐδὲ ἄλλο οὐδὲν ὧν σῶmicroα microετέχει οὐδέ τις λόγος οὐδέ τις ἐπιστήmicroη οὐδέ που ὂν ἐν ἑτέρῳ τινι οἷον ἐν ζώῳ ἢ ἐν γῇ ἢ ἐν οὐρανῷ ἢ ἔν τῳ ἄλλῳ ἀλλ αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν τὰ δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα τρόπον τινὰ τοιοῦτον οἷον γιγνοmicroένων τε τῶν ἄλλων καὶ ἀπολλυmicroένων microηδὲν ἐκεῖνο microήτε τι πλέον microήτε ἔλαττον γίγνεσθαι microηδὲ πάσχειν microηδέν (211a1-b5)
De todo o corpus platocircnico esta passagem pode ser considerada aquela em
que a ontologia das Formas eacute apresentada de maneira mais densa e direta Focada
na descriccedilatildeo de uma uacutenica Forma a revelaccedilatildeo final de Diotima apresenta de uma
soacute vez diversos temas da ontologia platocircnica A primeira caracteriacutestica atribuiacuteda
ao Belo ldquoser para sempre natildeo nascendo nem perecendordquo remete ao tradicional
contraste entre seres mortais e imortais evocado anteriormente Contudo Diotima
radicaliza ainda mais este contraste afirmando que a Forma do Belo natildeo apenas
ldquoeacute para semprerdquo (ἀεὶ ὂν) em um paralelo direto com a foacutermula homeacuterica para
72c 7 Para traduzaccedilatildeo de τῇ microὲν hellip τῇ δὲ (ldquodesta hellip daquela maneirardquo) (cf LSJ verbete o( A
VIII 1)
133
imortalidade divina (qeoi ai)en e)ontej) como tambeacutem natildeo foi gerada nem eacute
passiacutevel de perecimento (οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον) Atraveacutes destas
determinaccedilotildees adicionais Diotima introduz um tipo de eternidade inerente agrave
Forma do Belo que ultrapassa em muito a imortalidade divina Pois como
sabemos pela Teogonia apesar de indestrutiacuteveis os deuses tiveram um momento
de nascimento A Forma do Belo por sua vez estaacute fora do tempo na medida em
que natildeo possui um momento de surgimento nem possuiraacute um momento de
destruiccedilatildeo8
Aleacutem de eternamente existente a Forma do Belo natildeo cresce nem diminui
(οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον) E enquanto as coisas belas nascem e perecem a
Forma do Belo permanece inafetada (πάσχειν microηδέν) sendo ela mesma por si
mesma consigo mesma sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς
ἀεὶ ὄν)
A foacutermula ldquoele mesmo por si mesmo consigo mesmordquo (αὐτὸ καθ αὑτὸ
microεθ αὑτοῦ) resume em si aquilo que estaacute expresso entre as linhas 211a5-b6 isto eacute
o fato de que a Forma do Belo natildeo pode ser confundida com a beleza que
encontramos nas coisas sensiacuteveis (matildeos rostos partes dos corpos discursos
ciecircncias animais da terra ou do ceacuteu ou qualquer outra coisa) pois eacute uma entidade
independente e separada destas coisas A estrutura reflexiva da expressatildeo αὐτὸ
καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ pretende sublinhar a independecircncia ontoloacutegica do Belo que
eacute ldquoem si e por sirdquo e portanto natildeo depende dos objetos sensiacuteveis para existir e ser
aquilo que ela eacute Os objetos belos sensiacuteveis por outro lado satildeo ontologicamente
dependentes e necessitam da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo no Belo para serem belos (τὰ
δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα) A unidade entre a argumentaccedilatildeo dos
primeiros diaacutelogos e a revelaccedilatildeo de Diotima se torna evidente quando lembramos
que a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ natildeo passa de uma intensificaccedilatildeo da
foacutermula αὐτὸ τὸ εἶδος utilizada por Soacutecrates nos primeiros diaacutelogos9 para
expressar exatamente o mesmo aspecto de sua teoria
Aleacutem de eternamente existente e ontologicamente independente o Belo
caracteriza-se por estar isento de qualquer mudanccedila sendo de maneira fixa e
8 De fato como observam Sprague (1971) e Solmsen (1971) a eternidade do Belo possui como
paralelo apenas o Ser de Parmecircnides e podemos ateacute considerar intencional a referecircncia ao poema parmeniacutedico nas palavras de Diotima Compare a foacutermula utilizada por Diotima para expressar a eternidade do Belo ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον com as palavras utilizadas por Parmenides ὡς ἀγένητον ἐὸν καὶ ἀνώλεθρόν ἐστιν (Frag B83)
134
invariaacutevel aquilo que ele eacute Podemos descrever esta caracteriacutestica como a
estabilidade ontoloacutegica do Belo e tal qualidade distintiva eacute expressa por Diotima
por meio da enumeraccedilatildeo das diferentes maneiras em que esta Forma poderia
deixar de ser bela caso fosse apenas mais uma entidade sensiacutevel Assim Diotima
nos explica que o Belo natildeo eacute
1) belo em um aspecto poreacutem feio em outro aspecto (οὐ τῇ microὲν
καλόν τῇ δ αἰσχρόν)
2) belo em um determinado momento poreacutem feio em outro momento
(οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ)
3) belo em relaccedilatildeo a certas coisas poreacutem feio em relaccedilatildeo a outras
(οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν)
4) belo em um determinado local poreacutem feio em outro sendo belo
para uns e feio para outros (οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν
ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν)
Por natildeo estar sujeita a estas qualificaccedilotildees a Forma do Belo eacute caracterizada
como aquela entidade sobre a qual eacute sempre verdadeiro afirmar que ela eacute bela
Esta estabilidade no modo de ser das Formas eacute ressaltada por meio do emprego do
adjetivo microονοειδὲς que etimologicamente deve ser traduzido por ldquouniformerdquo mas
pode ter seu sentido exprimido pela locuccedilatildeo ldquouacutenico em aspectordquo Como explica
Diotima a unidade aspectual da Forma do Belo encontra-se em ela ser
exclusivamente bela natildeo se mostrando nunca feia (ou natildeo-bela) e estando imune a
qualquer tipo de perspectivismo ou relativismo
No decorrer deste capiacutetulo veremos que o termo microονοειδὲς eacute parte do
vocabulaacuterio teacutecnico da Teoria das Ideias e reapareceraacute no Feacutedon (78b4) como uma
expressatildeo cristalizada para indicar que a Forma F (Belo Justo Grande Pequeno
etc) eacute uacutenica e invariavelmente F (bela justa grande pequena etc) o que a
torna um tipo de entidade fundamentalmente distinta dos diversos particulares
sensiacuteveis que evidentemente possuem uma diversidade de aspectos e estatildeo
sujeitos a uma multiplicidade de predicaccedilotildees muitas delas contraacuterias entre si
Este mesmo fato ontoloacutegico estaacute relacionado agrave caracterizaccedilatildeo das Formas
9 cf Eut 6d10 Hipp Ma 286d8 288a9 289c3 292c3
135
como ἐκεῖνο ὃ ἔστι Como vimos no Liacutesis esta expressatildeo eacute usada para diferenciar
as diversas coisas amadas-em-vista-de-outra-coisa do πρῶτον φίλον uacutenica
entidade amada em vista de si mesma Por natildeo ser amado de maneira relacional
em vista de outro objeto o πρῶτον φίλον eacute considerado a uacutenica entidade apta a
receber o predicado ldquoser-amadordquo de maneira sempre verdadeira (ἐκεῖνο τὸ
πρῶτον ὃ ὡς ἀληθῶς ἐστι φίλον Lis219d4-5) e portanto pode ser caracterizado
como ἐκεῖνο ὃ ἐστι φίλον No Banquete (211c7-d1) a locuccedilatildeo ἐκεῖνο ὃ ἔστι eacute
utilizada para explicar que o processo de revelaccedilatildeo ao qual o iniciado nas artes do
amor foi submetido ldquoacaba naquela ciecircncia que natildeo eacute ciecircncia de nada mais do que
daquele proacuteprio Belo e [o iniciado] termina por conhecer o que eacute belo [ou o que
Belo eacute] (ὃ ἔστι καλόν) rdquo10
Novamente o vocabulaacuterio relativo agrave formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias que
encontramos nos diaacutelogos da fase meacutedia se apresenta em completa continuidade
com a busca por definiccedilotildees dos diaacutelogos inicias A foacutermula ὃ ἔστι x natildeo passa da
inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι x que como vimos no capiacutetulo precedente
caracteriza a busca socraacutetica por definiccedilotildees Assim aquilo que soacute podiacuteamos
acessar indiretamente nos primeiros diaacutelogos nos eacute apresentado de maneira
expliacutecita nos diaacutelogos meacutedios e a busca socraacutetica expressa em questotildees do tipo ldquoo
que eacute belordquo (τί ἐστι καλόν) eacute diretamente solucionada pela identificaccedilatildeo da
Forma da Beleza como ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (ὃ ἔστι καλόν)
Em contraposiccedilatildeo agrave estabilidade ontoloacutegica do Belo que eacute sempre
unicamente belo somos levados a concluir que ldquotodas as outras coisas belasrdquo (τὰ
ἄλλα πάντα καλὰ) estatildeo sujeitas a uma ou a mais de uma das seguintes
indeterminaccedilotildees
1) Elas podem ser belas em um de seus aspectos poreacutem feias em
outro Por exemplo uma escultura pode ser bela em sua forma
poreacutem estar pintada com cores horrendas
10 Eacute importante notar que na locuccedilatildeo ὃ ἔστι καλόν o termo καλόν pode ocupar o lugar tanto de
sujeito quanto de predicado Na realidade isto natildeo se daacute por acaso e devemos considerar esta ambiguidade sintaacutetica como um resultado proposital do texto platocircnico Tal fato fica evidente quando notamos que apesar da foacutermula ὃ ἔστι F ser recorrentemente usada para designar as Formas nunca encontramos o termo seguinte ao verbo ἔστι introduzido por um artigo o que anularia a possibilidade de uma leitura predicativa (cf Kahn 2009 p80) Por meio deste artifiacutecio sintaacutetico Platatildeo pretende nos transmitir a ideia de que conhecer ldquoo que o Belo eacuterdquo (construccedilatildeo subjetiva) equivale a conhecer ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (construccedilatildeo predicativa)
136
2) Elas podem ser belas em um momento poreacutem feias em outro Por
exemplo um Ipecirc pode ser belo na primavera quando em flor
poreacutem feio no inverno quando desfolhado
3) Elas podem ser belas quando comparadas a uma determinada coisa
poreacutem feias quando comparadas a outra Por exemplo a bela moccedila
descrita no Hiacuteppias Maior quando comparada a uma deusa deve
ser considerada feia
4) Elas podem ser belas em um determinado local poreacutem feias em
outro sendo belas para uns e feias para outros Por exemplo os
adornos de um iacutendio Xavante que satildeo belos para os membros de
sua tribo poreacutem feios para os frequentadores da feira de moda de
Milatildeo
Ora como todo objeto sensiacutevel possui uma multiplicidade de aspectos e
caracteriacutesticas eacute plenamente possiacutevel e ateacute mesmo esperado que estas entidades
sejam belas em um de seus aspectos e feias em outros Todo objeto sensiacutevel
possui por exemplo um formato uma cor um odor uma textura etc Sendo
assim devemos considerar natural o fato de que um mesmo objeto julgado belo
em sua forma possa natildeo parecer belo em sua cor ou em um outro aspecto
qualquer Note que o mesmo raciociacutenio vale para as accedilotildees que os interlocutores de
Soacutecrates oferecem como exemplos de virtudes nos diaacutelogos inicias Acusar
publicamente o seu proacuteprio pai pode ser um ato pio quando considerado a partir
dos aspectos legais de persecuccedilatildeo religiosa conforme argumenta Ecircutifron Poreacutem
quando analisado agrave luz dos laccedilos de consanguinidade e reverecircncia familiar este
mesmo ato eacute certamente um exemplo de impiedade
Do mesmo modo devido ao fato de todas as entidades sensiacuteveis estarem
sujeitas agrave passagem do tempo podemos considerar inevitaacutevel que coisas ou atos
considerados belos hoje deixaratildeo de secirc-lo em algum momento futuro ou mesmo
que natildeo tenham sido belos em algum instante do passado Um belo cavalo hoje
deixaraacute de ser belo quando velho ou morto e a escravizaccedilatildeo de um inimigo
derrotado em batalha considerada uma accedilatildeo justa em um passado natildeo muito
remoto eacute certamente julgada uma grande injusticcedila nos dias de hoje Estes poucos
exemplos satildeo suficientes para concluirmos que os dois primeiros itens da
enumeraccedilatildeo de Diotima representam casos plenamente compreensiacuteveis de
137
diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel
Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as
entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves
diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas
No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros
de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente
justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto
Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua
sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com
Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os
exemplos acima mencionados
Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso
Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria
em a partir de
1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z
inferir
2) x eacute belo e natildeo belo
Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel
de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x
estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a
donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo
indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente
incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo
parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que
Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma
deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar
em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade
da sentenccedila
1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z
concluir que
2) x eacute belo e natildeo belo
138
Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por
Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o
aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute
adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado
incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum
e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute
(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo
Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se
comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na
formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a
propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da
propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um
objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto
represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo
A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os
complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados
completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo
ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E
o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente
equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter
Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo
primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos
ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e
convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e
incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de
argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto
de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca
agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo
piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)
Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e
relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo
um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por
139
meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como
veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados
incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates
para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o
modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em
mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que
argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar
entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias
140
32 A inteligibilidade das Formas
Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica
da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter
inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo
estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu
discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar
esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela
razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo
Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o
Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com
aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)
Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da
Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido
apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um
caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma
passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender
que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo
(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem
esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de
Diotima
Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira
caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter
inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de
Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema
principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates
iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal
sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma
existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os
objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma
imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve
temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo
141
conhecimento
As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando
Soacutecrates pergunta a Simmias
ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)
A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando
no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo
(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em
seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da
Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da
primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na
resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente
familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio
relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a
sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει
ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a
142
expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na
qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso
sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde
diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das
expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de
designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do
personagem Simmias com a Teoria das Ideias13
A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates
afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das
expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por
meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal
afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em
busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a
mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que
tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos
De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir
esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das
belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave
vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo
natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave
espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber
informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas
Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este
ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar
11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a
given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)
12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico
13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades
143
abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo
apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria
reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre
Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os
objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ
αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres
(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)
14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o
sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico
144
33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis
A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute
particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua
exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates
desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar
como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos
oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo
(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente
traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas
natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os
oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis
enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo
assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las
conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um
momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o
intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel
Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui
algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem
argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como
move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas
por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos
tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a
possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas
simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa
condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento
(cf Bostock 1983 p60-63)
Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a
estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas
por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si
mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo
145
de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e
74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates
pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras
Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos
sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos
objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode
ser esquematizado da seguinte maneira
1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada
propriedade P
2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P
3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a
mesma coisa
Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem
causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto
textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo
conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual
propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo
pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do
que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute
muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa
depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala
Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias
ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo
146
Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)
Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a
existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da
Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo
afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de
que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais
a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo
ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto
certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na
conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes
de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural
devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados
para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )
enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)
Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as
ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo
tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo
parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo
Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com
tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf
Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como
ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p
134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que
chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor
exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente
147
pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato
devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que
dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo
assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por
Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15
A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os
problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua
grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura
1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo
verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os
mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais
para outra pessoardquo
2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo
relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila
estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira
iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes
iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo
3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste
caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora
permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um
aspecto e desiguais em outro aspectordquo
As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo
com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada
pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da
Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura
parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o
mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para
um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a
15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees
estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
132
(θεώmicroενος ἐφεξῆς τε καὶ ὀρθῶς τὰ καλά πρὸς τέλος ἤδη ἰὼν τῶν ἐρωτικῶν
ἐξαίφνης κατόψεταί τι θαυmicroαστὸν τὴν φύσιν καλόν 210e3-5) A partir desta
sentenccedila a prosa platocircnica repentinamente adquire a cadecircncia dos ditirambos agrave
maneira das odes entoadas pelos coros das trageacutedias (cf Allen 1991 p82) e
Soacutecrates inicia uma descriccedilatildeo das caracteriacutesticas ontoloacutegicas deste Belo em si
objetivo uacuteltimo da revelaccedilatildeo dos misteacuterios de Eros ldquoem vista do qual todos os
esforccedilos anteriores foram realizadosrdquo (οὗ δὴ ἕνεκεν καὶ οἱ ἔmicroπροσθεν πάντες
πόνοι ἦσαν)
ldquoprimeiramente eacute para sempre natildeo nascendo nem perecendo natildeo crescendo nem decrescendo depois natildeo eacute belo de um jeito7 e feio de outro nem ora belo e ora feio nem quanto a isso belo e quanto agravequilo feio nem belo aqui e feio ali como se a alguns fosse belo e a outros feio tampouco apareceraacute o Belo como um rosto ou matildeos nem como nada que pertence ao corpo nem como algum discurso ou alguma ciecircncia tambeacutem natildeo seraacute situado em uma outra coisa como em algum animal da terra ou do ceacuteu ou em qualquer outra coisa ao contraacuterio apareceraacute ele mesmo por si mesmo consigo mesmo sendo sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν) enquanto todas as outras coisas belas dele participam de uma maneira tal que ao passo que tudo mais que eacute belo nasce e perece ele em nada fica maior ou menor nem nada sofrerdquo πρῶτον microὲν ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον ἔπειτα οὐ τῇ microὲν καλόν τῇ δ αἰσχρόν οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν οὐδ αὖ φαντασθήσεται αὐτῷ τὸ καλὸν οἷον πρόσωπόν τι οὐδὲ χεῖρες οὐδὲ ἄλλο οὐδὲν ὧν σῶmicroα microετέχει οὐδέ τις λόγος οὐδέ τις ἐπιστήmicroη οὐδέ που ὂν ἐν ἑτέρῳ τινι οἷον ἐν ζώῳ ἢ ἐν γῇ ἢ ἐν οὐρανῷ ἢ ἔν τῳ ἄλλῳ ἀλλ αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς ἀεὶ ὄν τὰ δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα τρόπον τινὰ τοιοῦτον οἷον γιγνοmicroένων τε τῶν ἄλλων καὶ ἀπολλυmicroένων microηδὲν ἐκεῖνο microήτε τι πλέον microήτε ἔλαττον γίγνεσθαι microηδὲ πάσχειν microηδέν (211a1-b5)
De todo o corpus platocircnico esta passagem pode ser considerada aquela em
que a ontologia das Formas eacute apresentada de maneira mais densa e direta Focada
na descriccedilatildeo de uma uacutenica Forma a revelaccedilatildeo final de Diotima apresenta de uma
soacute vez diversos temas da ontologia platocircnica A primeira caracteriacutestica atribuiacuteda
ao Belo ldquoser para sempre natildeo nascendo nem perecendordquo remete ao tradicional
contraste entre seres mortais e imortais evocado anteriormente Contudo Diotima
radicaliza ainda mais este contraste afirmando que a Forma do Belo natildeo apenas
ldquoeacute para semprerdquo (ἀεὶ ὂν) em um paralelo direto com a foacutermula homeacuterica para
72c 7 Para traduzaccedilatildeo de τῇ microὲν hellip τῇ δὲ (ldquodesta hellip daquela maneirardquo) (cf LSJ verbete o( A
VIII 1)
133
imortalidade divina (qeoi ai)en e)ontej) como tambeacutem natildeo foi gerada nem eacute
passiacutevel de perecimento (οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον) Atraveacutes destas
determinaccedilotildees adicionais Diotima introduz um tipo de eternidade inerente agrave
Forma do Belo que ultrapassa em muito a imortalidade divina Pois como
sabemos pela Teogonia apesar de indestrutiacuteveis os deuses tiveram um momento
de nascimento A Forma do Belo por sua vez estaacute fora do tempo na medida em
que natildeo possui um momento de surgimento nem possuiraacute um momento de
destruiccedilatildeo8
Aleacutem de eternamente existente a Forma do Belo natildeo cresce nem diminui
(οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον) E enquanto as coisas belas nascem e perecem a
Forma do Belo permanece inafetada (πάσχειν microηδέν) sendo ela mesma por si
mesma consigo mesma sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς
ἀεὶ ὄν)
A foacutermula ldquoele mesmo por si mesmo consigo mesmordquo (αὐτὸ καθ αὑτὸ
microεθ αὑτοῦ) resume em si aquilo que estaacute expresso entre as linhas 211a5-b6 isto eacute
o fato de que a Forma do Belo natildeo pode ser confundida com a beleza que
encontramos nas coisas sensiacuteveis (matildeos rostos partes dos corpos discursos
ciecircncias animais da terra ou do ceacuteu ou qualquer outra coisa) pois eacute uma entidade
independente e separada destas coisas A estrutura reflexiva da expressatildeo αὐτὸ
καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ pretende sublinhar a independecircncia ontoloacutegica do Belo que
eacute ldquoem si e por sirdquo e portanto natildeo depende dos objetos sensiacuteveis para existir e ser
aquilo que ela eacute Os objetos belos sensiacuteveis por outro lado satildeo ontologicamente
dependentes e necessitam da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo no Belo para serem belos (τὰ
δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα) A unidade entre a argumentaccedilatildeo dos
primeiros diaacutelogos e a revelaccedilatildeo de Diotima se torna evidente quando lembramos
que a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ natildeo passa de uma intensificaccedilatildeo da
foacutermula αὐτὸ τὸ εἶδος utilizada por Soacutecrates nos primeiros diaacutelogos9 para
expressar exatamente o mesmo aspecto de sua teoria
Aleacutem de eternamente existente e ontologicamente independente o Belo
caracteriza-se por estar isento de qualquer mudanccedila sendo de maneira fixa e
8 De fato como observam Sprague (1971) e Solmsen (1971) a eternidade do Belo possui como
paralelo apenas o Ser de Parmecircnides e podemos ateacute considerar intencional a referecircncia ao poema parmeniacutedico nas palavras de Diotima Compare a foacutermula utilizada por Diotima para expressar a eternidade do Belo ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον com as palavras utilizadas por Parmenides ὡς ἀγένητον ἐὸν καὶ ἀνώλεθρόν ἐστιν (Frag B83)
134
invariaacutevel aquilo que ele eacute Podemos descrever esta caracteriacutestica como a
estabilidade ontoloacutegica do Belo e tal qualidade distintiva eacute expressa por Diotima
por meio da enumeraccedilatildeo das diferentes maneiras em que esta Forma poderia
deixar de ser bela caso fosse apenas mais uma entidade sensiacutevel Assim Diotima
nos explica que o Belo natildeo eacute
1) belo em um aspecto poreacutem feio em outro aspecto (οὐ τῇ microὲν
καλόν τῇ δ αἰσχρόν)
2) belo em um determinado momento poreacutem feio em outro momento
(οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ)
3) belo em relaccedilatildeo a certas coisas poreacutem feio em relaccedilatildeo a outras
(οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν)
4) belo em um determinado local poreacutem feio em outro sendo belo
para uns e feio para outros (οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν
ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν)
Por natildeo estar sujeita a estas qualificaccedilotildees a Forma do Belo eacute caracterizada
como aquela entidade sobre a qual eacute sempre verdadeiro afirmar que ela eacute bela
Esta estabilidade no modo de ser das Formas eacute ressaltada por meio do emprego do
adjetivo microονοειδὲς que etimologicamente deve ser traduzido por ldquouniformerdquo mas
pode ter seu sentido exprimido pela locuccedilatildeo ldquouacutenico em aspectordquo Como explica
Diotima a unidade aspectual da Forma do Belo encontra-se em ela ser
exclusivamente bela natildeo se mostrando nunca feia (ou natildeo-bela) e estando imune a
qualquer tipo de perspectivismo ou relativismo
No decorrer deste capiacutetulo veremos que o termo microονοειδὲς eacute parte do
vocabulaacuterio teacutecnico da Teoria das Ideias e reapareceraacute no Feacutedon (78b4) como uma
expressatildeo cristalizada para indicar que a Forma F (Belo Justo Grande Pequeno
etc) eacute uacutenica e invariavelmente F (bela justa grande pequena etc) o que a
torna um tipo de entidade fundamentalmente distinta dos diversos particulares
sensiacuteveis que evidentemente possuem uma diversidade de aspectos e estatildeo
sujeitos a uma multiplicidade de predicaccedilotildees muitas delas contraacuterias entre si
Este mesmo fato ontoloacutegico estaacute relacionado agrave caracterizaccedilatildeo das Formas
9 cf Eut 6d10 Hipp Ma 286d8 288a9 289c3 292c3
135
como ἐκεῖνο ὃ ἔστι Como vimos no Liacutesis esta expressatildeo eacute usada para diferenciar
as diversas coisas amadas-em-vista-de-outra-coisa do πρῶτον φίλον uacutenica
entidade amada em vista de si mesma Por natildeo ser amado de maneira relacional
em vista de outro objeto o πρῶτον φίλον eacute considerado a uacutenica entidade apta a
receber o predicado ldquoser-amadordquo de maneira sempre verdadeira (ἐκεῖνο τὸ
πρῶτον ὃ ὡς ἀληθῶς ἐστι φίλον Lis219d4-5) e portanto pode ser caracterizado
como ἐκεῖνο ὃ ἐστι φίλον No Banquete (211c7-d1) a locuccedilatildeo ἐκεῖνο ὃ ἔστι eacute
utilizada para explicar que o processo de revelaccedilatildeo ao qual o iniciado nas artes do
amor foi submetido ldquoacaba naquela ciecircncia que natildeo eacute ciecircncia de nada mais do que
daquele proacuteprio Belo e [o iniciado] termina por conhecer o que eacute belo [ou o que
Belo eacute] (ὃ ἔστι καλόν) rdquo10
Novamente o vocabulaacuterio relativo agrave formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias que
encontramos nos diaacutelogos da fase meacutedia se apresenta em completa continuidade
com a busca por definiccedilotildees dos diaacutelogos inicias A foacutermula ὃ ἔστι x natildeo passa da
inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι x que como vimos no capiacutetulo precedente
caracteriza a busca socraacutetica por definiccedilotildees Assim aquilo que soacute podiacuteamos
acessar indiretamente nos primeiros diaacutelogos nos eacute apresentado de maneira
expliacutecita nos diaacutelogos meacutedios e a busca socraacutetica expressa em questotildees do tipo ldquoo
que eacute belordquo (τί ἐστι καλόν) eacute diretamente solucionada pela identificaccedilatildeo da
Forma da Beleza como ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (ὃ ἔστι καλόν)
Em contraposiccedilatildeo agrave estabilidade ontoloacutegica do Belo que eacute sempre
unicamente belo somos levados a concluir que ldquotodas as outras coisas belasrdquo (τὰ
ἄλλα πάντα καλὰ) estatildeo sujeitas a uma ou a mais de uma das seguintes
indeterminaccedilotildees
1) Elas podem ser belas em um de seus aspectos poreacutem feias em
outro Por exemplo uma escultura pode ser bela em sua forma
poreacutem estar pintada com cores horrendas
10 Eacute importante notar que na locuccedilatildeo ὃ ἔστι καλόν o termo καλόν pode ocupar o lugar tanto de
sujeito quanto de predicado Na realidade isto natildeo se daacute por acaso e devemos considerar esta ambiguidade sintaacutetica como um resultado proposital do texto platocircnico Tal fato fica evidente quando notamos que apesar da foacutermula ὃ ἔστι F ser recorrentemente usada para designar as Formas nunca encontramos o termo seguinte ao verbo ἔστι introduzido por um artigo o que anularia a possibilidade de uma leitura predicativa (cf Kahn 2009 p80) Por meio deste artifiacutecio sintaacutetico Platatildeo pretende nos transmitir a ideia de que conhecer ldquoo que o Belo eacuterdquo (construccedilatildeo subjetiva) equivale a conhecer ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (construccedilatildeo predicativa)
136
2) Elas podem ser belas em um momento poreacutem feias em outro Por
exemplo um Ipecirc pode ser belo na primavera quando em flor
poreacutem feio no inverno quando desfolhado
3) Elas podem ser belas quando comparadas a uma determinada coisa
poreacutem feias quando comparadas a outra Por exemplo a bela moccedila
descrita no Hiacuteppias Maior quando comparada a uma deusa deve
ser considerada feia
4) Elas podem ser belas em um determinado local poreacutem feias em
outro sendo belas para uns e feias para outros Por exemplo os
adornos de um iacutendio Xavante que satildeo belos para os membros de
sua tribo poreacutem feios para os frequentadores da feira de moda de
Milatildeo
Ora como todo objeto sensiacutevel possui uma multiplicidade de aspectos e
caracteriacutesticas eacute plenamente possiacutevel e ateacute mesmo esperado que estas entidades
sejam belas em um de seus aspectos e feias em outros Todo objeto sensiacutevel
possui por exemplo um formato uma cor um odor uma textura etc Sendo
assim devemos considerar natural o fato de que um mesmo objeto julgado belo
em sua forma possa natildeo parecer belo em sua cor ou em um outro aspecto
qualquer Note que o mesmo raciociacutenio vale para as accedilotildees que os interlocutores de
Soacutecrates oferecem como exemplos de virtudes nos diaacutelogos inicias Acusar
publicamente o seu proacuteprio pai pode ser um ato pio quando considerado a partir
dos aspectos legais de persecuccedilatildeo religiosa conforme argumenta Ecircutifron Poreacutem
quando analisado agrave luz dos laccedilos de consanguinidade e reverecircncia familiar este
mesmo ato eacute certamente um exemplo de impiedade
Do mesmo modo devido ao fato de todas as entidades sensiacuteveis estarem
sujeitas agrave passagem do tempo podemos considerar inevitaacutevel que coisas ou atos
considerados belos hoje deixaratildeo de secirc-lo em algum momento futuro ou mesmo
que natildeo tenham sido belos em algum instante do passado Um belo cavalo hoje
deixaraacute de ser belo quando velho ou morto e a escravizaccedilatildeo de um inimigo
derrotado em batalha considerada uma accedilatildeo justa em um passado natildeo muito
remoto eacute certamente julgada uma grande injusticcedila nos dias de hoje Estes poucos
exemplos satildeo suficientes para concluirmos que os dois primeiros itens da
enumeraccedilatildeo de Diotima representam casos plenamente compreensiacuteveis de
137
diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel
Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as
entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves
diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas
No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros
de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente
justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto
Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua
sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com
Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os
exemplos acima mencionados
Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso
Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria
em a partir de
1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z
inferir
2) x eacute belo e natildeo belo
Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel
de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x
estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a
donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo
indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente
incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo
parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que
Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma
deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar
em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade
da sentenccedila
1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z
concluir que
2) x eacute belo e natildeo belo
138
Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por
Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o
aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute
adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado
incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum
e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute
(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo
Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se
comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na
formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a
propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da
propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um
objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto
represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo
A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os
complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados
completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo
ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E
o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente
equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter
Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo
primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos
ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e
convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e
incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de
argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto
de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca
agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo
piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)
Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e
relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo
um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por
139
meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como
veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados
incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates
para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o
modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em
mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que
argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar
entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias
140
32 A inteligibilidade das Formas
Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica
da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter
inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo
estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu
discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar
esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela
razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo
Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o
Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com
aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)
Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da
Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido
apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um
caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma
passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender
que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo
(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem
esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de
Diotima
Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira
caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter
inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de
Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema
principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates
iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal
sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma
existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os
objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma
imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve
temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo
141
conhecimento
As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando
Soacutecrates pergunta a Simmias
ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)
A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando
no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo
(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em
seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da
Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da
primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na
resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente
familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio
relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a
sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει
ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a
142
expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na
qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso
sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde
diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das
expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de
designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do
personagem Simmias com a Teoria das Ideias13
A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates
afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das
expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por
meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal
afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em
busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a
mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que
tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos
De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir
esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das
belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave
vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo
natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave
espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber
informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas
Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este
ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar
11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a
given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)
12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico
13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades
143
abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo
apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria
reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre
Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os
objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ
αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres
(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)
14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o
sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico
144
33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis
A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute
particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua
exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates
desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar
como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos
oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo
(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente
traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas
natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os
oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis
enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo
assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las
conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um
momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o
intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel
Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui
algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem
argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como
move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas
por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos
tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a
possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas
simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa
condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento
(cf Bostock 1983 p60-63)
Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a
estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas
por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si
mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo
145
de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e
74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates
pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras
Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos
sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos
objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode
ser esquematizado da seguinte maneira
1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada
propriedade P
2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P
3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a
mesma coisa
Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem
causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto
textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo
conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual
propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo
pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do
que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute
muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa
depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala
Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias
ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo
146
Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)
Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a
existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da
Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo
afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de
que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais
a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo
ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto
certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na
conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes
de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural
devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados
para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )
enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)
Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as
ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo
tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo
parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo
Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com
tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf
Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como
ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p
134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que
chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor
exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente
147
pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato
devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que
dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo
assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por
Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15
A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os
problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua
grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura
1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo
verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os
mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais
para outra pessoardquo
2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo
relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila
estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira
iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes
iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo
3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste
caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora
permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um
aspecto e desiguais em outro aspectordquo
As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo
com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada
pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da
Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura
parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o
mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para
um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a
15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees
estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
133
imortalidade divina (qeoi ai)en e)ontej) como tambeacutem natildeo foi gerada nem eacute
passiacutevel de perecimento (οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον) Atraveacutes destas
determinaccedilotildees adicionais Diotima introduz um tipo de eternidade inerente agrave
Forma do Belo que ultrapassa em muito a imortalidade divina Pois como
sabemos pela Teogonia apesar de indestrutiacuteveis os deuses tiveram um momento
de nascimento A Forma do Belo por sua vez estaacute fora do tempo na medida em
que natildeo possui um momento de surgimento nem possuiraacute um momento de
destruiccedilatildeo8
Aleacutem de eternamente existente a Forma do Belo natildeo cresce nem diminui
(οὔτε αὐξανόmicroενον οὔτε φθίνον) E enquanto as coisas belas nascem e perecem a
Forma do Belo permanece inafetada (πάσχειν microηδέν) sendo ela mesma por si
mesma consigo mesma sempre uniforme (αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ microονοειδὲς
ἀεὶ ὄν)
A foacutermula ldquoele mesmo por si mesmo consigo mesmordquo (αὐτὸ καθ αὑτὸ
microεθ αὑτοῦ) resume em si aquilo que estaacute expresso entre as linhas 211a5-b6 isto eacute
o fato de que a Forma do Belo natildeo pode ser confundida com a beleza que
encontramos nas coisas sensiacuteveis (matildeos rostos partes dos corpos discursos
ciecircncias animais da terra ou do ceacuteu ou qualquer outra coisa) pois eacute uma entidade
independente e separada destas coisas A estrutura reflexiva da expressatildeo αὐτὸ
καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ pretende sublinhar a independecircncia ontoloacutegica do Belo que
eacute ldquoem si e por sirdquo e portanto natildeo depende dos objetos sensiacuteveis para existir e ser
aquilo que ela eacute Os objetos belos sensiacuteveis por outro lado satildeo ontologicamente
dependentes e necessitam da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo no Belo para serem belos (τὰ
δὲ ἄλλα πάντα καλὰ ἐκείνου microετέχοντα) A unidade entre a argumentaccedilatildeo dos
primeiros diaacutelogos e a revelaccedilatildeo de Diotima se torna evidente quando lembramos
que a expressatildeo αὐτὸ καθ αὑτὸ microεθ αὑτοῦ natildeo passa de uma intensificaccedilatildeo da
foacutermula αὐτὸ τὸ εἶδος utilizada por Soacutecrates nos primeiros diaacutelogos9 para
expressar exatamente o mesmo aspecto de sua teoria
Aleacutem de eternamente existente e ontologicamente independente o Belo
caracteriza-se por estar isento de qualquer mudanccedila sendo de maneira fixa e
8 De fato como observam Sprague (1971) e Solmsen (1971) a eternidade do Belo possui como
paralelo apenas o Ser de Parmecircnides e podemos ateacute considerar intencional a referecircncia ao poema parmeniacutedico nas palavras de Diotima Compare a foacutermula utilizada por Diotima para expressar a eternidade do Belo ἀεὶ ὂν καὶ οὔτε γιγνόmicroενον οὔτε ἀπολλύmicroενον com as palavras utilizadas por Parmenides ὡς ἀγένητον ἐὸν καὶ ἀνώλεθρόν ἐστιν (Frag B83)
134
invariaacutevel aquilo que ele eacute Podemos descrever esta caracteriacutestica como a
estabilidade ontoloacutegica do Belo e tal qualidade distintiva eacute expressa por Diotima
por meio da enumeraccedilatildeo das diferentes maneiras em que esta Forma poderia
deixar de ser bela caso fosse apenas mais uma entidade sensiacutevel Assim Diotima
nos explica que o Belo natildeo eacute
1) belo em um aspecto poreacutem feio em outro aspecto (οὐ τῇ microὲν
καλόν τῇ δ αἰσχρόν)
2) belo em um determinado momento poreacutem feio em outro momento
(οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ)
3) belo em relaccedilatildeo a certas coisas poreacutem feio em relaccedilatildeo a outras
(οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν)
4) belo em um determinado local poreacutem feio em outro sendo belo
para uns e feio para outros (οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν
ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν)
Por natildeo estar sujeita a estas qualificaccedilotildees a Forma do Belo eacute caracterizada
como aquela entidade sobre a qual eacute sempre verdadeiro afirmar que ela eacute bela
Esta estabilidade no modo de ser das Formas eacute ressaltada por meio do emprego do
adjetivo microονοειδὲς que etimologicamente deve ser traduzido por ldquouniformerdquo mas
pode ter seu sentido exprimido pela locuccedilatildeo ldquouacutenico em aspectordquo Como explica
Diotima a unidade aspectual da Forma do Belo encontra-se em ela ser
exclusivamente bela natildeo se mostrando nunca feia (ou natildeo-bela) e estando imune a
qualquer tipo de perspectivismo ou relativismo
No decorrer deste capiacutetulo veremos que o termo microονοειδὲς eacute parte do
vocabulaacuterio teacutecnico da Teoria das Ideias e reapareceraacute no Feacutedon (78b4) como uma
expressatildeo cristalizada para indicar que a Forma F (Belo Justo Grande Pequeno
etc) eacute uacutenica e invariavelmente F (bela justa grande pequena etc) o que a
torna um tipo de entidade fundamentalmente distinta dos diversos particulares
sensiacuteveis que evidentemente possuem uma diversidade de aspectos e estatildeo
sujeitos a uma multiplicidade de predicaccedilotildees muitas delas contraacuterias entre si
Este mesmo fato ontoloacutegico estaacute relacionado agrave caracterizaccedilatildeo das Formas
9 cf Eut 6d10 Hipp Ma 286d8 288a9 289c3 292c3
135
como ἐκεῖνο ὃ ἔστι Como vimos no Liacutesis esta expressatildeo eacute usada para diferenciar
as diversas coisas amadas-em-vista-de-outra-coisa do πρῶτον φίλον uacutenica
entidade amada em vista de si mesma Por natildeo ser amado de maneira relacional
em vista de outro objeto o πρῶτον φίλον eacute considerado a uacutenica entidade apta a
receber o predicado ldquoser-amadordquo de maneira sempre verdadeira (ἐκεῖνο τὸ
πρῶτον ὃ ὡς ἀληθῶς ἐστι φίλον Lis219d4-5) e portanto pode ser caracterizado
como ἐκεῖνο ὃ ἐστι φίλον No Banquete (211c7-d1) a locuccedilatildeo ἐκεῖνο ὃ ἔστι eacute
utilizada para explicar que o processo de revelaccedilatildeo ao qual o iniciado nas artes do
amor foi submetido ldquoacaba naquela ciecircncia que natildeo eacute ciecircncia de nada mais do que
daquele proacuteprio Belo e [o iniciado] termina por conhecer o que eacute belo [ou o que
Belo eacute] (ὃ ἔστι καλόν) rdquo10
Novamente o vocabulaacuterio relativo agrave formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias que
encontramos nos diaacutelogos da fase meacutedia se apresenta em completa continuidade
com a busca por definiccedilotildees dos diaacutelogos inicias A foacutermula ὃ ἔστι x natildeo passa da
inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι x que como vimos no capiacutetulo precedente
caracteriza a busca socraacutetica por definiccedilotildees Assim aquilo que soacute podiacuteamos
acessar indiretamente nos primeiros diaacutelogos nos eacute apresentado de maneira
expliacutecita nos diaacutelogos meacutedios e a busca socraacutetica expressa em questotildees do tipo ldquoo
que eacute belordquo (τί ἐστι καλόν) eacute diretamente solucionada pela identificaccedilatildeo da
Forma da Beleza como ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (ὃ ἔστι καλόν)
Em contraposiccedilatildeo agrave estabilidade ontoloacutegica do Belo que eacute sempre
unicamente belo somos levados a concluir que ldquotodas as outras coisas belasrdquo (τὰ
ἄλλα πάντα καλὰ) estatildeo sujeitas a uma ou a mais de uma das seguintes
indeterminaccedilotildees
1) Elas podem ser belas em um de seus aspectos poreacutem feias em
outro Por exemplo uma escultura pode ser bela em sua forma
poreacutem estar pintada com cores horrendas
10 Eacute importante notar que na locuccedilatildeo ὃ ἔστι καλόν o termo καλόν pode ocupar o lugar tanto de
sujeito quanto de predicado Na realidade isto natildeo se daacute por acaso e devemos considerar esta ambiguidade sintaacutetica como um resultado proposital do texto platocircnico Tal fato fica evidente quando notamos que apesar da foacutermula ὃ ἔστι F ser recorrentemente usada para designar as Formas nunca encontramos o termo seguinte ao verbo ἔστι introduzido por um artigo o que anularia a possibilidade de uma leitura predicativa (cf Kahn 2009 p80) Por meio deste artifiacutecio sintaacutetico Platatildeo pretende nos transmitir a ideia de que conhecer ldquoo que o Belo eacuterdquo (construccedilatildeo subjetiva) equivale a conhecer ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (construccedilatildeo predicativa)
136
2) Elas podem ser belas em um momento poreacutem feias em outro Por
exemplo um Ipecirc pode ser belo na primavera quando em flor
poreacutem feio no inverno quando desfolhado
3) Elas podem ser belas quando comparadas a uma determinada coisa
poreacutem feias quando comparadas a outra Por exemplo a bela moccedila
descrita no Hiacuteppias Maior quando comparada a uma deusa deve
ser considerada feia
4) Elas podem ser belas em um determinado local poreacutem feias em
outro sendo belas para uns e feias para outros Por exemplo os
adornos de um iacutendio Xavante que satildeo belos para os membros de
sua tribo poreacutem feios para os frequentadores da feira de moda de
Milatildeo
Ora como todo objeto sensiacutevel possui uma multiplicidade de aspectos e
caracteriacutesticas eacute plenamente possiacutevel e ateacute mesmo esperado que estas entidades
sejam belas em um de seus aspectos e feias em outros Todo objeto sensiacutevel
possui por exemplo um formato uma cor um odor uma textura etc Sendo
assim devemos considerar natural o fato de que um mesmo objeto julgado belo
em sua forma possa natildeo parecer belo em sua cor ou em um outro aspecto
qualquer Note que o mesmo raciociacutenio vale para as accedilotildees que os interlocutores de
Soacutecrates oferecem como exemplos de virtudes nos diaacutelogos inicias Acusar
publicamente o seu proacuteprio pai pode ser um ato pio quando considerado a partir
dos aspectos legais de persecuccedilatildeo religiosa conforme argumenta Ecircutifron Poreacutem
quando analisado agrave luz dos laccedilos de consanguinidade e reverecircncia familiar este
mesmo ato eacute certamente um exemplo de impiedade
Do mesmo modo devido ao fato de todas as entidades sensiacuteveis estarem
sujeitas agrave passagem do tempo podemos considerar inevitaacutevel que coisas ou atos
considerados belos hoje deixaratildeo de secirc-lo em algum momento futuro ou mesmo
que natildeo tenham sido belos em algum instante do passado Um belo cavalo hoje
deixaraacute de ser belo quando velho ou morto e a escravizaccedilatildeo de um inimigo
derrotado em batalha considerada uma accedilatildeo justa em um passado natildeo muito
remoto eacute certamente julgada uma grande injusticcedila nos dias de hoje Estes poucos
exemplos satildeo suficientes para concluirmos que os dois primeiros itens da
enumeraccedilatildeo de Diotima representam casos plenamente compreensiacuteveis de
137
diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel
Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as
entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves
diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas
No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros
de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente
justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto
Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua
sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com
Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os
exemplos acima mencionados
Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso
Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria
em a partir de
1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z
inferir
2) x eacute belo e natildeo belo
Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel
de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x
estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a
donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo
indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente
incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo
parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que
Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma
deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar
em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade
da sentenccedila
1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z
concluir que
2) x eacute belo e natildeo belo
138
Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por
Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o
aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute
adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado
incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum
e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute
(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo
Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se
comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na
formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a
propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da
propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um
objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto
represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo
A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os
complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados
completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo
ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E
o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente
equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter
Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo
primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos
ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e
convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e
incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de
argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto
de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca
agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo
piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)
Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e
relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo
um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por
139
meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como
veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados
incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates
para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o
modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em
mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que
argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar
entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias
140
32 A inteligibilidade das Formas
Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica
da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter
inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo
estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu
discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar
esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela
razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo
Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o
Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com
aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)
Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da
Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido
apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um
caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma
passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender
que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo
(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem
esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de
Diotima
Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira
caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter
inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de
Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema
principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates
iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal
sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma
existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os
objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma
imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve
temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo
141
conhecimento
As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando
Soacutecrates pergunta a Simmias
ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)
A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando
no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo
(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em
seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da
Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da
primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na
resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente
familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio
relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a
sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει
ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a
142
expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na
qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso
sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde
diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das
expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de
designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do
personagem Simmias com a Teoria das Ideias13
A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates
afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das
expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por
meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal
afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em
busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a
mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que
tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos
De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir
esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das
belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave
vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo
natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave
espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber
informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas
Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este
ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar
11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a
given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)
12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico
13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades
143
abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo
apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria
reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre
Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os
objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ
αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres
(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)
14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o
sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico
144
33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis
A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute
particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua
exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates
desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar
como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos
oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo
(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente
traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas
natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os
oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis
enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo
assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las
conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um
momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o
intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel
Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui
algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem
argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como
move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas
por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos
tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a
possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas
simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa
condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento
(cf Bostock 1983 p60-63)
Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a
estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas
por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si
mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo
145
de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e
74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates
pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras
Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos
sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos
objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode
ser esquematizado da seguinte maneira
1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada
propriedade P
2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P
3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a
mesma coisa
Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem
causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto
textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo
conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual
propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo
pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do
que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute
muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa
depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala
Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias
ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo
146
Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)
Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a
existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da
Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo
afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de
que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais
a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo
ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto
certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na
conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes
de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural
devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados
para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )
enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)
Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as
ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo
tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo
parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo
Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com
tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf
Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como
ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p
134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que
chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor
exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente
147
pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato
devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que
dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo
assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por
Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15
A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os
problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua
grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura
1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo
verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os
mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais
para outra pessoardquo
2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo
relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila
estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira
iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes
iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo
3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste
caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora
permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um
aspecto e desiguais em outro aspectordquo
As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo
com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada
pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da
Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura
parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o
mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para
um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a
15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees
estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
134
invariaacutevel aquilo que ele eacute Podemos descrever esta caracteriacutestica como a
estabilidade ontoloacutegica do Belo e tal qualidade distintiva eacute expressa por Diotima
por meio da enumeraccedilatildeo das diferentes maneiras em que esta Forma poderia
deixar de ser bela caso fosse apenas mais uma entidade sensiacutevel Assim Diotima
nos explica que o Belo natildeo eacute
1) belo em um aspecto poreacutem feio em outro aspecto (οὐ τῇ microὲν
καλόν τῇ δ αἰσχρόν)
2) belo em um determinado momento poreacutem feio em outro momento
(οὐδὲ τοτὲ microέν τοτὲ δὲ οὔ)
3) belo em relaccedilatildeo a certas coisas poreacutem feio em relaccedilatildeo a outras
(οὐδὲ πρὸς microὲν τὸ καλόν πρὸς δὲ τὸ αἰσχρόν)
4) belo em um determinado local poreacutem feio em outro sendo belo
para uns e feio para outros (οὐδ ἔνθα microὲν καλόν ἔνθα δὲ αἰσχρόν
ὡς τισὶ microὲν ὂν καλόν τισὶ δὲ αἰσχρόν)
Por natildeo estar sujeita a estas qualificaccedilotildees a Forma do Belo eacute caracterizada
como aquela entidade sobre a qual eacute sempre verdadeiro afirmar que ela eacute bela
Esta estabilidade no modo de ser das Formas eacute ressaltada por meio do emprego do
adjetivo microονοειδὲς que etimologicamente deve ser traduzido por ldquouniformerdquo mas
pode ter seu sentido exprimido pela locuccedilatildeo ldquouacutenico em aspectordquo Como explica
Diotima a unidade aspectual da Forma do Belo encontra-se em ela ser
exclusivamente bela natildeo se mostrando nunca feia (ou natildeo-bela) e estando imune a
qualquer tipo de perspectivismo ou relativismo
No decorrer deste capiacutetulo veremos que o termo microονοειδὲς eacute parte do
vocabulaacuterio teacutecnico da Teoria das Ideias e reapareceraacute no Feacutedon (78b4) como uma
expressatildeo cristalizada para indicar que a Forma F (Belo Justo Grande Pequeno
etc) eacute uacutenica e invariavelmente F (bela justa grande pequena etc) o que a
torna um tipo de entidade fundamentalmente distinta dos diversos particulares
sensiacuteveis que evidentemente possuem uma diversidade de aspectos e estatildeo
sujeitos a uma multiplicidade de predicaccedilotildees muitas delas contraacuterias entre si
Este mesmo fato ontoloacutegico estaacute relacionado agrave caracterizaccedilatildeo das Formas
9 cf Eut 6d10 Hipp Ma 286d8 288a9 289c3 292c3
135
como ἐκεῖνο ὃ ἔστι Como vimos no Liacutesis esta expressatildeo eacute usada para diferenciar
as diversas coisas amadas-em-vista-de-outra-coisa do πρῶτον φίλον uacutenica
entidade amada em vista de si mesma Por natildeo ser amado de maneira relacional
em vista de outro objeto o πρῶτον φίλον eacute considerado a uacutenica entidade apta a
receber o predicado ldquoser-amadordquo de maneira sempre verdadeira (ἐκεῖνο τὸ
πρῶτον ὃ ὡς ἀληθῶς ἐστι φίλον Lis219d4-5) e portanto pode ser caracterizado
como ἐκεῖνο ὃ ἐστι φίλον No Banquete (211c7-d1) a locuccedilatildeo ἐκεῖνο ὃ ἔστι eacute
utilizada para explicar que o processo de revelaccedilatildeo ao qual o iniciado nas artes do
amor foi submetido ldquoacaba naquela ciecircncia que natildeo eacute ciecircncia de nada mais do que
daquele proacuteprio Belo e [o iniciado] termina por conhecer o que eacute belo [ou o que
Belo eacute] (ὃ ἔστι καλόν) rdquo10
Novamente o vocabulaacuterio relativo agrave formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias que
encontramos nos diaacutelogos da fase meacutedia se apresenta em completa continuidade
com a busca por definiccedilotildees dos diaacutelogos inicias A foacutermula ὃ ἔστι x natildeo passa da
inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι x que como vimos no capiacutetulo precedente
caracteriza a busca socraacutetica por definiccedilotildees Assim aquilo que soacute podiacuteamos
acessar indiretamente nos primeiros diaacutelogos nos eacute apresentado de maneira
expliacutecita nos diaacutelogos meacutedios e a busca socraacutetica expressa em questotildees do tipo ldquoo
que eacute belordquo (τί ἐστι καλόν) eacute diretamente solucionada pela identificaccedilatildeo da
Forma da Beleza como ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (ὃ ἔστι καλόν)
Em contraposiccedilatildeo agrave estabilidade ontoloacutegica do Belo que eacute sempre
unicamente belo somos levados a concluir que ldquotodas as outras coisas belasrdquo (τὰ
ἄλλα πάντα καλὰ) estatildeo sujeitas a uma ou a mais de uma das seguintes
indeterminaccedilotildees
1) Elas podem ser belas em um de seus aspectos poreacutem feias em
outro Por exemplo uma escultura pode ser bela em sua forma
poreacutem estar pintada com cores horrendas
10 Eacute importante notar que na locuccedilatildeo ὃ ἔστι καλόν o termo καλόν pode ocupar o lugar tanto de
sujeito quanto de predicado Na realidade isto natildeo se daacute por acaso e devemos considerar esta ambiguidade sintaacutetica como um resultado proposital do texto platocircnico Tal fato fica evidente quando notamos que apesar da foacutermula ὃ ἔστι F ser recorrentemente usada para designar as Formas nunca encontramos o termo seguinte ao verbo ἔστι introduzido por um artigo o que anularia a possibilidade de uma leitura predicativa (cf Kahn 2009 p80) Por meio deste artifiacutecio sintaacutetico Platatildeo pretende nos transmitir a ideia de que conhecer ldquoo que o Belo eacuterdquo (construccedilatildeo subjetiva) equivale a conhecer ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (construccedilatildeo predicativa)
136
2) Elas podem ser belas em um momento poreacutem feias em outro Por
exemplo um Ipecirc pode ser belo na primavera quando em flor
poreacutem feio no inverno quando desfolhado
3) Elas podem ser belas quando comparadas a uma determinada coisa
poreacutem feias quando comparadas a outra Por exemplo a bela moccedila
descrita no Hiacuteppias Maior quando comparada a uma deusa deve
ser considerada feia
4) Elas podem ser belas em um determinado local poreacutem feias em
outro sendo belas para uns e feias para outros Por exemplo os
adornos de um iacutendio Xavante que satildeo belos para os membros de
sua tribo poreacutem feios para os frequentadores da feira de moda de
Milatildeo
Ora como todo objeto sensiacutevel possui uma multiplicidade de aspectos e
caracteriacutesticas eacute plenamente possiacutevel e ateacute mesmo esperado que estas entidades
sejam belas em um de seus aspectos e feias em outros Todo objeto sensiacutevel
possui por exemplo um formato uma cor um odor uma textura etc Sendo
assim devemos considerar natural o fato de que um mesmo objeto julgado belo
em sua forma possa natildeo parecer belo em sua cor ou em um outro aspecto
qualquer Note que o mesmo raciociacutenio vale para as accedilotildees que os interlocutores de
Soacutecrates oferecem como exemplos de virtudes nos diaacutelogos inicias Acusar
publicamente o seu proacuteprio pai pode ser um ato pio quando considerado a partir
dos aspectos legais de persecuccedilatildeo religiosa conforme argumenta Ecircutifron Poreacutem
quando analisado agrave luz dos laccedilos de consanguinidade e reverecircncia familiar este
mesmo ato eacute certamente um exemplo de impiedade
Do mesmo modo devido ao fato de todas as entidades sensiacuteveis estarem
sujeitas agrave passagem do tempo podemos considerar inevitaacutevel que coisas ou atos
considerados belos hoje deixaratildeo de secirc-lo em algum momento futuro ou mesmo
que natildeo tenham sido belos em algum instante do passado Um belo cavalo hoje
deixaraacute de ser belo quando velho ou morto e a escravizaccedilatildeo de um inimigo
derrotado em batalha considerada uma accedilatildeo justa em um passado natildeo muito
remoto eacute certamente julgada uma grande injusticcedila nos dias de hoje Estes poucos
exemplos satildeo suficientes para concluirmos que os dois primeiros itens da
enumeraccedilatildeo de Diotima representam casos plenamente compreensiacuteveis de
137
diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel
Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as
entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves
diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas
No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros
de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente
justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto
Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua
sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com
Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os
exemplos acima mencionados
Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso
Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria
em a partir de
1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z
inferir
2) x eacute belo e natildeo belo
Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel
de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x
estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a
donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo
indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente
incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo
parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que
Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma
deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar
em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade
da sentenccedila
1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z
concluir que
2) x eacute belo e natildeo belo
138
Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por
Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o
aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute
adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado
incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum
e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute
(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo
Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se
comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na
formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a
propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da
propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um
objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto
represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo
A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os
complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados
completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo
ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E
o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente
equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter
Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo
primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos
ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e
convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e
incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de
argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto
de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca
agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo
piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)
Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e
relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo
um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por
139
meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como
veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados
incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates
para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o
modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em
mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que
argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar
entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias
140
32 A inteligibilidade das Formas
Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica
da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter
inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo
estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu
discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar
esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela
razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo
Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o
Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com
aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)
Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da
Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido
apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um
caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma
passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender
que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo
(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem
esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de
Diotima
Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira
caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter
inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de
Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema
principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates
iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal
sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma
existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os
objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma
imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve
temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo
141
conhecimento
As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando
Soacutecrates pergunta a Simmias
ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)
A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando
no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo
(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em
seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da
Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da
primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na
resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente
familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio
relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a
sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει
ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a
142
expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na
qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso
sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde
diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das
expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de
designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do
personagem Simmias com a Teoria das Ideias13
A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates
afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das
expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por
meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal
afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em
busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a
mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que
tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos
De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir
esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das
belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave
vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo
natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave
espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber
informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas
Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este
ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar
11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a
given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)
12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico
13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades
143
abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo
apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria
reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre
Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os
objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ
αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres
(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)
14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o
sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico
144
33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis
A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute
particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua
exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates
desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar
como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos
oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo
(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente
traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas
natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os
oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis
enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo
assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las
conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um
momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o
intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel
Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui
algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem
argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como
move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas
por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos
tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a
possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas
simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa
condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento
(cf Bostock 1983 p60-63)
Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a
estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas
por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si
mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo
145
de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e
74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates
pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras
Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos
sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos
objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode
ser esquematizado da seguinte maneira
1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada
propriedade P
2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P
3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a
mesma coisa
Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem
causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto
textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo
conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual
propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo
pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do
que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute
muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa
depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala
Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias
ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo
146
Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)
Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a
existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da
Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo
afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de
que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais
a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo
ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto
certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na
conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes
de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural
devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados
para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )
enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)
Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as
ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo
tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo
parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo
Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com
tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf
Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como
ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p
134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que
chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor
exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente
147
pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato
devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que
dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo
assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por
Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15
A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os
problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua
grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura
1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo
verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os
mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais
para outra pessoardquo
2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo
relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila
estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira
iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes
iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo
3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste
caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora
permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um
aspecto e desiguais em outro aspectordquo
As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo
com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada
pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da
Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura
parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o
mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para
um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a
15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees
estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
135
como ἐκεῖνο ὃ ἔστι Como vimos no Liacutesis esta expressatildeo eacute usada para diferenciar
as diversas coisas amadas-em-vista-de-outra-coisa do πρῶτον φίλον uacutenica
entidade amada em vista de si mesma Por natildeo ser amado de maneira relacional
em vista de outro objeto o πρῶτον φίλον eacute considerado a uacutenica entidade apta a
receber o predicado ldquoser-amadordquo de maneira sempre verdadeira (ἐκεῖνο τὸ
πρῶτον ὃ ὡς ἀληθῶς ἐστι φίλον Lis219d4-5) e portanto pode ser caracterizado
como ἐκεῖνο ὃ ἐστι φίλον No Banquete (211c7-d1) a locuccedilatildeo ἐκεῖνο ὃ ἔστι eacute
utilizada para explicar que o processo de revelaccedilatildeo ao qual o iniciado nas artes do
amor foi submetido ldquoacaba naquela ciecircncia que natildeo eacute ciecircncia de nada mais do que
daquele proacuteprio Belo e [o iniciado] termina por conhecer o que eacute belo [ou o que
Belo eacute] (ὃ ἔστι καλόν) rdquo10
Novamente o vocabulaacuterio relativo agrave formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias que
encontramos nos diaacutelogos da fase meacutedia se apresenta em completa continuidade
com a busca por definiccedilotildees dos diaacutelogos inicias A foacutermula ὃ ἔστι x natildeo passa da
inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι x que como vimos no capiacutetulo precedente
caracteriza a busca socraacutetica por definiccedilotildees Assim aquilo que soacute podiacuteamos
acessar indiretamente nos primeiros diaacutelogos nos eacute apresentado de maneira
expliacutecita nos diaacutelogos meacutedios e a busca socraacutetica expressa em questotildees do tipo ldquoo
que eacute belordquo (τί ἐστι καλόν) eacute diretamente solucionada pela identificaccedilatildeo da
Forma da Beleza como ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (ὃ ἔστι καλόν)
Em contraposiccedilatildeo agrave estabilidade ontoloacutegica do Belo que eacute sempre
unicamente belo somos levados a concluir que ldquotodas as outras coisas belasrdquo (τὰ
ἄλλα πάντα καλὰ) estatildeo sujeitas a uma ou a mais de uma das seguintes
indeterminaccedilotildees
1) Elas podem ser belas em um de seus aspectos poreacutem feias em
outro Por exemplo uma escultura pode ser bela em sua forma
poreacutem estar pintada com cores horrendas
10 Eacute importante notar que na locuccedilatildeo ὃ ἔστι καλόν o termo καλόν pode ocupar o lugar tanto de
sujeito quanto de predicado Na realidade isto natildeo se daacute por acaso e devemos considerar esta ambiguidade sintaacutetica como um resultado proposital do texto platocircnico Tal fato fica evidente quando notamos que apesar da foacutermula ὃ ἔστι F ser recorrentemente usada para designar as Formas nunca encontramos o termo seguinte ao verbo ἔστι introduzido por um artigo o que anularia a possibilidade de uma leitura predicativa (cf Kahn 2009 p80) Por meio deste artifiacutecio sintaacutetico Platatildeo pretende nos transmitir a ideia de que conhecer ldquoo que o Belo eacuterdquo (construccedilatildeo subjetiva) equivale a conhecer ldquoo que eacute verdadeiramente belordquo (construccedilatildeo predicativa)
136
2) Elas podem ser belas em um momento poreacutem feias em outro Por
exemplo um Ipecirc pode ser belo na primavera quando em flor
poreacutem feio no inverno quando desfolhado
3) Elas podem ser belas quando comparadas a uma determinada coisa
poreacutem feias quando comparadas a outra Por exemplo a bela moccedila
descrita no Hiacuteppias Maior quando comparada a uma deusa deve
ser considerada feia
4) Elas podem ser belas em um determinado local poreacutem feias em
outro sendo belas para uns e feias para outros Por exemplo os
adornos de um iacutendio Xavante que satildeo belos para os membros de
sua tribo poreacutem feios para os frequentadores da feira de moda de
Milatildeo
Ora como todo objeto sensiacutevel possui uma multiplicidade de aspectos e
caracteriacutesticas eacute plenamente possiacutevel e ateacute mesmo esperado que estas entidades
sejam belas em um de seus aspectos e feias em outros Todo objeto sensiacutevel
possui por exemplo um formato uma cor um odor uma textura etc Sendo
assim devemos considerar natural o fato de que um mesmo objeto julgado belo
em sua forma possa natildeo parecer belo em sua cor ou em um outro aspecto
qualquer Note que o mesmo raciociacutenio vale para as accedilotildees que os interlocutores de
Soacutecrates oferecem como exemplos de virtudes nos diaacutelogos inicias Acusar
publicamente o seu proacuteprio pai pode ser um ato pio quando considerado a partir
dos aspectos legais de persecuccedilatildeo religiosa conforme argumenta Ecircutifron Poreacutem
quando analisado agrave luz dos laccedilos de consanguinidade e reverecircncia familiar este
mesmo ato eacute certamente um exemplo de impiedade
Do mesmo modo devido ao fato de todas as entidades sensiacuteveis estarem
sujeitas agrave passagem do tempo podemos considerar inevitaacutevel que coisas ou atos
considerados belos hoje deixaratildeo de secirc-lo em algum momento futuro ou mesmo
que natildeo tenham sido belos em algum instante do passado Um belo cavalo hoje
deixaraacute de ser belo quando velho ou morto e a escravizaccedilatildeo de um inimigo
derrotado em batalha considerada uma accedilatildeo justa em um passado natildeo muito
remoto eacute certamente julgada uma grande injusticcedila nos dias de hoje Estes poucos
exemplos satildeo suficientes para concluirmos que os dois primeiros itens da
enumeraccedilatildeo de Diotima representam casos plenamente compreensiacuteveis de
137
diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel
Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as
entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves
diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas
No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros
de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente
justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto
Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua
sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com
Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os
exemplos acima mencionados
Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso
Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria
em a partir de
1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z
inferir
2) x eacute belo e natildeo belo
Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel
de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x
estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a
donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo
indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente
incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo
parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que
Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma
deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar
em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade
da sentenccedila
1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z
concluir que
2) x eacute belo e natildeo belo
138
Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por
Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o
aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute
adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado
incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum
e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute
(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo
Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se
comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na
formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a
propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da
propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um
objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto
represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo
A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os
complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados
completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo
ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E
o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente
equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter
Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo
primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos
ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e
convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e
incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de
argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto
de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca
agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo
piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)
Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e
relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo
um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por
139
meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como
veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados
incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates
para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o
modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em
mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que
argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar
entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias
140
32 A inteligibilidade das Formas
Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica
da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter
inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo
estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu
discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar
esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela
razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo
Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o
Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com
aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)
Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da
Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido
apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um
caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma
passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender
que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo
(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem
esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de
Diotima
Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira
caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter
inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de
Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema
principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates
iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal
sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma
existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os
objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma
imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve
temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo
141
conhecimento
As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando
Soacutecrates pergunta a Simmias
ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)
A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando
no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo
(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em
seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da
Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da
primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na
resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente
familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio
relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a
sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει
ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a
142
expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na
qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso
sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde
diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das
expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de
designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do
personagem Simmias com a Teoria das Ideias13
A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates
afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das
expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por
meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal
afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em
busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a
mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que
tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos
De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir
esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das
belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave
vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo
natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave
espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber
informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas
Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este
ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar
11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a
given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)
12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico
13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades
143
abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo
apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria
reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre
Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os
objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ
αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres
(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)
14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o
sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico
144
33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis
A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute
particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua
exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates
desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar
como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos
oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo
(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente
traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas
natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os
oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis
enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo
assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las
conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um
momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o
intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel
Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui
algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem
argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como
move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas
por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos
tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a
possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas
simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa
condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento
(cf Bostock 1983 p60-63)
Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a
estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas
por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si
mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo
145
de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e
74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates
pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras
Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos
sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos
objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode
ser esquematizado da seguinte maneira
1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada
propriedade P
2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P
3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a
mesma coisa
Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem
causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto
textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo
conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual
propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo
pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do
que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute
muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa
depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala
Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias
ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo
146
Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)
Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a
existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da
Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo
afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de
que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais
a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo
ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto
certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na
conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes
de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural
devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados
para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )
enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)
Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as
ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo
tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo
parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo
Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com
tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf
Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como
ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p
134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que
chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor
exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente
147
pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato
devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que
dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo
assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por
Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15
A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os
problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua
grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura
1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo
verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os
mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais
para outra pessoardquo
2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo
relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila
estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira
iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes
iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo
3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste
caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora
permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um
aspecto e desiguais em outro aspectordquo
As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo
com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada
pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da
Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura
parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o
mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para
um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a
15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees
estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
136
2) Elas podem ser belas em um momento poreacutem feias em outro Por
exemplo um Ipecirc pode ser belo na primavera quando em flor
poreacutem feio no inverno quando desfolhado
3) Elas podem ser belas quando comparadas a uma determinada coisa
poreacutem feias quando comparadas a outra Por exemplo a bela moccedila
descrita no Hiacuteppias Maior quando comparada a uma deusa deve
ser considerada feia
4) Elas podem ser belas em um determinado local poreacutem feias em
outro sendo belas para uns e feias para outros Por exemplo os
adornos de um iacutendio Xavante que satildeo belos para os membros de
sua tribo poreacutem feios para os frequentadores da feira de moda de
Milatildeo
Ora como todo objeto sensiacutevel possui uma multiplicidade de aspectos e
caracteriacutesticas eacute plenamente possiacutevel e ateacute mesmo esperado que estas entidades
sejam belas em um de seus aspectos e feias em outros Todo objeto sensiacutevel
possui por exemplo um formato uma cor um odor uma textura etc Sendo
assim devemos considerar natural o fato de que um mesmo objeto julgado belo
em sua forma possa natildeo parecer belo em sua cor ou em um outro aspecto
qualquer Note que o mesmo raciociacutenio vale para as accedilotildees que os interlocutores de
Soacutecrates oferecem como exemplos de virtudes nos diaacutelogos inicias Acusar
publicamente o seu proacuteprio pai pode ser um ato pio quando considerado a partir
dos aspectos legais de persecuccedilatildeo religiosa conforme argumenta Ecircutifron Poreacutem
quando analisado agrave luz dos laccedilos de consanguinidade e reverecircncia familiar este
mesmo ato eacute certamente um exemplo de impiedade
Do mesmo modo devido ao fato de todas as entidades sensiacuteveis estarem
sujeitas agrave passagem do tempo podemos considerar inevitaacutevel que coisas ou atos
considerados belos hoje deixaratildeo de secirc-lo em algum momento futuro ou mesmo
que natildeo tenham sido belos em algum instante do passado Um belo cavalo hoje
deixaraacute de ser belo quando velho ou morto e a escravizaccedilatildeo de um inimigo
derrotado em batalha considerada uma accedilatildeo justa em um passado natildeo muito
remoto eacute certamente julgada uma grande injusticcedila nos dias de hoje Estes poucos
exemplos satildeo suficientes para concluirmos que os dois primeiros itens da
enumeraccedilatildeo de Diotima representam casos plenamente compreensiacuteveis de
137
diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel
Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as
entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves
diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas
No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros
de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente
justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto
Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua
sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com
Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os
exemplos acima mencionados
Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso
Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria
em a partir de
1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z
inferir
2) x eacute belo e natildeo belo
Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel
de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x
estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a
donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo
indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente
incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo
parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que
Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma
deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar
em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade
da sentenccedila
1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z
concluir que
2) x eacute belo e natildeo belo
138
Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por
Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o
aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute
adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado
incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum
e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute
(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo
Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se
comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na
formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a
propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da
propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um
objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto
represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo
A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os
complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados
completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo
ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E
o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente
equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter
Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo
primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos
ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e
convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e
incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de
argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto
de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca
agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo
piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)
Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e
relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo
um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por
139
meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como
veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados
incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates
para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o
modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em
mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que
argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar
entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias
140
32 A inteligibilidade das Formas
Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica
da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter
inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo
estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu
discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar
esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela
razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo
Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o
Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com
aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)
Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da
Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido
apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um
caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma
passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender
que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo
(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem
esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de
Diotima
Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira
caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter
inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de
Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema
principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates
iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal
sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma
existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os
objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma
imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve
temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo
141
conhecimento
As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando
Soacutecrates pergunta a Simmias
ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)
A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando
no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo
(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em
seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da
Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da
primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na
resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente
familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio
relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a
sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει
ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a
142
expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na
qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso
sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde
diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das
expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de
designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do
personagem Simmias com a Teoria das Ideias13
A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates
afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das
expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por
meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal
afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em
busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a
mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que
tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos
De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir
esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das
belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave
vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo
natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave
espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber
informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas
Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este
ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar
11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a
given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)
12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico
13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades
143
abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo
apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria
reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre
Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os
objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ
αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres
(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)
14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o
sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico
144
33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis
A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute
particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua
exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates
desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar
como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos
oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo
(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente
traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas
natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os
oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis
enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo
assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las
conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um
momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o
intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel
Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui
algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem
argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como
move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas
por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos
tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a
possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas
simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa
condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento
(cf Bostock 1983 p60-63)
Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a
estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas
por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si
mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo
145
de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e
74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates
pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras
Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos
sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos
objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode
ser esquematizado da seguinte maneira
1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada
propriedade P
2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P
3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a
mesma coisa
Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem
causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto
textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo
conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual
propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo
pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do
que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute
muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa
depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala
Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias
ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo
146
Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)
Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a
existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da
Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo
afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de
que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais
a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo
ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto
certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na
conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes
de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural
devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados
para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )
enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)
Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as
ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo
tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo
parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo
Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com
tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf
Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como
ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p
134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que
chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor
exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente
147
pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato
devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que
dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo
assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por
Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15
A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os
problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua
grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura
1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo
verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os
mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais
para outra pessoardquo
2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo
relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila
estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira
iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes
iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo
3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste
caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora
permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um
aspecto e desiguais em outro aspectordquo
As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo
com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada
pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da
Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura
parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o
mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para
um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a
15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees
estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
137
diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das Formas e das coisas do mundo sensiacutevel
Segundo a sacerdotisa enquanto o Belo eacute sempre e invariavelmente belo as
entidades empiacutericas satildeo belas e natildeo-belas devido agraves vicissitudes do tempo e agraves
diferenccedilas aspectuais a que estatildeo sujeitas
No entanto quando passamos para os dois itens seguintes os paracircmetros
de diferenciaccedilatildeo apresentados por Diotima demonstram-se mais dificilmente
justificaacuteveis A bela moccedila evocada por Hiacuteppias certamente natildeo eacute tatildeo bela quanto
Afrodite poreacutem isto natildeo parece fazer dela uma pessoa feia De fato ela continua
sendo extremamente bela como se torna evidente quando a comparamos com
Soacutecrates Por que entatildeo deveriacuteamos consideraacute-la bela e natildeo-bela tanto quanto os
exemplos acima mencionados
Conforme observa Vlastos (1973 p71) parece que neste uacuteltimo caso
Platatildeo estaacute incorrendo em um raciociacutenio falacioso O erro de Platatildeo consistiria
em a partir de
1) x eacute belo em comparaccedilatildeo a y e natildeo eacute belo em comparaccedilatildeo a z
inferir
2) x eacute belo e natildeo belo
Ora eacute facilmente verificaacutevel que a senteccedila 2) natildeo eacute logicamente derivaacutevel
de 1) Afinal eacute claro que soacute poderiacuteamos considerar x belo e natildeo-belo no caso de x
estar sendo comparado a um mesmo objeto No exemplo em questatildeo apenas se a
donzela citada por Hiacuteppias fosse bela e feia em comparaccedilatildeo a um mesmo
indiviacuteduo poderiacuteamos concluir que ela eacute bela e natildeo-bela e consequentemente
incluir este novo item na lista de diferenciaccedilotildees entre Formas e coisas O mesmo
parece valer para o uacuteltimo caso elencado por Diotima Pois do mesmo modo que
Helena natildeo pode ser dita feia pelo simples fato de natildeo ser tatildeo bela quanto uma
deusa tampouco podemos consideraacute-la feia pelo fato de algueacutem natildeo concordar
em chamaacute-la bela Neste segundo caso a falaacutecia estaria em partindo da verdade
da sentenccedila
1) x eacute belo para y e x natildeo eacute belo para z
concluir que
2) x eacute belo e natildeo belo
138
Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por
Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o
aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute
adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado
incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum
e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute
(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo
Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se
comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na
formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a
propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da
propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um
objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto
represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo
A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os
complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados
completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo
ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E
o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente
equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter
Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo
primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos
ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e
convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e
incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de
argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto
de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca
agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo
piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)
Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e
relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo
um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por
139
meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como
veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados
incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates
para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o
modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em
mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que
argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar
entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias
140
32 A inteligibilidade das Formas
Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica
da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter
inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo
estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu
discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar
esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela
razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo
Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o
Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com
aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)
Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da
Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido
apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um
caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma
passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender
que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo
(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem
esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de
Diotima
Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira
caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter
inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de
Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema
principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates
iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal
sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma
existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os
objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma
imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve
temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo
141
conhecimento
As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando
Soacutecrates pergunta a Simmias
ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)
A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando
no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo
(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em
seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da
Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da
primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na
resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente
familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio
relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a
sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει
ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a
142
expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na
qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso
sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde
diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das
expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de
designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do
personagem Simmias com a Teoria das Ideias13
A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates
afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das
expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por
meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal
afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em
busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a
mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que
tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos
De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir
esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das
belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave
vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo
natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave
espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber
informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas
Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este
ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar
11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a
given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)
12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico
13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades
143
abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo
apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria
reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre
Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os
objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ
αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres
(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)
14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o
sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico
144
33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis
A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute
particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua
exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates
desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar
como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos
oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo
(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente
traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas
natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os
oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis
enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo
assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las
conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um
momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o
intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel
Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui
algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem
argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como
move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas
por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos
tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a
possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas
simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa
condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento
(cf Bostock 1983 p60-63)
Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a
estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas
por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si
mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo
145
de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e
74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates
pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras
Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos
sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos
objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode
ser esquematizado da seguinte maneira
1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada
propriedade P
2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P
3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a
mesma coisa
Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem
causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto
textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo
conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual
propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo
pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do
que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute
muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa
depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala
Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias
ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo
146
Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)
Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a
existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da
Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo
afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de
que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais
a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo
ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto
certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na
conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes
de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural
devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados
para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )
enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)
Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as
ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo
tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo
parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo
Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com
tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf
Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como
ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p
134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que
chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor
exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente
147
pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato
devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que
dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo
assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por
Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15
A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os
problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua
grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura
1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo
verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os
mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais
para outra pessoardquo
2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo
relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila
estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira
iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes
iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo
3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste
caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora
permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um
aspecto e desiguais em outro aspectordquo
As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo
com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada
pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da
Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura
parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o
mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para
um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a
15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees
estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
138
Como fica evidente os dois uacuteltimos casos da listagem oferecida por
Diotima apresentam o predicado ser-belo em uma estrutura relacional que o
aproxima em sua forma loacutegica aos predicados incompletos aqueles que soacute
adquirem significado quando acrescidos de um objeto Um exemplo de predicado
incompleto eacute ldquoser igualrdquo A sentenccedila ldquoJoatildeo eacute igualrdquo natildeo possui significado algum
e apenas torna-se gramaticalmente correta quando algum complemento lhe eacute
(impliacutecita ou explicitamente) atribuiacutedo por exemplo ldquoJoatildeo eacute igual a Arturrdquo
Como o predicado ser-belo-em-comparaccedilatildeo-a-x e ser-belo-para-x se
comportam logicamente como ser-igual-a-x a substituiccedilatildeo de x por y implica na
formaccedilatildeo de uma nova predicaccedilatildeo Afinal de um ponto de vista loacutegico a
propriedade ser-igual-a-x deve ser considerada completamente distinta da
propriedade ser-igual-a-y Este fato fica evidente quando consideramos que um
objeto pode perfeitamente ser-igual-a-x e natildeo ser-igual-a-y sem que isto
represente uma contradiccedilatildeo ou paradoxo
A falaacutecia do argumento platocircnico portanto estaria em desconsiderar os
complementos verbais tratando predicados incompletos como predicados
completos Desta maneira o fato de Helena ser mais bela que Soacutecrates poreacutem natildeo
ser mais bela que Afrodite leva Soacutecrates a concluir que Helena eacute bela e natildeo-bela E
o fato do Abaporu ser belo para mim e natildeo ser belo para ele torna-se logicamente
equivalente agrave afirmaccedilatildeo de que o Abaporu eacute belo e natildeo belo simpliciter
Vlastos reconhece neste aspecto da ontologia platocircnica um erro tatildeo
primaacuterio que elabora uma possiacutevel admoestaccedilatildeo Segundo ele deveriacuteamos
ldquooferecer um conselho a Platatildeo sobre como tornar sua teoria mais inteligiacutevelrdquo e
convencecirc-lo a descartar os exemplos envolvendo predicados relacionais e
incompletos de sua lista de casos em que os objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (F e natildeo-F) Diriacuteamos ldquovocecirc natildeo precisa deste tipo de
argumento uma vez que os outros exemplos satildeo suficientes para defender o ponto
de vista de que a foacutermula F e natildeo-F aplica-se aos objetos sensiacuteveis poreacutem nunca
agraves Formas Para esta alegaccedilatildeo argumentos do tipo Simmias eacute alto e natildeo-alto satildeo
piores do que inuacuteteis satildeo contra-producentesrdquo (Vlastos 1973 p 74)
Ora caso o uso de exemplos envolvendo predicados incompletos e
relacionais estivesse limitado ao discurso de Diotima poderiacuteamos consideraacute-lo
um pequeno deslize por parte de Platatildeo ou ateacute mesmo tentar compreendecirc-lo por
139
meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como
veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados
incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates
para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o
modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em
mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que
argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar
entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias
140
32 A inteligibilidade das Formas
Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica
da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter
inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo
estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu
discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar
esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela
razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo
Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o
Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com
aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)
Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da
Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido
apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um
caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma
passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender
que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo
(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem
esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de
Diotima
Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira
caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter
inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de
Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema
principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates
iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal
sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma
existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os
objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma
imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve
temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo
141
conhecimento
As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando
Soacutecrates pergunta a Simmias
ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)
A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando
no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo
(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em
seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da
Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da
primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na
resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente
familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio
relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a
sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει
ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a
142
expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na
qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso
sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde
diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das
expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de
designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do
personagem Simmias com a Teoria das Ideias13
A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates
afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das
expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por
meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal
afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em
busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a
mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que
tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos
De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir
esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das
belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave
vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo
natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave
espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber
informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas
Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este
ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar
11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a
given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)
12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico
13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades
143
abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo
apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria
reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre
Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os
objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ
αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres
(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)
14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o
sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico
144
33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis
A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute
particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua
exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates
desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar
como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos
oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo
(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente
traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas
natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os
oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis
enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo
assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las
conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um
momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o
intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel
Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui
algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem
argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como
move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas
por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos
tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a
possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas
simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa
condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento
(cf Bostock 1983 p60-63)
Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a
estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas
por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si
mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo
145
de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e
74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates
pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras
Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos
sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos
objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode
ser esquematizado da seguinte maneira
1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada
propriedade P
2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P
3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a
mesma coisa
Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem
causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto
textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo
conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual
propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo
pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do
que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute
muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa
depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala
Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias
ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo
146
Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)
Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a
existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da
Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo
afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de
que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais
a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo
ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto
certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na
conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes
de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural
devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados
para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )
enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)
Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as
ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo
tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo
parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo
Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com
tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf
Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como
ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p
134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que
chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor
exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente
147
pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato
devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que
dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo
assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por
Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15
A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os
problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua
grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura
1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo
verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os
mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais
para outra pessoardquo
2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo
relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila
estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira
iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes
iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo
3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste
caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora
permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um
aspecto e desiguais em outro aspectordquo
As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo
com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada
pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da
Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura
parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o
mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para
um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a
15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees
estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
139
meio das circunstacircncias dramaacuteticas especiacuteficas do Banquete No entanto como
veremos no decorrer deste capiacutetulo raciociacutenios envolvendo predicados
incompletos e relacionais satildeo constantemente utilizados pelo personagem Soacutecrates
para introduzir a Teoria das Ideias e apresentar as diferenccedilas fundamentais entre o
modo de ser das Formas e das coisas sensiacuteveis Sendo assim devemos manter em
mente as singularidades relativas a estes tipo de exemplo e na medida em que
argumentos envolvendo predicados incompletos ou relacionais aparecerem tentar
entender o papel destes tipo de predicaccedilatildeo para formulaccedilatildeo da Teoria das Ideias
140
32 A inteligibilidade das Formas
Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica
da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter
inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo
estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu
discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar
esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela
razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo
Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o
Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com
aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)
Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da
Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido
apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um
caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma
passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender
que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo
(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem
esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de
Diotima
Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira
caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter
inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de
Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema
principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates
iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal
sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma
existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os
objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma
imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve
temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo
141
conhecimento
As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando
Soacutecrates pergunta a Simmias
ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)
A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando
no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo
(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em
seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da
Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da
primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na
resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente
familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio
relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a
sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει
ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a
142
expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na
qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso
sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde
diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das
expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de
designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do
personagem Simmias com a Teoria das Ideias13
A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates
afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das
expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por
meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal
afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em
busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a
mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que
tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos
De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir
esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das
belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave
vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo
natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave
espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber
informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas
Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este
ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar
11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a
given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)
12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico
13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades
143
abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo
apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria
reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre
Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os
objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ
αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres
(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)
14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o
sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico
144
33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis
A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute
particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua
exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates
desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar
como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos
oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo
(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente
traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas
natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os
oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis
enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo
assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las
conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um
momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o
intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel
Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui
algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem
argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como
move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas
por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos
tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a
possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas
simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa
condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento
(cf Bostock 1983 p60-63)
Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a
estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas
por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si
mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo
145
de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e
74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates
pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras
Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos
sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos
objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode
ser esquematizado da seguinte maneira
1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada
propriedade P
2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P
3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a
mesma coisa
Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem
causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto
textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo
conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual
propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo
pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do
que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute
muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa
depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala
Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias
ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo
146
Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)
Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a
existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da
Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo
afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de
que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais
a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo
ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto
certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na
conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes
de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural
devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados
para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )
enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)
Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as
ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo
tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo
parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo
Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com
tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf
Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como
ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p
134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que
chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor
exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente
147
pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato
devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que
dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo
assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por
Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15
A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os
problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua
grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura
1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo
verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os
mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais
para outra pessoardquo
2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo
relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila
estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira
iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes
iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo
3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste
caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora
permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um
aspecto e desiguais em outro aspectordquo
As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo
com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada
pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da
Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura
parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o
mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para
um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a
15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees
estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
140
32 A inteligibilidade das Formas
Apesar da densidade da exposiccedilatildeo de Diotima sobre a natureza ontoloacutegica
da Forma do Belo falta ao Banquete uma apresentaccedilatildeo expliacutecita do caraacuteter
inteligiacutevel das Formas Pois apesar de Diotima deixar claro que o Belo em si natildeo
estaacute em qualquer uma das entidades belas sensiacuteveis natildeo encontramos em seu
discurso a especificaccedilatildeo de qual faculdade da alma devemos empregar para captar
esta Forma Sabemos atraveacutes de outros diaacutelogos que as Formas satildeo captadas pela
razatildeo e natildeo pelos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel No Banquete (212a1-3) contudo
Platatildeo prefere se referir a este fato de maneira indireta falando em ldquocontemplar [o
Belo] com aquilo que eacute precisordquo (ἐκεῖνο ᾧ δεῖ θεωmicroένου) e ldquover o Belo com
aquilo por meio do que ele pode ser vistordquo (ὁρῶντι ᾧ ὁρατὸν τὸ καλόν)
Ora eacute evidente que formulado desta maneira o caraacuteter inteligiacutevel da
Forma do Belo somente seraacute compreensiacutevel a um leitor que jaacute tenha sido
apresentado a esta caracteriacutestica das Formas Estamos portanto frente a mais um
caso de uso da proleacutepse para criar planos distintos de leitura de uma mesma
passagem Leitores educados na doutrina das Formas seratildeo capazes de entender
que ldquoaquilo por meio do que o Belo pode ser vistordquo eacute a faculdade da reflexatildeo
(διανοία) ou do raciociacutenio (logismoj) Por outro lado leitores que natildeo possuem
esta informaccedilatildeo ficaratildeo instigados a entender o sentido por traacutes destas palavras de
Diotima
Quando nos voltamos para o Feacutedon contudo vemos que a primeira
caracteriacutestica das Formas a ser apresentada por Soacutecrates eacute justamente seu caraacuteter
inteligiacutevel O diaacutelogo Feacutedon narra os momentos anteriores agrave execuccedilatildeo de
Soacutecrates e em funccedilatildeo desta triste ocasiatildeo possui o fato da morte como tema
principal Conversando com alguns de seus companheiros mais iacutentimos Soacutecrates
iraacute defender a imortalidade da alma e repetindo a analogia mortalimortal
sensiacutevelinteligiacutevel que encontramos no Banquete enaltecer as vantagens de uma
existecircncia livre do corpo mortal que habitamos em vida e do contato com os
objetos sensiacuteveis De acordo com Soacutecrates somente separada do corpo a alma
imortal tem acesso agraves entidades inteligiacuteveis Sendo assim o filoacutesofo natildeo deve
temer a morte mas consideraacute-la a realizaccedilatildeo final de sua busca pelo
141
conhecimento
As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando
Soacutecrates pergunta a Simmias
ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)
A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando
no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo
(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em
seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da
Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da
primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na
resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente
familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio
relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a
sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει
ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a
142
expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na
qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso
sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde
diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das
expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de
designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do
personagem Simmias com a Teoria das Ideias13
A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates
afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das
expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por
meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal
afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em
busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a
mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que
tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos
De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir
esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das
belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave
vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo
natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave
espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber
informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas
Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este
ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar
11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a
given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)
12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico
13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades
143
abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo
apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria
reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre
Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os
objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ
αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres
(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)
14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o
sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico
144
33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis
A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute
particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua
exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates
desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar
como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos
oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo
(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente
traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas
natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os
oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis
enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo
assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las
conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um
momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o
intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel
Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui
algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem
argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como
move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas
por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos
tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a
possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas
simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa
condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento
(cf Bostock 1983 p60-63)
Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a
estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas
por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si
mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo
145
de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e
74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates
pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras
Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos
sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos
objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode
ser esquematizado da seguinte maneira
1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada
propriedade P
2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P
3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a
mesma coisa
Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem
causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto
textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo
conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual
propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo
pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do
que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute
muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa
depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala
Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias
ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo
146
Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)
Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a
existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da
Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo
afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de
que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais
a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo
ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto
certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na
conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes
de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural
devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados
para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )
enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)
Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as
ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo
tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo
parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo
Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com
tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf
Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como
ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p
134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que
chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor
exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente
147
pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato
devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que
dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo
assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por
Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15
A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os
problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua
grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura
1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo
verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os
mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais
para outra pessoardquo
2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo
relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila
estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira
iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes
iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo
3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste
caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora
permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um
aspecto e desiguais em outro aspectordquo
As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo
com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada
pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da
Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura
parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o
mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para
um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a
15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees
estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
141
conhecimento
As Formas satildeo pela primeira vez mencionadas no Feacutedon em 65d quando
Soacutecrates pergunta a Simmias
ldquoAgora considera isto oacute Simmias noacutes afirmamos haver algum Justo ele mesmo ou nada De fato afirmamos por Zeus E ainda algo Belo e Bom Como natildeo Entatildeo vocecirc jaacute viu alguma destas coisas com seus olhos De modo algum disse ele Mas vocecirc apreendeu estas coisas por meio de alguma outra sensaccedilatildeo do corpo Eu estou falando sobre todas estas coisas Grandeza Sauacutede Forccedila em uma palavra sobre a essecircncia de todas as coisas (ἁπάντων τῆς οὐσίας) o que cada uma realmente eacute (ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν) Acaso eacute pelo corpo que aquilo de mais verdadeiro sobre elas eacute contemplado ou eacute da seguinte maneira aquele dentre noacutes que houver se preparado melhor e com maior precisatildeo para refletir sobre o que eacute nela mesma cada uma destas coisas que ele examina natildeo estaraacute ele mais proacuteximo de conhecer cada uma destas coisas Certamenterdquo Τί δὲ δὴ τὰ τοιάδε ὦ Σιmicromicroία φαmicroέν τι εἶναι δίκαιον αὐτὸ ἢ οὐδέν Φαmicroὲν microέντοι νὴ ∆ία Καὶ αὖ καλόν γέ τι καὶ ἀγαθόν Πῶς δ οὔ Ἤδη οὖν πώποτέ τι τῶν τοιούτων τοῖς ὀφθαλmicroοῖς εἶδες Οὐδαmicroῶς ἦ δ ὅς Ἀλλ ἄλλῃ τινὶ αἰσθήσει τῶν διὰ τοῦ σώmicroατος ἐφήψω αὐτῶν λέγω δὲ περὶ πάντων οἷον microεγέθους πέρι ὑγιείας ἰσχύος καὶ τῶν ἄλλων ἑνὶ λόγῳ ἁπάντων τῆς οὐσίας ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν ἆρα διὰ τοῦ σώmicroατος αὐτῶν τὸ ἀληθέστατον θεωρεῖται ἢ ὧδε ἔχει ὃς ἂν microάλιστα ἡmicroῶν καὶ ἀκριβέστατα παρασκευάσηται αὐτὸ ἕκαστον διανοηθῆναι περὶ οὗ σκοπεῖ οὗτος ἂν ἐγγύτατα ἴοι τοῦ γνῶναι ἕκαστον Πάνυ microὲν οὖν (65d4-e5)
A passagem inicia-se com uma inequiacutevoca referecircncia agraves Formas Falando
no plural Soacutecrates pergunta a Simmias ldquoafirmamos haver um Justo ele mesmo
(δίκαιον αὐτὸ)rdquo Simmias prontamente responde que sim aceitando logo em
seguida a existecircncia das Formas do Belo do Bom da Grandeza da Sauacutede e da
Forccedila Desde Burnet (1911 p 33) eacute amplamente reconhecido que o uso da
primeira pessoa do plural (φαmicroέν) tanto na pergunta de Soacutecrates quanto na
resposta de Simmias indica que o personagem Simmias estaacute previamente
familiarizado com a Teoria das Ideias Em funccedilatildeo de nossa anaacutelise do vocabulaacuterio
relativo agrave Teoria das Ideias contido no Banquete podemos acrescentar ainda a
sua compreensatildeo da expressatildeo ldquoo que cada coisa realmente eacuterdquo (ὃ τυγχάνει
ἕκαστον ὄν) como evidecircncia desta intimidade com as teorias socraacuteticas Afinal a
142
expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na
qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso
sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde
diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das
expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de
designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do
personagem Simmias com a Teoria das Ideias13
A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates
afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das
expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por
meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal
afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em
busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a
mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que
tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos
De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir
esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das
belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave
vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo
natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave
espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber
informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas
Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este
ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar
11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a
given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)
12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico
13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades
143
abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo
apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria
reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre
Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os
objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ
αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres
(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)
14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o
sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico
144
33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis
A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute
particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua
exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates
desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar
como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos
oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo
(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente
traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas
natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os
oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis
enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo
assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las
conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um
momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o
intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel
Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui
algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem
argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como
move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas
por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos
tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a
possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas
simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa
condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento
(cf Bostock 1983 p60-63)
Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a
estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas
por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si
mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo
145
de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e
74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates
pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras
Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos
sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos
objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode
ser esquematizado da seguinte maneira
1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada
propriedade P
2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P
3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a
mesma coisa
Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem
causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto
textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo
conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual
propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo
pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do
que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute
muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa
depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala
Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias
ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo
146
Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)
Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a
existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da
Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo
afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de
que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais
a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo
ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto
certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na
conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes
de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural
devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados
para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )
enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)
Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as
ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo
tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo
parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo
Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com
tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf
Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como
ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p
134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que
chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor
exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente
147
pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato
devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que
dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo
assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por
Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15
A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os
problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua
grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura
1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo
verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os
mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais
para outra pessoardquo
2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo
relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila
estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira
iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes
iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo
3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste
caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora
permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um
aspecto e desiguais em outro aspectordquo
As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo
com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada
pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da
Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura
parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o
mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para
um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a
15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees
estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
142
expressatildeo ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν natildeo passa de uma versatildeo da foacutermula ὃ ἔστι F na
qual a noccedilatildeo de verdade eacute reforccedilada pelo uso do verbo τυγχάνω11 Aleacutem disso
sabemos que o particiacutepio οὐσία vem sendo usado para designar as Formas desde
diaacutelogos como Ecircutifron e Mecircnon Portanto a imediata compreensatildeo das
expressotildees αὐτὸ τὸ F12 ὃ (τυγχάνει) ἔστι F e ldquoa οὐσία de Frdquo como maneiras de
designaccedilatildeo das Formas deve ser considerado um claro sinal da familiaridade do
personagem Simmias com a Teoria das Ideias13
A novidade que encontramos nesta passagem estaacute no fato de Soacutecrates
afirmar explicitamente que estas entidades agraves quais nos referimos por meio das
expressotildees οὐσία αὐτὸ τὸ F e ὃ (τυγχάνει) ἔστι F natildeo podem ser acessadas por
meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel Novamente devemos entender tal
afirmaccedilatildeo como uma explicitaccedilatildeo daquilo que jaacute encontraacutevamos nos diaacutelogos em
busca de definiccedilotildees Afinal se nestes diaacutelogos Soacutecrates jaacute afirmava ser uacutenica e a
mesma a Beleza de um cavalo de uma accedilatildeo ou de uma lei soacute podemos supor que
tal Beleza natildeo pode ser apreendida pelos sentidos corpoacutereos
De fato no Hippias Maior (298b2-4) Soacutecrates parece querer introduzir
esta faceta de sua teoria ao perguntar ldquoMas entatildeo Hiacuteppias devemos dizer das
belas condutas e das belas leis que elas satildeo belas porque agradam agrave audiccedilatildeo ou agrave
vista ou elas satildeo de uma outra espeacutecie (ἢ ἄλλο τι εἶδος ἔχειν)rdquo Hiacuteppias contudo
natildeo entende o conteuacutedo da pergunta de Soacutecrates e o assunto eacute deixado de lado agrave
espera de uma ocasiatildeo mais propiacutecia e de um interlocutor mais apto a receber
informaccedilotildees sobre o caraacuteter inteligiacutevel das Formas
Esta ocasiatildeo estaacute descrita no Feacutedon (65e-66a) que com relaccedilatildeo a este
ponto vai aleacutem do Banquete e de qualquer diaacutelogo de primeira fase ao apresentar
11 Burnet (1911 p 33) traduz ὃ τυγχάνει ἕκαστον ὄν por ldquoo que certa coisa realmente eacuterdquo (what a
given thing really is) e Gallop (1975 p10) por ldquoo que cada uma efetivamente eacuterdquo (what each one actually is)
12 Note o uso de αὐτὸ ἕκαστον (cada uma destas coisas ela mesma) em e3 Trata-se da generalizaccedilatildeo expliacutecita da expressatildeo αὐτὸ τὸ F que passa a adquirir um sentido cada vez mais teacutecnico
13 Em Platos Thought Grube defende contra Burnet que Simmias natildeo possui qualquer conhecimento preacutevio da Teoria das Ideias (cf Grube 1935 p291-294) No entanto sua argumentaccedilatildeo parece basear-se no fato de Simmias natildeo se mostrar um conhecedor da teoria da reminiscecircncia e ainda cometer certos enganos com relaccedilatildeo ao que precisamente satildeo as Formas Ora me parece claro que Platatildeo estaacute descrevendo Simmias como algueacutem que jaacute admite a existecircncia das Formas poreacutem ainda precisa de esclarecimentos e treinamento dialeacutetico sobre as diversas questotildees relativas a estas entidades Entendido deste modo o personagem Simmias pode ser considerado como uma representaccedilatildeo de parte da audiecircncia de Platatildeo jaacute introduzida agrave Teoria das Ideias por meio da leitura dos diaacutelogos iniciais poreacutem ainda necessitando de infromaccedilotildees mais aprofundas sobre natureza destas entidades
143
abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo
apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria
reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre
Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os
objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ
αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres
(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)
14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o
sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico
144
33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis
A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute
particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua
exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates
desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar
como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos
oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo
(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente
traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas
natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os
oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis
enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo
assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las
conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um
momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o
intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel
Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui
algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem
argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como
move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas
por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos
tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a
possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas
simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa
condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento
(cf Bostock 1983 p60-63)
Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a
estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas
por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si
mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo
145
de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e
74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates
pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras
Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos
sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos
objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode
ser esquematizado da seguinte maneira
1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada
propriedade P
2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P
3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a
mesma coisa
Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem
causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto
textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo
conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual
propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo
pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do
que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute
muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa
depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala
Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias
ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo
146
Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)
Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a
existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da
Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo
afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de
que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais
a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo
ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto
certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na
conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes
de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural
devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados
para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )
enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)
Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as
ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo
tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo
parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo
Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com
tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf
Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como
ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p
134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que
chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor
exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente
147
pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato
devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que
dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo
assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por
Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15
A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os
problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua
grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura
1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo
verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os
mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais
para outra pessoardquo
2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo
relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila
estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira
iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes
iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo
3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste
caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora
permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um
aspecto e desiguais em outro aspectordquo
As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo
com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada
pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da
Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura
parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o
mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para
um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a
15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees
estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
143
abertamente o caraacuteter inteligiacutevel das Formas esclarecendo que estas entidades satildeo
apreendidas somente ldquopelo raciociacuteniordquo (ἐν τῷ λογίζεσθαι)14 ou ldquopela proacutepria
reflexatildeordquo (αὐτῇ τῇ διανοίᾳ) Deste modo mais um aspecto da distinccedilatildeo entre
Formas e coisas nos eacute apresentado enquanto os sentidos corpoacutereos apreendem os
objetos do mundo sensiacuteveis somente a pura reflexatildeo em si e por si (αὐτῇ καθ
αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ διανοίᾳ) pode acessar o que realmente eacute cada um dos seres
(ἕκαστον τῶν ὄντων) puro em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ εἰλικρινὲς)
14 Burnet (1911 p31) traduz ἐν τῷ λογίζεσθαι por ldquoem raciociacutenio matemaacuteticordquo lembrando que o
sentido principal deste verbo eacute ldquocalcularrdquo Contudo a passagem entre 65e-66a deixa claro que Soacutecrates estaacute usando esta expressatildeo em conjunto com αὐτῇ τῇ διανοίᾳ para se referir agrave faculdade da razatildeo em geral e natildeo especificamente ao raciociacutenio matemaacutetico
144
33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis
A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute
particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua
exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates
desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar
como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos
oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo
(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente
traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas
natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os
oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis
enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo
assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las
conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um
momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o
intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel
Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui
algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem
argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como
move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas
por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos
tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a
possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas
simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa
condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento
(cf Bostock 1983 p60-63)
Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a
estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas
por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si
mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo
145
de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e
74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates
pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras
Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos
sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos
objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode
ser esquematizado da seguinte maneira
1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada
propriedade P
2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P
3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a
mesma coisa
Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem
causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto
textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo
conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual
propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo
pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do
que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute
muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa
depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala
Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias
ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo
146
Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)
Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a
existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da
Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo
afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de
que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais
a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo
ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto
certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na
conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes
de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural
devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados
para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )
enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)
Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as
ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo
tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo
parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo
Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com
tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf
Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como
ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p
134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que
chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor
exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente
147
pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato
devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que
dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo
assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por
Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15
A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os
problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua
grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura
1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo
verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os
mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais
para outra pessoardquo
2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo
relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila
estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira
iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes
iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo
3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste
caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora
permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um
aspecto e desiguais em outro aspectordquo
As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo
com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada
pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da
Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura
parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o
mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para
um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a
15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees
estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
144
33 A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis
A proacutexima passagem em que as Formas satildeo mencionadas no Feacutedon eacute
particularmente importante para anaacutelise da ontologia socraacutetica Como parte de sua
exposiccedilatildeo geral acerca da independecircncia da alma com relaccedilatildeo ao corpo Soacutecrates
desenvolve um argumento entre as paacuteginas 72 e 77 que pretende demonstrar
como certas coisas que conhecemos natildeo podem ter sido aprendidas por meio dos
oacutergatildeos da sensibilidade (αἴσθησις) e portanto devem ser fruto de rememoraccedilatildeo
(a)namnhsij) de um conhecimento preacute-natal Usando a distinccedilatildeo previamente
traccedilada entre Formas e coisas Soacutecrates afirma que o conhecimento das Formas
natildeo pode ter sido adquirido em vida Afinal conforme explicado em 65-66 os
oacutergatildeos corpoacutereos de percepccedilatildeo estatildeo destinados agrave apreensatildeo de coisas sensiacuteveis
enquanto as Formas satildeo objetos de apreensatildeo exclusivamente inteligiacutevel Sendo
assim conclui Soacutecrates se conhecemos as Formas poreacutem natildeo podemos tecirc-las
conhecido em vida entatildeo necessariamente conhecemos estas entidades em um
momento anterior ao nosso nascimento quando a alma pocircde contemplaacute-las sem o
intermeacutedio dos oacutergatildeos corpoacutereos de apreensatildeo sensiacutevel
Como corretamente notado pelos comentadores esta demonstraccedilatildeo possui
algumas assunccedilotildees questionaacuteveis Por exemplo Soacutecrates assume sem
argumentaccedilatildeo o fato de que noacutes conhecemos as Formas (74a9-b3) assim como
move-se inadvertidamente da afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos conhecer as Formas
por meio dos oacutergatildeos de apreensatildeo sensiacutevel para a afirmaccedilatildeo de que natildeo podemos
tecirc-las conhecido em vida Por fim Soacutecrates desconsidera completamente a
possibilidade de natildeo havermos adquirido o conhecimento das Formas mas
simplesmente possuirmos este conhecimento em noacutes como algo inerente a nossa
condiccedilatildeo humana ou algo que nos eacute conferido no momento de nosso nascimento
(cf Bostock 1983 p60-63)
Para os fins de nossa presente exposiccedilatildeo contudo natildeo nos ateremos a
estas questotildees pois nosso objetivo especiacutefico eacute entender as diferenccedilas traccediladas
por Soacutecrates entre a constituiccedilatildeo ontoloacutegica das Formas e a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das coisas empiacutericas Isto eacute entender o que torna as Formas em si
mesmas entidades essencialmente distintas das coisas que encontramos no mundo
145
de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e
74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates
pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras
Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos
sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos
objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode
ser esquematizado da seguinte maneira
1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada
propriedade P
2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P
3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a
mesma coisa
Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem
causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto
textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo
conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual
propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo
pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do
que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute
muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa
depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala
Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias
ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo
146
Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)
Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a
existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da
Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo
afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de
que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais
a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo
ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto
certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na
conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes
de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural
devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados
para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )
enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)
Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as
ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo
tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo
parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo
Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com
tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf
Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como
ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p
134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que
chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor
exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente
147
pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato
devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que
dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo
assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por
Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15
A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os
problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua
grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura
1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo
verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os
mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais
para outra pessoardquo
2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo
relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila
estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira
iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes
iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo
3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste
caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora
permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um
aspecto e desiguais em outro aspectordquo
As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo
com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada
pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da
Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura
parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o
mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para
um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a
15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees
estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
145
de nossa experiecircncia sensiacutevel Para este objetivo a pequena seccedilatildeo entre 74a9 e
74c6 eacute extremamente informativa Pois neste passo do argumento Soacutecrates
pretende demonstrar que a Forma da Igualdade e por extensatildeo diversas outras
Formas (cf76c10-d5) natildeo podem ser confundidas com seus homocircnimos
sensiacuteveis A estrateacutegia adotada consiste em apresentar uma propriedade dos
objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo podem possuir O argumento socraacutetico pode
ser esquematizado da seguinte maneira
1) Todos os objetos iguais sensiacuteveis possuem uma determinada
propriedade P
2) A Forma da Igualdade natildeo possui a propriedade P
3) Logo a Forma da Igualdade e os objetos sensiacuteveis iguais natildeo satildeo a
mesma coisa
Apesar de sua forma loacutegica extremamente simples este argumento tem
causado muito debate entre os comentadores por questotildees de natureza tanto
textual quanto conceitual A primeira destas questotildees diz respeito ao conteuacutedo
conceitual da variaacutevel P em nossa reformulaccedilatildeo do argumento isto eacute qual
propriedade as coisas sensiacuteveis iguais possuem que a Forma da Igualdade natildeo
pode possuir Como veremos natildeo haacute consenso entre os comentadores acerca do
que seria esta caracteriacutestica capaz de diferenciar as Formas das coisas sensiacuteveis Eacute
muito claro contudo que uma soluccedilatildeo correta para esta questatildeo interpretativa
depende de uma leitura precisa do texto do diaacutelogo Vejamos entatildeo o que fala
Soacutecrates neste momento de sua conversa com Simmias
ldquoDizemos que haacute algo que eacute o Igual Natildeo quero dizer um pedaccedilo de pau igual a outro ou uma pedra igual a outra nem nada deste tipo mas outra coisa para aleacutem dessas o Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον ) dizemos ser algo ou nada De fato dizemos ser alguma coisa afirmou Simmias por Zeus (hellip) Pois considera da seguinte maneira pedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais a uns e a outros natildeo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ) Certamente Entatildeo alguma vez jaacute te pareceu serem ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) desiguais ou a Igualdade ser [uma] desigualdade De maneira alguma Soacutecrates Logo estes iguais natildeo satildeo o mesmo que o Igual ele mesmo Me parece evidente que natildeo Soacutecratesrdquo
146
Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)
Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a
existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da
Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo
afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de
que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais
a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo
ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto
certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na
conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes
de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural
devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados
para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )
enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)
Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as
ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo
tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo
parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo
Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com
tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf
Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como
ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p
134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que
chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor
exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente
147
pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato
devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que
dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo
assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por
Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15
A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os
problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua
grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura
1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo
verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os
mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais
para outra pessoardquo
2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo
relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila
estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira
iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes
iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo
3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste
caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora
permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um
aspecto e desiguais em outro aspectordquo
As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo
com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada
pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da
Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura
parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o
mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para
um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a
15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees
estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
146
Σκόπει δή ἦ δ ὅς εἰ ταῦτα οὕτως ἔχει φαmicroέν πού τι εἶναι ἴσον οὐ ξύλον λέγω ξύλῳ οὐδὲ λίθον λίθῳ οὐδ ἄλλο τῶν τοιούτων οὐδέν ἀλλὰ παρὰ ταῦτα πάντα ἕτερόν τι αὐτὸ τὸ ἴσον φῶmicroέν τι εἶναι ἢ microηδέν Φῶmicroεν microέντοι νὴ ∆ί ἔφη ὁ Σιmicromicroίας θαυmicroαστῶς γε (hellip) σκόπει δὲ καὶ τῇδε ἆρ οὐ λίθοι microὲν ἴσοι καὶ ξύλα ἐνίοτε ταὐτὰ ὄντα τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δοὔ Πάνυ microὲν οὖν Τί δέ αὐτὰ τὰ ἴσα ἔστιν ὅτε ἄνισά σοι ἐφάνη ἢ ἡ ἰσότης ἀνισότης Οὐδεπώποτέ γε ὦ Σώκρατες Οὐ ταὐτὸν ἄρα ἐστίν ἦ δ ὅς ταῦτά τε τὰ ἴσα καὶ αὐτὸ τὸ ἴσον Οὐδαmicroῶς microοι φαίνεται ὦ Σώκρατες (74a9-c6)
Novamente Soacutecrates comeccedila perguntando a Simmias se ele reconhece a
existecircncia da Forma da Igualdade E tal como havia feito com relaccedilatildeo agrave Forma da
Justiccedila em 65d4 Simmias responde enfaticamente que sim Soacutecrates entatildeo
afirma que a diferenccedila entre o Igual ele mesmo e as coisas iguais estaacute no fato de
que coisas sensiacuteveis iguais como pedaccedilos de madeira ou pedras ldquoparecem iguais
a uns e a outros natildeordquo (τῷ microὲν ἴσα φαίνεται τῷ δ οὔ) enquanto o mesmo natildeo
ocorre com a Igualdade ou ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) Um aspecto
certamente intrigante desta passagem eacute o uso da expressatildeo plural αὐτὰ τὰ ἴσα na
conclusatildeo do argumento onde esperariacuteamos encontrar αὐτὸ τὸ ἴσον Poreacutem antes
de investigarmos o conteuacutedo desta expressatildeo curiosamente escrita no plural
devemos nos ater ao uso dos pronomes indefinidos τῷ microὲν τῷ δ empregados
para expressar o fato de que paus e pedras parecem iguais a uns (τῷ microὲν )
enquanto a outros natildeo (τῷ δ οὔ)
Na realidade os pronomes τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo figuram em todas as
ediccedilotildees do Feacutedon e alguns textos apresentam os adveacuterbios de tempo
tote men tote ou) em seu lugar Neste uacuteltimo caso a traduccedilatildeo correta seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo
parecem agraves vezes iguais num momento e desiguais noutro momentordquo
Apesar de plenamente compreensiacutevel a versatildeo com
tote men tote ou) possui menor apoio na tradiccedilatildeo de manuscritos antigos (cf
Roochnick 2002 p 138) aleacutem de tornar a palavra ἐνίοτε (por noacutes traduzida como
ldquoagraves vezesrdquo) completamente supeacuterflua conforme observado por Mill (1957 p
134) Ainda uma terceira criacutetica a esta opccedilatildeo textual eacute realizada por Bostock que
chama atenccedilatildeo para o fato de pedras natildeo serem o tipo de coisa que melhor
exemplifica as transformaccedilotildees decorrentes da passagem do tempo Certamente
147
pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato
devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que
dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo
assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por
Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15
A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os
problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua
grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura
1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo
verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os
mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais
para outra pessoardquo
2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo
relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila
estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira
iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes
iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo
3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste
caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora
permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um
aspecto e desiguais em outro aspectordquo
As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo
com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada
pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da
Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura
parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o
mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para
um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a
15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees
estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
147
pedras sofrem a accedilatildeo do tempo mudando por exemplo de tamanho e formato
devido agrave erosatildeo No entanto esta mudanccedila eacute tatildeo lenta e imperceptiacutevel que
dificilmente usariacuteamos pedras para ilustrar este tipo de transformaccedilatildeo Sendo
assim podemos descartar esta opccedilatildeo de leitura adotando o texto estabelecido por
Burnet e seguido pela maioria dos comentadores modernos15
A opccedilatildeo por τῷ microὲν τῷ δ οὔ natildeo parece contudo resolver todos os
problemas textuais Afinal adotando estas palavras como o texto correto a liacutengua
grega ainda nos coloca frente agraves seguintes possibilidades de leitura
1) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo masculinos e estatildeo regidos pelo
verbo φαίνεται Neste caso a traduccedilatildeo para a sentenccedila seria
ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora permaneccedilam os
mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais para uma pessoa e desiguais
para outra pessoardquo
2) Os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo do gecircnero neutro e estatildeo
relacionados ao predicado ἴσα Neste caso o sentido da sentenccedila
estaria expresso pela traduccedilatildeo ldquopedras ou pedaccedilos de madeira
iguais embora permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes
iguais a uma coisa e desiguais a outra coisardquo
3) Os pronomes satildeo neutros poreacutem possuem forccedila adverbial Neste
caso traduziriacuteamos ldquopedras ou pedaccedilos de madeira iguais embora
permaneccedilam os mesmos natildeo parecem agraves vezes iguais em um
aspecto e desiguais em outro aspectordquo
As trecircs opccedilotildees de leitura possuem vantagens e desvantagens De acordo
com 1) um par de pedaccedilos de madeira que pareccedilam iguais para uma determinada
pessoa agraves vezes pareceratildeo desiguais para outra pessoa enquanto a Forma da
Igualdade jamais pareceraacute desigual Embora textualmente aceitaacutevel esta leitura
parece conter problemas conceituais Duas madeiras que possuam exatamente o
mesmo comprimento digamos 54 cm podem certamente parecer desiguais para
um observador distante ou sujeito a alguma ilusatildeo de oacuteptica Contudo a
15 Diversas ediccedilotildees do seacuteculo XIX apresentam tote men tote ou) Aparentemente estas ediccedilotildees
estatildeo seguindo Stallbaum (1822) Recentemente encontramos a opccedilatildeo por tote men tote ou) no texto estabelecido por P Vicaire para Belles Lettres (1983) e seguido por Dixsaut (1991)
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
148
desigualdade percebida por este observador natildeo parece ser uma propriedade dos
pedaccedilos de madeira que considerados neles mesmos possuem ambos 54cm A
desigualdade em questatildeo eacute simplesmente o resultado do erro de julgamento de um
indiviacuteduo e natildeo uma propriedade dos pedaccedilos de madeira
Entendida desta maneira portanto a passagem natildeo fornece um bom
exemplo para Soacutecrates uma vez que ele pretende apresentar uma caracteriacutestica
inerente agraves coisas sensiacuteveis que as Formas natildeo compartilham Apesar disto natildeo
podemos descartar a possibilidade de que Soacutecrates esteja chamando a atenccedilatildeo
justamente para o fato de que os objetos sensiacuteveis satildeo capazes de gerar percepccedilotildees
enganosas e contraditoacuterias enquanto as Formas natildeo podem ser fonte de enganos
De fato esta parece ser a interpretaccedilatildeo de Archer-Hind para quem ldquoa existecircncia
de um conflito de opiniatildeo eacute suficiente para estabelecer a diferenccedila entre os
particulares e a ideiardquo (Archer-Hind 1883 p80)16
A segunda opccedilatildeo de leitura eacute igualmente aceitaacutevel de um ponto de vista
gramatical Segundo 2) natildeo estamos mais tratando de pares de paus e pedras mas
de um uacutenico objeto que pode parecer igual a uma determinada coisa e desigual a
outra coisa Assim um pedaccedilo de madeira de 54 cm seraacute igual a outro de mesmo
comprimento poreacutem desigual a uma terceira peccedila de madeira cujo comprimento eacute
78 cm A vantagem desta interpretaccedilatildeo eacute que estariacuteamos falando de uma
caracteriacutestica inerente agraves coisas sensiacuteveis e natildeo da experiecircncia dos indiviacuteduos que
as percebem Um pedaccedilo de madeira x eacute ele mesmo igual ao pedaccedilo de madeira
y poreacutem maior que w e menor que z Uma possiacutevel dificuldade para esta leitura
encontra-se no fato de que presumivelmente um pedaccedilo de madeira seraacute sempre
igual a certos objetos e desigual a outros o que torna estranho o uso da palavra
ἐνίοτε (agraves vezes)
De acordo com a terceira leitura por fim as maneiras em que um pedaccedilo
de pau pode se igualar ou se diferenciar de outros pedaccedilos de pau permanecem
indefinidas A leitura adverbial para os pronomes permite que entendamos a
sentenccedila de Soacutecrates como a afirmaccedilatildeo de que paus e pedras iguais em tamanho
podem ser desiguais em peso ou densidade Contudo aleacutem desta opccedilatildeo natildeo
prevista pelas leituras 1) e 2) a leitura adverbial deixa aberta ainda a
16 A mesma posiccedilatildeo eacute defendida por Wagner ldquoNa medida em que eacute percebida pelos sentidos a
igualdade natildeo eacute infaliacutevel ou imutaacutevel pois os homens estatildeo aptos a discordar sobre ela mas a igualdade abstrata (αὐτὸ τὸ ἴσον) permanece sempre o mesmordquo (Wagner 1885 p 124)
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
149
possibilidade de que Soacutecrates esteja pensando em algum dos exemplos citados
anteriormente Pois como afirma Haynes na leitura adverbial ldquoos aspectos em
que os paus e pedras podem ser iguais ou desiguais satildeo indefinidosrdquo (Haynes
1964 p21)
A uacutenica desvantagem desta proposta estaacute no fato de que ela parece ser
gramaticalmente questionaacutevel A leitura adverbial para os pronomes natildeo figura no
Liddell Scott como um dos usos registrados de τῷ e conforme observa Bostock
caso o sentido desejado por Platatildeo fosse ldquoem um aspecto hellip em outro aspectordquo
certamente esperariacuteamos encontrar t$= men t$= de (Bostock 1986 p74) A
despeito disso Haynes defende a correccedilatildeo gramatical desta proposta afirmando
ser ldquoperfeitamente justificaacutevel entender τῷ como um artigo indefinido ao inveacutes de
definidordquo o que tornaria a questatildeo do gecircnero (masculino feminino ou neutro)
irrelevante (cf Haynes 1964 p21)
Temos portanto trecircs opccedilotildees de leitura aparentemente justificaacuteveis para a
passagem Cada uma delas implica em uma compreensatildeo distinta do argumento
De acordo com a primeira proposta Soacutecrates estaacute considerando a diferenccedila entre
Formas e objeto sensiacuteveis de um ponto de vista epistecircmico Somente os objetos
sensiacuteveis podem permanecendo o mesmo gerar percepccedilotildees contraditoacuterias Em
contraposiccedilatildeo a isto as Formas nunca apareceriam como algo distinto daquilo que
elas realmente satildeo As outras duas propostas por sua vez tratam de caracteriacutesticas
proacuteprias das coisas Segundo estas interpretaccedilotildees objetos sensiacuteveis estatildeo sujeitos a
predicaccedilatildeo de opostos porque realmente satildeo (e natildeo apenas aparecem como no
caso anterior) iguais e desiguais quando comparados com objetos distintos ou
quando aspectos distintos satildeo levados em consideraccedilatildeo
Como vimos na seccedilatildeo anterior o diaacutelogo Banquete (211a2-5) cita todas
estas opccedilotildees como maneiras vaacutelidas de diferenciaccedilatildeo entre o modo de ser das
coisas belas e o modo de ser da Forma do Belo inclusive a leitura temporal
(envolvendo o adveacuterbio tote) que descartamos por questotildees de estabelecimento
de texto Sendo assim devemos considerar todas estas opccedilotildees como
conceitualmente viaacuteveis pois todas elas possuem o apoio textual de uma
passagem em que Soacutecrates estaacute argumentando com a mesma finalidade de
demonstrar as diferenccedilas entre Formas e objetos sensiacuteveis
Frente a tudo isso torna-se muito difiacutecil optarmos por uma leitura em
detrimento das outras e devemos considerar que as trecircs propostas oferecem uma
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
150
interpretaccedilatildeo aceitaacutevel para a passagem De fato podemos ir aleacutem e considerar
que as trecircs leituras possiacuteveis para os pronomes τῷ microὲν τῷ δ satildeo desde sempre
simultaneamente intencionadas por Platatildeo Esta opccedilatildeo de leitura eacute defendida por
Roochnick para quem ldquoa ambiguidade de gecircnero e portanto de referecircncia dos
pronomes eacute inteiramente deliberada por Platatildeordquo (Roochnick 2002 p140) Em
nossa traduccedilatildeo a opccedilatildeo por ldquoiguais a uns e a outros natildeordquo pretende expressar esta
ambiguidade ao natildeo especificar em que aspecto ou relaccedilatildeo as pedras e pedaccedilos de
madeira sensiacuteveis satildeo iguais e desiguais
Haacute portanto vaacuterias maneiras em que os objetos sensiacuteveis satildeo iguais e
desiguais Cada uma destas maneiras reflete um tipo de relaccedilatildeo que os objetos
sensiacuteveis inexoravelmente mantecircm com outras coisas Pares de objetos sensiacuteveis
podem parecer iguais para certas pessoas e para outras pessoas natildeo Do mesmo
modo podem ser iguais a certos objetos poreacutem ser maiores ou menores que
outros objetos Podem ser iguais em comprimento poreacutem desiguais em peso E
podem por fim ser iguais hoje poreacutem se tornar desiguais amanhatilde Todas estas
opccedilotildees satildeo previstas por Soacutecrates e estatildeo subjacentes ao emprego do pronome τῷ
cuja indeterminaccedilatildeo de gecircnero reflete em um niacutevel linguiacutestico as
indeterminaccedilotildees ontoloacutegicas destas entidades Como explica Roochnik ldquotanto a
proacutepria linguagem de 74b8-9 (especificamente os pronomes) quanto aquilo que a
linguagem pretende comunicar (os vaacuterios tipos de desigualdade sofrida pelos
sensiacuteveis iguais) satildeo indefinidasrdquo (Roochnick 2002 p140)
O uso enfaacutetico dos pronomes relativos torna evidente a extensatildeo da criacutetica
de Vlastos (1973) Nesta passagem do Feacutedon a maneira relacional e incompleta
com que os objetos sensiacuteveis recebem seus predicados eacute apresentada como uma
caracteriacutestica essencial destas entidades Todo objeto sensiacutevel estaacute submetidos agrave
predicaccedilatildeo de opostos (belo e feio igual e desigual justo e injusto) pois se
encontra inevitavelmente inserido em uma complexa rede de relaccedilotildees de tempo
(τοτὲ microέν τοτὲ δὲ) de comparaccedilatildeo e remissatildeo a outros objetos (πρὸς microὲν πρὸς
δὲ) de diferenccedilas aspectuais (τῇ microὲν τῇ δὲ) e de perspectiva (τισὶ microὲν τισὶ δὲ)
A natureza relacional dos objetos sensiacuteveis eacute portanto o proacuteprio criteacuterio
de distinccedilatildeo entre Formas e coisas Pois em oposiccedilatildeo agrave maneira relacional que os
objetos sensiacuteveis recebem seus predicados a Forma da Igualdade eacute sempre e de
maneira absoluta aquilo que ela eacute Coerentemente a unidade aspectual das
Formas eacute tambeacutem representada pelo uso de pronomes Poreacutem neste caso eacute
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
151
utilizado o pronome reflexivo (ou de intensidade) αὐτός que encontramos na
designaccedilatildeo usual das Formas como αὐτὸ τὸ F e na foacutermula αὐτὸ καθ αὑτὸ
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
152
34 Formas objetos sensiacuteveis e propriedades imanentes
Tendo esclarecido o uso dos pronomes nesta passagem do Feacutedon
podemos voltar ao problema relativo ao emprego da expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que
mencionamos anteriormente Ao final da descriccedilatildeo de como as coisas sensiacuteveis
parecem tanto iguais quanto desiguais esperariacuteamos que Soacutecrates concluiacutesse seu
argumento com a afirmaccedilatildeo de que a Forma da Igualdade (αὐτὸ τὸ ἴσον) nunca
parece desigual Pois deste modo ficaria demonstrado que a Forma da Igualdade
natildeo estaacute sujeita agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza todas as coisas iguais da
realidade sensiacutevel Contudo natildeo eacute isso que encontramos no texto ou ao menos
natildeo eacute apenas isso que encontramos Surpreendentemente em 74c1 consta a
afirmaccedilatildeo de que os ldquoiguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) nunca pareceram
desiguais ou a Igualdade desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)
Como podemos perceber esta afirmaccedilatildeo natildeo apresenta prima facie a
premissa necessaacuteria para Soacutecrates chegar agrave conclusatildeo de que a Forma da
Igualdade natildeo eacute idecircntica aos muacuteltiplos particulares sensiacuteveis Entendendo a
sentenccedila 74c1 literalmente o argumento apresentado por Soacutecrates possui a
seguinte forma loacutegica
1) Todos os As (objetos iguais sensiacuteveis) possuem o atributo P
(ser desigual)
2) Contudo os Bs (iguais eles mesmos) natildeo possuem o
atributo P
3) Nem C (a Igualdade) eacute D (desigualdade)
4) Logo C17 natildeo eacute idecircntico a nenhum A
Eacute muito claro que apresentado desta maneira o argumento eacute
escandalosamente falacioso No entanto Simmias concorda enfaticamente com a
conclusatildeo socraacutetica de que a Forma da Igualdade natildeo eacute o mesmo que os iguais
sensiacuteveis Sendo assim somos levados a concluir que alguma anaacutelise deve ser
17 Para sermos precisos deveriacuteamos usar outra variaacutevel neste ponto do argumento pois Soacutecrates
fala do ldquoIgual ele mesmordquo (αὐτὸ τὸ ἴσον) em sua conclusatildeo enquanto fala da ldquoIgualdaderdquo (ἡ ἰσότης) na premissa 3) Contudo eacute muito claro que as expressotildees ldquoo Igual ele mesmordquo e ldquoa
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
153
apresentada para 74c1 de modo a tornar o argumento socraacutetico vaacutelido ou pelo
menos minimamente compreensiacutevel
Com um pouco de boa vontade eacute possiacutevel entender que a premissa
principal para conclusatildeo de que as Formas e as coisas satildeo entidades
ontologicamente distintas eacute fornecida por 3) onde Soacutecrates afirma que a
Igualdade nunca pareceraacute uma desigualdade Para isto basta aceitarmos a leitura
de ἡ ἰσότης ἀνισότης como ldquoa Igualdade [jamais pareceu] um caso de
desigualdaderdquo o que natildeo parece ser nenhum absurdo (cf Bostock 1987 p83-85)
(cfGallop 1975 p124-125) Deste modo teraacute sido apresentada uma propriedade
P (ser-desigual) possuiacuteda pelos objetos iguais sensiacuteveis que a Forma da Igualdade
natildeo possui
Admitindo esta leitura para 3) a questatildeo que precisamos resolver para
decifrarmos o sentido da sentenccedila 74c1 passa a limitar-se agrave referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα Caso esta expressatildeo seja apenas mais um modo de se
referir agrave Forma da Igualdade nosso argumento seraacute claramente redundante pois
tanto 3) quanto 4) estaratildeo afirmando rigorosamente a mesma coisa Uma
redundacircncia contudo natildeo eacute suficiente para invalidar um argumento e
consequentemente esta parece ser a estrateacutegia mais adotada pelos comentadores
Os problemas aparecem quando tentamos explicar por que uma expressatildeo
plural pode ser usada para se referir agrave Forma da Igualdade Geach (1965 p269-
270) afirma que o plural deve-se ao fato de que a Forma da Igualdade na medida
em que serve de modelo e paradigma de perfeiccedilatildeo da igualdade sensiacutevel precisa
ser constituiacuteda por duas entidades perfeitamente iguais No entanto esta suposiccedilatildeo
se mostra claramente errocircnea quando consideramos que aceitando a proposta de
Geach estariacuteamos atribuindo ao par de Formas da Igualdade a mesma predicaccedilatildeo
de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis o que arruinaria por completo o
argumento socraacutetico Isto porque se satildeo um par de Formas (e por isso podem ser
ditas no plural) entatildeo estas Formas satildeo desiguais ao menos numericamente caso
contraacuterio seriam apenas uma Forma (e deveriam ser nomeadas no singular)
Uma proposta aparentemente mais promissora consiste em considerar
αὐτὰ τὰ ἴσα como uma expressatildeo apenas superficialmente plural e afirmar que a
despeito de sua foma gramatical a locuccedilatildeo se refere a uma entidade singular a
Igualdaderdquo podem ser usadas indiferenciadamente para se referir agrave Forma do Igual
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
154
proacutepria Forma da Igualdade Nesta linha de raciociacutenio Vlastos argumenta que
αὐτὰ τὰ ἴσα eacute um exemplo do ldquouso da forma plural do adjetivo (neutro) para
significar o abstrato correspondente - ie equivalente grosso modo a (a) o
substantivo abstrato e (b) a mesma forma adjetiva no singular (Vlatos 1965
p289) Em suporte a sua hipoacutetese Vlastos cita passagens em que Platatildeo usa
alternadamente o plural e o singular dos adjetivos neutros dikaioj e a)dikoj
(Goacuterg 454e-455a) e dikaioj kaloj e a)gaqoj (Rep 520C5-6 538c6-7)
Sem entrarmos na discussatildeo detalhada de cada uma destas passagens eacute
importante notar que em todas elas o adjetivo neutro plural pode estar
perfeitamente designando o conjunto de coisas caracterizadas pelo adjetivo em
questatildeo isto eacute as coisas justas belas ou boas e natildeo a Forma do Justo do Belo e
do Bom Conforme observado por Owen os casos apontados por Vlastos ldquosatildeo
naturalmente explicados como relacionados a questotildees do tipo ldquoQue coisas satildeo
belasrdquo (Owen 1968 p114 n2) e natildeo designam de modo claro as Formas
correspondentes18
De fato Vlastos parece bem sucedido em demonstrar a equivalecircncia entre
expressotildees do tipo ta + adjetivo plural e expressotildees do tipo to + adjetivo singular
No entanto a equivalecircncia necessaacuteria para que 74c1 torne o argumento socraacutetico
vaacutelido deve ser estabelecida entre as expressotildees αὐτὰ τὰ + adjetivo plural e αὐτὸ
τὸ + adjetivo singular Pois somente neste caso poderiacuteamos afirmar que a
locuccedilatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα estaacute certamente se referindo agrave Forma da Igualdade
Uma segunda linha interpretativa consiste em considerar que a expressatildeo
αὐτὰ τὰ ἴσα natildeo se refere agrave Forma da Igualdade mas a alguma classe especial de
objetos Seguindo esta estrateacutegia Cornford (1939) e Ross (1951) afirmam que a
locuccedilatildeo designa uma pluralidade de coisas perfeitamente iguais ou objetos
sensiacuteveis considerados somente em sua igualdade Segundo esta interpretaccedilatildeo o
pronome αὐτός estaria sendo usado para significar ldquosomenterdquo e o sentido de αὐτὰ
18 Owen apresenta uma interpretaccedilatildeo para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα que tambeacutem a torna um novo
nome para a Forma da Igualdade Segundo ele o uso do plural deve-se a uma espeacutecie de atraccedilatildeo sintaacutetica do adjetivo pelos plurais anteriormente usados Platatildeo ele afirma ldquousa o predicado igual fora de contexto em qualquer forma que ele tenha assumido singular ou pluralrdquo (Owen 1968 p115) Claramente o problema desta interpretaccedilatildeo estaacute no fato de que ela atribui a Platatildeo um deslize ou mesmo um engano consideraacutevel em uma passagem tatildeo significativa e tatildeo carregada de nuances terminoloacutegicos Bostock (1983 p81-83) adota este mesmo tipo de interpretaccedilatildeo poreacutem acrescenta a possibilidade da expresssatildeo ter sido vertida no plural por algum copista que tenha considerado gramaticalmente mais adequado deixar todas as expressotildees proacuteximas no plural
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
155
τὰ ἴσα poderia ser traduzido como ldquocoisas que satildeo apenas iguais e nada maisrdquo (cf
Cornford 1939 p 71-70 75 ) (cf Ross 1951 p22)
Esta interpretaccedilatildeo se mostra inaceitaacutevel contudo quando consideramos
que ela torna o argumento socraacutetico claramente contraditoacuterio Afinal a premissa
inicial do argumento apresentado por Soacutecrates afirma que todos os objetos iguais
sensiacuteveis satildeo tambeacutem desiguais enquanto 74c1 afirma que ldquoos iguais eles
mesmosrdquo nunca parecem desiguais Sendo assim natildeo podemos admitir que a
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα faccedila referecircncia a qualquer grupo de objetos sensiacuteveis sob
pena de destruirmos completamente a validade da argumentaccedilatildeo socraacutetica
Uma interpretaccedilatildeo que natildeo resulta em um argumento contraditoacuterio ao
mesmo tempo em que natildeo atribui uma referecircncia singular para uma expressatildeo
plural consiste em afirmar que αὐτὰ τὰ ἴσα diz respeito aos chamados
ldquointermediaacuterios matemaacuteticosrdquo Burnet (1911 p74) adota esta posiccedilatildeo e explica
citando o primeiro axioma de Euclides que os dois acircngulos da base de um
triacircngulo isoacutesceles satildeo exemplos de αὐτὰ τὰ ἴσα Poreacutem o problema desta
interpretaccedilatildeo eacute que estamos incluindo uma premissa completamente irrelevante ao
argumento Em momento algum Soacutecrates havia mencionado entidades
matemaacuteticas e toda discussatildeo gira entorno da diferenccedila entre Formas e coisas A
dissimulada inclusatildeo deste tipo de entidade seria completamente inexplicada e
desnecessaacuteria Aleacutem disso a proacutepria noccedilatildeo de que Platatildeo admitiria um domiacutenio
proacuteprio para entidades matemaacuteticas eacute amplamente controversa e caso este tipo de
doutrina possa ser encontrado em algum lugar da obra platocircnica certamente natildeo
estaacute presente em nenhuma passagem do Feacutedon19
Todos os problemas de interpretaccedilatildeo acima mencionados podem ser
resolvidos caso encontremos no proacuteprio Feacutedon um referente para expressatildeo αὐτὰ
τὰ ἴσα que natildeo seja uma entidade singular e portanto respeite a forma gramatical
da expressatildeo ao mesmo tempo em que mostre-se minimamente relevante para
discussatildeo natildeo tornando o argumento socraacutetico contraditoacuterio ou falacioso Como
notado por Bluck (1959) e Wedin (1977) o candidato ideal para referecircncia da
expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα pode ser encontrado em 102-103 onde Soacutecrates esclarece a
19 Mesmo Hackforth que adota esta explicaccedilatildeo para o uso de αὐτὰ τὰ ἴσα admite ser ldquobastante
improvaacutevel que Platatildeo jaacute tenha formulado a doutrina de que todos os objetos matemaacuteticos satildeo intermediaacuterios entre Formas e sensiacuteveisrdquo (Hackforth 1972 p69 n3) A hipoacutetese de que Platatildeo teria atribuiacutedo um estatuto ontoloacutegico proacuteprio aos objetos matemaacuteticos deriva das observaccedilotildees de Aristoacuteteles em Met 987b14
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
156
diferenccedila entre a ldquoGrandeza ela mesmardquo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) e a ldquograndeza em noacutesrdquo
(τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος)
Soacutecrates novamente inicia sua explicaccedilatildeo dirigindo uma pergunta a Cebes
ldquoEntatildeo Cebes se as coisas satildeo assim como dizemos quando tu afirmas que Simmias eacute maior que Soacutecrates e menor que Feacutedon isto natildeo significa que haacute em Simmias estas duas coisas a grandeza e a pequenez De minha parte sim Mas entatildeo concordas que o enunciado Simmias ultrapassa Soacutecrates em altura natildeo expressa em palavras aquilo que eacute a verdade Pois certamente natildeo eacute por natureza que Simmias o ultrapassa isto eacute por ser Simmias mas pela grandeza que acontece de possuir Da mesma maneira ele ultrapassa Soacutecrates natildeo porque Soacutecrates eacute Soacutecrates mas pela pequenez que Soacutecrates possui em relaccedilatildeo agrave sua grandeza Eacute verdaderdquo Εἰ δή ἦ δ ὅς ταῦτα οὕτως λέγεις ἆρ οὐχ ὅταν Σιmicromicroίαν Σωκράτους φῇς microείζω εἶναι Φαίδωνος δὲ ἐλάττω λέγεις τότ εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ ἀmicroφότερα καὶ microέγεθος καὶ σmicroικρότητα Ἔγωγε Ἀλλὰ γάρ ἦ δ ὅς ὁmicroολογεῖς τὸ τὸν Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν Σωκράτους οὐχ ὡς τοῖς ῥήmicroασι λέγεται οὕτω καὶ τὸ ἀληθὲς ἔχειν οὐ γάρ που πεφυκέναι Σιmicromicroίαν ὑπερέχειν τούτῳ τῷ Σιmicromicroίαν εἶναι ἀλλὰ τῷ microεγέθει ὃ τυγχάνει ἔχων οὐδ αὖ Σωκράτους ὑπερέχειν ὅτι Σωκράτης ὁ Σωκράτης ἐστίν ἀλλ ὅτι σmicroικρότητα ἔχει ὁ Σωκράτης πρὸς τὸ ἐκείνου microέγεθος Ἀληθῆ (102b3c5)
De acordo com esta explicaccedilatildeo os objetos sensiacuteveis possuem (ἔχειν) certas
propriedades em funccedilatildeo das relaccedilotildees que mantecircm entre si Simmias possui
grandeza com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) pequenez em Soacutecrates e este por sua vez possui
pequenez com relaccedilatildeo agrave (πρὸς) grandeza em Simmias Como Simmias e
presumivelmente todo e qualquer objeto sensiacutevel eacute simultaneamente maior que
determinadas coisas e menor que outras ele possui em si tanto a propriedade da
grandeza quanto da pequenez
Na fala imediatamente seguinte Soacutecrates atribui de maneira inequiacutevoca
um estatuto ontoloacutegico especiacutefico a estas propriedades ao comparaacute-las agraves Formas
ldquoPois me parece que natildeo apenas o Grande ele mesmo jamais consentitira em ser ao mesmo tempo grande e pequeno mas tambeacutem o grande em noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος ) jamais aceitaria o pequeno ou consentiria em ser ultrapassado Das duas coisas uma ou ele foge e se retira quando seu contraacuterio o pequeno avanccedila sobre ele ou perece completamente devido agrave sua chegada Mas o grande em noacutes natildeo consente em ser outro do que ele era suportando e recebendo a pequenezrdquo ἐmicroοὶ γὰρ φαίνεται οὐ microόνον αὐτὸ τὸ microέγεθος οὐδέποτ ἐθέλειν ἅmicroα microέγα καὶ σmicroικρὸν εἶναι ἀλλὰ καὶ τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος οὐδέποτε προσδέχεσθαι τὸ σmicroικρὸν οὐδ ἐθέλειν ὑπερέχεσθαι ἀλλὰ δυοῖν τὸ ἕτερον ἢ φεύγειν καὶ ὑπεκχωρεῖν ὅταν
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
157
αὐτῷ προσίῃ τὸ ἐναντίον τὸ σmicroικρόν ἢ προσελθόντος ἐκείνου ἀπολωλέναι ὑποmicroένον δὲ καὶ δεξάmicroενον τὴν σmicroικρότητα οὐκ ἐθέλειν εἶναι ἕτερον ἢ ὅπερ ἦν (102d6-e3)
A princiacutepio poderiacuteamos achar que a afirmaccedilatildeo de que Simmias possui a
grandeza e a pequenez eacute apenas mais uma maneira de Soacutecrates expressar o fato
teoacuterico de que Simmias participa da Forma do Grande e do Pequeno Soacutecrates
estaria apenas apresentando sua conhecida teoria de que as coisas sensiacuteveis
adquirem suas propriedades por meio da participaccedilatildeo nas Formas sem que
qualquer informaccedilatildeo adicional acerca desta relaccedilatildeo estivesse sendo apresentada
Entendida assim a explicaccedilatildeo de Soacutecrates natildeo menciona um novo elemento e a
expressatildeo ldquograndeza-em-Simmiasrdquo seria apenas um modo abreviado de se referir
ao fato de que Simmias participa na Grandeza (cf Fine 2003 p303-309) e (cf
Dancy 1991 p14-18)
Contudo esta interpretaccedilatildeo natildeo pode ser mantida frente agrave afirmaccedilatildeo de
que ldquonatildeo apenas (οὐ microόνον) o Grande ele mesmo (αὐτὸ τὸ microέγεθος) mas tambeacutem
(ἀλλὰ καὶ) o grande-em-noacutes (τὸ ἐν ἡmicroῖν microέγεθος) jamais seriam pequenosrdquo Nesta
oraccedilatildeo (102d6-8) Soacutecrates estaacute claramente mencionando dois tipos distintos de
entidades por um lado temos as Formas e por outro lado temos as propriedades
em noacutes20 Ambas estas entidades tecircm em comum o fato de que estatildeo imunes agrave
predicaccedilatildeo de seu oposto e sendo assim se diferenciam radicalmente de
particulares sensiacuteveis como Simmias e Soacutecrates que como sabemos estatildeo
perpetuamente sujeitos a este tipo de predicaccedilatildeo Podemos concluir portanto que
a passagem em questatildeo chama atenccedilatildeo para um elemento da Teoria da Ideias que
raramente vemos Soacutecrates mencionar Trata-se da propriedade que um objeto
sensiacutevel adquire devido ao fato de participar em uma Forma
Soacutecrates natildeo nos fornece muitas informaccedilotildees sobre o estatuto ontoloacutegico
destas entidades Contudo sabemos que estas propriedades se encontram
localizadas nos objetos sensiacuteveis (em Simmias εἶναι ἐν τῷ Σιmicromicroίᾳ em noacutes ἐν
ἡmicroῖν) e por este fato podemos chamaacute-las imanentes Aleacutem disso eacute bastante
evidente que estamos lidando com entidades plurais pois cada objeto maior ou
20 O fato de que Soacutecrates nesta passagem reconhece um tipo de entidade distinto das Formas
com estatuto ontoloacutegico proacuteprio eacute confirmado por Hackforth (1972 p53-57) Bluck (1955 p17-18) Vlastos (1973 p 76-101) Deveraux (1999 p 192-200) Bostock (1987 p179-184) e Silverman (2002 p 49-57) enquanto eacute negado por Rowe (1993 p249) Burnet (1911 p 116) e Fine (2004 p303- 316)
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
158
menor que outro possui em si uma destas entidades Por fim eacute possiacutevel
depreender da fala de Soacutecrates que estas propriedades imanentes natildeo podem ser
confundidas com as caracteriacutesticas particulares dos objetos sensiacuteveis Isto eacute natildeo
podemos pensar que a grandeza-em-Simmias equivale agrave altura de Simmias
digamos 180m Afinal a altura de 180m de Simmias eacute tanto grande quando
comparada ao 170m de Soacutecrates quanto pequena quando comparada ao 190m
de Feacutedon Sendo assim devemos concluir que as propriedades imanentes satildeo
entidades de um terceiro tipo distintas tanto dos objetos sensiacuteveis em que estatildeo
localizadas quanto das Formas Estas entidades imanentes satildeo plurais resultantes
da participaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis nas Formas e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos
Ora se estamos lidando com entidades plurais e imunes agrave predicaccedilatildeo de
opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis entatildeo estamos frente agrave referecircncia
buscada para expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα de 74c1 Como vimos o argumento de 74a-c
pretende demonstrar a diferenccedila entre Formas e coisas sensiacuteveis por meio da
apresentaccedilatildeo de uma caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis que as Formas natildeo
possuem Segundo Soacutecrates uma caracteriacutestica inerente a todos objetos sensiacuteveis
eacute que eles estatildeo sempre sujeitos agrave predicaccedilatildeo de opostos Apoacutes esta constataccedilatildeo
Soacutecrates afirma que ldquoos iguais eles mesmosrdquo (αὐτὰ τὰ ἴσα) jamais pareceram
desiguais ou a Igualdade uma desigualdade (ἡ ἰσότης ἀνισότης)rdquo
Considerando que a expressatildeo αὐτὰ τὰ ἴσα possui como referecircncia as
propriedades imanentes de 102b-e temos nas duas passagens exatamente a
mesma afirmaccedilatildeo pois ambas asseguram que este tipo de entidade natildeo estaacute
sujeito agrave predicaccedilatildeo de opostos que caracteriza os objetos sensiacuteveis Aleacutem disso
ambas passagens possuiriam a mesma estrutura ao negar a predicaccedilatildeo de opostos
tanto agraves propriedades imanentes quanto agraves Formas A menccedilatildeo agraves propriedades
imanentes em 74a-c seria ainda relevante para o argumento Pois a alusatildeo a estas
entidades teria a funccedilatildeo de ressaltar que as pedras e pedaccedilos de madeira sensiacuteveis
natildeo perdem completamente a capacidade de serem iguais mesmo quando satildeo
considerados em relaccedilotildees nas quais se mostram desiguais Suponha por exemplo
que o objeto x possui o mesmo comprimento que y De acordo com Soacutecrates este
objeto possui em si a propriedade imanente igualdade-em-x com relaccedilatildeo a y
Suponha agora que passemos a considerar o comprimento de x com relaccedilatildeo ao
objeto maior z Neste caso se tornaraacute evidente que x possui tambeacutem a
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
159
propriedade imanente desigualdade-em-x com relaccedilatildeo a z Contudo como explica
Soacutecrates em 74c1 as propriedades imanentes igualdade-em-x e igualdade-em-y
(αὐτὰ τὰ ἴσα) natildeo se tornaratildeo desiguais pois x continua sendo igual a y mesmo
que a relaccedilatildeo entre x e y natildeo esteja sendo levada em consideraccedilatildeo21 A menccedilatildeo agraves
propriedades imanentes portanto por mais que natildeo seja essencial ao argumento
de 74a-c natildeo torna o argumento contraditoacuterio ou falacioso ao mesmo tempo que
se mostra relevante para discussatildeo
21 Em 102d9 Soacutecrates explica que quando passamos a considerar x em relaccedilatildeo ao objeto desigual
z a igualdade-em-x foge e se retira ou perece completamente A alternativa foge ou perece representa as uacutenicas opccedilotildees logicamente viaacuteveis para explicar o que acontece agrave propriedade imanente ou ela daacute lugar para propriedade imanente oposta ou eacute completamente destruiacuteda Contudo de acordo com Hackforth (1972 p155-157) e Fine (2004 p306-309) a alternativa do perecimento natildeo representa uma verdadeira opccedilatildeo para Soacutecrates sendo mencionada apenas para que seja feita a analogia com o caso da alma apoacutes o evento da morte Assim tanto para alma quanto para as propriedades imanentes a destruiccedilatildeo ou perecimento representaria uma opccedilatildeo por princiacutepio inviaacutevel
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
160
35 A imperfeiccedilatildeo das entidades sensiacuteveis
Tendo resolvido as questotildees de caraacuteter textual envolvidas no argumento de
74a-c podemos voltar ao problema conceitual central Exatamente que
propriedade das entidades sensiacuteveis nos permite concluir a natildeo identidade entre
Formas e coisas Como vimos Soacutecrates se utiliza do fato das coisas sensiacuteveis
serem simultaneamente iguais e desiguais para diferenciaacute-las das Formas que
natildeo estariam sujeitas agrave este tipo de predicaccedilatildeo de opostos De acordo com a
literatura secundaacuteria esta copresenccedila de propriedades opostas nos objetos
sensiacuteveis pode ser entendida basicamente de dois modos
1) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade poreacutem
apenas de uma maneira imperfeita pedaccedilos de madeira nunca satildeo
exatamente iguais entre si e por isso podem ser considerados
simultaneamente iguais e desiguais
2) As coisas sensiacuteveis possuem a propriedade da igualdade e da
desigualdade de maneira perfeita poreacutem apenas relacionalmente
(τῷ microὲν τῷ δ οὔ) pedaccedilos de madeira satildeo iguais para uma
pessoa poreacutem desiguais para outra pessoa iguais em um aspecto
poreacutem desiguais em outro aspecto iguais a x poreacutem desiguais a y
iguais hoje poreacutem desiguais amanhatilde
Durante muito tempo interpretaccedilotildees do tipo 1) representaram o consenso
entre os comentadores natildeo apenas com relaccedilatildeo ao argumento de 74a-c mas
tambeacutem como uma explicaccedilatildeo geral para o que caracterizaria a imperfeiccedilatildeo do
mundo sensiacutevel em Platatildeo Assim Burnet afirma que ldquoas Formas satildeo tipos
(paradeigmata) aos quais as coisas particulares sensiacuteveis se aproximam em maior
ou menor graurdquo (Burnet 1911 p55) E Taylor seguindo a mesma linha de
raciociacutenio explica que a imperfeiccedilatildeo dos pedaccedilos de madeira estaacute no fato de que
ldquoduas coisas que agrave primeira vista parecem iguais em uma comparaccedilatildeo mais
proacutexima seratildeo descobertas apenas aproximadamente iguaisrdquo (Taylor 1922 p41)
Segundo esta linha interpretativa os objetos sensiacuteveis satildeo incapazes de
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
161
receber seus predicados de maneira perfeita manifestando suas propriedades
apenas de um modo aproximado Nenhum par de objetos sensiacuteveis se revelaria
sob uma avaliaccedilatildeo suficientemente detalhada verdadeiramente igual assim como
nenhuma accedilatildeo se revelaria absolutamente justa A maneira imperfeita e
aproximada que os objetos sensiacuteveis manifestam suas propriedades estaria
ilustrada na afirmaccedilatildeo de Soacutecrates (74d6-e2) segundo a qual os objetos sensiacuteveis
iguais satildeo deficientes (ἐνδεῖ) com relaccedilatildeo ao Igual ele mesmo aspiram a ser como
ele (βούλεται εἶναι οἷον ἄλλο τι τῶν ὄντων) mas se mostram incapazes de serem
iguais do mesmo modo que a Forma da Igualdade (οὐ δύναται τοιοῦτον εἶναι
[ἴσον] οἷον ἐκεῖνο) pois na realidade satildeo inferiores (ἀλλ ἔστιν φαυλότερον)
Apesar da aceitaccedilatildeo que este tipo de interpretaccedilatildeo recebeu no passado
um exame detalhado eacute capaz de reconhecer dificuldades conceituais dificilmente
superaacuteveis Primeiramente por que deveriacuteamos considerar impossiacutevel que duas
coisas sensiacuteveis sejam perfeitamente iguais em tamanho Agrave primeira vista natildeo
parece haver problemas em se conceber duas coisas exatamente do mesmo
comprimento Talvez a noccedilatildeo pressuposta por estes comentadores seja que o
mundo sensiacutevel possui uma conformidade fiacutesica tal que em um niacutevel de extrema
precisatildeo nenhum par de coisas tenha exatamente a mesma medida Podemos
pensar por exemplo que no niacutevel subatocircmico nenhuma coisa sensiacutevel apresentaraacute
precisamente o mesmo comprimento de outra Contudo em 74a-c Soacutecrates baseia
sua conclusatildeo no fato de que objetos sensiacuteveis iguais parecem (φαίνεται)
desiguais enquanto as Formas e propriedades imanentes natildeo Ora mesmo
considerando que no niacutevel subatocircmico nenhum par de objetos sensiacuteveis seja
exatamente igual eacute inegaacutevel que pedaccedilos de madeira certas vezes parecem iguais
e desiguais Sendo assim como Soacutecrates natildeo menciona problemas relativos a
meacutetodos faliacuteveis de mediccedilatildeo natildeo haacute motivos textuais para incluirmos a noccedilatildeo de
precisatildeo em sua demonstraccedilatildeo Aleacutem disso a interpretaccedilatildeo aproximativa para
questatildeo da imperfeiccedilatildeo do mundo sensiacutevel se mostra incapaz de ser generalizada
para outros casos de igualdade Considere por exemplo o caso da igualdade
numeacuterica Em que sentido poderiacuteamos afirmar que os onze jogadores do Vasco
natildeo estatildeo exatamente em mesmo nuacutemero que os onze jogadores do Botafogo Por
fim a interpretaccedilatildeo aproximativa natildeo eacute capaz de explicar porque objetos
imperfeitamente iguais natildeo satildeo exemplo perfeitos de desigualdade Pois se os
objetos sensiacuteveis nunca satildeo perfeitamente aquilo que dizemos que satildeo o que nos
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
162
permite afirmaacute-los casos aproximados de F ao inveacutez de simplesmente consideraacute-
los casos exatos de natildeo-F Se nenhuma linha sensiacutevel eacute exatamente reta porque
diriacuteamos que estamos frente a um caso imperfeito de reta e natildeo frente a um caso
perfeito de curva
Por outro lado de acordo com a interpretaccedilatildeo do tipo 2) os objetos
sensiacuteveis possuem plenamente suas propriedades Simmias eacute perfeitamente maior
que Soacutecrates assim como eacute perfeitamente menor que Feacutedon Um par de pedras eacute
exatamente igual em comprimento assim como eacute perfeitamente desigual em peso
Sob este ponto de vista a particularidade dos objetos sensiacuteveis natildeo estaacute no fato
deles possuiacuterem suas propriedades de maneira imperfeita ou aproximada mas no
fato deles apresentarem suas propriedades apenas de um modo relacional
Simmias eacute grande apenas em relaccedilatildeo a Soacutecrates Helena eacute bela apenas em
relaccedilatildeo a uma mortal pedaccedilos de madeira satildeo iguais apenas com relaccedilatildeo ao seu
comprimento Cada um destes predicados se aplica agraves coisas sensiacuteveis somente de
um modo qualificado em funccedilatildeo das relaccedilotildees que estas entidades manteacutem com
outras entidades do mundo sensiacutevel
Como vimos o complexo uso de pronomes nas demonstraccedilotildees socraacuteticas
para a diferenccedila entre Formas e coisas indica a validade desta interpretaccedilatildeo
Assim enquanto os objetos sensiacuteveis satildeo definidos em funccedilatildeo das relaccedilotildees que
mantecircm com outras coisas as Formas satildeo entidades ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ
αὑτὰ) auto-suficentes e ontologicamente independentes de qualquer outra
entidade O desafio enfrentado por aqueles que adotam esta linha interpretativa eacute
demonstrar como esta caracteriacutestica dos objetos sensiacuteveis pode ser considerada
uma imperfeiccedilatildeo ou uma deficiecircncia Uma maneira de resolver este problema
consiste em entender a copresenccedila de opostos dos objetos sensiacuteveis como
evidecircncia da complexidade e contradiccedilatildeo interna destas entidades Devido agrave
grande multiplicidade de relaccedilotildees em que estatildeo inseridos os objetos sensiacuteveis
apresentam em si propriedades imanentes opostas Simmias eacute maior e menor um
mesmo dedo eacute macio e riacutegido leve e pesado etc Uma vez que as propriedades
imanentes satildeo constituintes legiacutetimos dos objetos a sua copresenccedila torna estas
entidades internamente complexas e contraditoacuterias portanto deficientes quando
comparadas agrave integridade e unidade aspectual das Formas (cf microονοειδὲς
Rep612a Feacuted78d Banq211b)
Uma passagem do Feacutedon parece corroborar esta soluccedilatildeo Em 78b
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
163
Soacutecrates anuncia que eacute preciso investigar ldquoque tipo de coisa estaacute propiacutecia a sofrer
uma desintegraccedilatildeo (τῷ ποίῳ τινὶ ἄρα προσήκει τοῦτο τὸ πάθος πάσχειν τὸ
διασκεδάννυσθαι) rdquo E conclui que as coisas ldquoagregadas e compostas por
naturezardquo (τῷ microὲν συντεθέντι τε καὶ συνθέτῳ ὄντι φύσει) estatildeo mais aptas a se
desintegrar do que coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) Pois consistindo em um
aglomerado de partes as coisas compostas estatildeo sujeitas a terem suas diferentes
partes separadas e sua unidade dissolvida
Soacutecrates entatildeo diz
ldquoOra [considere] as coisas que sempre satildeo de acordo com o mesmo e semelhantes a elas mesmas (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει) eacute mais que provaacutevel que estas sejam as coisas incompostas (τὰ ἀσύνθετα) ao passo que aquelas que satildeo ora de um modo ora de outro modo e jamais satildeo de acordo com o mesmo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) sejam as compostas (σύνθετα) A mim certamente parece ser assim Vamos entatildeo disse Soacutecrates voltar agraves mesmas coisas que encontramos em nosso raciociacutenio precedente Esta essecircncia (αὐτὴ ἡ οὐσία) a qual noacutes oferecemos o ser como explicaccedilatildeo (ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι) quando perguntamos e respondemos eacute ela sempre a mesma de acordo com o mesmo ( ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ) ou [ela eacute] ora de um modo ora de outro modo (ἄλλοτ ἄλλως) O Igual ele mesmo o Belo ele mesmo cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν) o verdadeiro ser (τὸ ὄν) admite alguma vez mudanccedila mesmo a mais branda mudanccedila Ou sempre cada ldquoo que eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστι) sendo uniforme ele mesmo por ele mesmo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) eacute do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει) e nunca admite de modo algum nenhum tipo de alteraccedilatildeo (οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχετα) Do mesmo modo disse Simmias precisa ser de acordo com o mesmordquo Οὐκοῦν ἅπερ ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως ἔχει ταῦτα microάλιστα εἰκὸς εἶναι τὰ ἀσύνθετα τὰ δὲ ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ταῦτα δὲ σύνθετα Ἔmicroοιγε δοκεῖ οὕτως Ἴωmicroεν δή ἔφη ἐπὶ ταὐτὰ ἐφ ἅπερ ἐν τῷ ἔmicroπροσθεν λόγῳ αὐτὴ ἡ οὐσία ἧς λόγον δίδοmicroεν τοῦ εἶναι καὶ ἐρωτῶντες καὶ ἀποκρινόmicroενοι πότερον ὡσαύτως ἀεὶ ἔχει κατὰ ταὐτὰ ἢ ἄλλοτ ἄλλως αὐτὸ τὸ ἴσον αὐτὸ τὸ καλόν αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν τὸ ὄν microή ποτε microεταβολὴν καὶ ἡντινοῦν ἐνδέχεται ἢ ἀεὶ αὐτῶν ἕκαστον ὃ ἔστι microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει καὶ οὐδέποτε οὐδαmicroῇ οὐδαmicroῶς ἀλλοίωσιν οὐδεmicroίαν ἐνδέχεται Ὡσαύτως ἔφη ἀνάγκη ὁ Κέβης κατὰ ταὐτὰ ἔχειν ὦ Σώκρατες
Apesar dos termos εἶδος e ἰδέα natildeo aparecerem na passagem as
expressotildees usadas para caracterizar as ldquocoisas incompostasrdquo (τὰ ἀσύνθετα)
sugerem que estamos lidando com as Formas Esta impressatildeo eacute logo em seguida
confirmada pela referecircncia de Soacutecrates ao meacutetodo de investigaccedilatildeo dos primeiros
diaacutelogos que por meio de perguntas e respostas busca a essecircncia (οὐσία) de cada
coisa do Igual ele mesmo (αὐτὸ τὸ ἴσον) do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν)
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
164
enfim de cada ldquoo que eacuterdquo ele mesmo (αὐτὸ ἕκαστον ὃ ἔστιν)
A foacutermula ὃ ἔστιν eacute utilizada nesta passagem para se referir de maneira
geneacuterica a cada membro do grupo de Formas enquanto o termo οὐσία estaacute sendo
empregado como um coletivo para estas ldquoessecircnciasrdquo Assim buscamos a οὐσία de
cada coisa por meio da investigaccedilatildeo do que ldquocada coisa eacuterdquo (ἕκαστον ὃ ἔστιν)22
Cada uma destas οὐσίαι por sua vez se caracteriza por ser ldquouniforme ela mesma
por ela mesmardquo (microονοειδὲς ὂν αὐτὸ καθ αὑτό) natildeo sofrendo qualquer tipo de
alteraccedilatildeo e sendo sempre do mesmo modo (ὡσαύτως κατὰ ταὐτὰ ἔχει)
Ficando inequivocamente estabelecido que as entidades imutaacuteveis sobre as
quais estamos tratando satildeo as Formas Soacutecrates passa a explorar a deficiecircncia
ontoloacutegica dos objetos sensiacuteveis por um novo vieacutes Por serem uacutenicas em aspectos
(microονοειδὲς ) e estarem isoladas das relaccedilotildees que caracterizam as coisas do mundo
sensiacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ) as Formas satildeo entidades incompostas e como tais natildeo
estatildeo sujeitas agrave destruiccedilatildeo Os particulares sensiacuteveis por sua vez estatildeo sujeitos a
uma grande diversidade de relaccedilotildees (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά ) e
em razatildeo disso possuem em sua conformaccedilatildeo uma multiplicidade de
propriedades imanentes o que os torna entidades internamente complexas
(σύνθετα) e destrutiacuteveis Pois aquilo que eacute complexo ldquoestaacute sujeito a se decompor
tal como (isto eacute seguindo o mesmo processo em que) foi compostordquo (διαιρεθῆναι
ταύτῃ ᾗπερ συνετέθη 78c1-2)
Em 74-75 a copresenccedila de opostos havia se demonstrado uma
caracteriacutestica essencial dos objetos particulares que somente possuem suas
propriedades de maneira relacional em funccedilatildeo das conexotildees que manteacutem com
outros objetos Soacutecrates agora acrescenta a este quadro o fato de que a
complexidade destas entidades as torna ontologicamente instaacuteveis e deficientes
Pois ao contraacuterio das Formas que satildeo ldquopor elas mesmas semelhantes a elas
mesmasrdquo ou ldquoem si e por sirdquo (αὐτὰ καθ αὑτὰ) e por isso jamais sofrem qualquer
tipo de mudanccedila os objetos sensiacuteveis satildeo ldquoora de um modo ora de outro modordquo
(ἄλλοτ ἄλλως) tendo sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica determinada pelas relaccedilotildees que
22 O uso plenamente teacutecnico desta expressatildeo havia sido introduzido em 75d1-3 com o mesmo
objetivo de estender uma afirmaccedilatildeo sobre determinadas Formas para todo o conjunto destas entidades ldquoPois nosso presente argumento diz respeito ao Belo ele mesmo o Bom ele mesmo e o Justo e o Pio natildeo menos que ao Igual como digo ele diz respeito a tudo aquilo sobre o que colocamos o selo de ldquoo que eacuterdquo (περὶ ἁπάντων οἷς ἐπισφραγιζόmicroεθα τὸ ldquoαὐτὸ ὃ ἔστιrdquo)rdquo ( Fed 75d1-3)
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
165
manteacutem com outros objetos Uma vez que estas relaccedilotildees estatildeo sujeitas a
constantes alteraccedilotildees os objetos sensiacuteveis jamais estatildeo ldquode acordo com o mesmordquo
(οὐδαmicroῶς κατὰ ταὐτά) o que os torna susceptiacuteveis em uacuteltima instacircncia a se
decomporem Afinal o proacuteprio modo de ser destas entidades depende das relaccedilotildees
em que estatildeo inseridas e a desintegraccedilatildeo destas relaccedilotildees equivale agrave sua destruiccedilatildeo
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
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das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
166
36 O poder causal das Formas
Como vimos no capiacutetulo anterior as Formas satildeo caracterizadas desde os
diaacutelogos inicias como as causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis O poder
causal das Formas estaacute diretamente implicado na argumentaccedilatildeo do Ecircutifron e do
Hiacuteppias Maior e eacute indicado textualmente dos seguintes modos
1) Pelo uso do dativo instrumental ldquoeacute pela temperanccedila (σωφροσύνῃ)
que [as pessoas] satildeo temperantesrdquo (Prot332b4-5) ou ldquoaquela
Forma mesma (αὐτὸ τὸ εἶδος) em virtude da qual (ᾧ) todas as
coisas piedosas satildeo piedosasrdquo (Eut6d11)
2) Pelo uso de locuccedilotildees da forma dia + acusativo ldquouma bela moccedila eacute
bela devido agravequele (δι ὃ) Belordquo (HippiMa288a9-10)
3) Pelo uso de locuccedilotildees da forma u(po + genitivo (Prot332d3-4)
4) Pela caracterizaccedilatildeo das Formas como αἴτιον (HippiMa296e9
297a1-7 297a8 297b1-2)
Seguindo seu projeto de explicitaccedilatildeo e esclarecimento das teorias
pressupostas na argumentaccedilatildeo dos primeiros diaacutelogos Platatildeo iraacute a partir de 96a
ateacute 101c fornecer importantes informaccedilotildees a seu leitor acerca do papel das
Formas como causas das propriedades dos objetos sensiacuteveis A passagem se inicia
com um relato auto-biograacutefico no qual Soacutecrates nos conta as razotildees de sua
decepccedilatildeo com as explicaccedilotildees causais oferecidas pelos saacutebios de seu tempo
Apesar da extensatildeo e detalhe de seu relato que cita diversos tipos de explicaccedilotildees
causais propostas por seus antecessores podemos identificar como motivos para o
desapontamento de Soacutecrates alguns poucos princiacutepios baacutesicos
Em 96d8-e4 por exemplo Soacutecrates nos conta que no passado ldquoachava
uma explicaccedilatildeo adequada [dizer que] quando um homem grande estaacute parado ao
lado de um pequeno ele eacute maior exatamente por uma cabeccedila (αὐτῇ τῇ κεφαλῇ)rdquo
Aleacutem disso ldquoacreditava que dez eacute maior do que oito porque dois haviam se
adicionado a oito (διὰ τὸ δύο αὐτοῖς προσεῖναι) e que uma medida de dois cuacutebitos
eacute maior do que uma de um cuacutebito porque a ultrapassa pela metade (διὰ τὸ ἡmicroίσει
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
167
αὐτοῦ ὑπερέχειν)rdquo
Soacutecrates entatildeo nos revela que atualmente desconsidera estas explicaccedilotildees
devido ao fato de em todas elas a coisa oferecida como uma causa da grandeza
ou do crescimento tambeacutem poder ser considerada causa da pequenez ou
diminuiccedilatildeo A cabeccedila que faz o homem grande ser maior que o pequeno tambeacutem
faz o homem pequeno ser menor que o grande Do mesmo modo as duas
unidades que tornam 8 igual a 10 tambeacutem podem tornaacute-lo igual a 6 assim como a
grandeza de meio cuacutebito pode ser considerada tanto causa do aumento quanto da
diminuiccedilatildeo de uma medida qualquer
Em seguida Soacutecrates afirma que natildeo aceita nem mesmo a adiccedilatildeo de uma
unidade a outra como a explicaccedilatildeo para causa do surgimento do 2 (αἰτία τοῦ δύο
γίγνεσθαι) Segundo ele a adiccedilatildeo natildeo poderia ser considerada legitimamente uma
causa para o surgimento do dois pelo fato da divisatildeo de uma unidade tambeacutem
poder ser apresentada como causa para o mesmo efeito Neste caso teriacuteamos
causas opostas (ἐναντία αἰτία) como explicaccedilotildees para um uacutenico efeito o que eacute
considerado um contra-senso para Soacutecrates
Estes exemplos satildeo suficientes para reconhecermos a aceitaccedilatildeo de dois
princiacutepios relativos agrave causalidade De acordo com a argumentaccedilatildeo socraacutetica as
explicaccedilotildees oferecidas por seus antecessores natildeo podem ser consideradas corretas
por apresentarem por um lado causas opostas para um mesmo efeito ou por
outro lado efeitos opostos resultantes de uma mesma causa Ora ao apresentarem
explicaccedilotildees opostas como a adiccedilatildeo e a subtraccedilatildeo para um mesmo efeito estas
teorias estatildeo deixando de oferecer uma uacutenica causa necessaacuteria Poderiacuteamos
explicar alguns casos de surgimento do nuacutemero dois por meio da adiccedilatildeo poreacutem
outros casos deveriam ser explicados por uma causa distinta de fato contraacuteria a
divisatildeo
Por outro lado o nuacutemero dois pode ser apresentado como uma causa
necessaacuteria capaz de explicar todos os casos de transformaccedilatildeo de oito em dez
contudo natildeo seria uma causa suficiente Afinal este mesmo nuacutemero pode ser
usado como explicaccedilatildeo para diversos outros efeitos dentre eles a transformaccedilatildeo
do mesmo nuacutemero oito em seis
Toda esta argumentaccedilatildeo nos leva a crer que Soacutecrates deseja encontrar uma
causa simultaneamente necessaacuteria e suficiente Pois segundo sua concepccedilatildeo de
causalidade uma explicaccedilatildeo causal precisa estar em uma relaccedilatildeo de ldquoum-para-
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
168
umrdquo com seus efeitos para cada efeito uma determinada causa para cada causa
um determinado efeito
Certamente este tipo de exigecircncia natildeo eacute atualmente requerido para o
estabelecimento de uma relaccedilatildeo causal Natildeo vemos problema algum em
apresentar um uacutenico evento como causa de muacuteltiplos efeitos incluindo efeitos
opostos assim como aceitamos perfeitamente que um uacutenico evento tenha
muacuteltiplas causas inclusive opostas Mesmo os exemplos usados por Soacutecrates
como ldquoa divisatildeo de um uacutenico objetordquo ou ldquoa soma de um objeto a outrordquo
apresentados como causas distintas para produccedilatildeo do nuacutemero dois nos parecem
plenamente plausiacuteveis E caso venhamos a considerar explicaccedilotildees causais de
caraacuteter cientiacutefico veremos que os princiacutepios e causas capazes de dar conta do
maior nuacutemero de efeitos satildeo considerados melhores e cientificamente mais
explicativos
Em 101a-b contudo Soacutecrates apresenta um terceiro requisito para
causalidade que torna plenamente evidente a distacircncia entre sua concepccedilatildeo de
αἰτία e a noccedilatildeo atualmente corrente do que eacute uma explicaccedilatildeo causal Retornando
ao exemplo em que a cabeccedila de um homem eacute apresentada como causa da sua
grandeza Soacutecrates diz ldquoSe vocecirc diz que eacute por uma cabeccedila (τῇ κεφαλῇ) que
algueacutem eacute grande comparado a outra pessoa pequena entatildeo primeiro o grande
seraacute grande e o pequeno seraacute pequeno pela mesma coisa (τῷ αὐτῷ) em segundo
lugar a cabeccedila pela qual o grande eacute grande eacute ela mesma pequena e isto
certamente eacute absurdo (τέρας) que algueacutem seja grande por causa de algo que eacute
pequeno (τὸ σmicroικρῷ τινι microέγαν τινὰ εἶναι )rdquo (101a6-b1)
A segunda destas contradiccedilotildees apontada por Soacutecrates como plenamente
absurda ou monstruosa (τέρας) diz respeito ao fato daquilo que estaacute sendo
apresentado como causa ter a propriedade oposta ao que deve produzir Por ser ela
mesma pequena uma cabeccedila jamais poderia servir de causa para a grandeza
Novamente eacute muito claro que natildeo aceitamos nada semelhante a isso em nossa
busca por causas Na realidade podemos facilmente oferecer uma infinidade de
contra-exemplos para este tipo de raciociacutenio Considere o caso de um martelo ter
causado o rompimento de uma vidraccedila Por um acaso diriacuteamos que o martelo deve
estar ele mesmo rompido No caso de algueacutem ter morrido por causa de uma
gripe haveria algum sentido em afirmar que a gripe deve ser ela mesma morta
Eacute evidente portanto que Soacutecrates estaacute utilizando uma noccedilatildeo de causa que
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
169
se distingue radicalmente da nossa A primeira e mais notaacutevel diferenccedila entre a
concepccedilatildeo de causa apresentada por Soacutecrates e nossa compreensatildeo moderna
encontra-se no fato dele identificar entidades individuais (particulares ou
universais) como causas enquanto noacutes costumamos apresentar eventos Em um
niacutevel linguiacutestico isto significa que enquanto oferecemos sentenccedilas completas
como explicaccedilotildees causais Soacutecrates estaacute em busca de um nome para ser
apresentado como a αἰτία de algo
De fato em conversas cotidianas costumamos falar em um ocircnibus como
causa de nosso atraso ou em palhaccedilos como causa dos risos das crianccedilas Parece
muito claro contudo que nestes casos estamos falando de maneira abreviada e
citando apenas as principais entidades envolvidas em um determinado evento que
poderia ser devidamente expresso em uma sentenccedila completa Para Soacutecrates por
outro lado uma causa deve ser entendida como a entidade responsaacutevel pelo
surgimento de um efeito Assim mesmo quando cita uma operaccedilatildeo complexa
como αἰτία de algo Soacutecrates rapidamente elege uma entidade como responsaacutevel
pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo e no sentido oposto ao que fazemos parece
tratar a menccedilatildeo a eventos e operaccedilotildees como uma maneira expandida de se referir
a uma causa que na realidade se restringe a uma uacutenica entidade23
Conforme observado por Sedley (1998 p115-116) a noccedilatildeo platocircnica de
causa como ldquoa entidade responsaacutevel pela produccedilatildeo de determinado efeitordquo estaacute
diretamente ligada agrave etimologia da palavra αἰτία que tem sua origem nos
contextos de acusaccedilatildeo judicial O adjetivo αἴτιος seguido por um genitivo
designa o ldquoresponsaacutevelrdquo ou ldquoculpadordquo por algo Assim apresentar a ldquocausardquo
(αἴτιον) de alguma coisa equivale a apontar o ldquoresponsaacutevelrdquo (τὸ αἴτιον) por isso
atribuindo a ele a ldquoresponsabilidaderdquo (αἰτία) pelo surgimento deste estado de
coisas Na realidade o contexto juriacutedico mostra-se uma analogia bastante eficaz
para entendermos a noccedilatildeo de causalidade pressuposta na argumentaccedilatildeo de
Soacutecrates
Do mesmo modo que um tribunal estaacute preocupado em encontrar o culpado
(τὸ αἴτιον) pelo assassinato de x importando apenas secundariamente as
circunstacircncias do evento da morte de x Soacutecrates deseja encontrar a entidade apta
23 Soacutecrates passa por exemplo inadvertidamente da operaccedilatildeo ldquoa adiccedilatildeo de duas unidadesrdquo como
causa da transformaccedilatildeo de oito em dez para identificaccedilatildeo da entidade ldquonuacutemero doisrdquo como esta causa (cf 96e2-4 101b4-7 98d-99a 100d3-8)
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a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
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agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
170
a ser apresentada como responsaacutevel pelo fato das coisas serem grandes ou
pequenas belas ou feias justas ou injustas relegando a segundo plano a maneira
como as coisas se demonstram possuidoras destas propriedades Isto equivale a
dizer que Soacutecrates aborda a questatildeo da causalidade por um vieacutes muito mais
ontoloacutegico do que epistemoloacutegico Sua argumentaccedilatildeo estaacute focada na busca pelo
tipo de coisa capaz de ser apresentada como responsaacutevel pela produccedilatildeo de
determinado efeito e natildeo na explicaccedilatildeo de como este efeito veio a ser produzido
Compreendidos deste modo os trecircs princiacutepios da causalidade apresentados
por Soacutecrates passam a fazer mais sentido Como vimos a argumentaccedilatildeo socraacutetica
nos permite identificar a existecircncia dos seguintes criteacuterios para apresentaccedilatildeo de
uma causa
1) Uma mesma causa natildeo deve ser responsaacutevel por efeitos opostos
2) Causas opostas natildeo devem ser responsaacuteveis pelo mesmo efeito
3) Uma causa deve possuir aquilo que eacute responsaacutevel por produzir em
seu efeito
Os dois primeiros criteacuterios garantem que uma uacutenica entidade seja sempre
causa de um mesmo efeito Tomados em conjunto estes princiacutepios garantem a
infalibilidade da relaccedilatildeo de causal certificando que a entidade apresentada como
causa seja consistentemente responsaacutevel pela produccedilatildeo do efeito em questatildeo
Assim caso a entidade responsaacutevel pelo efeito x satisfaccedila estas condiccedilotildees
estaremos na posiccedilatildeo de afirmar que sempre que encontramos o efeito x
podemos pressupor a atuaccedilatildeo desta causa e inversamente sempre que
identificamos a atuaccedilatildeo desta causa podemos garantir a produccedilatildeo do efeito x
Do mesmo modo o terceiro princiacutepio da causalidade defendido por
Soacutecrates que se mostrou completamente absurdo para os padrotildees atuais tambeacutem
adquire uma explicaccedilatildeo mais razoaacutevel ao ser considerado sob o vieacutes ontoloacutegico
A abordagem socraacutetica para questotildees de causalidade consiste na investigaccedilatildeo das
entidades envolvidas em um determinado evento com vista agrave identificaccedilatildeo de
qual destas entidades pode ser considerada responsaacutevel pela produccedilatildeo do evento
em questatildeo Portanto eacute plausiacutevel que um dos criteacuterios desta busca diga respeito agrave
caracteriacutestica necessaacuteria para a produccedilatildeo deste evento Estando agrave procura de uma
entidade envolvida em todos os casos de grandeza eacute natural que Soacutecrates se lance
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
171
agrave procura de uma entidade que possua em si mesma uma caracteriacutestica capaz de
consistentemente produzir a grandeza Ora que outra caracteriacutestica seria esta
senatildeo a proacutepria caracteriacutestica cuja causa estaacute sendo buscada 24
Admitindo a razoabilidade dos princiacutepios da relaccedilatildeo causal estabelecidos
por Soacutecrates podemos enxergar claramente porque as entidades sensiacuteveis natildeo
podem figurar em uma explicaccedilatildeo causal bem sucedida Como sabemos os
objetos sensiacuteveis se caracterizam por estarem submetidos a uma multiplicidade de
relaccedilotildees o que se reflete na sua constituiccedilatildeo ontoloacutegica tornando-os entidades
internamente complexas Aleacutem disso a circunstacircncia de que estes objetos estatildeo
inseridos em relaccedilotildees de contrariedade os torna internamente contraditoacuterios e
detentores de propriedades imanentes opostas Simmias por exemplo eacute maior que
Soacutecrates poreacutem ao mesmo tempo menor que Feacutedon De maneira geral para cada
propriedade F possuiacuteda por um objeto sensiacutevel podemos identificar neste mesmo
objeto a presenccedila da propriedade oposta natildeo-F
Sendo assim qualquer atribuiccedilatildeo de causalidade a entidades sensiacuteveis
seria desqualificada sob a alegaccedilatildeo de que estas entidades ou bem natildeo possuem a
propriedade de que satildeo causa ou bem possuem esta propriedade em conjunto com
a propriedade oposta A conclusatildeo deste raciociacutenio eacute que as entidades sensiacuteveis
natildeo podem ser apresentadas como causas de suas proacuteprias caracteriacutesticas apesar
de sermos tentados a acreditar que a altura de 180m de Simmias eacute a verdadeira
responsaacutevel pelo fato dele ser maior que Soacutecrates ou acharmos que a conformaccedilatildeo
fiacutesica de Helena eacute a causa de sua beleza
As Formas por outro lado estatildeo aptas a satisfazer tanto os criteacuterios de
necessidade e suficiecircncia quanto a exigecircncia de possuir a propriedade de que satildeo
causa Assim apoacutes desqualificar os objetos sensiacuteveis como possiacuteveis causas de
suas propriedades Soacutecrates afirma ldquoA mim parece que se alguma outra coisa eacute
bela (καλὸν) aleacutem do Belo ele mesmo (αὐτὸ τὸ καλόν) ela eacute bela por nenhum
outro motivo senatildeo porque participa daquele Belo e o mesmo se aplica a todo o
restordquo (100c4-6)
24 Este paraacutegrafo eacute certamente incapaz de dar conta das questotildees envolvendo o princiacutepio segundo
o qual uma causa deve possuir a caracteriacutetica de que eacute causa Este princiacutepio faz parte de um panorama muito mais amplo que ao que tudo indica extrapola o acircmbito dos diaacutelogos platocircnicos e se reflete nas teorias causais de toda antiguidade e medievo Uma excelente apresentaccedilatildeo da relaccedilatildeo deste princiacutepio com as teoria da causalidade antigas pode ser encontrado em ldquoAn ancient Principle of Causationrdquo (Makin 1990) Para dois exemplos facilmente verificaacuteveis de aplicaccedilatildeo deste mesmo princiacutepio cf Anaxaacutegoras fr B10 e
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
172
37 Conclusatildeo do terceiro capiacutetulo
Nossa anaacutelise de passagens do Feacutedon e do Banquete torna evidente o grau
de continuidade entre a ontologia dos diaacutelogos iniciais e a ontologia dos diaacutelogos
meacutedios Esta continuidade se manifesta por meio do emprego de expressotildees como
ὃ ἔστιν F que nada mais eacute do que a inversatildeo assertiva da pergunta τί ἐστι F dos
diaacutelogos iniciais e αὐτὸ καθ αὑτὸ que constitui uma intensificaccedilatildeo da foacutermula
αὐτὸ τὸ εἶδος dos primeiros diaacutelogos Sendo usada como designaccedilatildeo semi-teacutecnica
das Formas ὃ ἔστιν F evidencia que estas entidades representam a soluccedilatildeo para
busca socraacutetica por definiccedilotildees Enquanto αὐτὸ καθ αὑτὸ expressa a independecircncia
ontoloacutegica das Formas enfatizando a separaccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
encontraacutevamos nas obras iniciais Do mesmo modo o poder causal das Formas
representado pelo vocabulaacuterio da participaccedilatildeo e pelo uso do dativo instrumental
continua em voga nos diaacutelogos meacutedio passando a ser explicitamente tematizado
com vista agrave formulaccedilatildeo de uma teoria das relaccedilotildees causais entre Formas e coisas
Eacute possiacutevel concluir portanto que tanto textual quanto conceitualmente a
relaccedilatildeo entre os dois primeiros grupos de diaacutelogos eacute de continuidade na medida
em que os diaacutelogos meacutedios retomam temas mencionados nos diaacutelogos iniciais e
apresentam de maneira mais sistemaacutetica a distinccedilatildeo entre Formas e coisas que jaacute
estava pressuposta nas discussotildees aporeacuteticas das primeiras obras Podemos nos
perguntar agora que caracteriacutesticas dramaacuteticas teriam levado o personagem
Soacutecrates a discorrer abertamente nos diaacutelogos meacutedios sobre temas que se
manifestavam apenas de um modo impliacutecito anteriormente
Como notamos na conclusatildeo do capiacutetulo anterior o modo de apresentaccedilatildeo
socraacutetico estaacute diretamente relacionado ao niacutevel de compreensatildeo dos seus
interlocutores Assim o grau de exposiccedilatildeo da ontologia socraacutetica nos diaacutelogos
iniciais aparece em funccedilatildeo da capacidade dos interlocutores oferecerem respostas
minimamente satisfatoacuterias para as perguntas de Soacutecrates
Quando passamos para os diaacutelogos meacutedios constatamos que tanto a
plateacuteia de Soacutecrates quanto as ocasiotildees em que ocorrem as conversas ali descritas
possuem um caraacuteter muito mais elevado do que nos diaacutelogos da primeira fase O
Metafiacutesica Z 9
173
Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
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Feacutedon por exemplo descreve os momentos finais da vida de Soacutecrates Nesta
ocasiatildeo traacutegica e solene Soacutecrates estaacute cercado por seus mais iacutentimos amigos e
companheiros de investigaccedilatildeo filosoacutefica Dada a singularidade da circunstacircncia e
a intimidade que possui com seus ouvintes eacute natural que Soacutecrates fale
abertamente sobre suas teorias mais particulares E por outro lado uma vez que
seus interlocutores fazem parte do ciacuterculo de discussotildees socraacutetico eacute esperado que
estejam mais aptos a receber este tipo de informaccedilatildeo especializada
O mesmo se pode dizer do Banquete que estaacute frequentado pela nata da
intelectualidade ateniense Ali estatildeo presentes um orador e inteacuterprete de mitos
(Fedro) um tragedioacutegrafo (Agatatildeo) um comedioacutegrafo (Arstoacutefanes) um meacutedico
(Erixiacutemaco) e um sofista (Pausacircnias) cada uma destas pessoas trazendo sua
contribuiccedilatildeo para compreensatildeo da natureza do amor representado pelo deus Eros
Apesar de natildeo fazerem parte do ciacuterculo iacutentimo de discussatildeo socraacutetica sem duacutevida
estes personagens representam uma plateacuteia intelectualmente capacitada e
devidamente interessada no discurso socraacutetico Ao iniciar sua fala Soacutecrates abre
matildeo de uma composiccedilatildeo proacutepria e apresenta as palavras de uma grande saacutebia da
Mantineacuteia introduzindo a Teoria das Ideias por meio de um discurso miacutestico e
com ares de revelaccedilatildeo
Tambeacutem a Repuacuteblica e o Fedro descrevem ocasiotildees especiais em que
Soacutecrates estaacute cercado por interlocutores qualificados A Repuacuteblica inicia-se com
uma grande celebraccedilatildeo religiosa e na conversa desenrolada na casa de Ceacutefalo
Platatildeo coloca seus proacuteprios irmatildeos Admanto e Glaacuteuco como ouvintes capazes e
interessados nas revelaccedilotildees de Soacutecrates No Feacutedro Soacutecrates novamente aparece
arrebatado por inspiraccedilatildeo divina e inspirado pela figura de Liacutesias um respeitado
orador
Portanto todas estas obras apresentam Soacutecrates em momentos de
inspiraccedilatildeo falando com pessoas de relativa capacidade intelectual e sobretudo
dispostas a receber informaccedilotildees acerca das Formas e demais teorias filosoacuteficas
socraacuteticas Em funccedilatildeo destas caracteriacutesticas dramaacuteticas as falas de Soacutecrates nos
diaacutelogos da fase meacutedia adquirem um tom mais expositoacuterio o que propicia o
esclarecimento da distinccedilatildeo entre Formas e objetos sensiacuteveis que havia sido
delineada nos diaacutelogos iniciais
Assim o leitor que havia acompanhado Soacutecrates em sua busca por
definiccedilotildees e experimentado a aporia das primeiras obras eacute apresentado por meio
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
174
das falas inspiradas dos diaacutelogos meacutedios agrave verdadeira natureza das Formas Este
leitor recebe entatildeo a informaccedilatildeo de que cada Forma eacute uma entidade
ontologicamente estaacutevel eterna e auto-idecircntica (ἀεὶ ὂν ταὐτὸν) sempre constante
e invariaacutevel (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) Aleacutem disso cada Forma eacute invisiacutevel
(ou)x o(raton) sendo apreendida somente pelo raciociacutenio ou pela pura reflexatildeo
nunca pelos oacutergatildeos da sensibilidade Por fim uma Forma eacute uma entidade pura
incomposta homogecircnea (kaqaron ou εἰλικρινὲς a)sunqeton monoeidej)
completamente independente de qualquer outra entidade se apresentando sempre
como aquilo que ela realmente eacute (αὐτὸ ὃ ἔστιν) em si e por si (αὐτὸ καθ αὑτὸ)
Em oposiccedilao a esta caracterizaccedilatildeo das Formas os objetos sensiacuteveis satildeo entidades
compostas (σύνθετα) inconstantes (οὐδέποτε τὰ αὐτὰ ἔχων ἐν αὑτῷ) fadadas a
nascer e perecer (γιγνοmicroένων καὶ ἀπολλυmicroένων) apreendidos somente pelos oacutergatildeo
da sensibilidade (αἴσθησις) e dependentes das relaccedilotildees que mantecircm com outras
entidades para serem aquilo que satildeo (ἄλλοτ ἄλλως καὶ microηδέποτε κατὰ ταὐτά)
Como resultado de sua unidade aspectual as Formas satildeo exclusivamente
auto-predicativas isto eacute a Forma do Belo eacute uacutenica e exclusivamente bela a Forma
do Bom eacute uacutenica e exclusivamente boa e de maneira esquemaacutetica a Forma F eacute
sempre verdadeiramente F Por outro lado o modo de ser relacional dos objetos
sensiacuteveis faz com que manifestem suas propriedades sempre em conjunccedilatildeo com a
propriedade oposta Simmias eacute grande e pequeno Helena eacute bela e feia etc
No iniacutecio do presente capiacutetulo vimos que Vlastos apresenta uma perspicaz
criacutetica a esta caracterizaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis Segundo ele parte essencial da
argumentaccedilatildeo de Soacutecrates para estabelecer a copresenccedila de propriedades opostas
nos objetos sensiacuteveis pressupotildee uma inferecircncia claramente falaciosa A falaacutecia
apontada por Vlastos consiste em a partir da verdade de ldquox eacute F em relaccedilatildeo a y e
natildeo F em relaccedilatildeo zrdquo inferirmos falsamente que ldquox eacute F e natildeo F simpliciterrdquo Com
base nesta falsa inferecircncia Soacutecrates estaria concluindo erradamente que Simmias
eacute grande e pequeno simpliciter quando na realidade Simmias eacute grande-em-
relaccedilatildeo-a-Soacutecrates e pequeno-em-relaccedilatildeo-a-Feacutedon o que natildeo constitui qualquer
tipo de paradoxo ou contradiccedilatildeo
Ora caso aceitemos a criacutetica de Vlastos somos obrigados a reconhecer
que parte essencial da ontologia socraacutetica depende de uma grave falha Afinal a
copresenccedila de opostos eacute apresentada como uma das caracteriacutesticas distintivas
fundamentais entre Formas e coisas e estaacute intimamente ligada agrave caracterizaccedilatildeo dos
175
objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees
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objetos sensiacuteveis como entidades compostas e internamente contraditoacuterias
Felizmente as passagens dos diaacutelogos meacutedios por noacutes analisadas podem
fornecer um argumento contra Vlastos e salvar Soacutecrates da criacutetica apontada De
acordo com Vlastos o erro de Soacutecrates estaria em desconsiderar o complemento
de verbos relacionais e incompletos e tratar a propriedade dos objetos sensiacuteveis
ldquoF-em-relaccedilatildeo-a-yrdquo como ldquoF simpliciterrdquo Entretanto Soacutecrates nunca realiza este
tipo de movimento De fato sua teoria estaacute fundamentada em aceitarmos
justamente o oposto que os objetos sensiacuteveis nunca satildeo F simpliciter e sempre
manifestam suas propriedade de maneira relacional Assim Soacutecrates jamais
afirmaria que Simmias eacute grande simpliciter pois apenas a Forma do Grande eacute
grande simpliciter
A criacutetica de Vlastos eacute improcedente porque desconsidera a caracterizaccedilatildeo
dos objetos sensiacuteveis como entidades essencialmente relacionais Simmias
somente eacute grande em relaccedilatildeo a Soacutecrates Acontece que simultaneamente
Simmias eacute pequeno em relaccedilatildeo a Feacutedon e isto faz com que natildeo possa ser
apresentado como uma resposta correta para pergunta ldquoo que eacute a grandezardquo ou
tampouco figurar em uma explicaccedilatildeo causal para grandeza de qualquer entidade
inclusive de si proacuteprio
A postulaccedilatildeo da existecircncia do Grande ele mesmo e do Pequeno ele
mesmo por outro lado oferece uma soluccedilatildeo para ambas estas questotildees Pois por
ser sempre verdadeiramente grande a Forma da Grandeza eacute o que eacute (ὃ ἔστιν) o
Grande e deste modo responde agrave busca socraacutetica por definiccedilotildees expressa pela
pergunta τί ἐστι Ainda por ser ela mesma unicamente grande e de nenhum modo
pequena a Grandeza pode servir como causa desta propriedade em todos os
objetos sensiacuteveis Haacute portanto uma estreita coerecircncia entre a constituiccedilatildeo
ontoloacutegica das Formas e seu papel como soluccedilatildeo para o problema da copresenccedila
de opostos nos objetos sensiacuteveis Somente por serem entidades uacutenicas em aspecto
(microονοειδὲς) isoladas de qualquer relaccedilatildeo (αὐτὸ καθ αὑτὸ) e natildeo susceptiacuteveis a
qualquer mudanccedila (ἀεὶ κατὰ ταὐτὰ καὶ ὡσαύτως) as Formas podem exercer seu
papel de causa das propriedades dos objetos sensiacuteveis e resposta para a busca
socraacutetica por definiccedilotildees