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Payadas Jayme Caetano Braun

Fonte digital: http://www.geocities.com/Athens/Acropolis/2776/payadas.html

Crédito:

Iuri Abreu

Copyright © 2000 - Jayme Caetano Braun

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PAYADAS Jayme Caetano Braun

Jayme Caetano Braun é, hoje, um nome repetido em todos os quadrantes do Rio Grande... Seus livros nada mais são do que instantâneos de algumas notas que o auto conservou. O mais perdeu-se e se perderá nas noites de galpão, nas reuniões sociais e nos encontros de payadores onde Jayme, de improviso, emocionado e de olhar penetrante, solta ao sabor de uma milonga o rosário de ouro das suas mais profundas composições. Ele é um repentista soberbo encarnando, nos momentos de exaltação, o panorama inteiro do Rio Grande. Na pasmosa transfiguração do espírito revive nele, nestes momentos, o índio inculto, nas oferendas tribais, no soturno socalcar de couros estirados sobre troncos ocos, linguagem grave de evocações lendárias do selvagem galpão. Revive o homem de chiripá e botas de garrão de touro, na inimitável expressão dos dias da conquista, onde se viviam momentos de couro cru e a lei era a faca, nas distâncias infinitas do pampa, quando os monarcas da amplidão transpunham distâncias ao ritmo de quatro-patas e, ao evoaçar de crinas de baguais recém-domados. É o peão de estância, no seu linguajar grosseiro e pitoresco, a reviver pealos porteira afora e a decompor expressões desconhecidas da gramática, porque se geraram nos atropelos de campereadas, que não se repetem, sovando rédeas e pelegos. Na misteriosa transubstanciação das rimas, abstrai o seu tipo físico e veste a expressão de domadores e vaqueanos, ao

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trote de garanhões poderosos, destilando ao compasso de patas a rima bárbara de horizontes chucros. Os que ouvem estranham-se de um Rio Grande com pasto, percebendo a bulha de tiradores e o tinido ancestral das esporas de ferro, riscando ilhargas de baguais. Afundam pelos descampados bravios do Continente de São Pedro, em caravoltas da História, remontando às jornadas da Colônia do Sacramento, onde se forjaram os gaúchos de três pátrias. Penetram os momentos das arriadas nas vaquerias do mar, no comércio bruto de couro e sebo, ao zunir de boleadeiras e laços e no rechinar de arreios, quando o homem se impunha às leis bárbaras de uma natureza crua, entre tropéis e manadas... Depois, na transposição maravilhosa da inteligência, ele nos repõe nos nossos dias, frente ao fogo de um galpão evocativo, embebidos da visionária e impressionante retrospecção do passado, para nos sentirmos mais rio-grandenses e compreendermos que, somente a um homem a cavalo, poderia ser atribuída a tarefa de vigiar como sentinela este imenso Brasil. Jayme nasceu em São Luiz Gonzaga mas, naquele momento, tremeram os alicerces dos quatro pontos cardeais do Rio Grande, porque nascia o grande e inimitável payador desta terra, que terá o calendário mudado para antes e depois de Jayme Braun.

1969, Porto Alegre Balbino Marques da Rocha

Prefácio do livro Potreiro de Guachos, de Jayme Caetano Braun.

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ÍNDICE

Bochincho Chimarrão e Poesia

China Cordeiro Guacho Don Athaualpa

Meu Pedido Payada do Ano Novo

Payada do Negro Lúcio Sem Diploma

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Bochincho A um bochincho – certa feita, eu fui chegando – de curioso, que o vício – é que nem sarnoso, nunca pára – nem se ajeita. Baile de gente direita eu vi, de pronto, que não era na noite de primavera gaguejava a voz de um tango e eu sou louco por fandango que nem pinto por quirera!

Atei meu baio – longito, num galho de guaramim, desde guri eu fui assim, não brinco nem facilito. Em bruxas não acredito "pero – que las hay, las hay", eu sou da costa do Uruguai, meu velho pago querido e por andar desprevenido há tanto guri sem pai.

No rancho de santa-fé, de pau-a-pique barreado, num trancão de convidado eu me entreverei no banzé. O chinaredo à bola-pé, no ambiente fumacento, um candeeiro, bem no centro, num lusco-fusco de aurora, pra quem chegava de fora

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pouco enxergava ali dentro!

Dei de mão numa tiangaça que me cruzou no costado e já saí entreverado entre a poeira e a fumaça, oigalê china lindaça, morena de toda a crina dessas da venta brasina, com cheiro de lechiguana que quando ergue uma pestana até a noite se ilumina.

Misto de diaba e de santa, e com ares de quem é dona e um gosto de temporona que traz água na garganta. Eu me grudei na percanta o mesmo que um carrapato e o gaiteiro era um mulato que até dormindo tocava e a gaita choramingava como namoro de gato!

A gaita velha gemia, às vezes quase parava, de repente se acordava e num vanerão se perdia e eu – contra a pele macia daquele corpo moreno, sentia o mundo pequeno, bombeando cheio de enlevo dois olhos – flores de trevo com respingos de sereno!

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Mas o que é bom se termina – cumpriu-se o velho ditado, eu que dançava, embalado, nos braços doces da china escutei – de relancina, uma espécie de relincho, era o dono do bochincho, meio oitavado num canto, que me olhava – com espanto, mais sério do que um capincho!

E foi ele que se veio, pois era dele a pinguancha, bufando e abrindo cancha como dono de rodeio. Quis me partir pelo meio com um talonaço de adaga que – se me pega – me estraga, chegou levantar um cisco, mas não é à toa – chomisco! que eu sou de São Luiz Gonzaga!

Meio na curva do braço consegui tirar o talho mas quase que me atrapalho porque havia pouco espaço, mas senti o calor do aço e o calor do aço arde, me levantei – sem alarde, por causa do desaforo e soltei meu marca touro num medonho buenas-tarde!

Tenho visto coisa feia, tenho visto judiaria,

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mas hoje inda me arrepia lembrando aquela peleia, talvez quem ouça – não creia, mas vi nascer no pescoço, do índio do berro grosso como uma cinta vermelha e desde o beiço até a orelha ficou relampiando o osso!

O índio era um índio touro, mas até touro se ajoelha, cortado do beiço à orelha amontoou-se como um couro e, amigos, foi um estouro, daqueles que dava medo, espantou-se o chinaredo e aquilo foi uma zoada, parecia até uma eguada disparando num varzedo!

Não há quem pinte o retrato dum bochincho – quando estoura, tinidos de adaga – espora e gritos de desacato. Berros de quarenta e quatro da cada canto da sala e a velha gaita baguala num vanerão pacholento, fazendo acompanhamento do turumbamba de bala!

É china que se escabela, redemonhiando na porta e xirú da guampa torta que vem direito à janela,

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num grito – de toda a guela, num berreiro alucinante, índio que não se garante, vendo sangue – se apavora e se manda – campo fora, levando tudo por diante!

Sou crente na divindade, morro quando Deus quiser, mas amigos – se eu disser, até periga a verdade, naquela barbaridade, de chinaredo fugindo, de grito e bala zunindo, o gaiteiro – alheio a tudo, tocava um xote clinudo, já quase meio dormindo!

E a coisa ia indo assim, balanceei a situação, – já quase sem munição, todos atirando em mim. Qual ia ser o meu fim, me dei conta – de repente, não vou ficar pra semente, mas gosto de andar no mundo, me esperavam na dos fundo, saí na porta da frente...

E dali ganhei o mato, abaixo de tiroteio e inda escutava o floreio da cordeona do mulato e, pra encurtar o relato, eu me bandeei pra o outro lado,

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cruzei o Uruguai, a nado, que o meu zaino era um capincho e a história desse bochincho faz parte do meu passado!

Essa pergunta me é feita em cada vez que eu declamo é uma cousa que eu reclamo acho que é até uma desfeita acho que não é direita e até entender nem consigo eu – num medonho perigo duma situação brasina, todos perguntam da china e ninguém se importa comigo E a china – eu nunca mais vi no meu gauderiar andejo, somente em sonhos a vejo num bárbaro frenesi. Talvez ande – por aí, no rodeio das alçadas, ou – talvez – nas madrugadas, seja uma estrela xirua dessas – que se banha nua no espelho das aguadas!

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Chimarrão e Poesia Sempre grudado no posto O payador missioneiro Sente o calor do braseiro Batendo forte no rosto E vai mastigando o gosto Da velha infusão amarga, Sentindo o peso da carga Que algum ancestral comanda Enquanto o mundo se agranda E o coração se me alarga

Sempre a mesma liturgia Do chimarrão do meu povo, Há sempre um algo de novo No clarear de um outro dia, Parece que a geografia Se transforma – de hora em hora E o payador se apavora Diante um mundo convulso Sentindo o bárbaro impulso De se mandar campo fora!

Muito antes da caverna Eu penso – enquanto improviso, Nos campos do paraíso O patrão que nos governa, Na sua sapiência eterna E eterna sabedoria, Deu o canto e a melodia Para os pássaros e os ventos Pra que fossem complementos

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Do que chamamos poesia!

Por conseguinte – o Adão, Já nasceu poeta inspirado, Mesmo um tanto abarbarado Por falta de erudição E compôs um poema pagão À sua rude maneira, Para a sua companheira, A mulher – poema beleza, Inspirado – com certeza Numa folha de parreira!

Os Menestréis – os Aedos, Os Bardos – Os Rapsodos, Poetas grandes – eles todos, Manejando a voz e os dedos Vão desvendando os segredos Nas suas rudes andanças, As violas em vez de lanças, Harpas – flautas – bandolins, Semeando pelos confins As décimas e as romanzas!

Tanto os poetas orientais Como os poetas do ocidente, Cada qual uma vertente, Todos eles mananciais, Nos quatro pontos cardeais Esparramando canções E – no rastro das legiões Do lusitano prefácio, A última flor do lácio Nos deu Luiz Vaz de Camões!

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No Brasil continental Chegaram as caravelas E vieram junto com elas As poesias – com Cabral, Para um marco imemorial Nestas florestas bravias Perpetuando melodias De imorredouro destaque: Castro Alves e Bilac E Antônio Gonçalves Dias!

Neste garrão de hemisfério Quando a pátria amanhecia Surgiu também a poesia No costado do gaudério Na pia do batistério Das restingas e das flores E a horda dos campeadores Bárbara e analfabeta Pariu o primeiro poeta No canto dos payadores!

E foi ele – esse vaqueano Do cenário primitivo, Autor do poema nativo Misto de pêlo e tutano, De pampeiro – de minuano, Repontando sonhos grandes;

Hidalgo – Ramiro – Hernández El Viejo Pancho – Ascassubi Mamando no mesmo ubre Desde o Guaíba aos Andes!

Há uma grande variedade

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De poetas no meu país, Do mais variado matiz Cheios de brasilidade, De um Carlos Drummond de Andrade Ao mais culto e ao mais fino, Mas eu prefiro o Balbino, Juca Ruivo e Aureliano, Trançando de mano a mano Com lonca de boi brasino

João Vargas – e o Vargas Neto E o Amaro Juvenal, Cada qual um manancial Que ilustram qualquer dialeto, Manuseando o alfabeto No seu feitio mais austero, Os discípulos de Homero De alma grande e verso leve, Desde sempre usando um "breve" De ferrão de quero-quero!

Imagino enquanto escuto Esse bárbaro lamento Que a poesia é o som do vento Que nunca pára um minuto, Picumã vestiu de luto A quincha do Santafé, Mas nós sabemos porque é Que o vento xucro não pára: São suspiros da Jussara Chamando o índio Sepé!

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China A maior das gauchadas Que há na sagrada escritura, Falo como criatura, Mas penso que não me engano, É aquela em que o soberano, Na sua pressa divina, Resolveu fazer a china Da costela do paisano!

Bendita china gaúcha Que és a rainha do pampa E tens – na divina estampa, Um quê de nobre e altivo; És perfume – és lenitivo Que nos encanta e suaviza E num instante escraviza O índio mais primitivo!

Fruto selvagem do pago, Potranquita redomona, Teus feitiços de madona Já manearam muito cuera, E o teu olhar de pantera, Retovado de malícia Nesta querência patrícia Fez muito rancho tapera!

Refletem teus olhos negros Velhas orgias pagãs E a beleza das manhãs, Quando no campo clareia...

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Até o sol que te bronzeia Beijando-te a estampa esguia Faz de ti – prenda bravia, Uma pampeana sereia!

Jamais alguém contestou O teu cetro de realeza! E o trono da natureza É teu – chinoca lindaça... Pois tu refletes com graça As fidalgas açorianas, Charruas e castelhanas Vertentes vivas da raça!

A mimosa curvatura Desse teu corpo moreno É o pago em ponto pequeno Feito com arte divina, E o teu colo que se inclina quando suspiras com ânsia São dois cerros – na distância, Cobertos pela neblina!

Quem não te adora o cabelo Mais negro que o picumã? E essa boca de romã Nascida para o afago, Como que a pedir um trago Desse licor proibido Que o índio bebe escondido Desde a formação do pago

Pra mim – tu pialaste os anjos Na armada do teu sorriso, Fugindo do paraíso

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Para esta campanha agreste, E nalgum ritual campestre, Por força do teu encanto, Transformaste o pago santo Num paraíso terrestre!

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Cordeiro Guacho Aquele cordeiro guacho, deitado ali no baldrame, salvei da corvada infame numa tarde de garoa. Andava berrando – à toa, com poucos dias de idade, pois ficara na orfandade, e ali – com toda a certeza, ia ser a sobremesa de algum corvo sem piedade.

Logo que me viu – coitado, correu direito ao cavalo. Sou índio que não me abalo, mas me achiquei nesse dia, pois o pobre parecia, solito ali no varzedo, uma criança com medo, quando se perde dos pais. Nem bem o peguei – no mais, ficou chupando meu dedo.

Encarangado de frio, levei-o adiante, pra o rancho, seguido por um carrancho que esvoaçava, em mau agouro, depois – o bico de couro, a garrafa – o leite quente, que ele chupou, como gente, entre resmungos de choro.

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Desde então – esse guachinho, é mais um filho que tenho. E de manhã – quando venho chimarrear junto ao fogão, corre a me lamber a mão, se esfregando carinhoso, assim – como piá mimoso, quando nos pede bênção.

Faz artes e estrepolias, qual o guri que não faz? Pula, pra diante e pra trás, quando seca a mamadeira, entra dentro da peneira onde debulho a ração, sobe em cima do tição e até me vira a chaleira.

E há os que não gostam de guachos, porque incomodam demais, talvez, porque, tendo pais, nunca lhes deram valor, ou desconheçam a dor dos que ficaram sozinhos e andam campeando carinhos nas mendicâncias do amor.

Eu não fui criado guacho, graças ao Deus Soberano. Mamei até o sobre-ano sem misérias nem surpresas porém conheço as tristezas dos guachos – sem lar nem teto e sei que a fome de afeto é a mais cruel das pobrezas.

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E é por ter pena dos outros que andam solitos na terra que quando esse guacho berra meu peito chucro se amansa.

Pois eu sinto, na confiança que inspiro ao pobre borrego, o mesmo anseio de aconchego que tive, quando criança.

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Don Athaualpa Um Dom Quixote, Um Martin Fierro, Um mito, O tapejara dos caminhos grandes, Foi um vaqueano, Desde a Pampa aos Andes, Tropeando penas Que juntou solito!

Ele buscava, Com certeza, "Nel camino", Matar as ânsias Da guitarra bruxa; Ponto mais alto da expressão Gaúcha Que o Deus pampeano Fez nascer no pergamino!

Se nem o eixo Da carreta Tinha graxa, Porque uma quebra do silêncio não Magoa, soltava os bois no Manancial da aguada boa Que o veterano da planura Sempre acha!

Don Athaualpa! O guitarreiro! O gênio!

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Confúcio pampa Dos fogões, Profeta! Troveiro antigo, Payador e poeta, O "perseguido patriarca do milênio"!

Brota do flanco dos peraus E galopeia, Do cerro colorado, Uma neblina E – nas seis cordas Da guitarra campesina Uma "lunita tucumana" malambeia!

Exemplo à juventude do planeta Que – por incúria dos grandes Desmorona, De que a virtude Pode estar numa bordona Ou nos rangidos ancestrais De uma carreta!

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Meu Pedido Se me fosse concedido pelo Ser Onipotente que eu escolhesse um presente, algo de grande e querido, o meu supremo pedido seria voltar distância à primeira ignorância, mais doce do que uma flor eu pediria ao Senhor que me devolvesse a infância!

Eu não queria dinheiro, nem fortuna – nem saúde, mas aquela alminha rude de piazito missioneiro ao pé do fogão campeiro do velho pago avoengo, ouvindo o vento andarengo, senhor do tempo e caminho, contando – devagarzinho, histórias do diabo rengo...

Sentindo a fumaça crua que faz chorar de brinquedo, meio arrepiado de medo dos duendes da pampa nua, e o beijo da mãe charrua mais doce que um caramelo, naquele doce desvelo que de ternura se esvai e a mão amiga do pai

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me esparramando o cabelo!

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Payada do Ano Novo Feliz Ano Novo – indiada, Feliz Ano Novo – gente, É a maneira reverente De iniciar esta payada, Nesta hora iluminada De pátria e de melodia E o payador se arrepia De tradição campesina Na primeira sabatina Do ano que principia!

Cerimônia não preciso Para cantar – quando falo, Porque nasci de a cavalo No lombo de um improviso, Canto até o dia do juízo No estilo missioneiro E o meu verso galponeiro Dispensa qualquer prefácio, Tanto entra num palácio Como num rancho posteiro!

O Ano Novo – parido, Anda aí – fazendo as suas, Pelos campos – pelas ruas, Potrilho recém lambido, Inda não tem apelido Porque é meio bagualão, Difícil de dar a mão E bombeando desconfiado Como china de soldade

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Em tempo de "prontidão"!

Os homens do mundo inteiro Fizeram ajuntamento Pra assistir o nascimento Desse piazito janeiro E aqui no pago campeiro Toda a indiada se reuniu E reverente – assistiu, Com ternura – com afinco, Pra ver o "noventa e cinco" Que a noite grande pariu!

Aqui no povo – as famílias, Fazem o tal "reveillon", Mas lá no campo – onde o som É o do vento nas flexilhas, Nós só fazemos vigílias Quando se reúne a pionada, Na volta da madrugada Ouviu-se um berro de touro, O ano macho – em vez de choro, Já nasceu dando risada!

Sendo macho – é sempre assim, Já nasce enrugando a testa, Porque não vem pra festa "De circo de borlantim"; – Esse vai ser de cupim, Gritava um índio de lá, Vai ser "buerana" esse piá, Se não der urucubaca, Umbigo cortado a faca E enleado num xiripá!

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Eu ia bobeando o céu Na hora do nascimento E ouvindo o choro do vento Num barbaresco te-déum, Depois – tapiei o chapéu, Meio pra espantar o sono, Memoriando – com entono, Do índio da timbaúva Que Ano Novo é como chuva, Não tem patrão e nem dono!

Entre um trago e um amargo, Recostado num esteio, Bombeava o piazito feio, Mas taluda – sem embargo, Sentindo no campo largo Cheiro de pasto e incenso Naquele desejo imenso De que este ano que nasce Faça que o homem se abrace No amor da paz e o bom-senso!

Isso é um sonho, talvez seja, Do payador que improvisa, Mas um sonho se realiza Se – com fé – a gente o deseja, Mas – pra mim – que tenho a igreja No altar da geografia, Guardo essa filosofia De cruzador sem parança, Se não houvesse esperança Tudo que é pobre morria!

Mas vou dar uma cruzada Lá pras bandas de São Luiz,

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Onde deixei a raiz Pra todo o sempre encravada, Terra santa – colorada, De sangue guasca tingida, Terra mil vezes querida Morada de São Sepé, Ali onde a indiada de fé Nasce com a alma encardida!

Cruzando o Piratiny Vou ver as pedras no fundo, Santo pedaço de mundo Que deixei – mas não perdi, Voltar de novo a guri, À infância e adolescência, Rever de novo a querência, Num verdejo espiritual, Meu velho pago natal Onde mamei inocência!

Depois – seguir olfateando Os recuerdos de criança, Procurando a sombra mansa Onde me criei tropeando E – logo adiante – cruzando No Passo da Laranjeira, Lá onde uma bugra parteira, Segundo o ritual antigo, Fez enterrar meu umbigo Na raiz duma figueira!

Depois – matar a saudade, Se é que a saudade se mata, Bombeando a lua de prata Tropeando na imensidade,

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A infância e a mocidade E as ânsias deste índio cuera E as flores da primavera Que – sem querer – esmaguei E os sonhos que não domei Lá no "rincão da tapera"!

Mas paro – porque a emoção Já me fez perder a calma, Tenho urumbevas na alma E um cerro no coração, Há um chamado de amplidão Que para longe me toca Atração que convoca De acordo com as velhas leis Vou dançar ternos de reis Nos ranchos da bossoroca!

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Payada do Negro Lúcio Vou tenteando na cambona já bem abaixo do meio, lá pras bandas do rodeio ouço um berro de mamona; aqui guitarra e cordeona, chimarrão – fogo de angico; o sol já com braça e pico neste final de janeiro que vai indo mais ligeiro do que soldo de milico!

Mateando – meio solito porque o patrão e a peonada já saíram pra invernada, há muito tempo – cedito, o sábado está bonito e a indiada aqui da fazenda de tarde – se vai a venda e aos bolichos do caminho, ou então – beber carinho nos braços de alguma prenda!

Mas enquanto eu chimarreio neste morrer de janeiro, meu pensamento chasqueiro se aviva – mascando o freio e sai – a pedir rodeio nas lembranças – retoçando; eu me paro – recordando as falas do negro Lúcio, muito maior que Confúcio

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pra filosofar trançando!

E ele sempre me dizia, enquanto tirava um tento, naquele linguajar lento cheio de sabedoria: – a noite é a ilhapa do dia na argola da escuridão, é quem garante o tirão em todas as lidas sérias, neste varal de misérias que é a existência do cristão!

Deus não fez rico nem pobre, peão – patrão ou capataz, isso é o destino quem faz e – como é – não se descobre, o nobre que nasce nobre nem sempre assim continua; pra beleza da xirua ou cavalo de carreira não adianta benzedeira, nem reza ou quarto de lua!

Enquanto filosofava naquele estilo sereno o semblante do moreno parece – se iluminava, a vivência é que falava naquela conversa mansa e – no fundo da lembrança, inda o escuto reafirmar: – parar não é descansar porque estar parado – cansa!

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Dele mil vezes ouvi o que tem que ser – será, por longe que o homem vá jamais fugirá de si e com ele eu aprendi as cousas da natureza, a fidalguia – a franqueza e aquela velha sentença: – atrás da cinza mais densa existe uma brasa acesa!

E chego a ouvi-lo fazer junto dum fogo de chão, uma grande distinção entre existir e viver; filho, dizia – morrer não é mais do que uma viagem, por isso não é vantagem o forte fazer alarde que – às vezes – pra ser covarde, precisa muita coragem!

Inda vejo o conselheiro que evoco com devoção naquele estilo pagão de Confúcio galponeiro que me dizia: parceiro nesta existência brasina, cada qual traz uma sina que força alguma desvia e nada tem mais valia que as coisas que a vida ensina!

Filho – a verdade – verdade que nenhum sistema esconde

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é que o povo não tem onde suprir a necessidade e vive pela metade abaixo de tempo feio, vai explodir – já lo creio, a tampa dessa panela, nem adianta acender vela pro negro do pastoreio!

Como encontrar os perdidos num país deste tamanho, se venderam o rebanho e os homens foram vendidos, se os chamados entendidos falam de cara risonha defronte a crise medonha de estelionatos e orgias, quem mente todos os dias vai ficando sem vergonha!

Aqui o Rio Grande isolado pela mão pátria madrasta, dia a dia – mais se afasta do poder centralizado, mesmo que guaxo pesteado botado de quarentena, quanto ao capataz – que pena, não serve para o Rio Grande na hora de ficar grande se abata e se apequena!

Na hora de dizer: pára! àqueles que nos ofendem, desrespeitam – desatendem ao Rio Grande tapejara,

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não sei porque – esconde a cara, quando a ocasião é mostrá-la, calçar o pé – erguer a fala porque esta terra pampeana não é a "casa da mãe Joana" e nem tão pouco senzala!

Não é ofensa – capataz, é que os homens desta terra, adquiriram na guerra direito de estar em paz, dentro dum clima capaz de viver em harmonia, sem toda essa vilania de boicotes e de ameaça que estão fazendo – de graça à velha capitania!

A própria carne importada lá de fora – é um desaforo, e o calçado – há tanto couro e gado nesta invernada e arroz da safra passada, pra que essa compra mesquinha, querem nos dobrá a espinha e nos cortar a garganta, mas Rio Grande – não se espanta como se faz com galinha!

Que lindo se – o presidente em vez de passear na Europa, passasse em revista a tropa deste país continente e num gesto inteligente viesse ao Rio Grande fronteiro

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que já era brasileiro antes mesmo de Vespúcio e levasse o negro Lúcio pra servir de conselheiro!

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Sem Diploma Bendito aquele que estuda porque estudar é importante, embora o ignorante tem sempre um santo que ajuda, às vezes a sorte muda, quando existe um santo forte, cada qual procura um norte, por isso não encabulo – que a tava que bota culo é a mesma que bota sorte!

Meu tetravô foi fronteiro, meu bisavô domador, o meu avô – alambrador e o meu pai foi carreteiro; a mim não sobrou dinheiro pra cursar a faculdade, mas tive a felicidade graças ao nosso senhor e me tornei payador pra guardar a identidade!

O estudo é muito bonito e até muito necessário, mas este cantor primário, cruzando o pago infinito, continua – a trotezito, mesmo sem ser diplomado e me sinto conformado, o que é meu – ninguém me toma, pois duvido que um diploma

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torne um burro advogado!

Como é lindo colar grau num salão de faculdade, embora essa qualidade não transforme o bom em mau, o Jayme Caetano Braun, dessa linha não se afasta, a inspiração não se gasta nem me torna mais cruel, eu conquistei um anel o de gaúcho – e me basta!

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Fonte digital: RocketEdition - Ed. eBooksBrasil - Colocado na Rocket-Library - Disponível em *.rb em www.ebooksbrasil.org

pdf: eBooksBrasil.org — Maio 2008