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Revist'Entrevista

Entrevista com Jane Malaquias, dia 13 de outubro 2016.

Rose - Jane, além de cineasta, você tam-oém desenha, e seus amigos nos contaramque você produz lindas esculturas. Eu querosaber, então, como você começou a se inte-ressar por arte. Por desenho, mais especifi-camente. Como você começou a gostar dedesenhar?

Jane - Olha, desde criancinha mesmo.O que eu acho engraçado é que eu, desdemuito cedo, tinha consciência do meu pro-gresso no desenho. É aquela coisa: criançacomeça desenhando aranha. Faz uma bola,puxa um traço, diz que aquilo é o pai, a mãe,né? Eu lembro de certos progressos que eufiz quando aprendi a desenhar um pé de fren-te e não de lado, conseguir fazer uma figurade frente com nariz. Eu gostava de desenhar,e, quando eu era pequena, desenhava mui-to em revista. Depois que o pessoal lia, euficava procurando os cantinhos brancos narevista onde não tinha foto, onde não tinhanada escrito para desenhar e desenhava, de-senhava ... Meus cotovelos eram bem cascu-dos, porque eu ficava horas desenhando nochão, deitada no chão, sabe? É isso, semprefoi uma coisa natural gostar de desenhar.E, depois, eu tinha uma viagem, quando jámaiorzinha, achava que tudo aquilo que euestava desenhando passava a existir numaoutra dimensão. Eu sentia que estava crian-do mundos. Cada carinha que eu desenhava,cada figurinha, passava a existir, então euprecisava desenhar muito para que aquelascoisas passassem a existir em outro lugar,em algum outro lugar que eu não sabia ondeera.

Rafael - Mas você teve alguma influênciados seus pais, que a levou a essa questão dodesenho, que inspirou a desenhar?

Jane - Não. Eu fui descobrir que meu paie minha mãe (Gedyr Lírio de Almeida e DivaManta Malaquias de Almeida) desenhavamquando eu já era bem grandinha. Foi um diaque minha mãe estava mexendo em uns pa-péis antigos, fazendo uma limpeza - aquelalimpeza que você faz para jogar um montede coisa fora - ela encontrou uma pilha decartas que eles trocavam quando eram na-morados. Tinha uns desenhos lindos de unsratinhos que a minha mãe fazia, desenhavauma família de ratinhos dizendo que era ela,meu pai e não sei o quê ... E eu nem sabia queeles desenhavam. Eles pararam de desenhar.

Meu pai também desenhava de volta. Maseles esqueceram. Isso ficou no passado.

Agora, eu era louca para desenhar comcaneta esferográfica, porque criança temaquela coisa: "Ah, porque criança erra, crian-ça não sabe escrever, então criança trabalhacom lápis para poder apagar e corrigir" e euqueria ter caneta esferográfica, caneta pre-ta. Até hoje, eu gosto muito de caneta pre-ta. São aquelas coisas assim que a gente vaiquerendo.

Thais - (interrompe pedindo para fecharjanela, que estava fazendo barulho) Você fezaula de dança, né? Você teve aula de algumoutro tipo de arte?

Jane - É... De desenho. Eu não me lembromais a idade que eu tinha, mas eu fui alunada Jane Lane, uma professora e artista plásti-ca daqui. Nem sei onde é que anda ela. Achoque ela era uma das poucas pessoas que da-vam aula sistematicamente aqui em Fortale-za, para quem queria se iniciar na pintura. Elaensinava tinta à óleo e tal. Eu já deveria teruns 14 ou 15 anos. Tive aulas também como professor Aderson Medeiros, que é artistaplástico. Com o Aderson, eu me lembro queera mais aula de desenho. Aquela coisa demodelo, sabe? De ter um modelo vivo, de elelevar um objeto e ficar todo mundo sentadoem volta desenhando aquele objeto. Então,aula de desenho eu tive com essas duas pes-soas: a Jane Lane e o Aderson, quando eracriança.

Ingrid - Esse gosto pela arte pode não tersido influenciado, mas foi incentivado pelosseus pais?

Jane - Olha, quando a gente é criança ospais se orgulham muito de dizer: "Ai, minhafilha é uma artista, minha filha isso ..." E euera uma criança que lia muito também. Euestava louca para aprender a ler, porque ababá não tinha mais paciência de ficar lendopara mim. E criança é aquela coisa: "De novo,de novo". Eu queria que ela ficasse lendoaquela mesma coisa dez mil vezes. Ela nãotinha paciência e eu era louca para aprenderpor causa disso, para poder eu mesma ler.Quando eu aprendi a ler, eu devorei os livrosda biblioteca da escola, a bibliotecazinha decrianças. Eu pedia livros de presente para omeu pai. Era assim: meu presente de aniver-sário era poder comprar vários livros e meupai gostava de ler também, então sempre ti-

JA E ALAOU AS 37

Jane Malaquias éa mais velha de quatroirmãos: Jane Cristina,Tatiana, Serguey e Pau-lo Marcelo; filhos dosbaianos: Gedyr Lirio deAlmeida, que faleceu noano passado aos 81 anos,e Diva Manta Malaquiasde Almeida, que aindaestá bem viva, aos 84anos.

A entrevistadoraAmanda Fontenele, quejá conhecia um pouco so-bre a história da cineasta,sugeriu o nome de Janedurante a reunião de no-meação dos entrevistadosda edição 37.

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o .primeiro contatocom Jane foi realizado viaFacebook. A cineasta fi-cou bastante animada aoreceber o convite para serentrevistada pela RevistaEntrevista e logo pergun-tou onde teria acesso aosvolumes anteriores.

Ainda na pré-entre-vista, a convidada escla-receu que não gosta mui-to de celulares, e mantématé hoje o costume de es-crever cartas aos amigos.

nha revista lá em casa (Manchete, Cruzeiro,Veja, O Pasquim).

O jornal O Pasquim foi muito importantepara mim, como criança, pegar um jornal da-queles e ficar folheando. Eu era fã do Henfil,do Millôr, do Jaguar (cartunistas que traba-lharam no jornal O Pasquim), daquela irre-verência toda. Meu pai, às vezes, escondiaalguns Pasquins, porque eles faziam coisasbem ousadas. Eu me lembro de uma atriz láque eles entrevistaram na redação do Pas-quim ela nua. Ela ficou nua para ser entre-vistada. Eu até pensei: "Será se eu fico nuatambém?" (risos de todos).

E minha mãe gostava muito de qua-drinhos de terror. Tinha uma coleção. Elagostava do Drácula e da filha do Drácula, aDracolina. Ela também escondia as revistasdela. Era só eles saírem e eu fazia a buscapara saber onde é que estavam. As revistasPlayBoy também eram outra coisa que meupai escondia. Cada dia ele inventava um es-conderijo diferente e era só a galera sair decasa que eu descobria onde é que estavamescondidas as revistas.

Rafael- Quanto à questão de alugar filme,de ir ao cinema ... Quando foi que isso surgiumais ou menos?

Jane - Eu lembro qual foi o primeiro filmeque eu vi, foi Branca de Neve. Eu me lembrotambém que tinha um programa na televi-são que eu esperava a semana toda para as-sistir que era Disneylândia, que só passavadomingo à tarde. Porque não tinha essa coi-sa de programação para criança, como temhoje canal para a criança. E eu lembro queeu rezava à noite pedindo para ter mais de-senho animado. Quando eu me aproximei docinema, eu tinha a ideia que ia fazer desenhoanimado. Depois, mudou, mas era o que eumais queria na época.

Thais - Foi por isso que você foi fazer qua-drinhos? Porque gostava das animações?

Jane - Eu não sei como foi que eu fuifazer quadrinhos, na verdade. Eu acho queé porque eu já frequentava a Casa Amarela(Eusélio Oliveira, equipamento cultural daUFC ligado ao cinema e ao eudiovisueõ, e euacho que conheci o Jesuíno lá (refere-se aoprofessor aposentado Geraldo Jesuino, en-trevistado na Revista Entrevista n034), nãosei. Alguém deve ter dito que eu gostava dedesenhar, e ele me convidou para a oficina.A formação de quadrinhos que eu tinha an-tes da oficina do Jesuíno era o quadrinho in-fantil, era o Tio Patinhas, Brotoeja, Mauríciode Souza (quadrinista brasileiro com vastaprodução na área). Na Oficina de Quadrinhosé que eu fui descobrir o quadrinho adulto, osclássicos do quadrinho adulto. Graffic Novel,essas coisas todas.

Sarah - A gente viu no material de pro-dução que você disse que não se conside-rava uma boa aluna. Até acreditava que nãoia passar no vestibular. Por que você nãose considerava uma boa aluna? O que vocêconsidera como ser boa aluna?

Jane - Olha, a minha história escolar é aseguinte: eu era uma criança que lia muito.Então, já cheguei na escola quase alfabetiza-da. Eu criança, era uma boa aluna, mas eu nãogostava de ir para a aula, de acordar cedo demanhã. Eu era uma criança que, se eu pudes-se, eu dormiria 12 horas por dia. Acordar demanhã para ir para a aula pra mim era umatortura, ficar sentada numa cadeira para mimera uma tortura. Eu ficava sentada e todo otempo ficava passando um filme na minhacabeça que era assim: "Eu vou empurraressa mesa e sair correndo!" Mas não tinhacoragem de fazer isso. Eu estava entre osprimeiros alunos até o quarto ano primário,quinto ano primário. Mas eu era boa alunaporque era obrigada a ser boa aluna. Porqueminha mãe colava ali, para que eu fosse estu-dar, fazer o dever ... Quando eles relaxaram,eu também fui deixando de mão. Eu passei aser uma aluna mediana que admirava muitoos piores alunos. Os meus heróis, o meninopor quem eu era apaixonada era o pior alunoda turma. E, quando eu fui para o científico,que era o pré-vestibular, primeiro, segundo eterceiro ano científico, realmente foi o fim decarreira (rindo). Eu tinha ódio de ir para a es-cola, não gostava. Chamavam-me de astro-nauta, eu ficava três, quatro dias sem pentearo cabelo, o cabelo ia ficando cheio de nó, eraum negócio, era bem, bem doidinha ...

Amanda - Jane, e no período já da fa-culdade ... A gente viu na pré-entrevista quevocê primeiro foi para a Agronomia, viu quenão era bem o que você queria, você se des-ligou e foi para o Serviço Social. Quero sabercomo foi esse processo de transição de cur-sos. Porque para você entrar na universida-de já tem uma pressão muito grande, daí pravocê ainda mudar de curso ... Eu quero sabercomo foi o processo para você.

Jane - Rapaz, o pior ano da minha vida foio pré-vestibular, foi um horror! Quando saiuo resultado do vestibular, para Agronomia,eu passei, mas estava reprovada no terceiroano do Colégio Cearense (fundado em 1913pelos padres Misael Gomes, José Ouinderée Climério Chaves, fechou as portas no dia31 de dezembro de 2007). Eles fizeram umaespécie de prova de recuperação para apro-var quem tinha passado no vestibular. Eu melembro que foi uma prova que aconteceu detarde, e eles praticamente entregaram o re-sultado da prova para a gente. Foi um negó-cio assim, sabe? Para passar mesmo. Porque

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colégio não ia deixar de dizer: "Aprovamostantos alunos", né?

Sim, mas a dificuldade, né? Então, euassei para Agronomia porque eu não pas-

sei no teste de aptidão da Arquitetura, queera um teste de desenho à mão livre, e eu:quei passada: "Nossa! Não passei nesseteste", Eu pensava que ia levar pau era naprova mesmo, porque era muito concorrida.

as passei para Agronomia. Então, trégua láem casa. Passei na Universidade Federal doCeará, aí me deixaram em paz.

Fui fazer o primeiro semestre da faculda-de. Era: Cálculo I, Física I, Química e Estatís-tica. E eu fui aprovada em duas matérias e

quei reprovada nas outras duas. E eu já vicomo era o curso também, era um curso deEngenharia, cara, de Engenharia Agronômi-ca. Muita cadeira de Matemática, sabe? Mui-a cadeira de Química ... Eu pensei: "Nossa,

eu não vou conseguir terminar esse cursonunca!" Eu via lá uns alunos que estavam hádez anos na agronomia. Eu não tinha cora-gem de dizer lá em casa que eu queria fa-zer vestibular de novo e eu mesma não me

sentia com coragem para começar tudo denovo. Demorei um ano e meio. Ainda fiz oprimeiro semestre, o segundo semestre euia mais ou menos, de vez em quando, e noterceiro eu já nem coloquei mais os pés lá.Mas todo dia eu saía de casa como se fossepara a faculdade, e ia para a casa do namo-rado. Até ter coragem de dizer que eu queriafazer vestibular para outra coisa na área dehumanidades.

Karine - E por que Serviço Social?Jane - Porque, quando eu resolvi fazer

(vestibular novamente), era no meio do ano.Na Federal eu queria Comunicação, mas nãotinha vestibular no meio do ano, tinha Psico-logia. Meu pai era professor da estadual edisse assim: "Por que você não faz ServiçoSocial? É um curso bacana e você gosta dehumanidades". Passei em Serviço Social egostei! Minha turma era muito unida, muitoidealista, sabe? O curso todo só tinha um ho-mem. Era um mulherio danado! E a gente fezmuita loucura. Eu me lembro que, quando agente ainda estava no Básico (refere-se ao ci-cio inicial da universidade), a gente estava in-

"Cada carinha que eu desenhava, cada figurinha,passava a existir, então eu precisava desenharmuito para que aquelas coisas passassem a

existir em outro lugar."

JANE MALAQUIAS I 39

Ainda não existemedições digitalizadas daRevista Entrevista, masos volumes impressossão distribuídos gratui-tamente no curso de Co-municação da Universida-de Federal Ceará (UFC).Thais levou as edições n°3,11,21,30,33 e 35 paraJane na ocasião da pré-entrevista,

A equipe de produ-ção conseguiu o emai/ daJane com a Coordenaçãode Audiovisual do PortoIracema das Artes, emFortaleza, onde ela deuaulas, mas eles informa-ram que o contato comJane seria mais rápidopor Facebook.

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Mesmo sendo bastan-te acessível, o contato porFacebook com Jane aindaera bastante demorado,O número de telefone dacineasta foi conseguidocom Wolney Oliveira, di-retor da Casa Amarela,que também foi entrevis-tado para o material deprodução,

O primeiro encontrocom Jane aconteceu naLivraria Saraiva, do Shop-ping lquatemi. A dupla deprodução, Rose e Thais,contou que, mesmo che-gando antes do horáriomarcado, a convidada jáestava à espera das duas,

dignada com os banheiros da faculdade, queestavam imundos, e a gente fez um mutirãode limpeza. A minha turma do Serviço Socialfoi muito unida, a gente fez muita coisa nessesentido. A gente inventou de fazer uma bi-blioteca solidária, aí batemos de frente como Centro Acadêmico, quando já estávamosestudando no Itaperi (bairro que dá nome aum dos campi da Universidade Estadual doCeará), porque a gente não tinha filiação po-lítica nenhuma, a gente tinha era boa vonta-de. Não fomos pedir a bênção de nenhumCentro Acadêmico para fazer o que a gentequeria fazer. Eu saí de sala em sala, eu e maisumas três meninas, vendendo a ideia de fa-zer uma biblioteca solidária, quando chegounuma sala lá, apareceu a presidente do cen-tro acadêmico: "Por que vocês estão fazen-do isso se tem o Centro Acadêmico? Vocêsdeveriam começar dentro do Centro Aca-dêmico". Menino, foi um arranca rabo emsala de aula! Começaram a dizer que eu erada Polícia Federa\. Nessa época, tinha essaparanóia, quase todos os centros acadêmi-cos estavam aparelhados com partidos queamôa não tinham saldo da clandestinidade,PCdoB (Partido Comunista do Brasin, MR-8(Movimento Revolucionário 8 de Outubro). Agente sabia, ouvia falar e tal, mas ninguémtinha muita certeza. Eu sabia que o CentroAcadêmico do Serviço Social estava ligadoa um partido de esquerda clandestino. E eufiquei muito puta quando a menina veio mepeitar na sala de aula. Ela dizia que eu es-tava dividindo, eu acho que eu disse: "A h,vocês aparelham!" Aí pronto, disse algumacoisa nesse sentido e eles começaram a di-zer que eu era da polícia, que eu era espiã ...Mas também não foi muito longe isso não,ficou ali no Serviço Social mesmo.

Rafael - Antes de você escolher seguiruma carreira profissional no campo da arte,tinha alguma pressão dos seus pais paravocê seguir uma carreira mais tradicional,por exemplo, Serviço Social ou até Direito?

Jane - Não. Diziam assim: "Já que vocêdesenha, deveria fazer Arquitetura", era umpouco isso, não tinha nenhuma insistência,

liA arte era consideradahobby, 'Tudo bem serartista e tal, mas artenão enche barriga de

ninguém, arte nãosustenta ninguém'."

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ão. A arte era considerada hobby. "Tudoern ser artista e tal, mas arte não enche- •.•.iga de ninguém, arte não sustenta nin-

_ em." E era um pouco isso. E é até hoje.ha mãe ... Meu pai, pobrezinho, que rnor-

:; no ano passado: "Minha filha, você nãoer fazer um concurso? Ou então faça um

......estrado".Thais - Mas quando você passou na EIC-(Escuela Internacional de Cine y Televisi-

'1), já pensava em seguir carreira no cinemavocê pensou: "Vamos ver se eu gosto

sso aqui?"Jane - Não. No dia que eu soube que euha passado para essa escola, cara, a gente

a estava morando aqui neste apartamento.Eu gritei tanto, gritei, gritei de alegria. Minhamãe perguntava: "O que aconteceu? Vocêestá louca! Você está louca!" E eu: "Aaaah-nh!" Era o melhor dia da minha vida, foi o diamais importante da minha vida.

Ingrid - Eles (os pais) sabiam que você ti-nha prestado esse concurso? Eles apoiaram?

Jane - Eles não tinham ideia da dimen-são, na verdade. Eu fui fazendo as coisas eeu não dizia muito o que eu estava fazendo,quando eu já vim foi com a notícia: "Passei!Vou estudar em Cuba!" Meu pai ficou as-sim ... Mas foi um negócio que ele não pôdedizer nada, porque a passagem quem deu foio governo brasileiro. Lá a gente tinha bolsaintegral, alimentação, hospedagem, tinhaaté uma mesada em pesos cubanos. Então,não tinha nem como dizer "não vá!", eu jáera maior de idade, já tinha 23, 24 anos. Naépoca, Cuba ainda não tinha restabelecidorelações diplomáticas com o Brasil, entãoa gente viajava e não tinha um carimbo nopassaporte para dizer que estava indo paraCuba, sabe? Era todo um trâmite para a gen-te ter um visto e ir pra lá, mas logo em segui-da, no ano seguinte, já haviam restabelecidoas relações diplomáticas.

Karine - O que você esperava quando seinscreveu nesse projeto que era novo, né?Você foi da primeira turma. O que você es-perava da EICTV?

Jane - Eu ia redirecionar a minha carreira,porque eu estava exatamente em um mo-mento em que eu já tinha me formado emServiço Social, eu tinha começado a traba-lhar como assistente social em um centrocomunitário aqui perto, ali na favela VerdesMares (localizada no Papicu, bairro nobre deFortaleza). Para minha decepção, eu não ti-nha dinheiro para sair de casa, que era meugrande sonho, ter minha vida, meu aparta-mento, aquela coisa toda, ser autossustentá-vel. E eu disse assim: "Poxa, tanto trabalhopra isso? Para estar numa profissão que pagadois salários mínimos?" Era quase que o piso

salarial do assistente social na época. E eufiquei assim: "Porra, eu vou atrás de fazeralguma coisa que eu goste". E outra coisa:eu me decepcionei com a profissão também,porque na escola a gente teve uma forma-ção meio que de esquerda mesmo, sabe? Agente estava muito preocupado em mudar omundo, em mudar o Brasil, com movimen-tos populares, com a questão da terra, da re-forma agrária, a questão do índio, da mulher,da criança ... A gente achava que iria mudaro mundo. Quando você vai para a práticado trabalho, ninguém contrata para mudaro mundo, entendeu? Ninguém ganha saláriopara mudar o mundo. Se você quer mudar omundo, comece mudando você mesmo, mu-dando sua casa, sua relação com os vizinhos,com tudo. Mas a prática do Serviço Social éuma prática de conter uma demanda repri-mida da injustiça social, sabe? É isso, são aspessoas necessitando do mínimo, do básico,e você lá sendo o amortecedor do choque.Evitando que o choque aconteça.

Eu me lembro de uma vez que eu fui parao IML (Instituto Médico Legan levando umacriança de seis anos com suspeita de ter sidodeflorada. Eu não tinha estômago para aqui-lo. Então, eu disse assim: "Eu vou fazer arte!"Já estava nos quadrinhos, já estava na CasaAmarela, estava nesse momento de pesqui-sa. Queria saber onde é que tinha e onde éque era mais viável. E ainda tinha esta: quemé que vai bancar? Né? Porque aqui em For-taleza não tinha (curso de Arte). Hoje aquiem Fortaleza tem vários cursos que eu fariatranquilamente: Estilismo, Paisagismo, Cine-ma ... Tem uma oferta de cursos para quemgosta de arte, mas, na época não tinha. Aopção era sair daqui. E aconteceu essa chan-ce da prova para a primeira turma da escolade cinema acontecer em Fortaleza, na CasaAmarela, só 20 pessoas se inscreveram paraescolher seis pessoas, e eu fui uma das seisescolhidas.

Rose - Como foi a chegada em Cuba?Você estava saindo do Brasil, que estava aca-bando de sair de uma ditadura, e vai para aCuba socialista no período em que o mundoestava dividido ao meio. Enfim, você viveu ocurso de Serviço Social no período da dita-dura, então, como foi a experiência de che-gar em Cuba nesse contexto?

Jane - A sensação é de uma piveta fazen-do história. É, porque, de repente, você estánum momento histórico: "Poxa, que oportu-nidade! Eu estou fazendo parte da primeiraturma de uma escola de cinema internacio-nal, eu estou conhecendo pessoalmente Fi-dei Castro!" Ele recebeu a gente lá no paláciode governo dele, maravilhoso, fez uma festa,um coquetel para receber os estudantes. Foi

JANE MALAQUIAS I 41

Desde o primeirocontato com a equipe deprodução, Jane foi bas-tante solícita e simpática.No final da pré-entrevista,deu o número de telefonede cinco amigos, da mãee da irmã para que se pu-desse entrevistá-Ios e sa-ber um pouco mais sobrea personalidade dela.

Para compor o mate-rial de produção desta en-trevista foram entrevista-dos: Kiko Bloc-Boris, FranVia na, Wolney Oliveira,Marcus Moura e AmauryCândido. Amigos pesso-ais e colegas de trabalhode Jane Malaquias.

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Tatiana Malaquias,irmã de Jane, contou queas duas costumavam ir aoantigo aeroporto, onde ha-via charretes puxadas porcarneirinhos, para as crian-ças passearem. Jane se re-cusava a subir na charrete.Tinha pena dos carneirose ficava andando ao ladodeles.

Jane contou que aca-bou descobrindo que ospais também gostavamde desenhar durante ajuventude. Os dois tro-cavam cartas durante onamoro, onde, segundoela, a mãe ilustrava lindosratinhos e outros bichi-nhos que representavamo casal.

a primeira vez que eu comi lagosta na minhavida! E, quando a gente chegou em Cuba, aescola ainda não estava pronta. A gente fi-cou no Hotel Nacional, um grande hotel, eisso durante o festival de cinema de Havana,o Festival de Cinema Latino-americano. Todanoite na boate do hotel estava Arturo San-doval (trompetista e pianista de jazz cubano)tocando, um grande músico, um virtuose. Oavião que eu viajei para Cuba era uma aviãono qual estava um monte de diretor brasilei-ro, de gente importante, que eu tinha vonta-de de conhecer. Se aquele avião caísse ia seruma desgraça pior do que o avião que matouos Mamonas Assassinas (refere-se à bandade rock brasileira cujos membros morreramem um acidente aéreo na Serra da Cantareira,em São Paulo, em 1996) ou aquele que ma-tou o Edson Queiroz (acidente com avião daantiga Vasp, na Serra da Aratanha, em 1982,no qual morreram 137 pessoas, no Ceará).Era um avião lotado de cineastas, atores, in-telectuais, e nós, os estudantes brasileiros,lá. Eu me lembro de que eu sofri até bul/ying,que eu estava sentada numa cadeirinha, comos colegas aqui do lado, e eu me lembro queestava na minha frente, eu não me lembroquem eram os outros, mas me lembro doZiraldo (cartunista brasileiro), Ziraldo e maisuns dois ou três assim: "Ei, menina! Vocêpassou, foi, para Cuba? É, você é muito boni-tinha, você passou porque é bonitinha", umnegócio assim, que eu tinha passado porqueera bonitinha.

Rafael - Ouais foram os cineastas quevocê teve mais contato lá na escola, comquem teve a oportunidade de conversar en-quanto esteve em Cuba?

Jane - Olha, dos brasileiros: Walter Lima.Júnior ... Professores que eu tive de fotogra-fia: Mário Carneiro, César Charlone, JoséMedeiros - são todos grandes diretores defotografia brasileiros, né? A (cineasta) TizukaYamasaki também esteve lá. Dos internacio-nais, teve o (cineasta norte-americano Fran-eis Forei) Coppola - eu participei de uma ofi-cina de roteiro de longa metragem de umasemana com o Coppola, ele dando aula demanhã e de tarde para a gente escrever umlonga-metragem em uma semana, e deu cer-to, a gente escreveu.

Ingrid - E ele gostou do longa?Jane - Era um Frankstein, o longa, era

muito engraçado (rindo), porque ele partiu doseguinte princípio: nós vamos desenvolveraqui um filme comercial, e um filme comer-cial é um filme de gênero. Vamos escolherum gênero com o qual a gente quer trabalhar.Aí a turma: "Vamos fazer um thriller!" Ele dis-se: "Bom, o gênero do thril/ersempre tem: oassassino, as vítimas, o investigador ... " Ele

pegou a lousa e dividiu em nove pedaços,disse que um filme comercial, em geral, temnove bobinas de dez minutos, é um filme de90 minutos. Ele disse o que tinha de aconte-cer em cada bobina e a gente discutia qualia ser a história. Na época, o Papa Negro vi-sitando Cuba. O Papa Negro era um grandechefe da religião do Candomblé, da religiãoYorubá (iorubá, na pronúncia em português),que em Cuba está muito presente. Então al-guém disse que a gente tinha de fazer algu-ma coisa sobre a visita do Papa Negro. Tinhaa história de uma espécie de um sanatórioque tinha em Cuba que era pra onde estavammandando as pessoas que tinham AIOS, láeles chamam SIDA. Fomos juntando essascoisas, o que a gente queria colocar no filme,como é que a gente junta o Papa Negro como sanatório, com mais não sei o quê! Eu seique foi sendo criada em linhas gerais a histó-ria. Daí ele perguntou quem é que iria traba-lhar no primeiro rolo, quem vai trabalhar nosegundo, no terceiro ... E cada subgrupo iaescrever aqueles dez minutos. Todo mundose encontrava, e a gente lia o que havia sidoescrito. Acontecia do personagem que haviasido introduzido no primeiro rolo e havia sidomorto num outro rolo, aí fazíamos a votação:"Continua ou não continua?" "Traz daqui pracá, daqui pra lá". Isso foi me revelando umacoisa do roteiro que é o desapego. O roteiroé um quebra-cabeças que a gente vai mon-tando, é uma coisa muito lúdica. O roteiristaprofissional mesmo vê o roteiro como umabrincadeira. Você monta e remonta aquilo,você tira uma cena e bota pra lá, elimina umpersonagem e coloca outro, é uma maquini-nha que tem de funcionar.

Maurício - Jane, no processo lá da escolae de estar sendo exposta a todas essas per-sonalidades e facetas do cinema, o que foique a fez decidir a focar na produção de foto-grafia como especialização?

Jane - Foram duas coisas: uma forammeus professores de fotografia, porque, hojeem dia, quando se vai para Cuba, já tem de irdizendo o que quer fazer lá, mas na época emque eu fui o curso era polivalente, a gente sóse especializava no último ano. Até lá a genteestava exercitando todas as funções, em umexercício você fazia som, no outro exercíciofazia montagem, no outro fazia produção, nooutro dirigia, no outro fotografava, né? Entãovocê era obrigado a ter uma base de todas asfunções. Todo mundo teve aula com o CésarCharlone, com o José Medeiros, com o Má-rio Carneiro, e esses professores foram ma-ravilhosos, Eles realmente me levaram paraa fotografia. E teve a coisa do choque de egotambém. Quase todo mundo, acredito queuns 80% dos alunos da minha turma queria

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"Ninguém ganha salário para mudar o mundo.Se você quer mudar o mundo comece mudando

você mesmo, mudando sua casa."

ser diretor, é o que chama mais atenção. E,na hora de fazer os exercícios, rolava muitarasteira. Eu comecei a me desencantar emum exercício que era para fazer direção di-vidida. Eram pra ser três diretores, e os doiscolegas que tinham de dirigir comigo, ummenino e uma menina, não tinham nenhumaideia, não tinham roteiro, não tinham nada, eeu cheguei com um roteiro. Eles leram, e ti-nha uma coisa que estava acontecendo sem-pre nas turmas era que a pessoa que levavao roteiro acabava sempre dirigindo mais queos outros, porque era o "dono da história".Mas essas duas pessoas que trabalharam co-migo se reuniram e chegaram assim: "Jane,é o seguinte: eu sei que a gente não tem ro-teiro ainda, mas a gente não quer dirigir oseu roteiro não, a gente quer fazer um roteiroaqui entre nós dois e a gente vai fazer o fil-

me", eles nem tinham nada ainda e eu fiqueitão chateada que só disse: "Té bom, pois vo-cês co-dirijam o filme os dois, eu não queromais estar na equipe de direção, eu vou paraa equipe de câmara". Saí, não fiz o exercíciode co-direção com eles, fui ser assistente decâmara do filme e comecei a me desencan-tar, sabe? Porque era muita briga de ego, euachei que na fotografia e no roteiro era maislegal, e eu tinha adquirido muito conheci-mento que, mais tarde, quando eu quisessedirigir, eu iria utilizar.

Alana - Durante o tempo em Cuba vocêteve algum medo, alguma saudade, algo quea fizesse querer voltar?

Jane - Não. Eu fiz de tudo para não voltar,porque eu sabia que a gente iria voltar paraFortaleza. Quando a gente veio para cá, o(então presidente Fernando) Collor de Meiotinha acabado com a Embrafilme (EmpresaBrasileira de Filmes), acabou com o cinemabrasileiro. Enquanto eu estava lá em Cuba,tentei cavar alguma bolsa, alguma coisa paraeu ir para outro canto, mas não rolou e euvoltei para Fortaleza, e, assim que eu pude,eu fui embora de Fortaleza.

Thais - O que mudou na sua cabeça quan-do você foi para Cuba? Porque você já vinhade uma educação de base de esquerda noServiço Social, na UECE (Universidade Esta-dual do Ceará), e chega lá e tem um sistemasocialista. Você acha que amadureceu de al-guma forma, na sua forma de pensar?

Jane - É, se tornou muito mais comple-xo o meu pensamento, porque, quando nóschegamos lá, a Revolução Cubana estavacompletando 30 anos. Existia toda uma ge-ração que tinha nascido dentro da revolução,pessoas que não tinham conhecido o antes.Essas pessoas, principalmente os jovens ar-tistas que eram os que a gente se relacionavamais, sentiam muita falta de ter uma parti-cipação política, porque, para você ter umaparticipação política lá, você tinha de estarno partido desde criança, você tinha de serfiliado ao partido e ter uma vida de pioneri-to, senão ninguém o escutava. Tinha o ladodo bloqueio econômico, que é muito injustoo que fizeram com Cuba - os Estados Uni-dos fizeram um bloqueio a um país minús-culo, queriam matar os cubanos de fome(refere-se ao bloqueio imposto pelo governo

JANE MALAQUIAS I 43

Durante a pré-entre-vista, Jane revelou umahabilidade curiosa quedesenvolveu durante operíodo em que cursouAgronomia: aprendeu acortar cabelo. Ela ia parao Centro Acadêmico docurso e ficava observan-do um amigo que realiza-va a atividade lá mesmo.

Jane fez parte da pri-meira turma da EscuelaInternacional de Cine yTelevisión (EICTV), emSan Antonio de los Bafios,Cuba. O concurso paraseleção de 1987 abriuapenas seis vagas para oBrasil, todas destinadasapenas a estudantes doCeará e Piauí.

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Durante a produçãoda entrevista, descobri-mos que Wolney Olivei-ra, atual diretor da CasaAmarela, participou daprimeira turma da EICTV,juntamente com Jane e oscineastas Marcos Mourae Amaury Cândido.

No voo de ida paraa inauguração da esco-la em Cuba, Jane contaque sentou logo atrás docartunista Ziraldo. Ele te-ria, então, implicado umpouco com a estudantedizendo que ela teria con-seguido a vaga por ser"bonitinha".

norte-americano desde os primórdios da Re-volução Cubana, impedindo importações demercadorias e serviços de qualquer espécie,durante mais de 40 anos). Era uma situaçãomuito complexa. As pessoas criticavam Fi-dei, mas Fidel era um grande pai também,um grande avô. Ninguém tinha raiva de Fi-deI. A coragem que ele teve - ele, o CheGuevara (político, escritor, médico e guerri-lheiro, Ernesto Guevara de Ia Serna, nascidona Argentina e morto na Bolívia), o CamiloCienfuego (revolucionário cubano, CamiloCienfuegos Gorriarán, morto em 1959) foimuito grande, eram heróis nacionais, masesses heróis também erram, né? Aí tem fu-laninho que é do partido e: "Pá, eu sou dopartido!" acha que dentro de um museu umcasal não pode dar beijo na boca, ou que umjovem não pode usar barba, só quem temdireito a usar barba é o comandante chefe,que foi para Sierra Maestra (local estratégicona Revolução Cubana). Tinha umas careticesmuito grandes. Você via em Cuba todo tipode tribo, era engraçado isso. Você andavapor uma rua e via a galera do heavy metal,galera punk, mas essas pessoas eram vistascomo os freaks, era bul/ying em cima deles.Enquanto o cubano médio comum era isso:idolatrava o Fidel. E tinha um comportamen-to que a gente chamava de a dupla moral docubano. A dupla moral do cubano é o seguin-

. te: é a dupla moral de qualquer um de nós.É o seguinte: só quem tem direito de falarmal da minha família sou eu, ninguémvenhade fora dizer que minha mãe é feia, que meuirmão é banguela, não, só quem tem direitosou eu. Então, o cubano tinha isso, na hora defalar publicamente dos problemas em Cuba,todo mundo era pró Fidel. Mas, no dia a dia,na hora de fazer o supermercado para dentro'de casa... Aí, valia todo tipo de malandragemmesmo, sabe? Porque Cuba passava por umproblema sério de distribuição de alimentos.Você não chegava em um lugar e conseguiafazer o supermercado, não encontrava nomesmo lugar banana, ovo, leite e farinha,não. Quando faltava, faltava. O cubano pas-sava muito trabalho para conseguir as coisasbásicas. E ainda passa. Eu vi a complexidadeda coisa, tudo se tornou bem mais complexopara mim. Eu não julgo Cuba porque eu seique é difícil, eles fizeram uma coisa grandio-sa e, ao mesmo tempo, nenhuma ditadura ésaudável.

Alana - Você passou alguma dificuldade lá?Rafael - Alg uma repressão?Jane - Passei. Teve uma coisa que eu me

senti censurada. Na festa de formatura nanossa graduação lá na escola, o palanque iaser montado na frente do comedor, do refei-tório, que dava para um grande pátio, e che-

garam pra mim: "Jane, você desenha bem,pinta, não quer pintar aqui esses vidros paraficar bonito? Porque isso vai ficar por detrásde onde vai ser o palanque onde vão estaras autoridades" E eu achei massa, eu já faziaisso, eu pintava com tinta guache as portasdos quartos dos alunos, o pessoal me pedia,e eu ia lá e pintava. Eu não sei o que deuna minha cabeça que eu resolvi pintar umanjo lutando contra um demônio - acho queporque tinha o diretor da escola, o FernandoBirri (cineasta argentino, nascido em 1925),que tinha feito um filme no qual ele era umanjo, era "um senhor muito velho de asasmuito grandes". Acho que por causa do nos-so imaginário também, do bem contra o mal,não sei que, não sei que, e eu inventei de fa-zer um anjo com um demônio. Fiz um muralbem gigante lá. Quando foi de tarde que eutava tranquilinha no meu quarto, vieram medizer: "Jane! Jane! A galera não gostou, não,do negócio que tu fizeste lá e mandaram co-brir tudo com um pano vermelho". O sangueveio, o coração chega fez tumtumtumtum, eeu fui ver e estava lá um pano velho de brimvermelho cobrindo tudo, sabe? Aí, eu pegueiuma tesourinha de unha e fui lá e cortei opano todinho, e não fizeram nada, ficou lá.

Rose - Como vocês se comportavam ládentro? De certa forma, vocês eram um gru-po recebendo privilégios dentro de um con-texto repleto de restrições.

Jane - Muito mal. Como a nossa geraçãofoi a que inaugurou a escola, a gente tinhamuita moral, sabe? Porque nós éramos os pi-lotos de prova de uma escola antiescolástica.Com um diretor, que foi o Fernando Birri, queteve uma presença de muita importância. Eleera uma espécie de professor Ronaldo (refe-re-se ao professor Ronaldo Salgado, orien-tador desta revista, que estava presente nomomento da entrevista), era até meio pare-cido, cabelão, usava chapéu, mas o Birra an-dava com uns paletós pretos de lã, em plenoCaribe! E o discurso dele era muito poético,era o discurso da liberdade artística, de dizerque era uma escola aberta às intempéries domundo, aberta aos ventos e furacões, porqueCuba é sujeita a furacão. Então, ele garantiuque aquela não iria ser uma escola careta.

Teve uma menina, a Cristina Tivalle, que jáera jornalista quando entrou na escola. O pri-meiro exercício de documentário dela (Todoslos Hombres son Mortales) foi sobre o queiria acontecer quando Fidel morresse. Era otipo de documentário que nenhum cubano iater coragem de fazer. Ela faltou apanhar emHavana, só por perguntar isso: "E quando oFidel morrer?" O Amaury (Cândido Bezerra,jornalista cearense), que é daqui e foi paraCuba com a gente também, fez um documen-

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tário sobre a prostituição, e também ninguém"alava sobre existir prostituição em Cuba. Asgineteiras, como são chamadas. A gente foiurna espécie de cunha (pedaço de ferro ou demadeira que se coloca numa abertura paradiversas finalidades) internacional, porque aárea da escola era considerada uma área deembaixada, uma área internacional. O gover-no cubano nos acolhia, acolhia esse projeto,mas dentro da escola eles não tinham juris-dição. Claro que existia uma diplomacia, atéhoje a responsabilidade do diretor da escolaé fazer essa ponte, porque os alunos não sãosantinhos, sabe? De jeito nenhum! Aconte-ce todo tipo de insubordinação que se possaimaginar. Gente, né?

Sarah - Você tinha falado que lá havia vá-rias pessoas de diferentes jeitos, diferentestipos. Como era a sua relação com as pes-soas que estudavam na escola e com as quevocê conheceu lá?

Jane - Era boa, sabe? Eu era uma pessoade boa índole. Uma menina véia. Se vocêsverem as fotos ... Eu era muito sorridente! Omédico da escola, doutor Maximo (Luz Maxi-mo Hernandez), dizia assim: "Você é o meutermômetro, porque, se você não estiversorrindo, é porque tem alguma coisa erradaaqui acontecendo." (risos) Porque eu ria otempo todo.

Rafael - Por ser um país fechado, teorica-mente fechado, como era a sua comunicaçãocom o mundo? Como você ficava sabendodas notícias sobre o que aconteceu no país,o que aconteceu no Brasil e até nos EstadosUnidos? E você também ia muito para cine-ma. Qual o tipo de filme que passava? Haviafilmes americanos?

Karine - Só um instante. Ele perguntousobre as notícias em geral. Você procuravasaber notícias sobre o Brasil?

Jane - Não. Na época em que eu fui estu-dar lá, uma carta demorava três meses parachegar. Quando você mandava uma carta deCuba para o Brasil ou do Brasil para Cuba. Euacho que recebi duas cartas quando eu estavalá (passou quatro anos estudando em Cuba).

A comunicação rápida que havia na épocaera o Telex (sistema internacional de comu-nicações escritas que prevaleceu no séculoXX). Tinha um Telex na escola, que era umnegócio que vai saindo uma fitinha com unsfurinhos assim (imita o som de uma máqui-na). Era a comunicação rápida! E o telefoneera o seguinte: tinha uma telefonista, que eutinha mó pena da póbi, a Marioles, que ficavalá quando você queria fazer uma ligação. Porexemplo, eu ia ligar para a minha família nes-

"Hoje aqui emFortaleza tem várioscursos que eu faria

tranquilamente:estilismo, paisagismo,

cinema{. .. ), mas naépoca não tinha. A

opção era sair daqui."

JANE MALAQUIAS I 45

A sala de cinema daCasa Amarela foi a pri-meira opção de local paraa entrevista. Chico Célio,atual coordenador daCasa Amarela, foi muitosolícito tentando ajudara reservar um espaçona Casa, mas o cinemaestava em reforma e aacústica das salas era umproblema.

A produção não que-ria que a entrevista ocor-resse na UFC. As meninastentaram reservar o teatrouniversitário, o CineteatroSão Luiz, a Casa Amarela,mas nada deu certo. Pró-ximo à data da entrevista,Jane Malaquias ofereceua própria casa para rece-ber os estudantes.

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Houve uma discus-são acalorada durante areunião de pauta destaentrevista. Vários partici-pantes da revista tinhamideias divergentes sobrecomo deveriam ser orga-nizados os temas e comodeveria se dar o fluxo daentrevista.

Jane lembra que foi re-provada na escola no mes-mo ano em que foi aprova-da no vestibular. Fez umaprova de recuperação econheceu um rapaz queestava na mesma situaçãoque ela, e os dois conver-saram muito. O nome deleera Jânio. Ela nunca maiso viu.

tas datas: natal, aniversário do meu pai ouaniversário da minha mãe. Eram as datas queeu inventava que eu ia ligar para minha casa.A pobre (telefonista) tinha de pedir uma li-nha. Ela ficava horas assim: : "LOigo?, iinte!,iinte!, Loigo? .." (do espanhol: alô? Interna-cional! Internacional! Alô?) Até que alguémde Santo Antonio de los Bafios, a telefonistada central telefônica, atendesse, que a pas-sasse para a central de Havana para conse-guir uma linha. Era uma sala de espera dedentista a cabine telefônica da escola. Era sóuma telefonista, você abria a porta e tinhamtrês, quatro, cinco pessoas esperando parafalar e sabia que cada pessoa daquela ia de-morar uma hora para conseguir uma chama-da. Então, eu desistia. Desistia mesmo! E foibom, porque eu aprendi que eu podia viversem notícia. Hoje em dia eu não faço nemquestão. Não tenho televisão em casa. Eunão leio jornal. Não faço questão, porque medeprime quando eu vejo um jornal, quandoeu vejo certas notícias eu fico profundamen-te deprimida.

Rafael - E o cinema lá. Passava que tipode filme?

Jane - Não, eu não ia para cinema. Osfilmes que eu assistia era na escola, tinhauma programação de cinema para a gente.Em Havana eu ia mais para ver teatro, dança,esse tipo de coisa, festival de música ...

Ingrid - A vida cultural era vibrante emHavana ou era algo mais restrito? Só algu-mas pessoas tinham acesso ou era algo di-fundido na população?

Jane - Isso é bacana! Os eventos cultu-rais que aconteciam eram eventos para todomundo. Claro que tem aquelas coisas que sãopara turista, tipo o Cabaret Tropicana. No Ce-baret Tropicana, você tem de pagar para en-trar e assistir àquele show de Sargentelli, dasmulatas de Sargentelli (refere-se ao radialista,apresentador de televisão e empresário brasi-leiro Osvaldo Sargentelli, 1924-2007) dançan-do com aquelas roupas, aquelas coisas todas.Mas, se não, lá isso é muito democrático, erabarato e tinha uma oferta.

Thais - Jane, a escola surgiu já em umperíodo de início da crise na União Soviéti-ca e Cuba recebia apoio da União Soviética.Com os anos de estudo, você sentiu alguma

diferença na escola? (Crise da União das Re-públicas Socialistas Soviéticas, dissolvida to-talmente em 1991)

Jane - Foi, foi. No último ano da escola,a gente começou a ver o racionamento. Dequatro ônibus por dia, passou a ser só um.Então, era o ônibus que levava os trabalha-dores que moravam em Havana no fim dodia. O motorista dormia em Havana e, de ma-nhã, o ônibus voltava para a escola. Ir paraHavana se tornou complicado, porque vocêtinha de ter onde dormir lá. A alimentação foificando cada vez mais restrita. E a gente já ti-nha uma alimentação privilegiada em relaçãoao que os cubanos estavam podendo comerno dia a dia.

E teve toda aquela crise dos irmão Ochoa(tendo à frente o general Arnaldo Ochoa Sén-chez, com o envolvimento com o tráfico dedrogas), do envolvimento da alta hierarquiacubana com o tráfico de cocaína, que a guer-rilha salvadorenha estava sendo financiadacom dinheiro do tráfico e também a guerrilhada Nicarágua, do Panamá. Então teve todoesse julgamento, um julgamento público. Fi-dei discursando horas e horas na televisão.Mas o dinheiro da droga estava servindopara isto: financiar movimentos independen-tistas, guerrilhas e tudo mais.

Rose - Você teve toda essa experiência edepois teve de voltar para o Brasil. Como foique tudo isso afetou no seu trabalho? Comofoi chegar ao Brasil e ter de começar a traba-lhar com audiovisual, com cinema, trazendotoda essa carga? Como era o mercado aquino Brasil?

Jane - Não era no Brasil, era em Fortale-za... Você chega e não sabe muito o que vaifazer. A nossa referência era a Casa Amarela.A gente deu aula na Casa Amarela, eu e oMoura (Marcus Moura, outro cearense queestudou em Cuba). A gente deu cursos de ro-teiro e de direção. O Tibico Brasil (cineasta efotógrafo) foi até aluno da gente. Até hoje eleme chama de professora. E toda vez que meencontra é: "Minha professora!" E eu: "PÔ,Tibico, vamos mudar de assunto" (risos).

Eu ganhei um edital nacional para fazer ummédia-metragem em vídeo de ficção, cha-mado Azul caixão de anjo. Teve esse alento.Consegui, um ano depois de chegar de Cuba,

IISe aquele avião caísse ia ser uma desgraçapior do que o avião que matou os MamonasAssassinas, ou aquele que matou o Edson

Oueiroz."

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ganhar um edital para fazer um primeiro fil-me. Mas eu estava só esperando a chance deir embora. Fiz uns curtas, fiz o primeiro curtado Karim Ainouz (diretor de cinema e artis-ta visual brasileiro. Além de O Preso, Janetambém fotografou outros curtas de Karim,como Seams, Paixão Nacional e Rifa-me)O prisioneiro ou é O preso, não sei. Então,apareceu uma oportunidade de eu trabalharem um documentário do Orson Welles (dire-tor de cinema norte-americano, 1915-1985),

110 roteiro é umquebra-cabeças que agente vai montando,

é uma coisa muitolúdica (...) Você monta

e remonta aquilo."

uma obra do Orson Welles que tinha ficadoincompleta (refere-se ao filme It's ali true).Eu fui fazer assistência de câmara para umfotógrafo. Foi muito bom, porque eu ganheiem dólar. Com esses dólares eu fui para SãoPaulo e consegui viver uns seis meses com odinheiro de um trabalho que não durou nem15 dias. Eu fui ficando em São Paulo. Fiqueidois anos.

Ingrid - Você morou um tempo na Fran-ça. Como foi que surgiu essa vontade de mo-rar lá?

Jane - Porque eu me apaixonei por umfrancês (risos). Eu conheci um francês queestava no Brasil como assistente de câmerado Ricardo Aronovich (diretor de fotografiaargentino conhecido por trabalhar em di-versas produções francesas), que tinha sidomeu professor em Cuba e estava dando umaoficina em Brasília pela UNB (UniversidadeNacional de Brasília). Fui lá fazer e me apai-xonei pelo assistente de câmera (Ollivier LeGurun). A gente passou dois anos namo-rando por carta, telefone ... Ele veio de novopara o Brasil em um segundo curso do Ricar-

JANE MALAQUIAS I 49

Jane fez parte da pri-meira turma da Oficina deQuadrinhos da UFC, orga-nizada pelo professor Ge-raldo Jesuíno em 1985.Ela é citada na entrevistacom o professor Jesuíno,da Revista Entrevista n°34, como umas das pri-meiras mulheres a partici-par do projeto.

Logo que chegamos,Jane pediu que todos ti-rassem os sapatos e osdeixassem nos tapetes.Ela temia que pudésse-mos pisotear um filho-tinha de gato que seriada mesma cor do piso.Todos se sentiram mais àvontade por poderem es-tar descalços na casa.

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Jane recepcionou aturma com uma mesacheia de frutas e chocola-tes. Após a realização daentrevista, algumas fotosforam tiradas para recor-dação quando todos osdoces já haviam desapa-recido.

Como fotógrafa expe-riente, Jane sugeriu ondeela mesma deveria sesentar para que as fotosda entrevista tivessem amelhor iluminação pos-sível.

do Aronovich, de novo em Brasília. Pratica-mente, os mesmo alunos do primeiro cursoforam convidados a participar do segundo. Agente voltou a se reencontrar, o que eu digoque foi o segundo melhor dia da minha vida.O primeiro foi quando eu passei para Cuba.O segundo foi quando eu encontrei o ho-mem que eu achava que era o grande amorda minha vida, o príncipe encantado. Eu nãotinha dinheiro para ir para a França nem tinhacoragem de chegar para o meu pai e dizerassim: "Me pague uma passagem internacio-nal para eu encontrar um namorado na Fran-

ça", Então, ele me convidou: "Você não querir para a França? Não dá certo a gente ficardois anos desse jeito".

Rose - Mas você morou na França, noBrasil, em São Paulo, Recife e trabalhou emalguns outros países. Como é trabalhar comcinema na França e aqui? Como você perce-bia a diferença?

Rafael - Principalmente, porque a Françaé uma Meca do cinema para críticos do cine-ma e para realizadores também. Como foi aexperiência lá?

Jane - Sim ... Olha, foi muito frustrante.

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"Enquanto eu estava lá em Cuba eu tentei cavaralguma bolsa, alguma coisa para eu ir para outrocanto, mas não rolou e eu voltei para Fortaleza, e,

assim que eu pude, eu fui embora."

=oi enriquecedora, por um lado. No trabalhoe assistente de cârnera, que era o que eu

azia lá - eu não trabalhava lá como diretorae fotografia, era ou assistente de câmera ouegunda assistente de câmera - adquiri mui-

to conhecimento, do ponto de vista técnico,que hoje em dia nem posso usar, porque nin-guém filma mais em 35mm ou 16mm, nemsuper-8mm nem nada. Mas, do ponto de vis-ta da relação humana, foi terrível, muito frus-trante. A França foi um choque cultural nomal sentido. Se Cuba foi um choque culturalmaravilhoso - eu descobri a América Latina,descobri meus irmãos latino-americanos,a cultura latino-americana - , na França eudescobri o preconceito contra o suposto Ter-ceiro Mundo (expressão usada para caracte-rizar países em desenvolvimento ou paísespobres, até o final do século XX). Até do meupróprio marido, do meu querido maridinho,era o primeiro a me botar para baixo, sabe?De ficar dizendo: "Não, a sua escola não étão boa. A minha é melhor que a sua!" (falaimitando uma voz arrogante). Eles são muitocompetitivos. É uma galera que em um setde filmagem gosta de ficar dizendo quemestá fazendo algo errado. Parece até aque-le... Não tem o desenho animado CorridaMaluca, que tinha o cachorrinho que ficavadizendo: "Medalha! Medalha! Medalha!"?Pois é... A equipe de cinema francês é bemisto: aquele bando de subordinados queren-do ganhar medalha dos chefes. Como é queeles ganham medalha do chefe? Deveria serfazendo bem o seu trabalho, mas não, é di-zendo o que o outro não está fazendo bem.

Thais - Jane, eu li no seu blog que vocêfez uma Calunga para o Maracatu de unsamigos na França.

Jane - Ela está aqui! Ela voltou para mimano passado.

Thais - Legal! De onde veio esse contatocom a cultura africana, talvez até afro-brasi-leira pela mistura das culturas?

Jane - Olha, engraçado... A primeira vezque eu fui em um terreiro de umbanda foicom o Eusélio Oliveira (cineasta cearenseque idealizou e esteve à frente da Casa Ama-rela até ser assassinado em 1991). A mãe doEusélio Oliveira era mãe de santo. E ela tinhaum terreiro, dona Teté. Muito parecida com

ele, uma mulher alta, de cabelo branco, umasenhora... Se Eusélio tinha 50 anos quandoeu o conheci, ela deveria ter 70, talvez, senãomais. Então, o primeiro terreiro de umban-da que eu fui foi o de dona Teté. Depois, eufui a vários terreiros, por causa de trabalhomesmo ou por curiosidade. E a minha famí-lia é baiana, e baiano tem essa proximidadecom candomblé ... E em Cuba também. Umamigo, cubano mesmo, que eu tinha, o HélioRuiz, que hoje vive no México, era do can-domblé. Ele falava muito dos orixás, me davalivros para ler ... Uma vez, a gente foi para umbarzinho lá - em Cuba tem uns bares meiosubterrâneos -, em uma avenida chamadaLa rampa, era uma ladeira, e a gente estavano maior papo de orixá e começou um torólá fora e a água entrou e inundou o bar. Ea gente naquelas cadeiras de bar e a águavindo e ele dizendo: "Tu vês, nifía? Tu eresde lemanjá! Es 10 que te digo! Mira Ias sefía-les, Ias sefíales!" Essa dimensão mágica estásempre presente na minha vida.

Ingrid - Você falou dessa dimensão mági-ca. Você acha que isso se reflete no seu tra-balho, nas suas obras?

Jane - Claaaaaaro!Ingrid - Mas de que forma?Jane - Eu tenho muita liberdade com a

linguagem cinematográfica. Eu acho que aimaginação tem de ser livre. Não tenho ne-nhum interesse de retratar a realidade comoé ela. Eu quero mostrar uma realidade trans-figurada, imaginada. Então, acho que todosos meus filmes têm um pouco disso. Porexemplo, o Azul caixão de anjo conta a his-tória de uma criança que vai para um progra-ma de televisão, um desses programas queexploram a pobreza. O apresentador estácom audiência baixa, resolve inventar umadoença grave para um menino, uma doençamortal. Arrecadam bastante dinheiro, fazemaquela festa toda e entregam um chequepara o menino. Aí, vão comemorar em umalanchonete. O menino come tudo o que elequeria: coxinha, empada, bolo, milk shake;tem uma congestão e morre. Então, o enter-ro da criança é televisionado. Vem o apre-sentador e filma o enterro. Como era um pro-grama de auditório, todos os personagens,o júri do programa de auditório, vão para o

JANE MALAQUIAS I 51

Caramelo, um dosmuitos gatos de Jane, semostrou bastante curioso.Conseguiu abrir o flash damochila do nosso fotógra-fo, Saulo Roberto, e enfioua cabeça na bolsa para vero que havia lá dentro.

Os gatos de Jane esti-veram presentes durantetoda a entrevista. Anxe-lozinho, um gato branco,exigiu carinho e atençãoda nossa entrevistadoraIngrid Pedrosa, enquantooutro, o gato que apare-ceu nas fotos com Jane eThais, pulou no meio dosnosso gravadores parachamar atenção da dona.

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A entrevista foi divi-dida em três blocos: arelação com a arte, o pe-ríodo em que estudou emCuba e Jane atualmentee planos para o futuro. Otempo do bloco inicial daentrevista ficou peque-no quando percebemosquão intrínseca é a rela-ção de Jane com a arte.

A cineasta teve a pri-meira experiência comcinema ainda na escola,por volta da sétima sé-rie. Jane lembrou que aprofessora pediu que osalunos produzissem umfilme em câmara super 8.A equipe dela escolheuuma história sobre umassalto a banco.

"Eu não julgo Cuba. ,porque eu sei que edifícil, eles fizeram

uma coisa grandiosae, ao mesmo tempo,nenhuma ditadura é

saudável."

funeral do menino. Gente, quem está nessefilme? (risos). A Luizianne Lins (ex-prefeita deFortaleza, capital do Ceará), fazendo papel demiss e de jurada; está o Eusélio Oliveira, fa-zendo o papel de padre; está o Francis Vale(cineasta), fazendo o papel de "doutor", opolítico corrupto que se apoia no apresenta-dor; o Rodger Rogério (músico e compositorcearense), que faz o papel do apresentador;a Ângela Borges (publicitária, trabalhou naTV Cidade, na Rede Manchete, foi coordena-dora de imprensa do Governo do Estado, nagestão Ciro Gomes, além de realizar diversascampanhas em agências publicitárias, comoa Scala Publicidade e a Press), faz o papel dadiretora malvada do programa, que cobraaudiência do pobre coitado do apresentador.Então, tem várias figuras daqui da cidade. Omenino morre, de novo é explorada a figurado menino. Um ano depois, está a cova domenino cheia de devotos, pessoas fazendopromessa, um homem lançando um discocom a música Paulinho foi pro céu. O filmetermina com um programa de rádio em queo Eusélio está falando que o Paulinho estáno céu e não sei o quê ... Isso no programade rádio do padre. O Eusélio era um padreque tinha um programa de rádio. Enquantoisso, a gente vai vendo imagens do cemité-rio onde as crianças, os anjinhos, vão sain-do das sepulturas e dançando no cemitério.Termina assim: com todas as crianças queestão enterradas no cemitério ressuscitandoe fazendo a maior brincadeira.

Rafael - Você acha que o No passo davéia (drama, curta-metragem, 2002, 15min)tem essa pegada mágica também? Porque,para mim, ele pareceu mais um realismo so-cial.

Jane - Ele tem pegada mágica nos basti-dores. Por exemplo, a dona Neném, que fezo papel da velhinha, foi uma senhora que nãocasou, não teve filhos, então não teve netos.Ela casou, sim, mas já estando no asilo dosvelhinhos. Fizeram o casamento dela comoutro velhinho e isso saiu até na (Rede) Glo-

bo. Ela era famosa lá em Aquiraz (cidade daregião metropolitana de Fortaleza) e não sa-bia. Então, tem uma cena em que ela oferta opresente que ela comprou para o neto. Ela vaidar um desodorante para o neto. E eu disseassim: "Dona Neném, eu queria que a senho-ra dissesse algo para o seu neto, fizesse umadedicatória. O que a senhora vai dizer paraele?1IPorque era tudo muito meio no impro-viso. A dona Neném disse: IIEu fiz um poemapara um neto imaginário" e esse poema estálá no filme: Meu neto tu és um encanto/ Tuacabas de nascer/ Eu tenho sofrido tanto/ Queestou farta de viver/ O tempo que vai passan-do/ Vai me matando sem dói Só tu conseguessorrindo/ Dá-me alegria do sol.

Eu não me lembro mais o resto, mas émais ou menos isso. Isso, para mim, é mági-co, sabe? Você chama uma pessoa para fazerum papel de avó e ela tinha um poema de umneto imaginário.

Karine - Jane, a Thaís fez uma perguntadiretamente relacionada à espiritualidade,sobre seu contato com as religiões africa-nas... Você se considera adepta de algumareligião?

Jane - O Janismo (dá uma gargalhada erespira fundo, organizando os pensamentos).É... Eu acho que sou a sacerdotisa, monja, amonga ... Às vezes, eu fico dizendo que essacasa é um mongastério, é o meu monastério,com os meus gatinhos. Eu brinco muito. Eutenho duas vidas: a vida do dia a dia e a vidado faz de conta. Desde criança eu sou assim,eu vivo na fantasia. Na minha cabeça, eu souum personagem, eu tenho vários persona-gens. Um dos personagens é a Jane monjatibetana. Não tibetana, mas a pessoa que ficameditando sobre a consciência, sobre o queé a vida, a morte, a bondade, a beleza ... Eusou uma pessoa muito ambiciosa, porque euquero essas três graças: a beleza, a bondadee a sabedoria. Eu digo assim: 110 meu votoé de defender a vida. Onde eu estiver have-rá sempre vida, haverá planta (aponta para aroseira em um jarro atrás da cadeira), haverábichinho (faz referência aos gatos que cuida).Eu vivo em um mundo fantasioso, eu tenho aminha fantasia em que eu imagino que estousendo entrevistada pelo Jô Soares (Apresen-tador de tv e escritor) (risos), que sou muitofamosa, imagino o que eu vou fazer quandoeu ganhar na loteria ...

Rose - Mas você já sentiu alguma diferen-ça no tratamento por ser mulher no mercadode cinema, por ser mulher freelancer?

Jane - Eu senti diferença no tratamentona França por eu ser brasileira, não por euser mulher, porque lá tem muita mulher tra-balhando no cinema. Inclusive, minha ex-cu-nhada é diretora de fotografia. No Brasil, eu

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go que sou mulher bote, porque eu não meacho diferente de um homem em nenhumsentido, nem de força física, nem de inteli-

ência, nem de linguagem, nem de porra ne-uma. Quando eu estou em uma situação

e hierarquia de dentro do cinema, se eu souassistente de câmera eu faço o que um as-s'stente de câmera tem de fazer, eu obedeçoao meu chefe. Se eu estou em uma posiçãode diretora de fotografia, quando eu sou umachefe de equipe, eu trato as pessoas bem,explico o que eu quero que elas façam, eurespeito a maneira que cada um tem de fazeras coisas. Eu tenho uma atitude respeitosano trabalho, eu não gosto de grito. Eu achoque onde eu trabalhei como diretora de foto-grafia foi legal, foi sempre uma relação muitoboa. Nunca tive problema.

Sarah - Você se mostra muito independen-te. Queria sair de casa, mas não tinha saláriosuficiente para se autossustentar. E a genteviu na pré-entrevista que você disse que a suamãe casou e ficou acomodada. Como foi quevocê construiu essa independência, essa von-tade de ser autossustentável?

Jane - Rapaz, eu ainda estou construindo.Eu ainda não sou autossustentável.

Alana - Teve algum momento em quevocê se percebeu pensando: "Agora eu queroser independente, não quero me acomodar"?

Jane - Não. Quero ser independente des-de que eu era criança, que eu era obrigada adormir sete horas da noite, não podia tomarsorvete, não podia comer pipoca, porque eutinha problema de garganta. Eu me opereidas amígdalas com cinco anos de idade. Atélá eu era uma criança muito doente, muitodoente mesmo, era injeção quase todo dia,era febre. Então, nunca gostei que ninguémmandasse em mim, que uma pessoa deci-disse: "Você vai fazer isso!" E eu dizia: "Porquê?" "Porque eu quero". Isso para mim nãoera resposta. Eu sempre batia de frente commeus pais nessa questão da autoridade, doautoritarismo e, por isso, eu não queria famí-lia, porque eu achava que o ambiente fami-liar era uma pequena ditadura. "Um adulto,um pai tem direito a bater em uma criança",isso eu acho um absurdo. Desde criança, euera revoltada com isso de que alguém pu-desse bater em mim ou pudesse me amea-çar. Quando minha mãe dizia: "Vou lhe daruma surra!", aquilo já era a surra, a violênciada palavra.

Essa semana mesmo eu presenciei umacena na (agência) lotérica. Tinha uma mulherlá que falava com a criança, e essa criançatoda magrinha, toda agarrada nela, criançabem boazinha, e ela falava com o menino as-sim: "Olhe! Se comporte, viu? Senão vou lheencher de porrada! Vou lhe dar dois murros!"

liA gente voltou a sereencontrar, o que eu

digo que foi o segundomelhor dia da minhavida. O primeiro foi

quando eu passei paraCuba."

Na frente de todo mundo. A criança não esta-va fazendo absolutamente nada. Eu comeceia olhar para a criança para ver se tinha mar-ca de maltrato. Eu fiquei muito mal mesmo,vendo aquilo. Meu Deus, o que a gente fazem uma situação dessa? Porque se eu fossefalar com a mulher, dissesse: "Minha senho-ra, isso não é maneira de tratar uma crian-ça", era capaz de ela tratar mal a criança sópara dizer: "Eu posso, porque eu sou a donada criança". Então eu fiquei calada, ficouum ambiente em silêncio com todo mundoolhando. Eu espero que ela morra só do ódioque eu senti por ela naquele momento! Euespero que as minhas ondas de sacerdoti-sa atinjam aquela mulher (rindo). Depois eufiquei pensando: "Será que era de verdadeaquilo? Será que essa pessoa não é capaz deexternar carinho em público por uma crian-ça? Será que tem adulto que não é capaz dechamar uma criança de meu amor, preferedizer: 'Comporte-se, senão eu lhe dou umasurra' para uma criança de cinco anos?" Eusou uma criança revoltada até hoje. Essa coi-sa da autossustentabilidade tem a ver comninguém dar pitaco na minha vida, ninguémdizer que eu devo fazer isso ou devo fazeraquilo.

Alana - Jane, o que você está fazendoagora? Pode ser tanto profissionalmentecomo em relação às escolhas que você temtomado na vida pessoal. Como você se en-xerga hoje?

Jane - Eu estou em um momento de re-pensar minha vida profissional. Não que eu váabandonar o cinema. Eu tenho um filme parafinalizar, um longa metragem que eu capteiem 2009. Foi uma loucura, porque eu capteipor 160 mil reais, foi uma coisa de guerrilhamesmo. Consegui editar e dá até para assis-tir. Fiz duas sessões de cineclube aqui emFortaleza, com o cineclube Refluxus, da UFC,e com o cineclube Comeram Minha Pipoca,da Unifor (Universidade de Fortaleza). Eu te-nho esse filme para finalizar, por isso eu digoque não vou dar um pé na bunda do cinema

JANE MALAQUIAS I 53

Ainda na infância e ju-ventude, Jane Malaquiastambém fez alguns cur-sos de dança. Ela contaque via ritmo em tudo eadorava imitar as bailari-nas que passavam na te-levisão. Aprendeu a ficarna ponta do pé sozinhae dançava até ao som deuma partida de futebol.

No meio da entrevis-ta, um outro gato gostouda sapatilha da entre-vistadora Alana Lins epassou a brincar com ocalçado ao próprio modo.Quando Alana não sou-ber onde está a sapatilhaela já pode dizer: "O gatocomeu!"

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A EICTV foi inaugu-rada em 15 de dezembrode 1986 com o apoio doescritor e jornalista co-lombiano Gabriel GarcíaMárquez, o poeta e cine-asta argentino FernandoBirri, o pesquisador cuba-no Julio García Espinosae também o cineasta epublicitário brasileiro Sér-gio Muniz.

o objetivo da escolade cinema de Cuba eraproporcionar a estudan-tes da América Latina,África e Ásia um espaçoque unisse a formaçãoteórica, a prática e o de-bate sobre as artes audio-visuais. Somente a partirde 2000, a escola abriu asportas para estudantes dequalquer nacionalidade.

agora. E eu tenho o trabalho de diretora defotografia que eu amo muito e podem mechamar que eu vou. Mas o cinema é muitoingrato, porque tudo dura muito tempo paraacontecer. Por mais talentoso que você seja,por mais esforçado que você seja é muito di-nheiro (para produzir um filme) e brasileirodepende de dinheiro público. E as coisas es-tão sendo feitas de um jeito que só beneficiaquem já tem uma estrutura grande e quemé do eixo Rio-São Paulo. O audiovisual é umgozo eternamente adiado, você nunca vê oresultado daquilo, enquanto um poeta pegao papel, escreve um poema e aquele poemapode durar séculos, um pintor pinta um qua-dro que pode durar séculos também. Então,eu estou a fim de uma coisa mais imediata,estou voltando às origens.

Eu estou voltando a desenhar, quero vol-tar a pintar, quero fazer coisas bonitinhas ebaratinhas para as pessoas comprarem e le-varem para a sua casa. Eu estou repensandominha vida. Estou lendo sobre paisagismo,porque eu gosto muito de planta, e eu des-cobri que o paisagismo tem os mesmos prin-cípios da cenografia, da fotografia, trabalhacom luz, trabalha com perspectiva, com pon-tos de vista, com ângulos. Eu digo: "Nossa!Estou em casa aqui!" Continuo tocando coi-sas, ainda estou trabalhando com o audiovi-sual, dando aula, mas estou repensando mi-nha vida profissional.

Karine - Jane, a gente viu no material deprodução que, como você trabalhou comofreelancer a maior parte da vida, você nãotem aposentadoria. Você não tem medo dis-so, de não ter uma segurança financeira?

Jane - É um risco calculado, na verdade.Aí, entra o lado malandro, a malandragem.Porque o meu pai, como foi uma pessoa mui-to previdente na vida dele, deixou um patri-mônio para a família. Esse apartamento queeu moro não é meu, eu nunca tive dinheiropara comprar nem para pagar o aluguel deum apartamento desse, mas eu moro aquide graça ... Eu estava em Brasília, chegou omomento em que o casamento estava aca-bando (o segundo casamento, com um bra-sileiro), e mesmo a situação de trabalho emBrasília não estava muito legal, então volteipara Fortaleza, porque eu sabia que aqui eutinha esse porto seguro. O que eu pensei daminha vida quando eu terminei a escola decinema como plano de carreira não deu cer-to, porque eu pensava assim: "Do que viveum artista? Ele vive do direito autoral".

O ideal seria você produzir ao longo davida longas, curtas, documentá rios, depoisvocê vai viver do direito autoral. Você conse-gue, enquanto está na ativa, ganhar um prê-mio grande, porque existem bons prêmios no

cinema, sei lá, de 300 mil reais em um festivalde Brasília ou no festival Paulínia de cinemabrasileiro, esses festivais milionários. Porra!Para mim bastava ganhar um prêmio de 60mil e já estava bom demais, porque vocêcompra uma casinha, não tem de pagar alu-gueI. Eu vivo com muito pouco, na verdade.Não sou uma pessoa gastadeira, por isso queeu digo que sou uma monja, sabe? Eu com-pro roupa em brechós, roupa de um real, doisreais. O meu luxo esses dias são esses gatos.Eles que me impedem de me acomodar, por-que todo mês eu tenho de ganhar uma granapara pagar a ração, a areia e o remédio de-les. Fora isso, eu vivo com muito pouco. Eupensava em viver do direito autoral quandoeu chegasse em uma idade que eu quisesseme aposentar. Viver assim: alguém me cha-mando para dar uma aula magna no (Institu-to) Dragão do Mar, ganhando dois mil reaispor uma aula, mas o pessoal não me chama.Fazer o quê? (Risos).

Rose - Jane, agora Fortaleza tem gradua-ção em cinema. E você está falando que foi,para você, um risco calculado, mas muitagente não tem esse apoio, está vindo do in-terior com o sonho de fazer cinema. Comovocê vê a perspectiva do cinema aqui emFortaleza para essas pessoas?

Jane - Olha, o audiovisual é um campomuito grande. Dentro do que é audiovisualvocê pode fazer muitas coisas: filmar casa-mento, fazer institucional, book, publicida-de, videoarte, muita coisa. E pode fazer oque muita gente faz, um concurso, ter umemprego certo, que garanta seu sustento, evocê vai fazendo seus filmes autorais, suashistórias, por fora, a medida do possível. OKleber Mendonça, que está com Aquarius aí(diretor do filme), é crítico de cinema, traba-lha em jornal, é programador da FundaçãoJoaquim Nabuco (Instituição cultural do es-tado de Pernambuco). Ele tem outros tra-balhos, ainda não vive do cinema. Pode serque ele venha a viver do cinema, no sentidodos filmes que ele dirige, mas até o segun-do longa dele agora, Aquarius, ele vive daFundação Joaquim Nabuco, do jornal queele escreve, das colunas. Ganhar vida é umacoisa e fazer arte é outra, de certa maneira. Édifícil ganhar a vida fazendo arte.

Ingrid - Você falou no meio da entrevis-ta que, para os seus pais, arte era hobby. Oque a impede de procurar esses meios derenda menos artísticos? É não transformararte em hobby?

Jane - Não, não. Eu não tenho precon-ceito com nenhum trabalho. O que eu nãoaguento é ficar em um trabalho indo todo diabater ponto, de tal hora a tal hora. É este omeu problema: não consigo é trabalhar todo

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dia em um mesmo lugar, fazendo a mesmacoisa, esperando chegar as férias, feriado,3º (salário). Eu prefiro esta insegurança: um

-nês estar feito louca, pedindo dinheiro em-prestado, vendendo minhas coisas; no outromês, você ganha uma bolada, se sente rica,você viaja e talo.. Tem gente que não conse-gue viver desse jeito. Eu não consigo vivere indo todo dia para o mesmo canto. Fiz aexperiência e não gostei. Eu trabalhei quasedois anos na Fundação Joaquim Nabuco, emRecife, na Massangana, que é a produtorade vídeo da fundação. Eu era coordenadoratécnica, coordenava uma equipe de câmera,editor, eletricista, técnico de sonorização,mas eu não estava feliz nesse tipo de coisa,porque, às vezes, não tinha nada para fazere eu tinha de estar lá. Eu queria estar era emOlinda (risos).

Rafael - Ainda tem expectativas reais deque o longa vai ser finalizado?

Jane - Tenho! Eu estou tomando cora-gem, porque eu tentei editais, tentei me asso-ciar com uma menina de Recife, mas chegoua época da Copa e ninguém dava dinheiro

para filme. Era muito difícil você conseguirum edital de finalização nessa época da Copado Mundo (refere-se à Copa do Mundo daFifa de 2014). A menina de Recife, Deborah8rennand (Deby 8rennand Mendes, cineas-ta), neta do Francisco 8rennand (artista plás-tico recifense), desistiu. Agora eu estou meassociando com o Clébio Viriato, o diretordo Gato Preto (filme A lenda do gato preto,2015), porque o Clébio é um produtor, eletem um perfil de produtor. Eu tenho um per-fil de produtora, mas aquela produtora quecoloca a mão na massa. O meu filme foi pos-sível porque eu fiz produção de elenco, delocação, de objeto, de figurino, eu contrateitodo mundo, ou seja, eu fui uma produtora,negociei com cada pessoa o quanto ela iriaganhar, fiz um cronograma de filmagem quecoubesse em cinco semanas, reescrevi o ro-teiro todo para ele ser viável. Eu tenho esseperfil de produtora. Agora, ficar indo atrás depolíticos, secretário de cultura, ficar indo ba-bar ovo de político, eu não tenho esse perfil.Não quer dizer que o Clébio seja ... (risos). OClébio é muito antenado e ele sabe fazer es-

"Se Cuba foi um choque cultural maravilhoso- eu descobri a América Latina, a cultura latino-

americana - na França eu descobri o preconceitocontra o suposto Terceiro Mundo."

JANE MALAQUIAS I 55

Em 1991, com a dis-solução da União Sovié-tica, Cuba perdeu apoioeconômico e entrou emcrise devido ao bloqueioeconômico dos EstadosUnidos. Em 2014, as re-lações diplomáticas entreestes dois países come-çam a ser reatadas, maso embargo econômicocontinua.

Quando descobrimosque Jane estudou emCuba no final dos anos1980 imaginamos quepoderíamos encontraruma militante socialista,mas conhecemos umamulher com afinidade comas causas sociais, massem muito interesse emorganizações partidárias.

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Encantado pela ami-ga, Kiko Bloc-Boris revelater notado uma "vivacida-de solar mais intensa" emJane, após o retorno delade Cuba. E diz que issopode ser visto no legadomusical e de molejo queela demonstra ao dançar,por exemplo.

Neste ano a Escuelade Cine y Televisión estácompletando 30 anos. Osamigos de Jane publica-ram várias fotos desseperíodo e a equipe deprodução pôde ter acessoa uma grande quantidadede memórias dos alunosda primeira turma.

"Eu tenho duas vidas:a vida do dia a dia e avida do faz de conta.Desde criança eu sou. .

assrm, eu VIVO nafantasia."

que era um projeto que, porra, como é quenão aprova esse projeto? Era um projeto definalização, o filme estava rodado. Entrei como recurso desse jeito e nunca tive resposta.Então, é uma falta de respeito total. Você ficamuito desestimulado mesmo. Aí, junta comfim de casamento, junta com tudo e você dizassim: "Quer saber de uma coisa? Eu nãoquero me frustrar não, eu quero pensar emoutra coisa. Eu sou mais do que isso, eu soumais que o cinema".

Rose - A gente quer saber sobre a causaanimal, que é uma coisa muito forte na suavida desde a infância. Como é que você tra-balha isso, como se organiza e como isso in-flui no seu trabalho, na sua vida?

Jane - É aquela frase: "Seja você a di-ferença que você quer ver no mundo", doGandhi, né? (Refere-se a Mahatma Gandhi,pacifista e fundador do Estado Indiano, 1869-1948). É o que eu tento fazer, cara, porque eunão sou uma pessoa de multidão, de partidonem de associação. Por conta dos gatinhos,eu comecei a conhecer pessoas de gruposprotetores dos animais. As pessoas brigamentre elas, sabe? Eu realmente prefiro fazerminha história, eu fazendo o que eu posso. Éa minha ética pessoal mesmo.

Ruth - Por que bichos e não filhos?Jane - Eu acho que não tem nada a ver

uma coisa com a outra, porque eu gosto debichos desde que eu era criança. Sempre tivebichos, não é de agora. Quando meus paismoravam em casa, antes de virem para esteapartamento, a gente tinha 16 gatos, todosque eu trouxe da rua. A gente veio morar noapartamento e a casa ficou um tempo semser vendida e todo dia eu ia lá deixar comida

REVISTA ENTREVISTA I 56

sas coisas, sabe conseguir o apoio do gover-nador, do fulaninho, do sicraninho. Ele gostado meu filme e disse que quer me ajudar, quequer correr atrás comigo dessa finalização.

Eu estou tomando coragem, porque afrustração é muito grande. Você tenta umedital ... Por exemplo, o edital Mecenas da-qui é ridículo, ele habilita para ir atrás de umempresário, que pela renúncia fiscal bote di-nheiro no filme. A última vez que eu tentei oMecenas eles não habilitaram o projeto, nemnenhum projeto de fazer filme, nem finalizarfilme, e fizeram tudo errado, de atropelar da-tas, de publicar resultados sem datas paravocê entrar com recurso. Você dizia assim:"Eu quero saber o parecer que meu proje-to teve para eu entrar com um recurso" Elesnão forneciam. Eu entrei com um recurso ba-seado só nos absurdos que eles fizeram emrelação ao edital mesmo, de não obedeceràs datas - por exemplo, eles anteciparam oresultado do cinema para poder dar o resul-tado durante o festival de cinema - e não ba-seado na nota que eu meu projeto teve, por-

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para os gatos, até que eu fui para Cuba e osgatos se dispersaram. Mas eu sempre tivebicho, tive coelho, carneiro, tartaruga. Pediao papai Noel um jumentinho, mas ele nãome deu.

A gente morava em uma casa que tinhaum terreno muito grande ao lado, era duasvezes o tamanho da casa. Isso foi muito ba-cana para mim. Eu não nasci no campo, mastive uma infância de campo, porque o (bair-ro) Dionísio Torres era uma fazenda que foiloteada: fazenda Estância, em que o donoera o Dionísio Torres, era uma fazenda de co-queiros. Fui morar lá com cinco ou seis anosde idade e fiquei até os 18 anos. Eu vi essebairro se urbanizar. Cresci no meio do mato.Era vaca parindo no quintal, vaqueiros fazen-do vaquejada no final da tarde a dois quar-teirões de casa, que não era nem quarteirão,era uns 200 metros de onde eu morava.

Tha'is - Jane, o que você gostaria de fazere ainda não fez?

Jane - Fazer estrelinha. Sério! Eu sou umapessoa que valorizo muito a máquina huma-na que a gente recebe. Esse avatar, essa in-terface com a realidade é uma máquina tãomaravilhosa, tão bem feita, com todas asalavancas possíveis, tudo que a gente podefazer com nosso corpo ... Até onde eu pudeeu fui me mantendo operacional. Eu vou memantendo operacional. Não quero ser umavelhinha entrevada, quero viver até os 110anos fazendo minhas coisas.

Eu conheci uma velhinha que morava so-zinha com 103 anos. Ela fazia tudo, não tinhaempregada. Ela teve um AVC (acidente vas-cular cerebrsh quando a bisneta dela disseque a botaria em uma maison de retraite (emfrancês, casa de repouso), na França. Era abisavó do meu marido. Eu quero ser tal qualela. Uma velhinha que anda, que passeia,que lê, que vai ao cinema ... Por isso a estreli-nha, porque não é tão difícil e eu ainda queroaprender.

JANE MALAQUIAS I 57

Ao final da entrevista,Jane mostrou alguns ob-jetos que guardam lem-branças, como a calunga,uma bonequinha negra,que havia feito e deixadona França e os amigostrouxeram para ela.

Após a entrevista,recebemos uma broncado professor Ronaldopor termos brincadocom os gatos enquantoentrevistávamos Jane.Uma atitude não muitoprofissional, porémbastante tentadora.