PODE SER QUE SEJA S O LEITEIRO L FORA

Pea em 1 Ato

Prmio Servio Nacional do Teatro Texto selecionado para leitura

PERSONAGENS

JOO LEO BABY MONA (CARLINHA BAIXO-ASTRAL) ROSINHA ALICE COOPER ANGEL So todos muito jovens. Entre 20/30 anos.

CENRIO

Sala de uma casa abandonada. Na verdade, parece mais um quarto de despejo, atulhado de objetos fora de uso: colches furados, guarda-roupas, espelhos quebrados, cadeiras rasgadas, lixo, enfim, e at mesmo objetos absurdos que ficam ao gosto do diretor.

CENA 1

Quando a ao comea, a cena est completamente s escuras. A luz de uma lanterna vai revelando alguns objetos. To lentamente que chegue a ficar montono e angustiante. A lanterna pertence a Joo. LEO Joo, onde que voc est?

JOO Aqui, vem c. Tem uma porrada de coisas. (Esbarra num mvel.) Merda! LEO Que foi, cara? Que barulho esse? Tem algum a? JOO No. S uma porra no meio do caminho. BABY - Tinha uma porra no meio do caminho. No meio do caminho tinha uma porra... Yeah! Everybody now: tinha uma porra no meio do caminho... LEO Fala baixo, cara. Pode ter gente a. JOO Melhor, se tiver algum morando a gente fica logo sabendo. Ei, tem algum a? BABY - Anybody here? LEO (Baixo.) Mania de falar ingls... BABY - Lngua internacional, meu santo. Quando voc est no mundo, falando ingls as possibilidades de comunicao so muito maiores. JOO Cala boca, Baby! BABY Do fundo das trevas s o silncio nos responde, irmos. Acho que podemos instalar aqui os nossos domnios. (Tira uma vela do bolso. Acende e deposita em cima de um mvel. A luz aumenta.) Aqui, por exemplo, podemos colocar uma cortina de veludo cor de vinho. Com franjas douradas, claro, igual quela que tinha na casa da tia Nen. Aqui no canto acho que ficar de extremo bom-gosto um aparador com tampo de mrmore, igual quele que tinha na casa da v Manca. E claro que teremos sempre flores. Rosas. No, rosas no, muito vulgar. Melhor tulipas. Importadas diretamente dos Pases Baixos. Tulipas da Anturpia. Ou papoulas. Assim poderemos fabricar nosso prprio pio. Hmmmm, I like so much. What you think about, my fellow?

LEO - Voc acha que no vai ter problema? BABY O que? Importar tulipas ou plantar papoulas? LEO No, cara. A gente ficar aqui. Sei l, polcia, vizinho, o dono da casa, essas coisas. JOO (Acende outra vela e deposita sobre outro mvel.) Olha, eu acho que gente pode ficar pelo menos at amanhecer. Qualquer jeito no temos mesmo para onde ir. LEO E ainda por cima tem aquela chuva l fora... BABY Eu por mim fico aqui mesmo. Depois, de manh sempre acontece alguma coisa. As dez pras sete. LEO Por que dez pras sete e no vinte pras oito? BABY Porque eu gosto. Acho sonoro. Esttico. As coisas mais importantes da minha vida sempre aconteceram s dez pras sete. Sempre acontece alguma coisa. JOO - E tambm pode no acontecer nada. J viu l em cima? Tem trs quartos, banheiro, cozinha com fogo, um monte de coisas. Por mim fico morando aqui o resto da vida. At nem t muito estragado. A gente pode dar um jeito. BABY Basta chamar Mona e sua varinha de condo. Joo Falar nisso, tenho que chamar as outras pessoas. Fico preocupado com a Rosinha naquela chuva. Que que vocs acham? LEO - Eu no sei... E se tiver algum morando? BABY U, a gente chamou e ningum se manifestou. LEO Mas pode ser que... sei l, as pessoas tenham sado... Pode ser que voltam daqui a pouco. JOO Deixa de ser besta, Leo. Voc acha que algum pode viver no meio deste lixo todo?

BABY U, e ns no vamos viver? JOO Sim, mas diferente. Amanh a gente arruma umas vassouras e, sei l, d um jeito. Fica com medo no, Leo. No vai acontecer nada. No mximo, amanh pinta a polcia e manda a gente embora. Leo concorda em silncio, tira uma vela do bolso, acende, coloca ao lado das outras duas e senta num canto, um pouco assustado. JOO - Bem, eu vou l fora chamar os outros. No tenha medo, volto j... Afinal, parece que tudo vai terminar bem, no ? Tudo est bem quando termina bem, no assim? Pelo menos a gente j tem onde dormir esta noite. (Sai.)

CENA 2

Silncio. Leo ri as unhas e olha em volta lentamente. Baby comea a dedilhar o violo. LEO No sei, no. No gosto nada disso. Tudo to velho, to rebentado, to sujo. Parece um depsito de lixo. Sabe, eu me sinto como se tivesse acabado. Parece que nada mais vai ser bonito outra vez. BABY Olha, cara se voc der uma voltinha na cidade ou olhar pela janela vai ver que o depsito de lixo l de fora muito maior! Quando a gente est se sentindo assim s olhar em volta dar o tal de look-around -, a voc vai ver que no est to mal assim. A gente d o tal look-around e canta. Assim, quer ver? Eu quero mesmo muito pouco eu quase no quero nada de to pouco que eu quero. Talvez eu seja muito louco mas basta um canto e um teto mesmo furado. Um canto e um papo furado, tambm. No tem

importncia. Ningum entende nada de nada e enquanto tudo cai eu canto por quase nada. Um vintm, um tosto faz de conta, um pobre cego mas com o olho bem aberto: uma canoa furada um barco sem fundo tudo mundo e o cu perto tudo mundo e eu navego tudo mundo e eu navego tudo mundo, vasto mundo e eu nem me chamo Raimundo. LEO - Que msica mais doida, Baby. De onde foi que voc tirou esse negcio? BABY Da minha cuca, u. Acabei de compor. Ladies and gentlemen, my last song: Se Eu Me Chamasse Raimundo. Ei, como que se diz isso em ingls? LEO - Eu no entendo nada de ingls. BABY Pois devia. Sem saber ingls voc nunca vai subir na vida. Deixe ver... If I Called Myself Raimundo... Thing like that... RRRaimundo... Que sarro esta pronncia... LEO Me diz uma coisa: voc acredita nisso? Voc tem certeza absoluta que acredita mesmo nisso? BABY - Nisso o qu? LEO Nisso que voc acaba de cantar. Sei l, quero dizer... voc acha que basta mesmo um papo furado, um teto furado? BABY Olha, meu santo, certeza eu no tenho mesmo de nada. Nem sequer de que estou realmente vivo. Eu sei de agora, me entende? Agora basta um teto, melhor do que ficar naquela chuva, fria l de fora. Amanh no sei. Pode ser que... Olha, quer saber duma coisa? E melhor no aprofundar muito, no. Quando a gente aprofunda coletivo... LEO - O qu? demais acaba caindo sabe onde? No inconsciente

BABY In-cons-ci-en-te co-le-ti-vo. V, v, v. J ouviu falar num cara chamado Jung? Mais ou menos isso. Os arqutipos, sacou? Papo furado. No t com nada. No aprofunda no. Me d um cigarro.

CENA 3

Entra Mona. Traz uma bolsa enorme, uma vela acesa e duas varinhas de incenso na mo. MONA Hare krishna, Hare krishna / Krishna Krishna, Hare Rama / Hare Rama, Hare Rama / Rama Rama, Hare Rama, / Foras do Baixo-Astral / fora daqui. / Chegou Mona, inimiga do mal. / Chegou Mona, Rainha do Alto-Astral. / Ms vibraes, go home! / Ms vibraes, go home! (Incensa um pouco a sala, depois entrega uma varinha para cada um, distribuindo beijinhos.) Pra espantar os maus fludos. Nossa, Leo, voc est com uma cara pssima! O que foi agora? No est gostando do nosso novo lar? BABY No nada, no. O tal de inconsciente coletivo... MONA Corta! L vem voc de novo com esse papo xaropento. J no falei pra voc que intelectualismo no comigo, Baby? Abaixo a razo e o pensamento! O negcio s sentir, meu irmo, s sentir. Pensar j era. Pensar acabou, no se usa mais. Desde que parei de ler fiquei muito menos neurtica... BABY Imagine como voc no era antes. MONA Sabe com eu era antes? Um monstrinho de culos cheio de problemas gnero ser que vale a pena viver? ningum me ama, ningum me quer o que vou fazer do meu futuro? essas porcarias. Agora chega. Sou Mona, a Rainha do Alto-Astral, no quero nem saber. (Depositando a vela ao lado das outras.) Mas deixa eu dar uma olhada no nosso novo lar. (D umas voltas enquanto Baby

dedilha no violo. Ningum me ama ou qualquer coisa do gnero.) No t mau, no. J vi coisa pior. LEO Onde? Na lata de lixo? MONA - Quer dizer ento que a sua bed-trip continua a mesma? Puxa, voc sempre acha tudo um lixo. Corta essa. Olha, sabe duma coisa que eu aprendi? O segredo do belo est aqui, oh. Na sua cuca, no seu olho que realmente v, dentro de voc. Se voc souber olhar as coisas dum jeito mgico, tudo fica mais bonito. LEO Mgico? Nem que eu fosse o Merlin conseguiria achar bonita essa merda toda. MONA Corta, corta, corta! (Acende mais uma varinha de incenso.) Trs, para fechar o triangulo. Ah, Baby, me diz uma coisa: voc olhou o nmero da casa? LEO Eu olhei. cinqenta e oito. Mas o que tem isso? MONA Como o que tem isso? Esotericamente um dado importantssimo. O nmero sempre diz como vai ser toda a transao da coisa... Cinqenta e oito? Cinqenta e oito... deixa ver... Cinco mais oito, quanto d? BABY D treze. E se voc est querendo saber qual a carta do Tarot que tem o nmero treze, eu sei, a morte. LEO - Ei, que papo esse? MONA . Treze morte mesmo. Mas Morte pode ter muitos sentidos. No necessariamente morte fsica ou espiritual mas, sei l, renovao, renascimento, fim de um ciclo, comeo de outro, transmutao. Alm disso, tem tambm o cinqenta e oito. Deve ter um significado positivo. Deixa ver (Abre a bolsa e tira um livro enorme, consulta-o.) Ah, meu Deus, melhor esquecer essas coisas... BABY - O que foi?

MONA (Tentando disfarar.) Nada no. O que mesmo que eu estava dizendo? Ah, a transmutao. Pois , a trans... BABY Qual Mona? Escondendo a jogada? (Tomando-lhe o livro.) Aqui. Cinqenta e oito, quatro de espadas: Perigo eminente. Perigo por todas as partes. Remorsos. Arrependimentos estreis e acerbos. O que acerbos? MONA No sei, mas deve ser qualquer coisa bodiante. BABY (Continua lendo.) Sofrimentos morais. Aes

repreensveis. Decepes n& projetos. Mudanas desfav... MONA Chega. No vale a pena ficar se grilando toa. BABY U, voc que acredita nisso. MONA Acredito, sim. Mas at onde no me enche a cuca de grilos idiotas. E por falar nisso, qual o seu signo? No, no diga. Pode deixar que eu adivinho. (Observa Baby atentamente.) Essa transao de msica pode ser... pode ser Libra... mas no sei no... Voc sarcstico demais para ser Libra. Claro, no tanto quanto um Escorpio. Talvez Gmeos, no voc no to inteligente assim... O seu olho tem qualquer coisa de... esse fogo... de Sagitrio. BABY Libra, Escorpio, Gmeos ou Sagitrio? MONA - Ah, quer dizer que um dos quatro, ? Deixa ver.., muito irnico para Libra, muito doce para Escorpio, muito calmo para Gmeos. E essa transao do inconsciente coletivo.., deve ser Sagitrio, o centauro com os ps na terra. Querendo voar junto ao o sat. S pode ser Sagitrio. BABY - Tem certeza? MONA No, no, ainda no. Afinal, minha reputao est em jogo. Tenho direito a uma pergunta?

BABY - Vai firme. MONA Voc gosta de vermelho? BABY - A-do-ro! MONA Ento Sagitrio mesmo! BABY - Errou. Sou Leo. MONA O qu? Leo? Ah, no pode ser, a primeira vez em toda a minha vida que erro. Mas voc deve pelo menos ter um ascendente em Sagitrio, voc no tem? BABY - No. Meu ascendente Touro. MONA Mas fogo, claro. Foi por isso que eu me confundi um pouco. Tanto Leo como Sagitrio so signos do fogo, sabia? Est na cara que voc fogo. BABY Pode ser. De vez em quando at solto umas fumacinhas pelo nariz. MONA - O que que voc est rindo, baixo-astral? Tomem muito cuidado vocs dois, hein? Vocs precisam despertar o quanto antes o ser aquariano que dorme no fundo de vocs, os seus poderes ocultos. O quanto antes, meus irmos, o quanto antes eu sei o que digo. Daqui a pouco vem o fim dos tempos e quem no for mgico no vai escapar. LEO - Mas escapar do qu, meu Deus? MONA Das inundaes, terremotos, maremotos, fogo caindo dos cus tudo de bodiento que voc possa imaginar. Vo acontecer coisas medonhas a quem no estiver desperto, a quem no for mgico. Mas voc no tem cara de mgico, no. Nem de fogo. Para dizer a verdade, com essa cara voc deve ser mesmo Peixes: um bode s.

LEO Ei, como que voc sabe que eu sou Peixes? BABY (E comeando a empurrar alguns objetos.) Chutando, meu irmo, chutando. MONA (Incensando a cara de Baby.) Vade-retro, BaixoAstral, recolha-se s suas trevas sagitarianas. Sei porque sou um esprito muito velho. tive trs encarnaes no Tibet, duas no Egito e uma em Atlantida para falar s neste planeta. Estou em contato direto com foras paranormais, j abri as sete portas, sete moradas da minha mente e a minha Kundalini j subiu no mnimo at o quinto chakra. BABY Passado, presente e futuro. Tudo com Madame Mona Yoiara, 3 sacerdotisa oriental, por apenas dez cruzeiros. Vinte com mais detalhes. Cada consulta d direito a um brinde: uma bola de cristal inteiramente grtis. Papo furado. Onde que esto as pessoas? Alice, Joo, Rosinha. MONA Baby, meu amor, parece que a tua vibrao no est harmonizando com a minha. Voc est a fim de me irritar. Vai ser difcil: tenho Vnus na dcima primeira casa astral, em Libra. (Canta.) Ser eu sou, eu sou, eu sou eu sou amor da cabea aos ps. Pode agredir, quando chegar o Apocalipse que a gente vai ver... BABY Apocalipse... Apocalipse esse lixo todo aqui. Por que que voc no corta esse papo furado e vem me dar uma fora aqui? (Leo e Mona comeam a ajudar.) MONA A Rosinha no est nada bem. Eles foram comprar alguma coisa para comer. LEO - O que que tem a Rosinha? MONA Gravidez, no , cara? Mulher isso a. Um bode. Acho que estou pagando todo o meu Karma nesta encarnao. Se

caprichar nesta, na prxima vou para o espao, desencarno de vez. Ou ento venho homem. BABY Claro que voc prefere a segunda hiptese... MONA Sem essa, Baby. Voc sabe muito bem que eu sou andrgina. Mutante da Era de Aqurio. (Arrumam alguns colches como sofas. Mona remexe no meio de algumas coisas e encontra um vaso com flores.) Olhem s que bom pressgio: flores! LEO - De plstico. MONA No escuro ningum nota. (Ajeita o vaso num canto.) Voc acha que aqui fica bem? LEO Silncio! Vocs tambm ouviram? Tem algum l fora. MONA Ai, meus guias do Oriente. Ser que fantasma? Essa casa to velha, deve estar cheia de ms vibraes. LEO a polcia, tenho certeza que a polcia! BABY Historinha, historinha, tudo historinha. Inconsciente coletivo outra vez. Devem ser s as pessoas chegando. Joo, voc? JOO (Off) - Sou eu. Me ajuda aqui. A Rosinha est passando mal. (Baby sai para ajudar Joo. Mona corre a acender mais ama varinha de incenso.) (Entra Rosinha, amparada por Baby e Joo. Ela geme sempre. ) MONA Que isso, menina? Est tudo bem agora. No tem mais essa de se sentir mal. Pode desamarrar o bode. Olhe s em volta: j temos uma casa. Voc no gosta? ROSINHA Ah, no sei, no consigo nem olhar para fora de mim, Mona. Sinto uma dor horrvel aqui. Mas no tem nada. J vai

passar. Aqui est bom, quentinho. L fora estava chovendo, fazia frio. Daqui a pouco eu fico boa. JOO Alice foi batalhar po, tambm. Como , no apareceu ningum? LEO - Ainda no. BABY No apareceu nem vai aparecer. Ns at tentamos arrumar um pouco isso aqui. JOO Ficou bonito. J est quase parecendo uma casa. MONA Est maravilhoso. Tem at flores. LEO De plstico. MONA Baixo-astral. Tenho certeza que vou encontrar coisas ainda mais maravilhosas. LEO - Voc demorou tanto. JOO - Foi a Rosinha. Eu... ROSINHA Joo, fica aqui comigo. Me d tua mo... MONA Ei, vejam s o que eu achei: um monte de roupas. Puxa, parece que tem coisas incrveis. (Vai retirando coisas de dentro de um ba). Baby, me ajuda a cobrir esses colches. Vamos transformar isso aqui num castelo. (Comeam a cobrir tudo com panos.) Olha, pessoal, tive uma idia maravilhosa. J que a gente vai ficar aqui a noite toda e ningum vai dormir, claro, podemos fazer uma coisa timo uma festa fantasia! O que que vocs acham? (Ningum parece muito entusiasmado - exceto Baby.) Meu Deus, qual a de vocs, hein? Vo ficar a noite toda com essas caras de velrio, sem dizer nada? Eu me renego a curtir bode, t sabendo? Me re-nego. Na minha bolsa tenho batom, purpurina, sombra... Vamos fazer uma festa enquanto o dia no chega? J pensou, quando Alice chegar, encontrar todo mundo colorido, numa boa, oferecendo o maior

visual.. Ela adora visual... Pode crer. Voc, deixa ver... Pode ser loucura minha, mas sempre acho que voc grvida assim parece a Virgem Maria. ROSINHA Ah, Mona, eu no tenho jeito pra essas coisas. MONA (Comeando a vestir Rosinha.) Tem sim, senhora. J pensou? O seu filho pode ser at o prprio Cristo da Era de Aqurio? Voc precisa corresponder nobreza do seu futuro filho. Isso aqui o seu manto virginal. Um pouco de ruge, voc est muito plida, menina. Batom... (Afasta-se para olhar. Rosinha tenta sorrir.) Levante um pouco a cabea. Assim. Agora faa um ar de... de absoluta pureza... Olhe por cima de todo mundo, para bem longe. Voc foi tocada por foras mgicas enquanto dormia. (Acende uma varinha de incenso e vai incensando Rosinha enquanto fala.) Um ser todo feito de luz entrou no seu corpo e plantou essa semente em seu ventre. Deste ento voc sabe que no seu interior est crescendo a nica coisa capaz de salvar o mundo da loucura, das mquinas, do desamor, do medo, da sujeira, da violncia, da hipocrisia. A cada dia voc sente que chega mais perto o momento em que o seu ventre explodir, jogando para fora toda essa luz, todo esse amor. Ento ns todos estaremos salvos. (Coloca um cesto de palha aos ps de Rosinha.) Pronto: aqui est a manjedoura. Agora voc. Joo, o que que voc quer ser? JOO Ser? Eu... eu no sei... MONA Pois eu sei. Um pirata. Sabe que assim que eu vejo voc? s vezes at penso que voc deve mesmo ter sido um pirata numa outra encarnao. Uma pirata bom. (Comea a vesti-lo.) Voc assaltava navios armados at os dentes, incendiava, matava aqueles fidalgos gordos cobertos de seda, violava todas as mulheres, roubava todo o ouro e depois - sabe o que voc fazia, Joo? Voc distribua todo o ouro roubado entre os pretos de uma aldeia na costa de Madagascar. Eles adoravam voc, uma vez o feiticeiro da tribo fez

uma tatuagem no seu peito, o ritual durou sete luas novas. (Vai desenhando com batom no peito de Joo.) Um crculo mgico fechou todo o seu corpo, menos esse crculo. Voc s poderia ser morto no dia em que esse pedacinho do seu peito fosse atingido. E assim ainda no aconteceu, voc ainda est vivo, voc atravessou os sculos e continua sendo aquele mesmo pirata, um pirata um pouco perdido no meio das cidades, sempre com vontade de voltar para o mar. BABY - Eu quero ser um prncipe. MONA Voc um prncipe. Mas um prncipe solitrio. (Comea a vesti-lo.) Voc vive num castelo sobre a montanha mais alta e mais escarpada. Algum lhe prometeu um reino certa vez, um reino de paz e amor, e voc est esperando esse reino. As vezes voc desce a montanha e vai at a vila e tenta conversar com as pessoas. Voc anda sempre disfarado, elas no sabem que voc um prncipe. Mas voc se sente sozinho no meio deles, porque voc no pode se mostrar como realmente . Ento voc tem sempre a sensao que ningum o conhece, que ningum o entende. Voc est sempre esperando o reino que prometeram, esse, de paz e amor. S nesse dia, quando o encantamento quebrar e o seu reino for revelado, s nesse dia todos vo saber que voc sempre foi um prncipe. S nesse dia voc mostrar o seu verdadeiro rosto dourado e tocar seu alade para que todos fiquem contentes e sintam amor. E voc... LEO - Eu sou Leo. MONA Eu sei. Leo, signo Peixes. Do que que voc quer se fantasiar? LEO Eu no quero me fantasiar. ROSINHA Mas por qu, Leo? Mona inventa estrias to bonitas...

LEO Mona inventa estrias. Eu no quero ouvir estrias. Eu sou Leo, isso tudo. Joo no um pirata, Baby no um prncipe, Rosinha no a Virgem Maria. MONA Faz de conta... LEO Eu j no tenho mais idade para fazer de conta. Eu no quero fingir. Eu no posso fingir que isso aqui um castelo, que ns somos mgicos e encantados. Isso aqui uma casa abandonada, cheia de lixo, no um castelo: ns somos uns coitados mortos de fome, meio loucos e sem ter sequer onde dormir, no somos mgicos nem encantados. MONA - Voc no . E vou lhe dizer porque. Porque voc no consegue ver alm do cho, porque voc acha que as coisas s tem um lado, esse que o seu olho sujo v. Voc exatamente igual a esses cinzentos todos que esto l fora. A gente s consegue ver o que est dentro da gente. E voc s consegue ver o sujo, o feio e o doente das coisas. Tudo isso est dentro de voc, na sua mente, na sua cuca. Aqui. A sua cuca que feia, suja e doente. Nada horrvel, nada maravilhoso. O seu olho daqui que transforma tudo. O seu jeito de olhar. O que acontece que voc ainda no aprendeu a olhar. LEO Eu no consigo. Olho em volta e acho tudo nojento. O que que voc quer que eu faa? MONA (Mansa.) Tente. Sei l, tem sempre um pr-do-sol esperando para ser visto, uma rvore, um pssaro, um rio, uma nuvem. Pelo menos sorria, procure sentir amor. Imagine. Invente. Sonhe. Voe. Se a realidade te alimenta com merda, meu irmo, a mente pode te alimentar com flores. Eu no estou fazendo nada de errado. S estou tentando deixar as coisas um pouco mais bonitas. Voc acha que isso mau?

LEO - Mas eu no posso fingir que no estou com fome. Eu no posso fingir que este lugar bonito. Eu no posso fingir que viver uma coisa boa. Olhe pra mim: faz mais de uma semana que no tomo banho nem fao a barba. Faz quinze dias que uso mesmas meias. Elas j esto pegajosas, grudadas nos meus ps. No suporto mais o meu prprio cheiro. No suporto mais no ter banheiro, no ter casa, no ter nada. Olhe a minha boca: um lixo. Eu no posso sorrir mais. Faz dois meses que quebrei um dente e no tenho dinheiro para ir ao dentista. Olhe bem pra mim e me diga: voc acha que algum seria capaz de me amar com esta roupa imunda, com esta boca podre? Voc... voc mesma que fala de esprito, paz, amor e o caralho: voc seria capaz de esquecer toda a sujeira do meu corpo e me dar um beijo? Silncio. Mona hesita um pouco, depois, beija-o. LEO mentira! Voc me beija porque os outros esto olhando, porque voc acha que isso bonito, porque ficaria muito feio para voc no me beijar agora. Paz e amor... paz e amor no so coisa nenhuma quando o que cerca voc lixo. Eu no acredito em voc. Eu estou cansado desse seu esoterismo de bolso, dessas suas normas de bem viver la Selees do Readers Digest... (Irnico.) Se voc vem e me diz: agora ns vamos viver juntos e ser felizes para sempre. Vamos ter girassis no terrao, passarinhos na varanda, almofadas macias, vinhos e queijos todas as noites. Eu vou te amar muito, voc vai me amar muito. Tudo bem, meu anjo. Mas eu pergunto: e quem que vai lavar os pratos, quem vai varrer o cho, quem vai limpar a privada? Quem vai batalhar a maldita grana? Ou vamos estar to ocupados em nos amar profundamente que no teremos de pensar nessas coisas? No, no diga nada. Eu j sei: baixo-astral pensar nessas coisas, no ? Pois para mim baixo-astral o banheiro imundo, baixo-astral o lixo, a pobreza, a fome. Amor para mim inclui lenis limpos, banho tomado e barriga cheia. E isso eu no tenho. Nenhum de ns tem. Para mim, o mundo uma grande

lata de lixo e ns somos apenas as moscas esvoaando sobre essa merda toda.

CENA 4

(Um rock pesadssimo de Alice Cooper - talvez Killer - irrompe logo aps as ltimas palavras de Leo e serve como msica a entrar de Alice Cooper. E um rapaz muito maquiado e vestido de maneira ostensivamente andrgina.) ALICE (Cantando.) Cetim, purpurina e tafet brocado, muita seda e muito strass veludo, lules, miangas ah! meu negcio ofuscar meu negcio rebrilhar meu negcio cintilar. Ch, ch, ch, ch, ch, ch eu sou Alice dos mil pls eu sou Alice dos bos eu sou Alice superstar! Cruz credo, que loucura essa people? Quem que estava berrando feito louco aqui dentro? Esto currando algum, ? Se estiverem digam logo: quero participar. BABY- Alice Cooper, voc nunca foi to bem-vindo em toda a sua vida! Imagine que estas pessoas ainda esto discutindo o tal de Inconsciente Coletivo. ALICE Inconsciente coletivo eu hein? Pra mim pirao. Pois enquanto vocs ficam aqui de bobeira eu descolo coisas incrveis. Vejam s: (abre a bolsa e joga vrios pes para cima. Leo apanha um e comea a comer vorazmente.) E trouxe tambm um hspede. (Entra Angel com uma mochila nas costas.) ANGEL Buenas noches para todos. Yo soy Angel, estoy veniendo de la Argentina para el Peru. Estoy encantado en conocerlos.

ALICE - No umas gracinha? Tem vinte aninhos e Capricrnio. Capricrnio combina com Escorpio, minha bruxinha tropical? MONA S combina. gua e terra sempre se completam. ALICE Viu s, Angelito? Ns nos complementamos. Falou a Rainha do Alto Astral. E se ela falou, t falado. ANGEL (Prestando ateno em Mona.) Perdn, seforita, pero creo que te conozco de otro stio. No eres Carlinha Bajo-Astral? MONA Quem? Carlinha Baixo-Astral? Muito antes pelo contrrio, chiquito eu sou Mona, altssimo Astral! ANGEL Pero yo podria jurar por mi perra madre que eres Carlinha BajoAstral... El mismo tipo fsico, el mismo pelo, la misma... ALICE Ser que ele descobriu sua identidade secreta, minha fadinha underground? A sua face oculta, minha pitonisa dos pampas? MONA Nem morta. Est se vendo que ele no me conhece. ALICE Espera a, Angelito, como que era essa tal Carlinha Baixo-Astral? ANGEL - Bueno, era una chica muy... muy extravagante, como decir? muy peligrosa. Tenia exactamente mismo tipo fsico desta otra, pero era, bien... una barra un poquito pesada dems. A ia noche todos nosotros temamos encontraria por las calies. Tena trajes de chico, siempre de la color negra, y le gustaba la violencia. MONA Pois eu me visto de mulher, detesto a cor negra e tenho horror de violncia. Alm disso, no conozco Cochabamba. ANGEL (Intrigado.) - Como sabs que Carlinha vivia en Cochabamba?

ALICE Ah, sem essa, Anjo, vai ficar obsessivo agora, ? Foras! Esta daqui Mona a Rainha do Alto-Astral, e eu sou Alice Cooper, a barra mais bissexual da parquia. ANGEL Encantado en conocerlos. Bien, s puede ser que yo estea equivocado. He viajado mucho todo el dia, sabs? Estoy muy, muy fatigado. No, esta chica no puede ser Carlinha es demasiado simptica. MONA Gracias, carifio. ALICE Mas que loucura essa? Agora que estou reparando. Todo mundo colorido, maquiado, parece uma festa. Quem foi que teve essa idia maravilhosa? MONA Fui eu. J que a gente vai mesmo ficar aqui a noite toda, achei que era melhor fazer uma festa fantasia. De feia basta aquela cidade l fora, no ? ALICE Pode crer. Dou a maior fora. Rosinha, meu amor, no encontrei nenhuma farmcia aberta, um milho de sorrys mas acho que voc nem precisa mais de remdio. Voc t uma verdadeira glria. ROSINHA - Mona me diz que sou a Virgem da Era de Aqurio. ALICE Cruzes, Mona, quer dizer que voc continua curtindo essa de meninos de Deus, ? Chocante, minha nega, chocante. Misticismo no t com nada. O negcio pesar a barra. Descaralhar, t sabendo? Meu Deus, Joo, que coisa mais macha! Joo, voc sabe que sempre tive uma teso secreta por voc? Que pena voc ser to limitado sexualmente... A gente podia escandalizar o mundo com nossas lascvias. (Para Rosinha.) Little Rose, voc tem sorte honey... (Para Baby.) Voc tambm t uma gracinha. Inconsciente Coletivo. BABY (Fingindo afetao) Voc acha mesmo, bem? Ei, Alice, o que e que voc acha da gente fazer um som na praa, domingo? Eu

toco e voc canta, dana rumba, tango, tira a roupa, se masturba, faz o que voc quiser. Depois a gente passa o chapu e levanta a grana. ALICE (Superior.) - Eu bem? T pensando que eu sou o que? Muito vulgar, Inconsciente Coletivo, muito proleta pro meu gabarito. Fique sabendo que sou gente fina demais pra cantar numa msera praa. Meu som vai ser no Carnegie Hail, meu santo, com Mick Jagger no coro e Ney Matogrosso no platia, aplaudindo e dando fora, mas se voc rastejar a meus ps sou at capaz de cantar uma dessas suas musiquinhas subdesenvolvidas. MONA Carifio, creo que tengo la fantasia ideal para usted. ANGEL - Que hermoso! Pero puedes hablar portugues, yo entiendo todo. MONA - Que timo, meu espanhol um lixo. Voc no quer tirar essa mochila? Seno vai ficar um anjo meio corcunda de Notre Dame. Espera a que eu ajudo. ALICE (Interferindo e arrancando-lhe a mochila.)

Queridssima, um momento! Adoro voc, respeito toda essa sua transao de astral e tudo acho que no t com nada, mas respeito. S quero que voc me respeite tambm. Ento vamos deixar algumas coisas bem claras, t? Primeiro: esse menino que aqui vs foi caado por mim e vai ficar comigo, t legal? Segundo: voc pode fantasiar ele vontade, tirar a mochilinha, botar as asinhas a camisolinha e tudo. Mas no se esquea que ele vai ficar comigo, entendeu bem? (Para os outros.) Isso vale para todos vocs tambm, suas piranhas enrustidas. No sei se fui suficientemente explcito... BABY (Tirando um acorde do violo.) Cris-ta-li-no como sempre.

MONA (Ofendida.) Qual , Alice? Botando o escorpio pra funcionar ? At parece que voc no me conhece. (Conciliadora.) Eu sou assexuada, meu bem. Alm disso, s estou fantasiando o menino. ALICE (Seco.) - Acho bom. MONA Alm do mais, voc sabe muitssimo bem que mando todas as minhas energias sexuais pra cima, pra cuca. Quero voar, voc sabe. ALICE (Entediado.) T legal, t legal, dou a maior fora. Jogue a sua energia sexual pra onde voc quiser desde que no seja pra cima do meu angelito. E voc, Leo, no vai jogar uns panos por cima dessa caretice horrorosa? LEO (Seco.) No. ALICE (Espantado.) E por que no, cara? Foras! Colorido fica tudo muito mais bonito! Sabe uma coisa que eu descobri depois de muita porrada? As pessoas tm a obrigao de oferecer, no mnimo, um certo visual. Voc no acha que tudo ficaria mais bonito se as pessoas jogassem uns panos e umas cores por cima? LEO Eu acho que tem coisa mais importante que isso. ALICE - Tem nada, meu amor. Existe coisa melhor do que voc curtir seu prprio material? Eu me curto adoidado. Quando entro num lugar, fica todo mundo em silncio, olhando pra mim, na maior perplexidade. Uma vez um careta, depois de me olhar milnios, veio me perguntar se eu era homem ou mulher. Ora v se pode. Eu respondi: Sei l queridinho, acho que sou apenas um fenmeno contemporneo. Tenho certeza que ele ficou encucado uns trs dias. Sou uma fora para todos esses urbanides. Pelo menos fao eles pensar um pouco. Tratamento de choque, meu amor. Olha, meu filho, te dou um conselho Alice Cooper sabe o que diz: voc tem que ser

maravilhoso, seno ningum vai te olhar nunca. Curte, cara, curta adoidado! Sabe, pra mim a vida um punhado de lantejoulas e purpurina que o vento sopra. Daqui a pouco tudo vai ser passado mesmo - deixe o vento soprar, filhinho, let it be, fique pelo menos com o gostinho de ter brilhado um pouco. MONA - No sei, se faz muito meu gnero. Angelical demais pro meu gosto. Pra falar a verdade meu gnero mesmo so aqueles motoqueiros da pesada. Bluso de couro, botas, muita corrente, jeans manchados de graxa, mos cheias de calos - rude, viril e agreste (Suspirando.) Foras! Prefiro ele de mochila e cala Lee mesmo, se aproxima um pouco mais de meu ideal. Mas que se h de fazer? Deus tambm no perfeito. Como mesmo aquela frase do seu Tarot? Mona? MONA - Qual? ALICE El contentamento nel poco abre las puertas de lo mucho. isso a. (Para Angel.) Pero si te gusta, Angelito, para mi est muy bien. ANGEL Si, si, a mi me gusta mucho. Me encantam todas estas cosas celestiales. ALICE Coisas celestiais eu vou te mostrar daqui a pouco. (Para Mona.) E eu, Mona, voc no vai me vestir? MONA (Depois de olhar bem para Alice.) Pensando bem, eu acho que voc no precisa de fantasia nenhuma. ALICE (Olhando bem para Mona.) . Falou. Voc tambm no precisa. Ns j oferecemos visual sem necessidade de panos. MONA (Pensativa.) . Ns no precisamos. Estou cansada. Vocs querem um ch? (Exclamaes entusisticas.) Tenho uma garrafa trmica na minha bolsa.

ROSINHA - Ch de qu, Mona? MONA (Misteriosa.) Adivinhe... Ch de ervas orientais. Todo dia sete de cada ms uma fadinha boa traz um pacotinho do Nepal. Custa muito barato l. (Remexe na bolsa, tira uma garrafa trmica, todos sentam em semicrculo, enquanto ela serve. Existe apenas um copo - a tampa da garrafa trmica, que deve passar de mo em mo como na cerimnia japonesa do ch. Enquanto dura a ao, Mona canta.) No Nepal tudo barato No Nepal tudo muito barato No Nepal existe uma praa bem redonda e cheia de dinheiro. Quem precisa, tira o que precisa quem no precisa bota l de novo. No Nepal tudo barato No Nepal tudo muito barato. (Z Rodrix: Som imaginrio.) ALICE Ei, acabo de ter uma idia sensacional: cada um que beber faz um pedido em voz alta. Primeiro nosso hspede: Angel. ANGEL (Bebendo.) Yo quiero solo llegar a Peru. Y quiero tanbin que sea todo muy hermoso. Las llamas blanquitas, las yerbas mgicas y las vibraciones de Macchu-Picchu. ALICE - Eu quero ir para Nova Jorque, virar o maior mito pop do sculo e morrer no auge da fama da juventude e da beleza nos braos de um motoqueiro. BABY Eu? Eu quero um canto pra mim. Onde eu possa tocar minha viola e ter minhas coisas. ROSINHA (Gemendo.) Eu s queria parar de sentir esta dor... ALICE Que desejo mais besta, Little Rose. ROSINHA Mas s o que eu quero agora Alice. E voc, Joo? JOO (Cantarola.) Eu quero uma casa no campo... No, no campo no. Na beira do mar, construir uma casinha de madeira branca e ficar morando l, pescando e plantando, longe desta civilizao.

MONA Eu s quero uma coisa: que baixe um disco-voador e me leve para longe desta mesma ci-vi-li-za-o de pessoas cinzentas. LEO (Hesitando.) Eu... eu acho que eu queria conseguir ver as coisas um pouco mais... MONA (Tentando ajudar.) Bonitas? LEO (Com um suspiro.) . Bonitas. (Bebe.)

CENA 5

BABY (Cantando.) Eu agora quero ver as coisas mais bonitas que o meu olho nem sempre quer ver As coisas mais bonitas e mais incrveis que o meu olho nem sempre quer ver. TODOS Colorido-colorido atrs da vidraa colorido-colorido no fio da fumaa colorido-colorido no fundo da taa. BABY - Quem nunca andou no fio da navalha no sabe o que rasgar a prpria mortalha. Quem nunca voou alm do cascalho quando olha no espelho s v um espantalho. TODOS Colorido-colorido no banco da praa coloridocolorido no transo cachaa. BABY Quem nunca danou no vai poder danar agora. Lamento dizer, senhor e senhora se voc no decolou talvez seja melhor que v embora. TODOS Talvez seja melhor que v embora talvez seja melhor que v embora no seu fusco, assistir televiso no seu fusco, assistir televiso. (Voltam todos a seus lugares o autor acha importante esclarecer que, a partir de agora, nada mais tem explicao.)

JOO Voc vem comigo, Rosinha? ROSINHA Pra onde, Joo? JOO (Lentamente, sonhador.) - O campo, a terra, um lugar perto domar, onde a gente possa ser inteiro, longe da cidade. Eu no suporto mais a cidade, Rosinha. As vezes eu acho que vou enlouquecer no meio de toda essa correria, de todo esse barulho, essa ansiedade nas pessoas. Sabe, eu fico imaginando voc fazendo po, tirando leite, cuidando dos jardins, dos gernios. Voc gosta tanto de gernios. ROSINHA Eu vou com voc, Joo, claro que vou. Mas agora... agora eu no posso. Tem essa dor cravada aqui, dentro de mim. Ser que eu vou morrer, Joo? JOO (Sorrindo.) Morrer? Que idia essa, menina? Voc est to bonita. Nunca te vi to bonita como agora, com essa roupa de Virgem Maria. Fico te vendo exatamente assim como voc est agora na beira do mar caminhando na grama cuidando dos gernios, sendo verdadeira. L, tudo vai ser verdade, Rosinha e o que verdade sempre bonito. Na cidade as coisas so feias porque tudo mentira. O que a gente faz, o que a gente diz, at mesmo o que a gente sente tudo mentira. ROSINHA - Pega na minha mo, Joo. LEO (Irnico, interrompe.) -J ouvi esse papo antes. Ornar, o campo, a volta natureza. Faz cinco anos que eu conheo voc, Joo. Faz cinco anos que voc fala a mesma coisa. A mesma coisa. Sempre. Que idade voc tem? Eu sei: vinte e cinco, vinte e seis, vinte e sete no importa. Voc j no to jovem. Eu j no sou to jovem. No falta muito pra voc ter trinta anos. O seu cabelo j comeou a cair, voc j no acredita tanto nas pessoas, os seus dentes esto ficando estragados. As coisas vo ficar cada vez mais duras. O seu corpo vaise decompor lentamente e voc vai criar barriga e acreditar cada vez

menos em todas as coisas, em voc mesmo. O campo, a terra, o mar, a natureza vo ficar cada vez mais distantes. E um dia tudo no vai ter passado de um sonho. Um dia voc vai lembrar de tudo e pensar com tristeza: loucuras da juventude. E todo esse tempo d agora no ser mais que um longo tempo perdido, intil, jogado fora. Quanto mais voc ficar aqui, mais poludo voc fica, mais envolvido com a cidade. Cada vez mais difcil voc se libertar. Porque que voc no vai de uma vez? O que que voc est esperando? O que que voc est fazendo para realizar o seu sonho? ALICE (Interrompendo.) Pois eu vou realizar o meu sonho agora mesmo. No gento mais a caretice desse cara. Tem outra pea l em cima? JOO Tem trs quartos. ALICE Uau! Que exagero. Um s basta. Vamos, Angelito? ANGEL - Por que mi nombre es Angel? Hay un oscuro sentido por detrs de mi nombre. Que hacen los angeles? MONA (Imvel.) O ofcio dos anjos voar. ANGEL - Voar... volar... yo nunca ser un angel... Yo tendria que volar para que fuera un angel... Me gustaria tanto, sabes? Yo quiero volar hasta los sitios encantados... por entre las nubes... perderme nel cielo... yo quiero ser como un pjaro... volar... volar... hasta los stios encantados... (Alice sai empurrando Angel em direo porta, enquanto este repete que quer voar. )

CENA 6

BABY Ser que voc no entende que as coisas mudaram?

LEO - Eu tenho medo. BABY Eu poderia te ajudar, se voc no tivesse medo de mim. Olhe firme no meu olho e me responda: voc tem medo de mim? LEO - Eu no te entendo. BABY Voc no me entende porqu voc nos divide em dois: eu e voc. No existe diviso. Eu no sou s eu. Eu sou tambm voc e todos os outros, e todas as coisas que eu vejo. Voc no me entende porque voc nunca me olhou. Olhe firme no meu olho, me encara fundo. A gente s consegue conhecer algum ou alguma coisa quando olha para ela bem de frente, cara a cara. Me diz o que que voc est vendo no fundo das minhas pupilas? LEO - No fundo das tuas pupilas eu vejo meu prprio rosto. BABY - E no fundo das suas pupilas eu vejo o meu prprio rosto. Quando eu olho no seu olho eu sou voc e voc eu. Se voc tiver medo de mim porque voc tem medo de voc. Me diga agora, outra vez: voc tem medo de mim? LEO - No... eu acho que eu no tenho medo de voc... BABY Ento vou te contar uma estria que o meu segredo. No dia em que visitei o fim do mundo nasceu uma mancha branca dentro da minha cabea. Depois eu fui saber que eu tinha envelhecido. Que aquela mancha branca era a velhice. Naquele dia, havia vrias pessoas minha volta. Para eles podia ser uma praia, um apartamento ou uma rua qualquer. Mas para mim, para mim era o fim do mundo. O fim do mundo estava dentro de mim. E sabe como era o fim do mundo? Ele era branco e liso. No tinha nada l. Nenhuma cor, nenhuma forma. Eu sabia que se contasse aos outros do que estava vendo, ningum entenderia. Diriam talvez que eu estava louco. E tomariam as providncias que se costuma tomar com os loucos: clnicas, choques eltricos, grades na janela. Eu no podia

pedir socorro. Eu estava sozinho no fim do mundo e no podia ter medo. Se eu tivesse medo ficaria l para sempre, com todo aquele branco-liso dentro de mim. E nunca mais ningum me entenderia. O fim do mundo era o silncio e o vazio. Era a solido absoluta. Eu no queria ficar l, eu no queria ficar sozinho, eu no estava preparado, Leo. Eu precisava dar um passo alm do fim do mundo. Foi ento que eu descobri o jeito de dar esse passo. A maneira de vencer o fim do mundo era ench-lo de sons e de cores. Ento uma cano brotou do fim de mim, e eu cantei: Eu sou assim eu tenho um arco-ris dentro de mim. E eu venci, Leo, eu dei aquele passo eu venci o fim do mundo. Agora, cada vez que eu volto l eu canto essa musiquinha. Voc no quer cantar comigo, Leo? (Apanha um vidrinho de purpurina e comea a salpicar o rosto de Leo.) E to fcil. Canta comigo. Basta cantar: Eu sou assim eu tenho um arco-ris dentro de mim. LEO (Recuando.) Eu no posso... no posso... Talvez bastasse qualquer coisa como chegar muito perto de voc, passar a mo no teu cabelo e te chamar de amigo. Ou sorrir, s sorrir. Qualquer coisa assim. Seria simples, eu sei. Seria fcil, mas eu tenho medo. (Olha em volta.) Vocs, tudo isso aqui, para mim to desconhecido e to estranho como um sonho que ainda no tive. Se eu pudesse catar junto com voc.. Se eu pudesse sentir bonito... Quando voc canta, fica tudo lindo e eu no tenho medo... Canta, canta mais. No pare de cantar, Baby. Quem sabe daqui a pouco eu consigo cantar junto tambm. Baby canta at ser interrompido por um grito de Rosinha. JOO - O que foi? ROSINHA ele... ele est querendo sair de dentro de mim... MONA (Imvel, muito serena.) No tenho medo. Tudo acontece no momento certo. (Rosinha geme.) Silencio! Vocs no esto ouvindo?

(Todos escutam.) LEO (Estremecendo e afastando-se de Baby.) a polcia! Eu sei que a polcia! ROSINHA No, no... ele querendo sair de dentro de mim... MONA - No tenham medo. Eu reconheo esse barulho de mquina sobrevoando a casa. so eles. JOO Do que que voc est falando Mona? ROSINHA (Sempre gemendo.) - Eu estou cheia de dor. MONA (Sorrindo.) Eu estou cheia de luz. ROSINHA Joo, est ficando escuro dentro de mim. Eu tenho medo. Ele est querendo ir embora... E muito cedo, Joo, ele no vai conseguir... Leo, me d tua mo... Baby, canta para embalar o menino. Todos se aproximam, exceto Mona, que continua imvel. BABY (Cantando.) Bicho papo, sai de cima do telhado deixa meu menino dormir sossegado. Boi, boi, boi, boi da cara preta leva esse menino que tem medo de careta. Dorme nenm que a cuca j l vem papai t na roa, mame em Belm. ROSINHA (Enquanto ela fala, Mona levanta-se e comea a andar lentamente pela sala, olhando para cima como se acompanhasse rumores e movimentos no andar superior.) Joo, voc est ouvindo, Joo? Voc deixou o menino sozinho? Eu te disse para no deixar o menino sozinho. Tem o poo, Joo, o poo fundo, escuro. O menino vai cair l dentro, Joo. Ns precisamos chegar a tempo. Aonde eu fui, Joo? Por onde eu tenho andado, Joo? Ns no amos para o campo, voc no ia me levar para o mar? Ser que muito longe, Joo? Eu no podia deixar o

menino assim sozinho perto daquele poo. A minha me me avisou. No se deve deixar os meninos pequenos como ele perto do poo. Ele muito pequeno. Ele to pequeno que ainda no tem pernas como os outros meninos. Ele no pode correr, e no pode fugir do bichopapo, do boi da cara preta, da cuca. A cuca m, feia, suja. Leo, eu no sou suja. Leo, eu no sou feia... O nico jeito de vencer a cuca pingar uma gota dgua na testa dela at furar... at furar... Baby, manda a cuca sair de cima do telhado... MONA (No meio da cena.) Agora eles esto bem em cima do telhado. Exatamente sobre minha cabea. Eles so altos, louros, cheios de luz. Dizem que eles no se aproximam de quem come carne e de quem fuma, dizem que essas pessoas exalam mau cheiro. Faz trs anos que eu no fumo nem como carne. Eu no tenho mau cheiro. Eu estou preparada para entrar na nave. E uma nave enorme, dourada. JOO Do que voc est falando, Mona? MONA Deles. Dos extraterrestres. Dos discos voadores. Eles vieram me buscar porque eu estou preparada. Esto bem aqui em cima agora, exatamente sobre o meu stimo chakra, sobre o ltus de mil ptalas. Vocs no esto sentindo a vibrao? Essa luz dourada baixando devagar sobre as coisas. So eles, eu sei. Esperei tanto tempo. Como que eu podia saber que aconteceria agora, justamente agora aqui, nesta casa, nesta noite? Tudo faz sentido. Agora eu entendo. Nada gratuito. Eu preciso deixar vocs. Antes de ir embora vou deixar uma lembrana, o ltimo presente de Mona, a Rainha do Alto Astral. (Apanha a bolsa e vai tirando se dentro alguns instrumentos musicais: flauta, bongo, pandeiro, etc.) Foi Baby quem me ensinou: quando tudo fica difcil a gente canta e toca. No se esqueam disso. E o nico jeito de vencer o fim do mundo. Eu preciso ir. Eles vo me levar para l, para o outro lado, para depois do sol, para o alto astral, onde tudo dourado. J cumpri minha misso aqui. Vocs ouvem como eles me chamam? Parece o vento, a chuva mas

eu consigo ouvir mudamente a voz deles chamando pelo meu nome. Eu . estou indo. Esperei tanto tempo, tanto... JOO - Mona, volte aqui, disco-voador no existe! Voc est louca, Mona, volte aqui! ROSINHA - Deixa ela ir, Joo. Canta mais, Baby. D6i tanto. Quando voc canta como se parasse de doer. Me ajuda, Joo. No deixa ele ir embora. MONA Eu disse que ele era a nica coisa capaz de salvar o mundo. Se ele for embora o mundo acaba, Joo. Baby continua cantando canes de Ninar. Black-out. Ao mesmo tempo: Ouve-se um grito de Rosinha, misturado a rumor de mquina qualquer coisa como um automvel em alta velocidade, um som eletrnico ou uma exploso. Quando a luz volta, h um silncio. Rosinha est deitada. Muito plida. Seu manto branco est manchado de sangue. Leo e Baby, esto ajoelhados em atitude de adorao. Joo est em p, imvel, os braos estendidos acima da cabea. Um vidro nas mos. Dentro do vidro uma matria sangrenta. A cena permanece esttica at o momento em que Alice entra correndo.

CENA 7

ALICE (Muito agitado.) Foras gente, eu preciso de foras! O anjinho pirou completamente! JOO (Muito calmo, baixa os braos lentamente e deposita o vidro sobre a manjedoura.) O que foi que aconteceu? ALICE O angelito portenho. Primeiro entrou numa que queria voar, tive que fazer uma fora incrvel para botar ele noutra. Quase

que se jogou pela janela. Quando pensei que ele estava numa boa, entrou numa que eu era um vampiro, comeou a correr atrs de mim com uma estaca e um martelo, dizendo coisas... ANGEL (Off) Donde ests, prncipe de las tinieblas? No te ocultes de mi. Tengo que exterminar te. ALICE To ouvindo? T completamente pirado, eu... (Detm se e observa os outros.) Ei, mas o que foi que aconteceu aqui? LittleRose, voc est toda suja de sangue! Esse vidro.., meu Deus, ser que todo mundo enlouqueceu aqui dentro desta casa? Isso aqui est parecendo um filme de terror. Onde que est Mona? (Chama.) Mona, Mona, onde que voc t? JOO (Muito calmo.) Ela foi raptada por um disco-voador. ALICE O que? ANGEL (Entrando, avana para Alice, com uma estaca de madeira e um martelo nas maos.) Finalmente te encuentro, maldito! Ahora te voy a matar con mis prprias manos! ALICE Segurem esse tarado! Ele quer me cravar esse negcio no corao! (Ningum se move.) ANGEL (Declama Garca Lorca.) Maricas de todo el mundo, asesinos de palomas / Esclavos de la mujer, perros de sus tocadores, / abiertos en la plaza con fiebre de abanico / o emboscados en yertos paisajes de cicuta. Muerte a todos los vampiros maricones! ALICE Espera a, Anjinho, no nada disso. Calma. Olhe para mim. Sou Alice Cooper, encontrei voc na praa. Voc no tinha onde dormir, eu fui legal, convidei voc pra dormir aqui... ANGEL Callate, cabron! Perro de los infiernos! No quiero escuchar tus sucias palavras!

ALICE - Espera a, Anjinho, voc est entrando numa errada comigo... Olha vou te contar um segredo que nunca contei para ningum: sabe qual o meu nome, o meu nome verdadeiro mesmo, o nome com que me batizaram? E Jaime Roberto, voc a primeira pessoas que eu conto isso. Eis o meu segredo mais vergonhoso. Foras, meu Deus! Que coisa mais bagaceira, j estou vendo as manchetes no jornal amanh: Jaime Roberto, vulgo Alice Cooper, assassinado por mochileiro argentino. Olha, sabe o que h de errado com voc? E que voc viu muito filme de horror, s isso. Voc ficou influenciado, Angelito! ANGEL (Gritando.) Basta de comedias, demnio! Es

demasiado tarde! (Encosta a ponta da estaca no peito de Alice e ergue o martelo como se fosse desferir um golpe. Nesse momento, entra um rock pesado, talvez Lou Reed, e acende um spot sobre Carlinha BaixoAstral, parada na porta est toda vestida de negro, calas compridas, botas. Traz um charuto aceso na mo.) ANGEL Carlinha Bajo-Astral! CARLINHA Em carne e osso. TODOS Mona!

CENA 8

CARLINHA - Mona a puta que os pariu. Eu sou Carlinha BaixoAstral. (Puxa a navalha.) H algum aqui que duvide disso? ALICE - Bem, seja voc quem for, acaba de salvar a minha vida. Muito Obrigado. Hmmmm, essa camiseta maravilhosa. Fica muito bem em voc. Deve ser importada, no ? Tem um cheiro de

Kings Road, de Bibao, de Carnaby Street... Ou foi voc mesma que bordou? CARLINHA (Agressiva.) Tira essas mos nojentas de cima de mim, boneca. No gosto que me toquem. Mantenha distncia. (Caminha olhando em volta.) O que andou acontecendo por aqui? Por que que vocs esto vestidos desse jeito? Por que que est garota est toda manchada do sangue? LEO - E por que voc faz tantas perguntas, bem? Voc da polcia, por acaso? CARLINHA (Rindo debochada.) Polcia? Que polcia, meu santo? No existe mais polcia. Vocs no ouviram a exploso? Explodiu tudo, acabou tudo, j no existe mais cidade, no existem mais edifcios, no existe mais nada. (Joga o charuto no cho e apaga com o p.) Acabou, entendem? S sobrou esta casa aqui, sei l porque. Eu ia passando bem na hora da exploso. Tive sorte, sorte... Talvez fosse melhor ter morrido tambm. Agora vou ter que passar o resto da minha vida aqui com este bando de cretinos. ROSINHA Do que que voc est falando? BABY Espere a, Mona... desculpe, quero dizer, Carlinha Baixo-Astral: voc est querendo dizer que... que o mundo terminou? ALICE Terminou mesmo? Acabou? ANGEL - Que pasa? No estoy entendiendo nada. JOO No possvel. Voc est gozando com a nossa cara. LEO Quer dizer que aquela exploso foi... foi... CARLINHA Uma exploso atmica. Algum finalmente apertou o boto. Puf! Acabou. J era, como se dizia no meu tempo. Virou cinza. Me d um cigarro, boneca. ROSINHA Quer dizer que ns vamos ficar aqui para sempre.

CARLINHA Para semprssimo. Forever. LEO Mas ns vamos morrer de fome. ALICE Tem aquele po que eu trouxe. JOO Deixa de ser besta, Alice. Aquele po no d nem pra um dia. BABY Eu no posso acreditar, muita loucura. CARLINHA-Pois se voc no acredita, saia e veja com seus prprios olhos. Mas no aconselho. Tem as tais radiaes atmicas. Vo fazer a sua carne descolar dos ossos e cair todinha em feridas punilantes. Como em Hiroshima, lembra? Alm disso, est horrvel l fora. Gente morta, vsceras por toda parte, sangue, tudo rebentado. Eu vejo e at curto em cima porque sou Carlinha Baixo-Astral, tendo nervos de ao, transo qualquer barra - de preferncia as mais pesadas. Mas vocs, no sei no. Vocs me parecem todos to dbeis, to sensveis. To paz e amor... ANGEL - Yo no entiendo lo que dice. (Para Alice.) Por qu estan todos as? Que pas? ALiCE Lo que pas, Angelito, es que el mundo se ha terminado. ANGEL No es possible... No lo puedo creer... No es verdad... ALICE Es lo que dice la chica. Una bombita, una bombita, no ms. ANGEL No creo en esta chica. Carlinha Bajo-Astral, te conozco hace mucho tiempo, desde muy lejos, desde Cochabamba. Yo s que tu especialidad es pirar la cuca de la gente. El mundo no puede terse acabado. Yo necessito yirme hasta el Peru. El Peru tambin se ha acabado?

CARLINHA - Se ha acabado todo. O Peru, o Nepal, a Nova Guin e o Piau. (Olhando em volta, decepcionada.) Mas vocs no parecem muito impressionados. ALICE Na verdade eu no me impressiono com mais nada. E quer saber duma coisa? Se acabou mesmo dou a maior fora. Acho maravilhoso ter acabado. Do jeito que estava s podia mesmo era acabar. E falando bem claro: na minha opinio foi um asseio. LEO - Eu concordo com voc. ALICE - Eu tinha certeza que um dia voc ia acabar concordando comigo. CARLINHA (Mais decepcionada.) - Quer dizer que vocs no esto apavorados? JOO - No. Ns no tnhamos mesmo nada a perder. CARLINHA - Nem voc? BABY - Eu acho que agora a gente pode comear tudo de novo. Pode ser que desta vez d certo. CARLINHA - E voc, gaveta? ROSINHA - Eu... CARLINHA (Apontando a manjedoura.) O que isso a? ROSINHA o Cristo da Era de Aqurio. Era meu filho. JOO Ele nasceu no momento da exploso. LEO Ele foi assassinado pela bomba. BABY Ele nasceu morto. Se Mona estivesse aqui, diria que ele foi o ltimo representante da Era de Peixes. E o primeiro da Era de Aqurio. Ser que a Era de Aqurio comea agora?

CARLINHA - Esse pelo menos escolheu o momento certo para nascer. Ou para morrer, sei l. Cristo morreu, viva Cristo! Sabem, esta a quarta comunidade onde moro. Parece tambm que a ltima, j que vamos ter que ficar aqui a vida toda. Sabem, nas outras comunidades onde morei, sempre tinha um lema. Na primeira era: Passarinho que come pedrinha sabe o cu que tem. Na segunda era: Quem pariu Mateus, que o embale. E na terceira: J que estamos na merda, pelo menos vamos comer uma laranja. Qual o lema desta comunidade? JOO - Ns no temos lema nenhum. Ns no somos uma comunidade. Ns s estamos aqui porque a casa estava abandonada, chovia muito e ningum tinha para onde ir. Ns s estamos esperando o amanhecer. CARLINHA - Mas no vai amanhecer mais. ROSINHA (Assustada.) - O que? Nunca mais? CARLINHA (Lentamente.) - Nunca mais, gavetinha. As nuvens de radioatividade so to densas que no vo deixar passar os raios de soi por um bom tempo. No mnimo uns dez anos. ROSINHA (Gritando.) Ela est mentindo, Joo! Eu no quero ficar no escuro! Mande ela embora. No gosto dela. Chame Mona. CARLINHA Ela sempre sabe o que fazer pra gente ficar contente. JOO Mona foi embora com o disco-voador. ALICE Bem, que o mundo tenha acabado, tudo bem. Mas ficar dez anos no escuro? Ah, vamos convir que ch-cante! O que que eu vou fazer sem um spot em cima de mim?

BABY Pra mim no faz diferena. Para falar a verdade, faz vinte e trs anos que estou no escuro. ROSINHA - Mas o que que a gente pode fazer? ANGEL Nada. Nosotros no podemos hacer nada. Solo esperar. Silncio. Todos se entreolham, confusos. LEO - Esperem... Eu estou lembrando duma coisa. Antes de ir embora, Mona deixou uma lembrana, um presente. Ela disse assim: Quando tudo fica difcil, a gente canta e toca. E a nica maneira de vencer o fim do Mundo. (Apanha os instrumentos musicais e comea a distribu-los entre as pessoas.) CARLINHA Para mim no. Como que eu posso tocar e cantar se o mundo acabou? LEO E o que que voc vai fazer? No h mais nada a ser feito. Ficar desesperado e arrancar os cabelos no resolve nada. Ns estamos tranqilos. Se o mundo acabou mesmo ns somos o novo mundo. E se no acabou, daqui a pouco amanhece e acontece alguma coisa. De qualquer maneira ns temos que ficar aqui esperando. CARLINHA - Mas esperando o qu? LEO Sei l. Que o dia amanhece. Que a noite acabe. Que tudo isso termine. Qualquer coisa. CARLINHA (Comeando a ceder.) Mas eu no sei tocar nem cantar. Eu nunca fiz isso. O meu negcio sempre foi s pesar a barra. LEO Eu tambm no sei. Ningum sabe. Voc inventa. No difcil.

(Carlinha hesita mas acaba aceitando o instrumento. Sentamse todos lentamente em semicrculo em tomo da manjedoura. Comeam a tocar. Tocam alguns momentos, at que vrios spots comeam a acender e fica tudo muito claro. Eles vo parando de tocar. Aparecem todos muito cansados.)

CENA 9

ROSINHA (Sem emoo.) - Amanheceu. JOO Ento era mentira dela. No h nuvens de

radioatividade tapando o sol. O mundo no acabou. CARLINHA Eu no menti. Ainda pouco havia nuvens. BABY Ainda pouco? CARLINHA . Quando eu cheguei aqui. ALICE Mas isso j faz muito tempo. CARLINHA No, no, faz pouco, eu sei. Foi agorinha mesmo. ANGEL Se han pasado siglos y siglos, Carlinha Bajo-Astral. LEO aconteceu? ROSINHA (Sem emoo.) Amanheceu. S isso. LEO Voc tem certeza que so mesmo dez pras sete? (Nesse momento ouvem-se batidas muito fortes na porta. Ningum se move. Um pequeno intervalo e as batidas se repetem, cada vez mais fortes.) (Como se despertasse de repente.) O que

JOO (Sem emoo.) Esto batendo na porta. ROSINHA Devem ser os trs reis magos que vm visitar o menino, trazendo ouro, incenso e mirra. Ou os quatro cavaleiros do Apocalipse. BABY Ou Mona. Quem sabe Mona com os extraterrestres? Eles vem nos buscar tambm. LEO a polcia. Tenho certeza que a polcia. ANGEL Puede ser algun vecino. CARLINHA Eu acho que so os sobreviventes da exploso. Os monstros, com aquela pele toda verde, apodrecendo e caindo... Eles vm nos matar porque ns sobrevivemos. Ns tnhamos o direito de sobreviver ao fim do mundo. ALICE Pirao, pirao, tudo pirao: pode ser que seja s o leiteiro l fora. (Silncio. As batidas aumentam. Ningum se move.) JOO Seja quem for, continua batendo. CARLINHA Algum precisa abrir logo essa maldita porta. LEO Eu tenho medo. ALICE Quem abrir a porta precisa dizer alguma coisa. ROSINHA Eu no sei o que dizer. ANGEL Bueno, hay que abrir la puerta e decir algo, no? (As batidas aumentam, a luz tambm. O ideal seria uma lmpada de mercrio.) BABY (Lentamente.) Eu acho... eu acho que a gente s pode dizer uma coisa. (As batidas aumentam mais.)

BABY Eu acho que a gente s pode dizer que ns no temos culpa. Que nenhum de ns tem culpa de nada. A nica coisa que ns estamos tentando fazer encontrar o jeito de dar um passo alm do fim do mundo. (Baby comea a tocar. As batidas aumentam cada vez mais. Os outros hesitam, mas aos poucos, um por um, comeam tambm a tocar e a cantar. O som e as palavras o autor sugere deveriam ser totalmente improvisados pelos atores. As batidas s cessam quando o som estiver mais ou menos definido. E a pea s termina quando os atores e/ou a platia estiverem cansados. Ou quando algum bater na porta avisando que amanheceu e o teatro precisa ser fechado Por que no?)