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    Pitgoras, 500vol. 2Abr. 2012ISSN 2237-387X

    Engajamento e interveno sonora no Brasil no ps-1964: a ditadura militar e ossentidos plurais do show Opinio1

    Ktia Rodrigues PARANHOS2Universidade Federal de Uberlndia - UFU

    Cena I: arte e engajamento

    Teatro popular e teatro engajado so duas denominaes que ganharam corpo por

    intermdio de um vivo debate que atravessou o final do sculo XIX e se consolidou no

    sculo XX. Seu ponto de convergncia estava na tessitura das relaes entre teatro e

    poltica ou mesmo entre teatro e propaganda. Para o crtico ingls Eric Bentley, o teatro

    poltico se refere tanto ao texto teatral como a quando, onde e como ele representado.

    Alis, ao saudar a presena do teatro engajado, na dcada de 1960 nos Estados Unidos,

    Eric Bentley lembra que o fenmeno teatral por si s subversivo:

    [...] onde quer que duas ou trs pessoas se renem, um golpe desfechado contra asabstratas no-reunies do pblico da TV, bem como contra as reunies digestivas decomerciantes exaustos na Broadway. [...] A subverso, a rebelio, a revoluo no teatrono so uma mera questo de programa, e muito menos podem ser definidas emtermos de um gnero particular de pea (BENTLEY, 1969, p. 160 e 178).3

    Por vezes condenada como escapista, noutras vezes incensada como ferramenta de

    libertao revolucionria, a arte, de modo geral, continua sendo um tema candente tanto na

    academia como fora dela. Este trabalho aborda a importncia histrica do show Opinio,

    encenado em dezembro de 1964, por meio das temticas inseridas em seu roteiro, bem

    como seu repertrio, como uma representao poltica de resistncia ditadura militar no

    Brasil. Enfatizo como caractersticas fundamentais desse musical a mistura de tradies

    culturais, a predominncia do que Eric Hobsbawm designa canes funcionais4(canesde trabalho, msicas satricas e lamentos de amor) e a produo/criao artstica dos

    1Este trabalho conta com o apoio financeiro do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico eTecnolgico) e da Fapemig (Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de Minas Gerais).2 Doutora em Histria Social pela Unicamp. Professora do Instituto de Histria e do Programa de Ps-graduao em Histria/Universidade Federal de Uberlndia/UFU. Bolsista produtividade em pesquisa doCNPq e do Programa Pesquisador Mineiro, da Fapemig. Editora de ArtCultura: Revista de Histria, Cultura eArte (www.artcultura.inhis.ufu.br). E-mail:[email protected] Para Raymond Williams, o teatro poltico inclui Piscator e Brecht, sem falar que o teatro da

    crueldade de Artaud poderia, no limite, ser enquadrado sob essa mesma designao. Sobre oconceito de teatro poltico, ver Williams (2002, pp. 109-124).4Ver Hobsbawm (1991, p. 52) e Paranhos (2007).

    http://www.artcultura.inhis.ufu.br/mailto:[email protected]:[email protected]://www.artcultura.inhis.ufu.br/
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    atores/cantores Nara Leo (musa da Bossa Nova), Joo do Vale (compositor nordestino) e

    Z Kti (sambista carioca). Mas no s a juno de msica e teatro tornou o Opiniouma

    referncia. Sua relevncia histrica se evidenciou, entre muitos motivos, graas ao

    momento no qual foi gerado: a estreia do show ocorreu quando o golpe militar ainda no

    completara um ano de vida e tida como a primeira grande expresso artstica de protesto

    contra o regime. Tambm chama ateno a configurao geral do espetculo que, em

    forma de arena, no dispunha de cenrios, somente de um tablado onde trs atores

    encarnavam situaes corriqueiras daquele perodo, como a perseguio aos comunistas, a

    trgica vida dos nordestinos e a batalha pela ascenso social dos que viviam nas favelas

    cariocas, tudo isso, acrescente-se, regado a msica que visava alfinetar a conscincia do

    pblico. O repertrio, embora fosse assinado por compositores de estilos diversificados,

    percorria uma linha homognea de contextos regionais, concedendo-se amplo destaque agneros musicais como o baio e o samba. As canes cantadas por sinal, vrias delas

    marcaram os anos 1960 a ponto de frequentarem inclusive a parada de sucesso

    exprimiam uma fala alternativa e ilustrativa no musical. Em Borand, de Edu Lobo, Nara

    Leo fazia ressoar, com sua voz melanclica, a tristeza dos retirantes que, impelidos pela

    seca, eram obrigados a abandonar a zona rural nordestina. J em Carcar, a composio

    mais emblemtica do negro maranhense Joo do Vale, a mesma intrprete desfiava a

    histria dessa ave sertaneja, apelando para metforas sobre sua valentia e coragem. Nessacano era possvel perceber a relao que se estabelecia entre o carcar e a ditadura militar,

    que investia com toda fria contra os que a ela se opunham. Da o interesse em analisar a

    juno da msica e do teatro como expresses de engajamento e de interveno sonora que

    fluam no espetculo e para fora dele nos tempos difceis da ditadura militar brasileira, que

    ainda mostraria flego para perdurar, com maior ou menor fora, por longos 21 anos.

    Cena II: podem me prender/podem me bater/podem at deixar -me sem

    comer/que eu no mudo de opinio

    Aps o golpe militar de 1964, o grupo de artistas ligados ao Centro Popular de

    Cultura/CPC (posto na ilegalidade), reuniu-se com o intuito de criar um foco de resistncia

    e de protesto quela situao. Foi ento produzido o espetculo musical Opinio, com Z

    Kti, Joo do Vale e Nara Leo (depois substituda por Maria Bethnia), cabendo a direo

    a Augusto Boal. O espetculo, apresentado no Rio de Janeiro em 11 de dezembro de 1964,

    no Teatro Super Shopping Center, marcou o nascimento do grupo e do espao teatral que

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    veio a se chamar Opinio5. Os integrantes do ncleo permanente eram Oduvaldo Vianna

    Filho (o Vianninha), Paulo Pontes, Armando Costa, Joo das Neves, Ferreira Gullar,

    Thereza Arago, Denoy de Oliveira e Pichin Pl.

    O showfoi organizado no famoso Zicartolarestaurante do sambista e compositor

    Cartola e de sua companheira Zica , onde ocorriam reunies de msicos, artistas,

    estudantes e intelectuais6. Foi esse o ambiente catalisador da unio de interesses de

    experientes dramaturgos e msicos, com diferentes estilos e atuaes no campo cultural,

    que resultou num roteiro indito: um espetculo musical que continha testemunhos, msica

    popular, participao do pblico, apresentao de dados e referncias histricas, enfim, um

    mosaico de canes funcionais e de tradies culturais. Tanto o enredo quanto o elenco

    eram notadamente heterogneos e talvez seja esse o motivo pelo qual o Opinio tenha

    comeado sua trajetria com sucesso. O grupo privilegiou, desde a estreia, a forma doteatro de revista, numa mescla de apropriaes e ressignificaes do popular e do

    nacional, abrindo igualmente espao para apresentaes com compositores de escolas de

    samba cariocas.

    Joo das Neves, que dirigiu o Opinio por dezesseis anos, enfatiza:

    O nosso trabalho era fundamentalmente poltico e, assim, pesquisar formas nosinteressava e interessa muito. [...] A busca em arte no apenas esttica ela esttica e tica ao mesmo tempo. Eu coloco no que fao tudo o que eu sou, tudo oque penso do mundo, tudo o que imagino da possibilidade de transformar o mundo,de transformar as pessoas. Acredito na possibilidade da arte para transformar. Se nofosse assim, eu no faria arte; faria outra coisa (NEVES, 1987, p. 21)7.

    Podemos afirmar que o espetculo no s focalizava como mistificava novos lugares

    da memria: o morro (favela + misria + periferia dos grandes centros urbanos

    industrializados) e o serto (populaes famintas, [...] o messianismo religioso [...] e o [...]

    coronelismo) (CONTIER, 1998, p. 20). Por meio da msica, as interpretaes e

    discusses a respeito dessas realidades fluam no espetculo, alternadas por depoimentos

    5De acordo com Joo das Neves (2010), o nome Grupo Opinio passou a ser utilizado a partir daencenao de Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, em 1966.6Ver Castro (2004).7 importante salientar que o grupo Opinio focalizava suas aes no teatro de protesto, deresistncia, e tambm se caracterizava por ser um centro de estudos e de difuso da dramaturgianacional e popular. Afinado com essas propostas artsticas e ideolgicas, o diretor Joo das Nevesprivilegiava a montagem de textos, tanto nacionais quanto estrangeiros, que servissem de enfoquepara a situao poltica do Brasil nos anos da ditadura, tais como: A sada, onde fica a sada?, em 1967,de Armando Costa, Antnio Carlos Fontoura e Ferreira Gullar; Jornada de um imbecil at o

    entendimento, em 1968, de Plnio Marcos;Antgona, em 1969, de Sfocles, numa traduo de FerreiraGullar;A ponte sobre o pntano, em 1971, de Aldomar Conrado; O ltimo carro, em 1976,Mural mulher,em 1979, e Caf da manh, em 1980, de Joo das Neves. Ver Neves (1987).

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    dos atores que compartilhavam, fora do palco, as mesmas dificuldades cantadas por eles,

    como nos casos de Joo do Vale (nordestino retirante) e Z Kti (morador de uma favela

    carioca). J Nara Leoconhecida como a musa da bossa nova que personalizava a classe

    mdia assumia uma postura de engajamento e se posicionava de forma ativa e

    questionadora da realidade brasileira.

    Recorto aqui alguns trechos do show 8:

    Minha terra tem muita coisa engraada, mas o que tem mais muita dificuldade praviver (Joo do Vale. In: COSTA, 1965, p. 19).

    Vida de sambista vou te contar. Passei oito anos em estdio de rdio, atrs de cantor,at conseguir gravar minha primeira msica. O samba A voz do morroeu sou osamba (...). A ele teve mais de 30 gravaes. (...) O dinheiro que ganhei deu paracomprar uns mveis de quarto estilo francs e comi trs meses carne (Z Kti. In:

    Idem, p. 19).

    Ando muito confusa sobre as coisas que devem ser feitas na msica brasileira mas voufazendo. Mas mais ou menos isso eu quero cantar todas as msicas que ajudem agente a ser mais brasileiro, que faam todo mundo querer ser mais livre, que ensinem aaceitar tudo, menos o que pode ser mudado (Nara Leo In: Idem, p. 20).

    Esse movimento de aproximao das diferenas num palco de teatro foi conduzido

    por uma tendncia ainda de carter cepecista, uma vez que nos CPCs o principal lema era

    portar-se como transmissor de uma mentalidade revolucionria para o povo e assim atingira to utpica revoluo social9. No poderia ser diferente, pois os dramaturgos do Opinio,

    como Vianninha e o poeta Ferreira Gullar, eram membros ativos dos Centros Populares de

    Cultura e utilizavam suas peas, inclusive o musical Opinio, como meio de fazer emergir

    na plateia valores novos e uma capacidade mais ricade sentir a realidade(KHNER

    e ROCHA, 2001, p. 54-55)10no intuito de estabelecer uma identificao entre os atores e o

    pblico. Segundo Helosa Buarque de Hollanda e Marcos Gonalves (1995, pp. 23-4),

    encenava-se um pouco da iluso que restara do projeto poltico-cultural pr-64 e que a

    realidade no parecia disposta a permitir: a aliana do povo com o intelectual, o sonho da

    revoluo nacional e popular.

    Como j mencionado anteriormente, a estrutura geral do espetculo era em forma

    de arena, no dispunha de cenrios; tinha somente um tablado no qual os trs atores, em

    seus trajes cotidianos (camiseta e jeans), falavam de si, de sua vida, de suas lembranas e

    cantavam e encenavam situaes daquele perodo. Vejamos alguns exemplos:

    8Ver tambm o CD Grupo Opinio (1994).9Sobre a noo de povo para os integrantes do CPC, ver Mostao (1982, especialmente, pp. 59-60).10Mais detalhes da atuao do CPC no Rio de Janeiro, ver Neves (1987).

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    1. sobre a seca

    J fiz mais de mil promessasRezei tanta orao

    Deve ser que eu rezo baixoPois meu Deus no me ouve, no (Borand, Edu Lobo. In: Idem, p. 28).

    2. a condio do nordestino retirante, no olhar de Z Kti

    O morro sorri mas chora por dentroQuem v o morro sorrirPensa que ele felizCoitadoO morro tem sedeO morro tem fomeO morro sou eu

    Um favelado (Favelado, Z Kti. In: Idem, p. 29).

    3. a questo da terra

    Eu sou um pobre cabocloGanho a vida na enxadaO que colho divididoCom quem no plantou nadaSe assim continuar

    Vou deixar o meu sertoMesmo com os olhos cheios dguaE com dor no corao (Missa agrria, Carlos Lyra e G. Guarnieri. In: Idem, p. 44).

    4. a esperana no futuro

    E no entanto preciso cantarMais do que nunca preciso cantar preciso cantar e alegrar a cidade

    A tristeza que a gente temQualquer dia vai se acabar (Quarta-feira de cinzas, Vinicius de Moraes e Carlos Lyra. In:

    Idem, p. 61)

    Eu sou o sambaA voz do morro sou eu mesmo, sim senhor

    Quero mostrar ao mundo que tenho valorEu sou o rei dos terreiros.... (A voz do morro, Z Kti. In: Idem, p. 78).

    Incluir o(s) marginalizado(s) na cena teatral brasileira no foi um mrito exclusivo

    do show. Basta lembrar de Eles no usam black-tiede Gianfrancesco Guarnieri11. Contudo, o

    formato musical e o roteiro no cronolgico diferenciavam o showpela aproximao que

    esses elementos propiciavam entre palco e plateia. Como decorrncia de toda a sua

    11Segundo Costa (1996, p. 21) a novidade era que Black-tie introduzia uma importante mudana de foco emnossa dramaturgia: pela primeira vez o proletariado como classe assume a condio de protagonista de umespetculo.

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    concepo, o showOpiniose calcava no pressuposto de que a representao da realidade se

    alinha com a perspectiva de teatro verdade e implica a criao de um ambiente de

    comunho e igualdade entre todas as partes envolvidas no espetculo, sobretudo o pblico,

    como se todos tivessem um denominador comum: estariam irmanados por pertencerem,

    de maneira inescapvel, mesma realidade.

    Alis, interessante mencionar que o Opinio

    atraiu basicamente estudantes e pessoas do mundo artstico, apesar de seu pblicovariar de estudantes a classe mdia alta. Entretanto, o nmero de espectadores queviram o espetculo d uma ideia mais ampla de sua recepo. Ross Butler conta queem algumas semanas mais de 25 mil pessoas o tinham visto no Rio, e que em SoPaulo e Porto Alegre (onde foi encenado mais tarde) mais de cem mil pessoas oassistiram. O espetculo teve tambm um efeito multiplicado: Opinio se tornouemblemtico de protesto e solidariedade para muitos outros que no viram o show

    mas, tendo ouvido falar dele, compraram o disco (DAMASCENO, 1994, p. 169)12.

    Podemos ainda registrar sobre o showa variedade de temas, de ritmo, de msicas, a

    imprevisibilidade da ao cnica, a troca entre as diferentes dimenses a potica, a

    poltica, a tica, a histria dos testemunhos que vo se desdobrando em atos

    performticos, em discursos de carter multitemtico, caleidoscpicos por assim dizer. Vale

    a pena retomar alguns trechos de duas msicas do espetculo, que em especial empolgavam

    a plateia que superlotava o teatro naquelas noites sombrias. Na primeira, Opinio, Z Kti

    cantava: Podem me prender/Podem me bater/Podem at deixar-me sem comer/Que eu

    no mudo de opinio. Na segunda, Carcar, pela voz de Nara Leo, Joo do Vale narrava

    as aventuras de um pssaro voraz do serto, que no morre porque, com seu bico volteado

    que nem gavio, pega, mata e come (COSTA, 1965, pp. 41 e 62).

    Em artigo de 1968, Dias Gomes declara:

    Toda arte , portanto, poltica. A diferena que, no teatro, esse ato praticado diantedo pblico. [...] o teatro a nica arte [...] que usa a criatura humana como meio de

    expresso. [...] Este carter de ato poltico-social da representao teatral, ato que serealiza naquelemomento e com a participao do pblico, no pode ser esquecido sequisermos entender por que coube ao teatro um papel destacado na luta contra o statusquoimplantado em abril de 64 (GOMES, 1968, p. 10).

    Convm registrar que, no entendimento de Gomes, desde Anchieta nosso

    primeiro dramaturgo [e] tambm o nosso primeiro autor poltico(GOMES, 1968, p. 10),

    teatro e poltica esto umbilicalmente ligados questo da funo social da arte. A defesa

    12Vale conferir uma viso crtica sobre o show Opinioentendido como uma das criaes de um grupo declasse mdia para consumo das prprias iluses Tinhoro (1997, p. 86).

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    do engajamento, portanto, parte do princpio de que os autores que falam sobre a realidade

    brasileira (sob diferentes ticas) so engajados. Isso significa dizer que o teatro uma

    forma de conhecimento da sociedade. Assim, mesmo quem se autoproclama no engajado

    ou apoltico, na verdade, assume uma posio, tambm, poltica.

    Por sinal, ao se referir aos diferentes gneros literrios, Benot Denis (2002, p. 83)

    salienta que o teatro um lugar importante do engajamento; exatamente aquele que

    propicia as formas mais diretas de interao entre escritor e pblico: atravs da

    representao teatral, as relaes entre o autor e o pblico se estabelecem como num

    tempo real, num tipo de imediatidade de troca, um pouco ao modo pelo qual um orador

    galvaniza a sua audincia ou a engaja na causa que defende.

    O sentimento de transformao poltica est presente em todo o corpo da pea.

    Suas origens musicais, o passado dos integrantes no cenrio de oposio e intervenopoltica, bem como as particularidades dos atores estreantes, tornam-se intrigantes peas de

    um complexo quebra-cabeas que faz desse espetculo uma importante referncia na

    trajetria engajada do teatro brasileiro. Para Dias Gomes (1968, p. 11), a plateia que ia

    assistir ao show Opinio, por exemplo, saa com a sensao de ter participado de um ato

    contra o governo13.

    A respeito disso, anos depois, comenta Augusto Boal (2000, p. 226):

    Eu queria que escutassem no apenas a msica, mas a ideia que se vestia de msica!Opinio no seria um show a mais. Seria o primeiro show de uma nova fase. Showcontra a ditadura, show-teatro. Grito, exploso. Protesto. Msica s no bastava.Msica ideia, combate, eu buscava: msica corpo, cabea, corao! Falando domomento, instante!

    Cabe registrar que vrios autores preocupados com a situao ps-golpe abrem

    discusses acerca da importncia do teatro, dos dramaturgos e atores que foram

    personagens ativos desse perodo de represso. Entre eles podemos citar Maria Helena

    Khner e Helena Rocha, que trabalham a formao do Grupo de Teatro Opinio (e o showinaugural) como referncia de postura poltica no incio do governo militar. Na leitura da

    anlise por elas desenvolvida possvel vislumbrar, na constituio do Opinio, uma

    13 O show, porm, no foi unanimidade de crtica. Por exemplo, nas pginas da Revista CivilizaoBrasileira, o jornalista e crtico de teatro Paulo Francis observava que qualquer protesto til [...]pois, desde 1 de abril, o pas parece imerso em catatonia, precisando de ser sacudido. Mas Opinio,quando chega ao pblico, pelos intrpretes e a msica, nada contm de indutivo ao poltica.Basta-se a si prprio, muito agradvel [...]. Mas da a consider-lo como um evento poltico vai

    uma certa distncia, pois, nesse terreno, o espetculo nunca sai do Kindergarten sentimental daesquerda brasileira (FRANCIS, 1965, p. 217).

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    expresso de urgncia de mudana almejada por um grupo que muitos qualificavam de

    idealistas, utpicos, romnticos, ingnuos, loucos [...] que viveram a gerao da utopia

    (KHNER; ROCHA, 2001, pp. 34-5)e que nela criavam e se apoiavam, a fim de fazer do

    musical a primeira manifestao de engajamento do teatro brasileiro aps a ditadura.

    Um exemplo disso era a utilizao das msicas, to presentes, na constituio do

    show Opinio. O contedo das suas representaes transita entre o pblico e o privado,

    mostrando as mazelas da vida individual do trabalhador e do ambiente ao seu redor. Uma

    vez identificada essa fagulha de inconformismo, o pblico do teatro, ali, diante do palco,

    tem a oportunidade de retomar a posse de si mesmo, de reencontrar o prprio nome (Eu

    sou), de situar-se no plano social (Idem, p. 69).

    Por intermdio desse acontecimento cnico se visualiza um leque de

    representaes. O teatro, portanto, passa a se caracterizar no somente como meio deencenao/interpretao, mas tambm como divulgador de lugares e sentidos poltico-

    culturais.

    O show e o grupoOpinio podem ser vistos como exemplos do teatro engajado.

    Por isso mesmo, representam objetos de interessantes investigaes histricas por formular

    uma voz de protesto inicial, ainda em 1964, configurando-se como um protesto suprindo

    uma falta de algo: a possibilidade de dizer. Um protesto, sim, ainda que sob a forma

    espontnea, simples e improvisada de uma opinio (Idem, p. 46). Podemos ainda destacar ariqueza de ideias, a frmula da colagem, a participao do pblico, a reafirmao da

    resistncia, a valorizao das prticas culturais populares, a cumplicidade palco-plateia, a

    temtica ligada realidade brasileira, a concepo multifacetada de gneros musicais. Se,

    como aponta Edelcio Mostao (1982, p. 61), de um lado a encenao exercitava uma

    comunicao de circuito fechado: palco e plateia irmanados na mesma f, por outro, na

    mesma medida para Marcos Napolitano (2001, p. 75) representava a ampliao e a

    massificao do pblico, bases fundamentais para entender a entrada dos produtores

    culturais de esquerda na indstria cultural. 14

    Apesar da censura e da ditadura militar, o teatro brasileiro, nos anos 1960 e 1970,

    continuar dando sinais de uma produo crescente e voltada, na maioria das vezes, para o

    campo poltico. Cabe realar a atuao dos dramaturgos Jorge Andrade, Gianfrancesco

    Guarnieri, Augusto Boal, Dias Gomes, Ferreira Gullar, Oduvaldo Vianna Filho, Plnio

    14Depois da montagem de Antgona, em 1969, o Grupo Opinio, afogado em dvidas, dissolve-se.Joo das Neves, o nico que no aceita tal deciso, decide continuar sozinho e parte em busca de

    novos parceiros. O teatro inclusive ser alugado, em alguns momentos, para jovens iniciantes e oprprio diretor passa a comandar espetculos fora do eixo Rio-So Paulo. Ver Neves (1984, p. 55-59) e Khner e Rocha (2001).

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    Marcos, Carlos Queiroz Telles. Merecem tambm registro produes teatrais que traziam

    consigo a insatisfao com a ordem existente, como as do Teatro Universitrio

    (TUCA/PUC-SP, TUSP/USP, TEMA/Teatro Mackenzie) e dos grupos Teatro Jovem

    (RJ), Teatro Carioca de Arte (RJ), Dzi Croquettes (RJ), Asdrbal Trouxe o Trombone (RJ),

    Teatro de Arena de Porto Alegre/TAPA (RS), Grita (CE), Imbuaa (SE), Sociedade Teatro

    dos Novos (BA), Teatro Livre da Bahia (BA), Oi Nis Aqui Traveiz (RS). No incio da

    dcada de 1980, novas companhias despontavam no cenrio ainda governado pelos

    militares, como o T na Rua (RJ) e o Galpo (MG)15. Nessa perspectiva, os grupos de

    teatro integram um conjunto significativo de documentos inseridos em certo contexto

    scio-histrico e que se constituem como fragmentos de um perodo e uma forma

    interpretativa do social.

    Para terminar, retomo uma passagem, que considero uma sntese de procedimentosartsticos, de Maria Helena Khner e Helena Rocha (2001, p. 72):

    Opiniofoi a primeira aula dada ao pblico sobre como reaprender a ler certas obrasde arte ensinamento extremamente til nos anos (de censura) que se seguiram. Oclima, na plateia compacta, ensopada de suor e envolvida pelas paredes de concreto doteatro, era de catarse e sublimao. Vivia-se a sensao de uma vitria que tinha sidoimpossvel l fora.

    BIBLIOGRAFIA CITADA:

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    Abstract: This paper deals with the historical relevance of Opinio, a play enacted inDecember 1964, which had an important role as a political representation of the resistanceto the military dictatorship in Brazil. I highlight some key aspects of this musical, such asthe mixture of cultural traditions, the predominance of what Eric Hobsbawm namesfunctional songs (labor songs, satirical music and love regrets) as well as the artproduction/creation of actors/singers Nara Leo (a Bossa Nova diva), Joo do Vale (aNortheastern composer) and Z Keti (a Rio de Janeiro samba composer).

    Keywords: Opinio; post-1964 Brazil; engaged play.

    http://www.hist.puc.cl/historia/iaspm/actas.htmlhttp://www.traulito.com.br/?p=808http://www.traulito.com.br/?p=808http://www.hist.puc.cl/historia/iaspm/actas.html