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____ Revista e-Curriculum, So Paulo, n.12 v.02 maio/out. 2014, ISSN: 1809-3876
Programa de Ps-graduao Educao: Currculo PUC/SP http://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum
O CURRCULO COMO DIREITO E A CULTURA DIGITAL
CURRICULUM AS A RIGTH AND DIGITAL CULTURE
ALMEIDA, Fernando Jos de*
SILVA, Maria da Graa Moreira**
* Possui graduao em Filosofia e Pedagogia pela Faculdade Nossa Senhora Medianeira (1970), mestrado em
Educao: Filosofia, pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (1977) e doutorado em Educao: Filosofia,
pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (1984). Ps-Doutorado bolsa CNRS/CAPES, em Lyon, Frana
(1987). professor titular do curso de ps-graduao em Educao: Currculo, da PUC-SP. Atualmente Diretor de
Currculo, Avaliao e Formao da Secretaria Municipal de Educao de So Paulo. **
Concluiu o doutorado em Educao (Currculo) pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo em 2004.
Atualmente docente do Departamento de Computao e do Programa de Ps-Graduao em Educao: Currculo
da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Consultora educacional na implantao de projetos de tecnologias
para a educao em instituies de ensino, com nfase na formao de docentes para o uso de mdias e tecnologias
na educao. Participou de diversos projetos junto SEED do MEC e em outras instituies.
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RESUMO
Este artigo apresenta um quadro sinttico da jovem escola republicana brasileira, emergida nos
ltimos 20 anos de nossa histria. Versa sobre a dvida de uma escola para todos, que de mais
de 500 anos, e f-la, hoje, assolada de mltiplas carncias. Aponta a inexistncia de Bases
Curriculares Nacionais claras, difundidas, amplamente debatidas e consensuadas. Defende que as
Bases Curriculares Nacionais se constituem num direito dos professores e alunos - de nossa escola pblica, e, portanto, uma obrigao do Estado, seja em seu mbito federal, seja no mbito
local. A construo de bases curriculares no se ope democracia, criatividade ou autoria
dos professores, mas pode ser uma forma de estimular as experincias criativas e
descentralizadas, partindo das problemticas dos diferentes territrios e culturas. Pode ser
norteadora das formaes inicial e continuada dos docentes e das referncias para os exames de
avaliao da aprendizagem nacionais e locais e definidora da produo de materiais didticos.
Um dos componentes das demandas por um currculo explcito advm das novas configuraes
postas pelas tecnologias digitais da informao e comunicao e das redes comunicacionais que
povoam o mundo com modalidades inditas de linguagem, novas construes identitrias e
complexas exigncias s prticas sociais. O artigo as apresenta como uma varivel catalizadora
do debate e das vivncias curriculares e no as considera como determinantes do currculo -
enquanto tecnologias especficas, mas como imersas na cultura digital que se instaura na
sociedade contempornea.
Palavras chave: Currculo. Direito humano. Formao docente. Polticas pblicas. Cultura.
ABSTRACT
This article presents a synthetic view of the young republican Brazilian school emerged in the
last 20 years of our history. It discusses the debt of a school for all, which is bigger than 500
years and has several deficiencies. It points the lack of a clear and widely discussed National
Curriculum. It defends the curriculum as a right of our professors and students of the public schools and, therefore, either a federal or a local State obligation. Constructing curricular bases,
without taking spaces of local curriculum elements, are not opposed to democracy, creativity or
authorship of teachers. However, it would be a way of stimulating creative and decentralized
experiences, starting at the problems of the different territories and cultures. The
curriculum would be a guide for initial and continued development of teachers, a referral to local
and national learning assessments and a conductor of the production of teaching materials. One
of the components of the demand for an explicit curriculum comes from new settings made
available by digital information and communication technologies (ICT) and networks that
populate the world with new types of languages, new identities and new complex demands for
social practices. The article presents the technology as a catalyst variable of the debate and the
curricular experiences, not considering them as determinants of the curriculum - while specific
technologies, but immersed in the Digital Culture that is established in contemporary society in
the form of languages, relationships, networks and values.
Keywords: Curriculum. Human rights. Teacher education. Digital culture.
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1 APRESENTAO
O uso intensivo de tecnologias e mdias digitais, que despontam em confluncia com a
globalizao social, econmica e poltica, imprimem novas funes comunicao, novas
construes identitrias e complexas exigncias s prticas sociais. Na esteira dessas mudanas a
sociedade em rede (CASTELLS, 1999) e conectada (WEINBERGER, 2003) amplia o
alcance da comunicao e tambm seu acesso e sua produo, alterando o cotidiano da vida das
pessoas.
Uma das caractersticas desta sociedade reside em que, ao mesmo tempo, foras
caminham no sentido do reforo do poder e do controle social, mas seu acesso permite a
expresso livre, a organizao e a participao social. Alinhadas s mudanas evidenciam-se
dificuldades e carncias sociais, polticas e econmicas:
Nesse novo contexto, ocorrem processos sociais profundos, gerando outros tipos
de desigualdades, que vm se agregar s existentes, de modo que mais
diferenas sociais e econmicas so deixadas a descoberto, de forma
contrastante, e iluminam novas formas de poder e controle social em uma
sociedade de classes fortemente marcada pela marginalizao das pessoas.
(ZUIN, 2010, p. 963).
A transparncia das diferenas polticas e sociais traz consigo a necessidade de
diagnsticos de suas causas e, tambm, o compromisso com a democracia e com a justia social.
As tecnologias no devem ser entendidas unicamente em seu carter operacional ou
reduzidas tcnica, mas como uma espcie de modus vivendi, como um processo social que
determina as reconfiguraes identitrias dos indivduos. (Ibid., p. 967) e, por isso, devem estar
na agenda da educao e demandam o debate crtico sobre elas. Por outro lado, toda a massa de
informaes geradas, trocas simblicas e anlises sociais detonam um processo de exigncia de
mudanas que no se realizam exclusivamente em consequncia do acesso e uso das tecnologias,
mas tambm no se operam sem elas. So condies e no suas causas nem seus motores
(ALMEIDA, 1990).
A escola, como as demais instncias sociais, fortemente atingida por tais mudanas e no
fica alheia s suas contradies. Toda a ecologia onde se produz os conhecimentos abalada. As
variveis que mais se destacam so a construo de novas sociabilidades, o questionamento de
valores e de relaes sociais e a introduo de novas exigncias s prticas culturais e vivncias
coletivas. Em suma, questionam-se e alteram-se os padres do aprender e do ensinar.
Como a educao escolar acompanhou e se inseriu nestas inovaes? Viu-se como usuria,
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posicionou-se como analtica e crtica? Ou posicionou-se como dcil e vida consumidora de um
bem da moda? Conseguiu fazer articulao entre as metforas tecnolgicas (como inteligncia
artificial, conhecimento coletivo etc.) e seus currculos e com seus objetivos maiores?
A educao escolar formal acompanhou as mudanas e o desenvolvimento tecnolgico
sempre refletindo: qual seu significado para a aprendizagem? Que exigncias devem trazer para
os processos de ensino e aprendizagem? O que mudar na escola seu advento macio? Qual o
papel do educador? Que currculo trabalhar com as tecnologias?
Uma armadilha sempre montada para os educadores - que precisam ter diagnsticos claros
sobre a educao brasileira - a defesa ingnua do uso das tecnologias de informao e
comunicao (TIC) na educao formal como forma privilegiada de inovar ou alterar os
currculos para adapt-los contemporaneidade.
Nesta viso h trs equvocos bsicos.
O primeiro equvoco acreditar que as TIC trazem em si novos conceitos de currculos. De
fato, as demandas de novas organizaes curriculares nascem dentro do prprio currculo. A
demanda por inovaes curriculares endgena ao projeto de educao de uma nao, de uma
regio, de um territrio e no de um conjunto de tecnologias.
O segundo equvoco afirmar que o advento das TIC demanda um novo currculo. Mas da
imerso na cultura contempornea, entremeada pelos conceitos do modus vivendi da sociedade
em rede, conectada, com suas contradies, valores e marcada pelo digital, que emergem novas
relaes pedaggicas.
O terceiro equvoco o de desconsiderar que o currculo uma construo social
permanente e por isso demanda um refazer contnuo do que se deve aprender e como se precisa
aprender; do que e como se precisa ensinar, luz de valores humanos e no apenas para um
utilitarismo imediatista. Tais redefinies curriculares passam por redefinies de carter social e
poltico e no tecnolgico ou economicista.
A nfase nos aspectos tecnicistas e nos aparatos tecnolgicos no pode ser absolutizada a
ponto de ofuscar o papel das tecnologias como processo social que reconfigura as caractersticas
identitrias dos agentes educacionais, como pontua Zuin (2010).
Sendo assim, defende-se aqui, que o currculo que define o uso das TIC e no definido
por ela. Defende-se tambm que o currculo esteja integrado cultura contempornea como um
direito.
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O conceito de cultura digital e o conceito de currculo como direito sero alinhavados neste
artigo como forma de superar questes e propostas equivocadas sobre a pertinncia e convvio
entre o currculo e as tecnologias.
O dilogo entre o conceito de bases curriculares nacionais, como direito de professores e
alunos, e o conceito de cultura digital que permite, na viso dos articulistas, a superao das
desconversas at hoje havidas desde a dcada de 90 do sculo XX pelas quais se desenham
solues, sempre incompletas, insatisfatrias e inconsistentes para a aplicao das TIC na
educao escolar.
Diferentes e antagnicos so os focos postos na questo, causando resultados pfios ou
mesmo equivocados: ora se foca que o currculo um ementrio de contedos disciplinares
desinteressantes, com cargas horrias aleatoriamente atribudas ao longo dos anos. Ora se foca
que as tecnologias, seus contedos, seus procedimentos programticos, seus algoritmos, suas
linguagens e mdias comunicacionais so o prprio currculo. O descrdito do currculo parece,
para esta viso, como algo inevitvel.
Os dois posicionamentos antagnicos e radicais podem levar a concluses equivocadas
sobre o currculo, as tecnologias e sobre o seu prprio contexto. Os argumentos a favor destas
duas vises antagnicas advm, sobretudo, de camadas e camadas de ideologia sobreposta por
artigos de revistas ligeiras, de matrias breves de 2.000 toques em jornais de superfcie. Advm,
ainda, estas vises de anlises superficiais de estatsticas sociomtricas fragmentadas ou de
comparaes simplistas com o rendimento de aprendizagem de outras naes.
O senso comum, que se mostra fragmentado em suas anlises, cabe ser superado pelo
pensamento cientfico ou pela reflexo histrico-filosfica. Por eles se podero compreender
mais ampla e radicalmente o papel da cultura digital, seus elementos constituintes e sua relao
com a educao.
Interpretar assim, enviezadamente, o currculo e as tecnologias tm trazido enorme
desservio ao seu entendimento e criao de propostas consistentes e mais eficazes mesmo
sabendo-se que eficcia no quer dizer imediatismo de solues. A seguir ser traado o contexto
da anlise em tela.
2 O CONTEXTO DESTA ANLISE
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A tomada de viso geral e miditica de que a educao pauta de urgncia no Brasil veio
mais do olhar clamoroso dos economistas visando anlise dos desempenhos economtricos do
que de uma conscincia poltica da clareza de sua importncia cultural. A fase miditica dedicada
educao faz que se iluminem diferentes atores, mltiplas circunstncias e demandas de
economias internacionalizadas. Os avanos das cincias subsidiadoras da educao
microbiologia, informtica, neurocincia etc.), as avaliaes em larga escala, a ampliao
vertiginosa das tecnologias, vo tornando cada vez mais complexas e quase inextrincveis as
anlises da educao e os traados de suas diretrizes.
A sociedade toda se envolve nos cenrios e nos resultados da educao e se posiciona
munida de seu senso comum. O componente da democratizao e o compromisso de amplos
setores nos destinos da educao so importantes, mas suas anlises na grande mdia, sobretudo,
no garantem a eficcia da educao num emaranhado de propostas e contrapropostas que, em
geral, focam, cada uma, apenas fraes do complexo contexto da educao.
Um novo e esperanoso cenrio da educao brasileira convive com um surrado e
ineficiente modelo de educao pblica. Trata esse artigo dos tempos e resultados ps-1996,
inaugurados pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB) 9394/96 e de seus desmembramentos e
impactos polticos e pedaggicos.
Esse artigo reconhece os marcantes e promissores passos dados pelas polticas educacionais
no pas ps-1996 e mostra que o mais desvalido ator deste gigantesco conjunto de mudanas o
professor. O estoque de alunos que pressionava por escola - em mais de 500 anos de histria, no
corresponde univocamente a um estoque disponvel de professores formados e desejosos de
exercerem esta profisso.
Cursos sobre cursos, tecnologias sobre tecnologias, crticas sobre crticas, pesquisas sobre
pesquisas no mudam a direo nem alteram substantivamente as prticas dos docentes. O foco
definidor de uma direo consistente e eficaz para o trabalho docente no atual momento de
impasse da educao brasileira o currculo.
O professor tem estado covardemente abandonado a eleger diariamente, minuto a minuto, o
que vai fazer com dezenas de alunos, por 5 a 8 horas dirias. O professor se pergunta a cada dia:
quais objetivos, atividades, contedos, como avaliar e quais instrumentos pedaggicos usar nos
200 dias letivos do ano, nos tantos anos de sua carreira. No tendo resposta a tais questes o
professor, muitas vezes, se apega aos livros didticos - quando os tem. Mas sero as editoras que
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publicam tais livros que traaro as metas os contedos, os objetivos e as prticas recomendadas
da educao?
Para contribuir com alguns dentre os diversos questionamentos levantados, este artigo
pretende trazer ao debate o currculo como um direito inalienvel do professor e do aluno. Trata
da necessidade de propor bases curriculares claras, objetivas e culturalmente pautadas por uma
proposta de nao justa, livre, criativa e solidria. Tais bases curriculares nacionais se
constituiriam suporte para a formao (inicial e continuada) e para as prticas dos professores,
articulando-se de forma slida e transparente para que os professores mantenham sua autonomia.
Trata-se da construo de um currculo claro, explcito, flexvel e integrado cultura, que
promova a incluso da escola aos bens e objetos culturais. Tais bases curriculares supem
tambm o envolvimento do uso das tecnologias digitais; a insero da escola linguagem que
flui nas redes conectadas; o acesso aos signos caractersticos desta cultura; o contato com os
valores que edificam as relaes de poder; a produo, recuperao, anlise e publicao de
conhecimentos; a construo de novas sociabilidades, identidades, valores, relaes humanas e a
participao social.
3 A CULTURA DIGITAL E O CURRCULO
O catalisador das mudanas na contemporaneidade est consubstanciado num aparato
tecnolgico, que embora tenha sido o produto de uma longa cadeia de evolues das tecnologias
ele, hoje, se configura como uma prtese ou uma extenso do homem, como j preconizava
Mcluhan (1979).
Este aparato, corresponsvel por estabelecer as formas originais de acessar, ler
criticamente e produzir informaes, teve seu uso e disseminao inaugurados em diferentes
segmentos da sociedade nos anos 70 do sculo XX, como computadores pessoais. Esses
computadores se popularizaram por meio do advento da internet e web dos anos 90 at os dias
atuais e seu uso tem se intensificado com as tecnologias mveis sem fio, no presente. O
microcomputador - e seus novos formatos - foi se transformando e se recontextualizando, se
convertendo em um instrumento de autoria e produo coletiva, colaborativa e distributiva em
rede, potencializando a interao de ideias individuais e/ou coletivas e a organizao de
contexturas de aprendizagem, redes sociais de participao local e global.
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Na sociedade em rede, a conexo se configura como um dos potenciais princpios
constitucionais da democracia, da redistribuio de renda e da economia, como situa Weinberger
(2003). Assim, estar conectado uma questo de direito, uma condio participao na
contemporaneidade, ao exerccio pleno da cidadania, ao acesso e expresso ampla e transparente
a informao e a meios para a sua produo e compartilhamento e participao social.
Mas um dos paradoxos da contemporaneidade revela-se na relao entre a conexo e a
incluso: a no conexo impele os indivduos excluso digital e social, mas a conexo, em si,
no a garante. A incluso sociedade em rede conectada no espontnea nem descolada das
condies materiais, estruturais, econmicas, sociais e culturais. No se caracteriza pela
possibilidade de navegar pelas informaes nas diversas esferas mundiais e na multiplicidade de
redes, mas prev a leitura crtica dos significados criados e das relaes de poder nelas
estabelecidas e envolve a participao ativa do indivduo e a centralidade de sua autoria.
A democratizao e a melhoria da qualidade da educao no se desenvolvem
espontaneamente do mago das produes tecnolgicas, mas so resultantes de amplo debate e da
luta poltica pela apropriao das tecnologias, pelo acesso sociedade em rede e pela incluso ao
modus vivendi da cultura agora marcada indelevelmente pelo contexto digital.
Silva (2010), ao analisar a relao entre a escola, as tecnologias e o currculo, salienta que
sua integrao demanda que os agentes da educao faam a leitura crtica do mundo, o
interpretem e lancem sobre ele suas palavras. A integrao das tecnologias ao currculo, nesse
contexto, amplia as possibilidades de dar voz ao professor e ao aluno e, por meio da expresso de
suas vozes, permite sua autoria e seu empoderamento. Trata-se, portanto, de democratizar o
acesso e oportunizar o processo de apropriao social da tecnologia e seu uso inovador pela
escola.
Na escola as tecnologias encerram o desafio de adentrar na sala de aula aliadas aos
saberes dos professores e alunos, ao planejamento pedaggico construdo coletivamente e a
reflexo sobre qual escola se almeja construir com ou sem tecnologias, e devem ser usadas,
segundo Porto (2012), para superar o senso comum pedaggico e para efetivar uma pedagogia
condizente com as necessidades de um ensino contextualizado num tempo e espao de ser, viver,
interagir e criar. (p.192). Trata-se aqui, mais uma vez, de entender que o conjunto de variveis,
acima descritas, chama-se currculo. E nesse espao e nestas condies entrelaadas que o
conhecimento escolar e cientfico ganha bases.
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Cesare Rivoltella (2012) destaca e busca desconstruir alguns temas recorrentes ao analisar
a retrospectiva e as tendncias da mdia-educao. Neste estudo esses temas so adaptados e
ampliados considerando-se as tecnologias na educao.
O primeiro tema a ser desconstrudo a concepo da centralidade da escola, ao
considerar que cabe unicamente escola a tarefa da insero das tecnologias na educao. Na
realidade, essa tarefa no se restringe aos espaos, prticas e tempos da escola, mas ampliada s
famlias, comunidade, aos pares, s polticas pblicas e em outros ambientes formais ou no
formais e s prprias redes. Nesse sentido, a escola depositria e criadora social de um
currculo.
O segundo tema a ser desconstrudo refere-se educao com, para ou atravs das
tecnologias. Dessa forma, a educao com tecnologias significa entender a tecnologia como ou
instrumento didtico de apoio ao professor em sala de aula, como um projetor multimdia. A
educao para as tecnologias considera a apropriao tecnolgica, seus usos e aplicaes, como
forma inicial e ferramental de trabalho, mas no a funo maior da sua entrada na escola. A
educao atravs das tecnologias considera a tecnologia como uma ferramenta para aprender.
Nesse sentido, as tecnologias presentes nos processos escolares deveriam estar a servio da
humanizao, da transformao das pessoas e do mundo.
No se trata, portanto, de assentar uma inovao, as tecnologias ou a conexo s redes de
computadores na escola. Trata-se de uma mudana no currculo, integrando-o cultura agora
digital, ao debate sobre os impactos dessa cultura no cotidiano, na formao das identidades dos
educandos e educadores, nas caractersticas sociais e polticas que imprimem nos nveis locais e
globais, no empoderamento dos sujeitos da educao e no compromisso com a qualidade social
da educao.
A cultura digital um conceito amplo e explicativo da realidade: realidade mais fluida de
valores (BAUMAN, 2001), de exigncias, que tem no currculo um espao mais fluido e ao
mesmo tempo mais estruturante do conhecimento, dos valores e das relaes humanas.
Provocar mudanas curriculares implica considerar aes de amplitudes maiores, com
olhares mais profundos s polticas pblicas de educao, cultura local/global, escola e
comunidade e tambm aos valores e metas da formao de um projeto de nao. A introduo
de inovaes deve partir do entendimento do movimento permanente de reflexo-ao e de
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discusso da representao social e de como os saberes se constroem no interior da escola e se
inter-relacionam com a comunidade e com a cultura.
Para tanto, o eixo articulador o currculo.
O currculo enquanto direito assegurado pblico, democrtico, explcito, de consenso, que
contempla o universal e o local, constitui-se com os espaos epistemolgicos, metodolgicos e
didticos para o equacionamento das questes postas nesta ps-modernidade e voltado melhoria
das relaes pedaggicas.
Qual papel vem ocupando as polticas pblicas de educao que esto em construo no
cenrio do final do sculo XX e primeiras dcadas do sculo XXI?
4 CENRIO AMPLIADO
O Brasil teve um amadurecimento notvel nos 20 ltimos anos em sua educao pblica
em direo da construo de uma escola republicana. Entre as dcadas de 90 do sculo XX e a
primeira do XXI foram acionadas e implementadas polticas eficazes com relao s avaliaes
nacionais de grande escala; foram definidas e aplicadas regras claras de financiamento pblico e
transparente da educao e de formao de professores, como o Fundo de Manuteno e
Desenvolvimento da Educao Bsica e de Valorizao dos Profissionais da Educao
(FUNDEB)i; radicalizou-se a conquista de incluso total das crianas e jovens no ensino
fundamental de 9 anos em todo o pas, dentre outras polticas. Tais variveis controladas so
condies para a construo e a viabilizao do ingresso de um pas no modelo de educao
republicana marco conquistado por muitos pases j no sculo XIX e por centenas deles nos
incios do sculo XX.
A marca emblemtica destas conquistas nacionais a promulgao da LDB de 1996. Da
nascem inmeras iniciativas e desmembramentos de um projeto nacional que demonstra-se
articulado para uma real democracia e para uma educao de qualidade socialii.
Inmeros outros elementos foram se ajuntando mais ou menos organicamente a tais
condies criadas. Entre eles o Plano Nacional de Educao (PNE) com as metas do decnio de
2011 a 2020 apenas aprovado em 26 de junho de 2014iii
.
Os olhares para a educao focados produo de uma economia forte marcaram a viso
economicista da educao nos ltimos 20 anos, atrelando as instituies educacionais ao
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progresso econmico, como diagnostica Carvalho (2014). Todavia, o autor afirma que no cabe
escola cumprir esse papel, trabalhar ou instrumentalizar programas de produo de riquezas,
escola cabe produzir a igualdade de acesso aos bens materiais e objetos culturais, que do sentido
existncia humana (p.27).
Casali (2011) afirma, tambm, que a presso das economias e dos economistas sobre os
resultados da educao se pauta por outros princpios:
Mas o valor econmico da educao, para o empresariado, um valor
estritamente instrumental: trabalhadores mais bem formados aumentam a
probabilidade de maior produtividade e rendimento dos negcios. De nossa
parte, em contraste, sem menosprezar o valor instrumental da educao,
enfatizaremos sobretudo seu valor intrnseco: um direito universal (do qual
decorrem para ns obrigaes). (p.1).
O fato de a necessidade de uma educao escolar e pblica ser direito de todos os
cidados, o fato de os rendimentos das escolas serem debatidos em todos os espaos da sociedade
no nos garantiu at hoje que a equao geral da melhoria estivesse montada e encaminhada para
as suas complexas solues.
Por qu? Embora as respostas nicas sejam insuficientes para a soluo, uma pista inicial
deve ser dada. Defende este artigo que est no currculo a ponta do fio a ser puxada para o
desnovelamento ou o desvelamento das solues.
5 ELEMENTOS DO DESENVOLVIMENTO DAS POLTICAS CURRICULARES
O Brasil deu enormes saltos nos anos 90 do sculo XX quando se abriu para o debate e
proposio de parmetros curriculares, foi uma forma ampla e consistente de ser posto o tema
nacionalmente para a sociedade. Temas transversais, interdisciplinaridade, projetos, renomeao
de reas do conhecimento entre outros passaram a incorporar o vocabulrio cotidiano.
Em 2013 se recolocam avanos nas questes curriculares com a publicao das Diretrizes
Curriculares Nacionais da Educao Bsica. Nela so apresentadas, depois de amplos estudos e
debates em significativos setores da sociedade brasileira, quinze explicitaes do que significa
currculo. Encabeadas pelas propostas curriculares das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais
da Educao Bsica segue-se uma lista de diretrizes, como: para a Educao Escolar Indgena,
para a oferta de educao para jovens e adultos em situao de privao de liberdade e nos
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estabelecimentos penais, para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de
Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana, para a Educao em Direitos Humanos, para o
atendimento da Educao do Campo, Diretrizes Operacionais para atendimento educacional
especializado na educao Bsica, modalidade Educao Especial e outras (BRASIL, 2013).
O Brasil amadureceu ao substituir os currculos meramente conteudistas, que
apresentavam listas de disciplinas e cargas horrias enfileiradas e anualizadas para conceitos de
currculo interdisciplinar, transversalizado, com direcionamento para olhar a educao e seu
currculo que consubstanciem o direito de todo o brasileiro formao humana e cidad e
formao profissional na vivncia e convivncia em ambiente educativo (BRASIL, 2013, p.7).
No entanto, reconhecidos os progressos, carece a sociedade brasileira, a educao em
geral e o professor em especial, de bases curriculares nacionais mais precisas e claras que
norteiem as prticas dos milhes de professores que tm a enfrentar cotidianamente os 50
milhes de jovens e adultos que precisam, devem e tm o direito de aprender. Tal aprendizagem
no pode ser feita luz de decises tomadas pelas iniciativas de cada professor isolado em sua
tarefa nica e insubstituvel do trabalho em sala de aula.
As resistncias feitas s propostas mais diretivas e explcitas de currculo encontram
diferentes formas na academia, em ideologias polticas e mesmo nos interesses comerciais que
precisam de indefinio para abrir caminhos comercializao de sistemas apostilados que se
tornam eficazes, exatamente, pela ausncia das polticas curriculares nacionais ou regionais mais
precisas.
No se trata de propor um currculo nico, mas de bases curriculares nacionais capazes de
serem norteadores para os traados das diferentes propostas locais e dos Projetos Polticos
Pedaggicos das escolas. Seu tratamento no seria impositivo, mas um elemento claro que
definisse no apenas o que o professor poderia fazer, mas tambm como especificaria o perfil dos
cursos de formao inicial e em servio dos educadores.
No se prope limitar a prtica dos sujeitos da educao ou da comunidade escolar a um
conjunto de orientaes, objetivos ou contedos a ser seguido. Mas bases curriculares
construdas, em dilogo, com a comunidade educacional nacional.
Os prprios exames nacionais que hoje se constituem em surpresa bienal do que se
espera dos alunos poderiam ser elucidados com um currculo claro, de fato, uma referncia do
que o professor e os alunos modelaram juntos. A no clareza propositiva de currculos de mbito
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nacional torna os exames nacionais uma aventura temerria para alunos e professores que so
avaliados, sem terem as regras claras.
Neste sentido, as bases curriculares nacionais deveriam prever o currculo luz, tambm,
da cultura contempornea, uma vez que se entrelaam com as configuraes identitrias de
formao e com as do processo educacional.
CONSIDERAES AO FIM
O cenrio propcio e nos empurra para o posicionamento sobre as questes curriculares
mais radicais. Radical aqui entendido no sentido cunhado por Saviani (1972) quando apela para
o sentido de ir s razes do problema. Este artigo busca a fonte histrica, as necessidades
comunicacionais, as origens dos direitos e as razes da cultura para discutir o currculo
contemporneo. O contnuo reconstruir do currculo fruto de seu prprio conceito: uma
construo social e coletiva, mas uma obrigao de toda a sociedade, ancorada pelo dever do
Estado de dirigir a coisa pblica.
A confluncia veloz dos aparatos tecnolgicos convergentes em suas diferentes formas
de mobilidade e de redes e os avanos da economia do pas trazem aos educadores, academia
e sociedade a tarefa de explicitar o currculo que formar a base nacional comum. A base aqui
entendida como as perspectivas da formao dos valores e das competncias para a melhoria da
qualidade social da educao, grande dvida de nosso pas para com a maioria de sua populao.
Tais especificaes curriculares no significam uma camisa de fora para os educadores
nem se configuram numa linha de montagem para as prticas escolares ou incluem tcnicas
educao. Significam a definio larga, criativa e clara dos passos que iniciam e provocam a
curiosidade, o campo de partilha da cultura, o plano de voo para o conhecimento significativo e
humanizador. As tecnologias, no modo de ver desse artigo, no so as causas das mudanas
curriculares, mas so condies bsicas de sua realizao consistente e eficaz.
A cultura digital a amalgama entre o currculo e as tecnologias, mais que a soma dos
objetos tecnolgicos para se constituir num universo de valores, de linguagens e de redes de
novos significados para a sociedade.
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ii No h aqui nenhum desconhecimento ou justificativa para os 500 anos de atraso com que tais aes polticas e
educacionais foram tomadas. O dficit histrico continua nos marcando e o saldo desta dvida social dificilmente
ser paga nas prximas dcadas. iii
Uma das variveis do debate e que provocou tanto atraso em aprovar metas do PNE se deveu discusso sobre a destinao de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) para o financiamento da educao.