ufcrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · direito(s) e(m)...

232
Universidade Federal do Ceará Faculdade de Direito Programa de Pós-Graduação em Direito Curso de Mestrado em Direito Área de Concentração em Ordem Jurídica Constitucional Martha Priscylla Monteiro Joca Martins Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno do Direito à Terra e ao Território em Meio Rural no Ceará Fortaleza 2011

Upload: others

Post on 17-Nov-2020

4 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

Universidade Federal do Ceará

Faculdade de Direito

Programa de Pós-Graduação em Direito

Curso de Mestrado em Direito

Área de Concentração em Ordem Jurídica Constitucional

Martha Priscylla Monteiro Joca Martins

Direito(s) e(m) Movimento(s):

Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em

torno do Direito à Terra e ao Território em Meio Rural no Ceará

Fortaleza

2011

Page 2: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

Martha Priscylla Monteiro Joca Martins

Direito(s) e(m) Movimento(s):

Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em

torno do Direito à Terra e ao Território em Meio Rural no Ceará

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação da Faculdade de

Direito da Universidade Federal do Ceará para

obtenção do grau de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Dr. João Luis Nogueira Matias

Fortaleza

Agosto - 2011

Page 3: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

Direito(s) e(m) Movimento(s):

Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em

torno do Direito à Terra e ao Território em Meio Rural no Ceará

Esta dissertação de mestrado foi submetida à Coordenação do Programa de Pós-Graduação em

Direito, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Direito,

outorgado pela Universidade Federal do Ceará – UFC e encontra-se à disposição dos

interessados na Biblioteca da referida Instituição.

A citação de qualquer trecho desta Dissertação de Mestrado é permitida, desde que feita de

acordo com as normas de ética científica.

Data da aprovação: ______/_______/_______

Banca Examinadora:

Prof. Dr. João Luis Nogueira Matias (Orientador)

Universidade Federal do Ceará

Profa. Dra. Alba Maria Pinho de Carvalho (Co-orientadora)

Universidade Federal do Ceará

Prof. Dr. Carlos Frederico Marés de Souza Filho

Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Page 4: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

Avaliadores:

João Luís Joventino do Nascimento

Organização Popular do Aracati - Ceará

Fórum em Defesa da Zona Costeira do Ceará

Maria de Lourdes Vicente da Silva

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Ceará

Ricardo Weibe do Nascimento

Movimento dos Povos Indígenas no Ceará

Page 5: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

Dedico esta dissertação

Aos Carlos,

Às Flores de Liz,

Aos Gama,

Às Tuíras,

Ao Povo do Mangue,

Ao Povo do Sertão,

Aos Povos Indígenas,

Ao Povo Sem Terra,

Ao Povo que dançou ciranda

No dia em que a Avenida

Parou.

Ao CAJU-UFC,

De todos os tempos.

Ao Téo,

Por que

Movendo-me em tudo o que faço

Eu te amo pequeno filho.

E ao Cris,

Por todo o amor que há nessa vida.

Page 6: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

AGRADECIMENTOS

Quando se está pesquisando um encontro com o orientador, com a co-orientadora,

um grupo de estudos, estar em campo, ministrar uma aula são momentos ricos e valiosos que

se unem a outras ocasiões às quais nos fazem refletir sobre o que nos propomos a conhecer.

Assim, inicio por agradecer a todos e todas que, de alguma forma, de qualquer modo,

consciente ou inconsciente, contribuíram com esta pesquisa; a vocês, muito obrigada!

Ciente de que os nomes aqui citados são uma parte, significativa, dos encontros que

me ajudaram a elaborar esta dissertação, sigo grata...

À Monica Joca, mamãe, pelo jeito bom de nos amarmos e cuidarmos, por ter me

educado para ser uma Mafalda crescida.

Ao Cristiano Therrien, por ter me apresentado ao CAJU, pelas vezes que disse que o

Direito precisa de gente boa para que eu não fosse embora para outros saberes, por partilhar

ideias e ideais, por me ajudar a corrigir, ler, reler, por me ouvir, por dialogar, pela paciência.

Ao Téo Joca Therrien, por ter sido tão tranquilo e compreensivo todas as vezes que

disse que precisava de tempo para pesquisar e escrever.

Ao Rafael Joca, pelas palavras, pelo carinho, por ter transcrito boa parte do material

desta pesquisa, por ser meu irmão e melhor amigo.

À Angela de Souza e ao Jacques Therrien, pelas valiosas e imprescindíveis

contribuições nesse e em outros trabalhos acadêmicos, por me ensinarem outros jeitos bons de

fazer parte de uma família.

À Luciana Nóbrega, pelos conhecimentos produzidos e partilhados, pela

solidariedade acadêmica, por ter me feito ver o mundo mais colorido pós-Lu-na-minha-vida.

Ao Professor João Luis Nogueira Matias, pela orientação, pelo incentivo, por ser um

professor dedicado.

À Professora Alba Carvalho, pela co-orientação, por ter me apresentado à riqueza

teórica de Boaventura de Sousa Santos, por ser uma professora inspiradora, pelas boas ideias

nascidas a cada encontro.

À Professora Germana Moraes, por ter me ajudado a permanecer no Direito, por ter

me incentivado a iniciar o Mestrado.

Ao Professor Gustavo Raposo, pelas valiosas dicas.

À Marilene, pelo apoio, pelo cuidado com os mestrandos.

Ao Márcio Alan Menezes, por ter revisado o texto, me ouvido, me ajudado a refletir

sobre esta pesquisa, por ser um bom amigo.

Page 7: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

À Lia Felismino, Ana Stela Vieira Mendes, ao Homero Bezerra e Frutuoso de

Oliveira Júnior, por terem tornado o Mestrado mais leve e mais feliz, pelos conhecimentos

partilhados, por serem amigos queridos.

À Turma do Mestrado de 2009, pelos encontros, pelos debates, pelos apoios mútuos.

À Carla Sofia, pelas palavras de uma boa amiga que acalantam nos dias de sol e de

chuva cinzenta nesses dois últimos anos.

À Liliam Litsuko, ao Luiz Otávio Ribas, José Humberto Góes e Ricardo Pazello, por

terem me apresentado a autores e ideias, pelas tantas ajudas.

Ao Renato Roseno, por ter me feito acreditar que a pesquisa era possível, pelos

diálogos e ideias iniciais.

À Camila Holanda, Christiane Nogueira, Christianny Diógenes, Fabiola Araújo e

Neiara de Morais Bezerra, por serem amigas Mafaldas crescidas que me ajudaram a pensar

sobre esta pesquisa, e as quais levo no coração com todo meu amor.

À Aline Amorim, Leuny Remígio, ao Marcus Giovani, por serem amigos leais e

queridos em meu retiro dissertativo...

Aos meus primeiros alunos, pelas mútuas aprendizagens, pelo carinho com que

sempre me lembrarei de vocês.

À Bel, Cecilia, Dilly, Lia, Maiana, Mariana, Natália, Renata, Sofia, Talita, ao Julian,

Tafarel e toda a gente da Assessoria Jurídica Popular Universitária, pelos sonhos partilhados.

Aos advogados assessores jurídicos populares, pelo que identifica, pelo que move,

pelo companheirismo, pelas diversas contribuições nesta pesquisa.

Ao Professor Carlos Frederico Marés, pela oportunidade de ouvi-lo em palestras e na

Comuna da Terra, pela felicidade de ter aceitado o convite de fazer parte da banca.

Ao João Luís Joventino, Ricardo Weibe do Nascimento, à Maria de Lourdes Vicente,

por terem acolhido o convite de avaliarem esta dissertação, e por aceitarem vir ao encontro da

academia, que tem tanto a aprender com os movimentos populares.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela

bolsa concedida.

À Amada Mãe, pelo que nasce, pelo que floresce, pelo que fenece, pelo que conflita,

pelo que movimenta, pelo Amor, pela Terra.

À todos e todas, desejo-lhes flores, girassóis e borboletas, em meio às tantas lutas

travadas!

Page 8: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

“Tú no puedes comprar al viento,

Tú no puedes comprar al sol

Tú no puedes comprar la lluvia,

Tú no puedes comprar al calor.

Tú no puedes comprar las nubes,

Tú no puedes comprar mi alegría,

Tú no puedes comprar mis dolores.

Não se pode comprar o vento

Não se pode comprar o sol

Não se pode comprar a chuva

Não se pode comprar o calor

Não se pode comprar as nuvens

Não se pode comprar as cores

Não se pode comprar minha alegria

Não se pode comprar minhas dores

Vamos caminando, vamos dibujando el camino!

Vamos caminado, aquí se respira lucha.

Vamos caminando, yo canto porque se escucha.

Vamos caminando, aquí estamos de pie.

Que viva Latinoamérica.

No puedes comprar mi vida!”

(Calle 13. Latinoamérica)

Page 9: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

RESUMO

A presente dissertação objetiva investigar a práxis da Assessoria Jurídica Popular a

movimentos populares organizados em torno da luta pela terra e pelo território em meio rural

no Ceará. Para tanto, combinou-se a pesquisa bibliográfica e de campo, esta realizada por

meio de entrevistas, grupos focais, rodas de conversa, diálogos informais e observação

participante junto a advogados da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares no

Ceará e integrantes de movimentos por eles assessorados. Resultados apontam que esses

movimentos, em suas lutas reivindicativas e de resistência, em perspectivas pluriétnicas e

multiculturais, produzem significados de direito à terra e ao território que levam à

problematização da cultura jurídica hegemônica enquanto campo possível de concretização

destes direitos. Neste âmbito atuam os advogados populares, os quais, em conjunto com os

assessorados, constituem estratégias jurídico-políticas que fortalecem as lutas dos movimentos

populares na concretização de seus direitos territoriais, e incitam à constituição de outras

culturas jurídicas propícias a concretização do Direito Humano à Terra e ao Território, em sua

perspectiva intercultural e crítica.

Palavras-chave: Assessoria Jurídica Popular; movimentos populares; direito à terra e ao

território

Page 10: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

ABSTRACT

This dissertation aims to investigate the praxis of the Juridical Popular Assistance to organized

popular movements in the struggle for land and territory in rural country of Ceará. For this

purpose, have been combined bibliographic and field researches, through interviews, focus

groups, rounds of conversation, informal dialogues, participant observation with attorneys of

the National Network of Popular Lawyers in Ceará and members of social movements assisted

by them, in their search for equity in access to land and land occupation in Ceará. Results

indicate that these movements, in their vindicating struggles and resistance, in multiethnic and

multicultural perspectives, produce meanings of land and territory rights that lead to the

problematization of hegemonic legal culture as a field of possible realization of these rights.

Those Lawyers working together with their advised popular movements, constitute legal and

political strategies that strengthen the struggles of popular movements in achieving their

territorial rights, and incite the constitution of other legal cultures conducive to achieving the

Human Right to Land and Territory in its intercultural and critical perspective.

Keywords: Juridical Popular Assistance, popular movements, the right to land and territory

Page 11: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 11

2 “OLÊ MULHER RENDEIRA, OLÊ MULHER RENDÁ”: TECENDO

CONHECIMENTOS ................................................................................................................ 13 2.1 O encontro como reencontro: a artesã e o desenho ......................................................... 18

2.2 Percursos no campo ......................................................................................................... 26

3 HISTÓRIAS, FALAS E CANÇÕES: AS LUTAS PLURIÉTNICAS E

MULTICULTURAIS PELO DIREITO À TERRA E AO TERRITÓRIO EM MEIO RURAL

NO CEARÁ .............................................................................................................................. 36 3.1 “Vivemos em Curral Velho, mas não queremos viver encurralados” : a luta em defesa do

território e do ecossistema manguezal de um Povo do Mangue ........................................... 39

3.2 “É como diz o ditado antes era hora de parar, agora é hora de falar” : a retomada das

lutas dos Povos Indígenas por seus territórios ...................................................................... 67

3.3 “Cante lá, que eu canto cá”: A inundação da Lapa pelas águas do desenvolvimento .... 86

3.4 “De quem é essa terra? Nossa!” : trabalhadores rurais em movimento na luta pela terra

............................................................................................................................................... 91

4 OS OLHARES DE ASSESSORES JURÍDICOS POPULARES SOBRE AS LUTAS PELA

TERRA E PELO TERRITÓRIO ............................................................................................ 113

5 “PINDORAMA, PINDORAMA, MAS OS ÍNDIOS JÁ ESTAVAM AQUI!”: REFLEXÕES

SOBRE O DIREITO DE PROPRIEDADE PRIVADA DA TERRA NO BRASIL .............. 132

6 “CAMINHANDO E CANTANDO E SEGUINDO A CANÇÃO”: ASSESSORIA

JURÍDICA POPULAR À MOVIMENTOS POPULARES ORGANIZADOS EM TORNO

DO DIREITO À TERRA E AO TERRITÓRIO .................................................................... 156 6.1 “Vamos caminhando, vamos dibujando el caminho”: Tessituras da Assessoria Jurídica

Popular ................................................................................................................................ 159

6.2 “Vamos caminhando, aquí se respira lucha”: a Assessoria Jurídica Popular na

perspectiva de movimentos populares ................................................................................. 176

6.3 “Vamos caminando, yo canto porque se escucha”: a Assessoria Jurídica Popular na

perspectiva de advogados populares ................................................................................... 191

CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 210

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 220

Page 12: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

11

1 INTRODUÇÃO

No ambiente rural do Ceará, diversas populações organizam-se em torno da luta pela

terra e pelo território, em meio a conflitos socioambientais, disputas por sentidos de

desenvolvimento, interesses sociais e econômicos conflitantes sendo tensionados pela lógica

da propriedade privada da terra.

Em suas lutas reivindicativas e de resistência, e com base em experiências e relações

econômicas, sociais, políticas e culturais vivenciadas nessas populações, esses movimentos

constituem diversos significados em torno do direito à terra e ao território, em perspectivas

pluriétnicas e multiculturais. Em encontrando óbices político-jurídicos à concretização deste

direito diversos movimentos são assessorados por advogados(as) populares por meio da práxis

da Assessoria Jurídica Popular.

Esta pesquisa de mestrado inseriu-se nesse âmbito, objetivando investigar a práxis da

Assessoria Jurídica Popular junto a movimentos populares organizados em torno do direito à

terra e ao território em meio rural no Ceará.

Para tanto, combinei a pesquisa bibliográfica à pesquisa de campo, procurando focar

meus estudos nas temáticas relativas à Assessoria Jurídica Popular e aos direitos territoriais

realizando atividades de campo por meio de entrevistas, grupo focal, observação participante e

diálogos formais e informais com quatro assessores jurídicos populares ligados à Rede

Nacional de Advogados e Advogadas Populares no Ceará (RENAP-CE). Semelhante

procedimento campal foi realizado junto aos movimentos assessorados por esses(as)

advogados(as).

Como resultado da pesquisa realizada, elaborei esta dissertação, estruturada em sete

partes. Na segunda, relatarei como o objeto de pesquisa foi a mim sendo apresentado, bem

como descreverei as atividades de campo realizadas nesta pesquisa. No terceiro tópico,

analisarei as falas, histórias e canções dos movimentos assessorados, a fim de buscar

compreender o que significam como direito à terra e ao território, compreendendo que esses

significados originam as demandas reivindicativas postas para seus assessores jurídicos

populares. No quarto segmento, descreverei e analisarei as percepções dos(as) advogados(as)

envolvidos na pesquisa acerca da luta pela terra e pelo território e de direitos gestados no seio

dos movimentos assessorados em torno desta luta. No quinto módulo refletirei a respeito da

construção do direito de propriedade privada da terra no Brasil, com o fito de investigar, no

campo jurídico-politico, as teias que sustentam esse direito e que se constituem nos principais

Page 13: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

12

óbices à concretização do direito à terra e ao território. No sexto segmento, por meio de

teóricos da Assessoria Jurídica Popular e de temas afins, e das falas de assessores jurídicos e

assessorados, debaterei acerca do que se constitui, no âmbito do panorama tecido nos

capítulos anteriores, a práxis da Assessoria Jurídica Popular a movimentos populares

organizados em torno do direito à terra e ao território em meio rural no Ceará.

Seguem-se as conclusões, acompanhadas das referências bibliográficas.

Page 14: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

13

2 “OLÊ MULHER RENDEIRA, OLÊ MULHER RENDÁ”1: TECENDO

CONHECIMENTOS

Os caminhos trilhados em meus percursos acadêmicos e profissionais foram traçando

um possível desenho dissertativo, reforçado pela minha inserção no Grupo de Estudos e

Pesquisas sobre o pensamento de Boaventura de Sousa Santos no Ceará2 (2009), o que me deu

aporte teórico inicial para delinear o objeto de investigação de pesquisa para a dissertação de

mestrado.

Boaventura de Sousa Santos elabora chaves analítico-conceituais com base em

estudos empíricos acerca das práticas e das demandas sociais sobre temas diversos3. Além da

riqueza conceitual do pensamento de Santos, sua permanente (re)significação, sua tessitura

não encastelada e a perene (re)definição de seus conceitos com base em suas pesquisas

permitem a esse autor constituir suas reflexões conectadas a múltipla(s) experiência(s)

humana(s).

Em relação ao campo do Direito, formula uma “sociologia jurídica das

emancipações”4, ao tecer uma rede de percepções políticas, jurídicas e sociais diversas que se

interligam, formando uma teia de conceitos fundantes de seu pensamento jurídico crítico.

Contrapõe-se à utilização, pela ciência moderna, de um saber pretensamente

hegemônico e universal, o qual obscurece ou invisibiliza outras formas de conhecimentos,

alternativos ao modelo vigente5. “Há produção de não existência sempre que uma dada

entidade é desqualificada e tornada invisível, ininteligível ou descartável de um modo

irreversível6”. É a razão indolente que provoca o “desperdício da experiência social”

7. E, ao

1 Trecho da música “Mulher Rendeira” de Alfredo Ricardo (conhecido como Zé do Norte). “Existem

controvérsias sobre a sua autoria de Mulher Rendeira. Diz-se que Mulher Rendeira já era cantada nos sertões

nordestinos antes de Zé do Norte chegar ao Rio de Janeiro nos anos 1940. Há quem diga que seu autor é

Virgolino Ferreira da Silva, o temido cangaceiro Lampião. Mas é mais provável que tenha sido adaptada e

recebido acréscimos ao longo do tempo. E não é de todo improvável que algumas estrofes tenham sido de fato

criadas pelo talentoso Zé do Norte” (Informação disponível em

<http://pt.wikipedia.org/wiki/Alfredo_Ricardo_do_Nascimento>; acesso em 06 jun. 2011). 2 Sob a coordenação da Profa. Dra. Alba Maria Pinho de Carvalho, da Pós-Graduação em Ciências Sociais da

Universidade Federal do Ceará. 3 Essas pesquisas são, em geral, realizadas por grupos de pesquisa vinculados ao Centro de Estudos Sociais da

Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, coordenado por Boaventura de Sousa Santos. 4 WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008,

p. 60-66. 5 Para maior aprofundamento vide: SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente: contra o

desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000; e SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do

Tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006, p. 97-119. 6 SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez,

2006, p. 102. 7 Ibid., p. 94.

Page 15: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

14

mesmo tempo, “transforma interesses hegemônicos [de determinados grupos sociais] em

conhecimentos [tidos como] verdadeiros”8.

O autor propõe constituir outra racionalidade, que se funda em “três procedimentos

metassociológicos: a Sociologia das ausências, a Sociologia das emergências e o trabalho de

tradução”9; e “desafia a razão indolente”

10.

A Sociologia das ausências amplia o tempo presente, visibilizando seus vários modos

de existência; e a Sociologia das emergências contrai o tempo futuro por não situar o campo

das expectativas sociais em uma perspectiva irrealizável, de eterno devir11

, ao mesmo tempo

em que amplia as suas possibilidades, fazendo emergir “possibilidades (potencialidades) como

[...] capacidades (potência)” que se movem no “campo das expectativas sociais” com suporte

em experiências concretas12

.

Essas duas sociologias implicam-se, pois, quanto mais experiências sociais estiverem

disponíveis (presentes), mais há um campo vasto de potencialidades e capacidades de outras

experiências sociais (emergentes) para o tempo futuro. E, a fim de que essa pluralidade de

experiências presentes e emergentes possa dialogar em uma perspectiva emancipatória, Santos

propõe um conjunto de pressupostos teórico-práticos que intitula de tradução, definindo-a

como “o procedimento que permite criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do

mundo, tanto as disponíveis como as possíveis, reveladas pela sociologia das ausências e a

sociologia das emergências”13

.

Suas ideias despertaram-me para a busca de experiências humanas que me

instigassem a refletir sobre questões que me inquietavam desde há muito no campo do Direito,

as quais serão aclaradas no decorrer deste capítulo; impeliram-me a realizar de pesquisa

bibliográfica e de campo no Direito, a fim de tornar presentes e emergentes práxis jurídicas e

significados de Direito(s) gestados em lutas sociais contra hegemônicos ao Direito Moderno

Estatal e constituíram lentes com as quais passei a olhar a pesquisa, no decorrer de todo o seu

desenvolvimento.

8 Ibid., p. 97.

9 Ibid., p. 94.

10 Ibid., p. 97.

11 Como exemplo cito a eterna promessa do capitalismo em produzir riquezas que possibilitem um vida digna

para todos(as). 12

SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez,

2006, p. 118; 119. 13

Ibid., p. 123-124.

Page 16: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

15

Tempos depois, caminhando por Curral Velho, uma comunidade de marisqueiras(os)

e pescadores(as) localizada no litoral do Ceará14

, no decurso da realização das primeiras

atividades de campo desta pesquisa, a leitura de vários outros textos relacionados a processos

de investigação de conhecimentos se fez concretude para mim15

, em especial as seguintes

palavras de Alba Carvalho:

[...] à semelhança da rendeira, o(a) pesquisador/pesquisadora joga ‘bilros’, portando,

em uma mão, os da teoria e, na outra, os da empiria. E na perícia do saber e na arte

do ofício, entrecruza teoria e empiria, em um movimento incessante da razão, da

imaginação e da sensibilidade16

.

Isto se deu ao ver de um lado o litoral e o mangue, do outro um grupo de mulheres

fazendo renda, sentadas na calçada, a observar, pensei:

Desde bem pequena a menina ia à praia. Em seus primeiros passos ela vai à areia

seca, no caminho ela descobre conchas, pequenas, grandes, de variadas formas e

cores, e ela passa a olhar para a areia de um modo diferente, não é mais somente a

areia, é ela, a areia e seus tesouros que os(as) adultos(as) explicaram-lhe que eram

conchas. E, um dia, ela se aproxima do mar, no início corre das ondas, depois

descobre que o mar não é apenas mais um elemento da paisagem, é o prazer de

banhar-se nas águas, e percebe que a areia molhada é boa para fazer castelos. E que

os tesouros, chamados de conchas, podem enfeitá-los. Tempos passa, a menina

cresce, leva outra menina à praia, e observando-a descobre que não somente a praia

mudava com o tempo, também ela mudava com a praia...17

Estas palavras foram registradas no diário de pesquisa e ficaram guardadas em minha

memória. Na pesquisa, aprendi a manter um diário, o qual, transcendendo o relato dos dados

observados, se assemelha mais ao arquivo proposto por Wright Mills:

Nesse arquivo o estudioso, como artesão intelectual, tentará juntar o que está fazendo

intelectualmente e o que está fazendo como pessoa. Não terá medo de usar sua

experiência e relacioná-lo diretamente com os vários trabalhos em desenvolvimento.

[...]. Mantendo um arquivo adequado, e com isso desenvolvendo hábitos de

autorreflexão, aprendemos a manter nosso mundo interior desperto.18

14

Mais precisamente localizada na Praia de Arpoeiras, em Acaraú-Ceará. A comunidade vivencia conflitos

socioambientais causados por fazendas de carcinicultura, assunto sobre o qual retornarei no capítulo 3 desta

dissertação. 15

Tais como: BECKER, Howard S. BORGES; Maria Luiza X. de A. (trad.) Segredos e Truques da Pesquisa.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007; MILLS, C. Wright; DUTRA, Walstensir (trad.). A Imaginação Sociológica.

Rio de Janeiro: Zahar, 1982; CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais.

Petrópolis: Vozes, 2006; e CARVALHO, Alba Maria Pinho de. O exercício do ofício da pesquisa e desafio da

construção metodológica. In: BAPTISTA, Maria Manuel (Edição). Cultura: metodologias e investigações.

Lisboa: Ver O Verso, 2009. 16

CARVALHO, Alba Maria Pinho de. O exercício do ofício da pesquisa e desafio da construção metodológica.

In: BAPTISTA, Maria Manuel (Edição). Cultura: metodologias e investigações. Lisboa: Ver O Verso. 2009, p.

133. 17

Anotações feitas em meu diário de pesquisa, na noite de 7 (sete) em junho de 2010, em Curral Velho. 18

MILLS, C. Wright. DUTRA, Walstensir (trad.). A Imaginação Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p.

212-213.

Page 17: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

16

Em toda a pesquisa, me dispus, assim, a rendá19

, compreendendo que o

conhecimento tecido perpassa quem conhece e que/quem se pretende conhecer. Diversos fios

entrelaçam-se entre o sujeito e o objeto em dinâmicas ressignificações nas mútuas implicações

entre os campos da teoria e da prática em meio a pré-compreensões tecendo conhecimentos.

Entre minhas compreensões prévias concebo que os conhecimentos jurídicos,

frequentemente, utilizam-se de lógicas técnico-formais. Suas pesquisas geralmente não

buscam dialogar com outros ramos do conhecimento, fazer problematizações conectadas a

questões sociais pulsantes, investigar acerca de objetos demandados pelas dinâmicas e práticas

sociais e são constituídas com origem na normatização jurídica estatal, em pensamentos

pretensamente hegemônicose na jurisprudência dita “dominante”20

.

O pensamento hegemônico é o que se apresenta como o único universalmente válido

e verdadeiro; e que fundamenta/gera, em planos (in)conscientes e (i)materiais, relações

coloniais/capitalistas/racistas/patriarcais; convenientemente ignorando, subordinando e

inferiorizando as diversidades humanas. Quando utilizo o termo contra hegemonia atento-me

para os saberes, conhecimentos, práticas, experiências, linguagens, expressões, práxis e

movimentos contestatórios e transformadores (e, em alguns casos, revolucionários) do

hegemônico21

.

Por isto, buscar um objeto de pesquisa além dos códigos e doutrina jurídicos

hegemonicamente aceitos tem-se revelado singularmente árduo e potencialmente fértil, uma

vez que está ancorada na busca de compreender sua práxis22

tomada como uma dimensão

instigante e necessária ao campo do Direito contemporâneo23

.

19

“... Eu me considero rendeira, numa outra visão. [...] Ser rendeira para mim [...] é saber tecer, essa coisa do

tecer é ter uma visão geral dos pontos [...] tem uma coisa de sentimento, [...] ser rendeira pra mim é isso, é tu

aprender a tecer e tu ter essa história, esse continuar na história”. (Fala de uma rendeira em ZANELLA, Andréia

Vieira; BALBINOT, Gabriela; PEREIRA, Renata Susan. A renda que enreda: Analisando o processo de

constituir-se rendeira, p. 9; 14. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/es/v21n71/a11v2171.pdf>; acesso em

21 abr. de 2011). 20

O artigo 557 do Código de Processo Civil Brasileiro diz que: “O relator negará seguimento a recurso

manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência

dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior”. Interpreta-se este

artigo no sentido de que as decisões reiteradas, a fim de serem consideradas como “dominantes”, devem advir do

Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal. 21

Para ler sobre hegemonia e contra-hegemonia, ver em GRAMSCI, Antonio. COUTINHO, Carlos Nelson

(edição e tradução); NOGUEIRA, Marco Aurélio e HENRIQUES, Luiz Sérgio (coedição.). Cadernos do

cárcere. Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; e GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da

história. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1989. 22

A minha compreensão sobre o significado de práxis inspira-se nas seguintes elaborações teóricas: “[...] a práxis

como atividade material humana, transformadora do mundo e do próprio homem. Essa atividade real, objetiva, é,

ao mesmo tempo, ideal, subjetiva e consciente. Por isso insistimos na unidade entre teoria e prática, unidade que

implica também em certa distinção e relativa autonomia. A práxis não tem para nós um âmbito tão amplo que

possa inclusive englobar a atividade teórica em si, nem tão limitada que se reduza a uma atividade meramente

material”. (VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. CARDOSO, Luiz Fernando (Trad.). Filosofia da Práxis. 3. ed. Rio de

Page 18: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

17

A busca por outros aportes nesta pesquisa tornaram-se ainda mais tangíveis para mim

em consonância com o esforço por aprender a constituir um racionalismo aberto e crítico,

teorizado por Carvalho, o qual

[...] concebe a ciência como uma criação da razão crítica, em articulação com a

imaginação e a sensibilidade, em resposta às interpelações da realidade, nas suas

infinitas conexões de espaço e tempo. É a afirmação da ciência como realização

criativa do racional, em sintonia vigilante às provocações do real, em sua diversidade

e complexidade de experiências. Em verdade, é esta [perspectiva do Racionalismo

Aberto e Crítico] uma produção epistemológica que afirma a natureza política da

ciência, como uma prática que se institui e se desenvolve na teia das relações sociais

de um dado espaço, em um tempo histórico específico24

.

No influxo dessas ideias, antes de trançar os birros25

, reflito agora sobre como o tema

e o delineamento do objeto de pesquisa desta dissertação foram a mim se apresentando no

decurso de experiências acadêmicas e profissionais. Concebo que esta dissertação, em sua

gestação inicial, se iniciou no encontro e na vivência com a Assessoria Jurídica Popular (quem

fala, fala de um lugar), e tomou vida nos caminhos investigativos trilhados.

Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 405). “A práxis é entendida, portanto, como a atividade humana fundamental por

meio da qual o homem modifica o seu mundo e a si mesmo. [...] manifestando-se através da atividade criadora e

autocriadora. Essa ótica de análise enfatiza que os grupos humanos, na sua vida real, não produzem apenas os

bens materiais, mas ao fazê-lo elaboram, ao mesmo tempo, ideias, representações, saberes que contribuem para a

reprodução e transformação da realidade”. (DAMASCENO, Maria Nobre; THERRIEN, Jacques. Introdução. In:

DAMASCENO, Maria Nobre; THERRIEN, Jacques (Orgs.). Artesãos de um outro ofício: múltiplos saberes e

práticas no cotidiano escolar. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto do Governo do

Estado do Ceará, 2000, p. 17). 23

“[...] o que caracteriza o direito é ser uma totalidade concreta e, ao mesmo tempo, estar inserido nela. É o

problema do poder, em sede de discussões jurídicas, que dá azo à superação da discussão do jurídico como mera

forma ou um elemento em última instância, assim como permite entrever na realidade do direito a assimetria

entre as regulações sociais possíveis. Direito é organização política [...]”. (PAZELLO, Ricardo Prestes. A

Produção da Vida e o Poder Dual do Pluralismo Jurídico Insurgente: ensaio para uma teoria de libertação

dos movimentos populares no choro-canção latino-americano. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade

Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2010., p. 118). 24

CARVALHO, Alba Maria Pinho de. O exercício do ofício da pesquisa e desafio da construção metodológica.

In: BAPTISTA, Maria Manuel (Edição). Cultura: metodologias e investigações. Lisboa: Ver O Verso, 2009, p.

125-129. 25

“Os bilros são uma espécie de haste de madeira provida de uma cabecinha numa das extremidades. Sobre ela

enrola-se a linha para fazer a renda. Os bilros são sempre utilizados aos pares”.

<http://www.acasa.org.br/arquivo.php?pchave=Renda+de+bilros>; acesso em 21 Abr. 2011. "Bilro é um termo

português empregado pelos literários brasileiros e que se encontra no dicionário. Na prática e na vida real, as

rendeiras brasileiras preferem de fato usar a palavra Birro, termo que não recebeu nenhum reconhecimento da

parte da camada intelectual, porque as rendeiras [eram] na sua imensa maioria mulheres que muito

frequentemente não sabiam quase ler, e que por consequência não tinham voz”. (Informação disponível em

<http://rendadebilro.blogspot.com/>; acesso em 22 abr. 2011).

Page 19: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

18

2.1 O encontro como reencontro: a artesã e o desenho26

No primeiro semestre da graduação, ao ouvir uma professora falar em “Direito

Humanitário”, fui perguntar, daquele jeito que só um(a) iniciante é capaz: “como faço para

trabalhar com esse Direito?”. Confesso que não apreendi parte dos conceitos apresentados na

resposta, à época; no entanto, uma palavra ficou gravada: CAJU. E esse foi apenas o início da

busca pelo encontro.

Percebia que o ensino jurídico universitário, em geral, proporcionava a aprendizagem

acerca do Direito Estatal positivado, na Constituição Federal e demais dispositivos legais, em

uma perspectiva técnico-formal. Os corredores da Faculdade me pareciam insensíveis ante as

inquietudes na busca pelo Direito como sentido de Justiça.

No segundo semestre (1999) cursei a capacitação em Direitos Humanos e Assessoria

Jurídica Popular realizada pelo Centro de Assessoria Jurídica Popular Universitária (CAJU27

).

Após a capacitação incorporei-me ao CAJU (1999-2002). E a poesia do encontro se deu28

.

Minha identidade no Direito fez-se nas malhas da Assessoria Jurídica Popular

(AJP29

) e a possibilidade de um direito emancipatório e libertário foi o que ocupou meus

esforços de diálogo(s) crítico(s) com a teoria e a prática jurídica.

Em 2000, nos Encontros Universitários de Pesquisa da Universidade Federal do

Ceará (UFC), apresentei o trabalho “Assessoria Jurídica Popular e a luta pela igualdade dos

sexos e pela livre orientação sexual”30

, onde buscava compreender como a AJP poderia ser

uma prática jurídica mais apropriada à luta pela emancipação feminina31

.

26

“A renda é feita em uma almofada onde ela [a rendeira] fixa alfinetes a fim de fazer o contorno do desenho que

será a renda, depois de fazer isso ela vai entrelaçando os bilros até que o desenho apareça em forma de renda”.

(Informação disponível em: <http://www.blogers.com.br/o-que-e-renda-de-bilro/>; acesso em 22 abr. 2011). O

desenho, aqui, significa o objeto da pesquisa. 27

Projeto de Extensão formalmente vinculado à Universidade Federal do Ceará, desde o ano de 1998, hoje sob a

orientação do Prof. Dr. Gustavo Raposo, cujo propósito é o de buscar, por meio da Assessoria Jurídica Popular

Universitária, atuar na educação em direitos humanos junto a movimentos, utilizando-se da Educação Popular

com aporte teórico em Paulo Freire. 28

“Porque sou humano e creio no divino da palavra, pra mim é um oráculo a poesia! É meu tarô, meu baralho,

meu tricot, meu i ching, meu dicionário, meu cristal clarividente, meus búzios, meu copo d'água, meu conselho,

meu colo de avô, a explicação ambulante para tudo o que pulsa e arde. A poesia é síntese filosófica, fonte de

sabedoria, e bíblia dos que, como eu, creem na eternidade do verbo, na ressurreição da tarde e na vida bela”.

(LUCINDA, Elisa. A Fúria da Beleza. In: LUCINDA, Elisa; ALVES, Rubem. A Poesia do Encontro. Campina:

Papirus 7 Mares, 2008). 29

A sigla aparece, por vezes, como AJUP. 30

JOCA, Priscylla. Assessoria Jurídica Popular e a luta pela igualdade dos sexos e pela livre orientação

sexual. XIX Encontro Universitário de Iniciação à Pesquisa da Universidade Federal do Ceará, 2000, Fortaleza.

In: Anais do XIX Encontro Universitário de Iniciação à Pesquisa da Universidade Federal do Ceará - Fortaleza:

Universidade Federal do Ceará, 2000. 31

Para aprofundar-se sobre o tema vide MAIA, Christianny Diógenes; LOPES, Ana Maria D’Ávila. A

Assessoria Jurídica Popular na construção de uma nova cultura jurídica antipositivista e antimachista:

superando a discriminação de gênero no Direito. XIX Encontro Nacional do CONPEDI, 2010, Fortaleza. In:

Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI – Fortaleza. Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux, 2010.

Page 20: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

19

Este trabalho originou projeto de pesquisa (2001-2003) cujo tema era sobre Direitos

de Mulheres em Âmbito Internacional. Tal caminho investigativo redundou na monografia de

final de curso (2003), cujo último capítulo tratou de “Novas perspectivas do Direito na

conquista pela igualdade: Experiência das Promotoras Legais Populares, Advocacy e

Assessoria Jurídica Popular”32

.

No decurso da graduação, envolvi-me em alguns estágios: na Organização não

Governamental (ONG) Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ceará

(CEDECA-CE)33

(2000-2003), como educadora em Direitos Humanos na ONG Comunicação

e Cultura34

(2000) e no Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei

Tito de Alencar (EFTA)35

(2001).

Essas experiências fizeram-me vivenciar outras formas de atuação jurídica, as quais

se utilizavam da via judicial como apenas mais um meio de concretização de direitos,

compreendendo a educação em direitos e a atuação jurídico-política como outros caminhos

possíveis e necessários na busca por essa concretização.

Após graduar-me, trabalhei na Fundação da Criança e da Família Cidadã (FUNCI)36

(2005/2006) como coordenadora do projeto Agências de Cidadania, onde pude participar do

grupo dos gestores(as) que o reformularam, buscando constituir as Raízes de Cidadania37

, as

32

JOCA, Priscylla. Internacionalização dos Direitos das Mulheres: da igualdade formal à igualdade material.

Monografia (Faculdade de Direito) - Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, 2003. 33

O CEDECA-CE tem como missão: “Defender os direitos de crianças e adolescentes, especialmente quando

violados pela ação ou omissão do poder público, visando o exercício integral e universal dos direitos humanos.

Nossa atuação tem como fundamento os direitos consagrados na Convenção Internacional dos Direitos da

Criança, na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente”. (Informação disponível em

<http://www.cedecaceara.org.br/cedeca-ceara/missao>; acesso em 13 mar. 2011). 34

“O Comunicação e Cultura é uma Organização não Governamental (ONG) fundada em 1988. Sediada em

Fortaleza, no Ceará, tem como missão atuar em escolas, principalmente públicas, visando promover a formação

cidadã de crianças e adolescentes e contribuir para a melhoria da qualidade do ensino” (Informação disponível

em <http://comcultura.org.br/quem-somos/>; acesso em 13 mar. 2011). No período de estágio atuei como

educadora em cursos promovidos pela ONG ligados ao Projeto “Clube do Jornal” (sobre este projeto, ver em

<http://comcultura.org.br/nossos-programas/clube-do-jornal/>; acesso em 13 mar. 2011). 35

“O Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar tem como objetivo

prestar assistência jurídica às comunidades marginalizadas do Estado do Ceará. Criado em junho de 2000, ele é

vinculado à comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa, atuando em convênio com

entidades públicas e privadas na defesa da sociedade contra violações aos direitos humanos, em demandas

coletivas ou individuais de grande repercussão” (Informação disponível em <http://www.al.ce.gov.br/freitito/>;

acesso em 30 mai. 2010). O EFTA nasceu de um convênio (hoje não mais vigente) entre o Tribunal de Justiça do

Estado do Ceará, a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, e a Universidade Federal do Ceará, esta

representada pelos projetos de extensão CAJU e Núcleo de Assessoria Jurídica Comunitária (NAJUC).

Posteriormente, a Universidade de Fortaleza (UNIFOR) agregou-se ao EFTA por meio do Serviço de Assessoria

Jurídica Popular (SAJU-CE). 36

Fundação vinculada à Prefeitura Municipal de Fortaleza. 37

Hoje vinculadas à Secretaria de Direitos Humanos de Fortaleza, define-se como “a Secretaria de Direitos

Humanos nos bairros, numa atuação que considera as especificidades dos territórios e que está fortemente ligada

às organizações da sociedade civil. Trata-se, portanto, de uma gestão de ações compartilhadas entre poder

público municipal e comunidades, através do intercâmbio de conhecimentos sobre direitos humanos, do fomento

Page 21: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

20

quais, contando em sua equipe com advogado(a), psicólogo(a), assistente social e assessor

comunitário, passaram a pautar sua atuação jurídica na AJP38

.

Quando, alguns anos mais tarde (2008), trabalhei como assessora jurídica da Casa

Abrigo para Mulheres Vítimas de Violência da Prefeitura Municipal de Fortaleza39

, deparei

dificuldades e descaminhos no cotidiano da defesa de direitos. Percebi, então, que ainda

buscava a resposta às perguntas teimosas e renitentes em minhas ideias/ideais: “o que

concebemos como Direito pode ser um campo fértil a real concretização de Direitos Humanos

e Fundamentais?”; “há relação possível entre Direito, Emancipação e Libertação?”.

Aproximava-se o reencontro.

Dúvidas em mente, no primeiro semestre do mestrado, o objeto desta pesquisa

começou a ser esboçado. Iniciei com a ambição de dialogar sobre as (im)possíveis relações

entre Direito e Emancipação, tomando-os como dois conceitos que se cruzam e que podem ou

não se hibridizar40

.

Por isto instigada, inseri-me no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o pensamento de

Boaventura de Sousa Santos no Ceará, e, após um dos encontros do grupo, evoquei a ideia de

quando atuava no CAJU aproximei-me, por meio do referido projeto, da Rede Nacional de

Advogados(as) Populares no Ceará (RENAP-CE)41

(2000/2002), experiência por meio da qual

à participação popular e da identificação dos potenciais criativos das comunidades”. (Informação disponível em

<http://www.fortaleza.ce.gov.br/sdh/index.php?option=com_content&task=view&id=43&Itemid=0>; acesso em

30 mai. 2010). 38

Percebo ser necessário refletir acerca das (im)possibilidades e contradições da aplicação da Assessoria Jurídica

Popular em âmbito de uma política pública municipal. Contudo, isto não será analisado no trabalho dissertativo,

por não constituir seu objeto e por ser deveras complexo, suscitando a necessidade de outra pesquisa. 39

“A Prefeitura Municipal de Fortaleza [...] lançou a casa-abrigo de Fortaleza [...] em novembro de 2006. [...] A

implantação de casas-abrigo é uma política pública de âmbito nacional que vem sendo estimulada pela Secretaria

Especial de Políticas para as Mulheres-SPM, e está prevista em diversos documentos oficiais, tais como a

Política Nacional de Enfrentamento à Violência, o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres e, mais

recentemente, o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher. Além disso, a Lei 11.340/06,

conhecida como Lei Maria da Penha, também prevê a criação desses equipamentos no texto da lei, art. 35, II”.

(ZARANZA, Janaina Sampaio; GASPAR, Larissa Maria Fernandes; MACIEL, Maria do Socorro Camelo.

Políticas Públicas de Enfrentamento da Violência contra a Mulher: a experiência de Fortaleza. In: ALVES, Maria

Elaene Rodrigues; VIANA, Raquel (Orgs.). Políticas para as mulheres em Fortaleza: desafios para a

igualdade. São Paulo: Fundação Friedrich Ebert, 2008, p. 83). 40

Um texto de Boaventura de Sousa Santos lança luz sobre essa questão: SANTOS, Boaventura. ¿Puede el

derecho ser emancipatório? In: SANTOS, Boaventura de Sousa. AÑÓN, Carlos Lema (Trad.). Sociología

Jurídica Crítica: para un nuevo sentido común en el derecho. Madrid: Trotta, 2009, p. 542-611. 41

“Surgiu em dezembro de 1995 [a RENAP Nacional], num encontro nacional realizado em SP – Capital. Este

encontro fundacional foi precedido de uma reunião em SP, coordenada pelo Secretário Agrário do PT, com

representantes do MST, CPT, ANAP, AJUP, quando analisou-se a necessidade de retomar a articulação de

advogados/as “populares”, em âmbito nacional, já que se detectava uma ofensiva do latifúndio sobre o Poder

Judiciário, tendo como casos emblemáticos as decisões dos juízes de Alhandra-PB e de Pirapozinho-SP,

determinando a prisão de lideranças do MST e CPT sob fundamentos jurídicos muito semelhantes, em regiões

muito distantes geograficamente. Não tinha um nome definido, nem se chamou de rede, mas de “proteção

jurídica do povo da terra” [...]. Só no Encontro paranaense, realizado em março de 1996, em Maringá, que surge

a proposta de ser uma rede, não de advogados “amigos do MST” ou só do “povo da terra”, mas uma rede de

Page 22: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

21

pude perceber as diferenças e similitudes existentes entre a atuação de advogados(as)

populares da RENAP e a AJP Universitária. E, no início do mestrado, soube que a maior parte

dos(as) advogados(as) da RENAP-CE são oriundos(as) de algum dos projetos de extensão

universitária em AJP localizados em Fortaleza42

.

Aferi, então, que este seria um momento precioso para, por meio da investigação da

atuação desses(as) advogados(as) populares, compreender como se constitui uma práxis

jurídica que se afirma como emancipatória e libertária, com suporte na experiência da AJP na

Advocacia Popular.

No decorrer dos estudos, apercebi-me da necessidade de realizar tal investigação em

campo, aliando-os à pesquisa bibliográfica. Pressupus, pela minha própria experiência na AJP,

que a atuação desses(as) advogados(as) constitui suas experiências cotidianas de assessoria

aos movimentos, em uma permanente ressignificação teórica e prática. Portanto, a fim de

melhor compreender essa práxis na contemporaneidade, busquei vivenciá-la como

pesquisadora.

Destaca-se ainda que se constituiu em um ponto de longas reflexões o

questionamento sobre se me encontrava apta a realizar essa pesquisa, haja vista a minha

identificação com a Assessoria Jurídica Popular. A consciência, no entanto, de que se

apresentava a mim uma nova realidade na práxis jurídica dos(as) advogados(as) e a busca por

determinados caminhos investigativos transmutaram essa identificação em obstáculo

transponível na pesquisa, de um lado, e, de outro lado, em experiência valiosa na apreensão do

objeto a ser pesquisado.

advogados populares, já que alguns profissionais atendiam em seus escritórios demandas populares urbanas, não

só dos movimentos sociais rurais”. (FRIGO, Darcy. Em entrevista concedida a Leandro Franklin Gorsdorf. Em

12 de dezembro de 2003. Brasília/Distrito Federal. Publicada em GORSDORF, Leandro Franklin. Assessoria

Jurídica Popular e a construção de um novo senso comum emancipatório. Dissertação (Mestrado em Direito).

Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, 2004, p. 145). Quanto a RENAP-CE, Freitas aponta que esta

Rede foi formada em 1998, em decorrência do contato do MST com a Renap Nacional, após o Encontro

Nacional da RENAP realizado em São Luís nesse mesmo ano e que, no início, era formado basicamente por

advogados(as) do MST ou que apoiavam esse movimento, sendo ampliada em suas temáticas com o passar do

tempo. (FREITAS, Elmano. Em entrevista concedida a Priscylla Joca, 05 de março de 2010, Fortaleza/Ceará).

Hoje, a RENAP-CE articula-se em torno das temáticas seguintes: direitos de criança e adolescente; questões

socioambientais; direito à terra e ao território (em meio urbano e rural); povos indígenas; comunidades

tradicionais; direitos de mulheres; direitos de lésbicas, gays, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT);

sindicatos (rurais e urbanos); direitos culturais; presos políticos; direito à memória e à verdade. Para aprofundar-

se ver em: KOPITTKE, Alberto Liebling. Introdução à Teoria e à Prática Dialética no Direito Brasileiro: a

experiência da Renap. São Paulo: Expressão Popular, 2010. 42

Sendo esse: Centro de Assessoria Jurídica Popular (CAJU) e Núcleo de Assessoria Jurídica Comunitária

(NAJUC), regularmente cadastrados na Universidade Federal do Ceará; e o Serviço de Assessoria Jurídica

Popular (SAJU-CE), em fase de reconhecimento e cadastramento na Universidade de Fortaleza; todos existentes

há mais de dez anos.

Page 23: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

22

Eis que, em meados de 2009, procurei a RENAP-CE, apresentando-lhes as ideias

iniciais do que viria a ser esta pesquisa. “Tornei a achar-te quando te encontrei”43

. E o

reencontro se fez. Quando entrei em contato com a RENAP-CE44

expliquei que pretendia

pesquisar acerca da relação entre Direito e Emancipação por meio dessa Rede de Advogados

Populares, o objeto ainda estava se apresentando, tal qual o borrão de uma ideia em seu

inicio.

Entre setembro de 2009 e maio de 2010 realizei vivências e incursões no campo a

fim de me aproximar, (re)conhecer, delimitar e traçar os passos para aprender, com maior

densidade e clareza possíveis, sobre o tema a ser pesquisado.

O contato com o Projeto “Novas perspectivas para um velho direito: a propriedade e

o meio ambiente”45

, por meio do Mestrado em Direito na UFC, instigou-me a pensar sobre a

atuação de advogados(as) populares na concretização do direito à terra e ao território.

Inicialmente, entrevistei alguns(mas) advogados(as) da RENAP-CE com o fito de adentrar o

tema “Direito de propriedade e movimentos sociais” e produzir um artigo a ser apresentando

no II Encontro de Propriedade e Meio Ambiente promovido por esse projeto46

.

Foram entrevistados advogados(as) que atuam em meio rural e em meio urbano.

Diversos(as) advogados(as) da RENAP-CE atuam na assessoria ao Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra no Ceará (MST-CE), Povos Indígenas, Populações

Tradicionais e Comunidades Urbanas. Esse contato inicial por meio das entrevistas mostrou-

me a amplitude e complexidade de cada um desses meios, levando-me a optar, por afinidade

pessoal, pelo meio rural47

.

43

Trecho do poema “Quando te vi amei-te já muito antes”, de Fernando Pessoa. Disponível em

<http://caleidoscopicamente-cleo.blogspot.com/2008/07/quando-te-vi-amei-te-j-muito-antes.html>; acesso em 13

mar. 2011. 44

Em junho de 2009, inicialmente por meio de um de seus integrantes, escolhido porque já o conhecia desde a

época em que atuava no CAJU, ele foi meu contemporâneo na AJP Universitária. Após, participei de uma

reunião com o coletivo desta rede, apresentando as ideias iniciais da pesquisa. 45

Casadinho Universidade Federal do Ceará-UFC e Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Coordenador

na UFC: Prof. Dr. João Luis Nogueira Matias. Vigente entre 2009-2010. 46

O Encontro ocorreu no dia 23 de outubro de 2009, e inseriu-se na programação do III Simpósio Internacional

de Propriedade e Meio Ambiente, entre 19 e 23 de outubro de 2009, no Auditório de Centro de Ciências Jurídicas

da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. 47

Entrevistas por meio de questionários semi estruturados, que redundaram no artigo: JOCA, Priscylla;

NÓBREGA, Luciana. O Olhar de Advogados(as) Populares: o direito a terra e a pluralidade de movimentos

sociais. In: WACHOWICZ, Marcos; MATIAS, João Luis Nogueira (Org.). Direito de propriedade e meio

ambiente: novos desafios para século XXI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2010. Dos quatro advogados(as)

acompanhados(as) nesta pesquisa dissertativa, três foram contatados já nesse período, tendo participado das

entrevistas para o citado artigo, dentre outros(as) advogados(as).

Page 24: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

23

Nos meses seguintes, fui a algumas reuniões da RENAP-CE como pesquisadora, e,

após, esbocei um pré-projeto de pesquisa48

no qual o objeto de pesquisa desta dissertação ia

se apresentando com maior clareza. Nessa época, segui nas atividades de campo com a

intenção de compreender a atuação da RENAP-CE como uma rede de advogados(as)

populares voltada à concretização de direitos de movimentos organizados em torno da luta

pela terra e pelo território em meio rural no Ceará.

Até que, em março de 2010, participei do Seminário de 15 anos da RENAP no

Ceará49

e, em outro dia desse mesmo mês, estive presente na avaliação interna da RENAP-

CE no seu planejamento anual. Nesses momentos, percebi que o objeto sobre o qual gostaria

de me debruçar não era a Rede, por acreditar que as perguntas que movimentavam a pesquisa

seriam mais claramente vislumbradas além das relações institucionais e do funcionamento e

organização da RENAP-CE, e sim a práxis jurídica de assessores jurídicos populares junto a

movimentos populares organizados em torno da luta pela terra e pelo território no meio rural

do Ceará.

O objeto foi, assim, aclarando-se, apresentando-se como a investigação sobre a

práxis de advogados(as) populares ligados a RENAP-CE junto a movimentos populares

organizados na luta pela terra e pelo território em meio rural no Ceará.

Esses movimentos, em suas demandas, pedem aplicações e interpretações contra-

hegemônicas ao Direito Estatal, emergem direitos insurgentes, ressignificam direitos e

resistem em torno de necessidades e interesses constituídos e reconhecidos nesses grupos,

levando ao reconhecimento de novos direitos estatais ou do pluralismo jurídico. Esse quadro

espelha a pluralidade étnica, a multiculturalidade e as desigualdades sociais e econômicas

brasileiras que tencionam uma equidade social-ambiental-territorial.

Outras forças sociais organizam-se pela manutenção da propriedade exclusivista,

cartorária, individualizada e insustentável em sua produção e na extração de recursos

naturais. Nessa diversidade de demandas, tensões e espaços agem os(as) advogados(as)

populares que assessoram esses movimentos, em práxis jurídicas que possam viabilizar e

concretizar as demandas desses movimentos.

Busquei, desde então, investigar a práxis da Assessoria Jurídica Popular junto a esses

movimentos, o que passa por compreender: o que os movimentos populares significam como

48

Essas reuniões ocorrem na primeira semana de cada mês, há partilha de experiências, encaminhamento de

questões comuns entre esses(as) advogados(as), e planejamento conjunto de estratégias e atuações jurídico-

políticas na concretização dos Direitos Humanos e Fundamentais no Ceará, em articulação com a RENAP

Nordeste e Nacional. 49

Realizado no Auditório da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Page 25: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

24

direito(s), em suas resistências e reivindicações, em torno da luta pela terra e pelo território;

como os(as) advogados(as) percebem essas direitos e com estes dialogam; como se constituem

as demandas jurídicas por meio do encontro movimentos e advogados(as); e como a

Assessoria Jurídica Popular, em meio a essas tessituras de resistências, reivindicações,

demandas e lutas se faz como práxis para, ao final, refletir sobre suas potencialidades, limites

e contradições no contexto de lutas pelo direito à terra e ao território.

A fim de possibilitar melhor compreensão da práxis jurídica desses(as)

advogados(as), optei por acompanhar, desde março de 2010, quatro assessores jurídicos

populares da RENAP-CE ligados a movimentos organizados em torno da luta pela terra e

pelo território em meio rural no Ceará.50

Os(as) advogados(as) foram escolhidos atentando-se para os critérios seguintes:

respeitando a paridade de gênero, optei por escolher dois homens e duas mulheres, todos(as)

advindos(as) de projetos de extensão em AJP Universitária. No decurso das incursões em

campo, apercebi-me das ligações entre a Rede de Assessoria Jurídica Universitária no Ceará

(REAJU)51

e a RENAP-CE. Dos(as) advogados(as) acompanhados, três formaram-se

recentemente e o outro se graduou em Direito há alguns anos. Todos(as) vêm de projetos de

extensão universitária em AJP: um do CAJU-UFC, outro do NAJUC-UFC e dois do SAJU-

UNIFOR52

.

E, com o objetivo de compreender os fluxos comuns das lutas de resistências e

reivindicações em torno da terra e do território, escolhi esses(as) advogados(as) também pela

diversidade de movimentos assessorados em meio rural: MST, Indígenas e Comunidades

Tradicionais. Assim, um dos advogados assessora povos indígenas e comunidades

tradicionais; outro o MST e comunidades tradicionais; uma das advogadas assessora o MST; e

outra diversos Povos Indígenas; todos(as) atuantes no meio rural do Ceará53

.

50

Dois desses assessores já vinham sendo acompanhados, a advogada que trabalha com povos indígenas, desde

janeiro; e o advogado que trabalha com comunidades tradicionais, desde fevereiro. 51

A REAJU é composta, hoje, pelos seguintes projetos: Centro de Assessoria Jurídica Universitária (CAJU) e

Núcleo de Assessoria Jurídica Comunitária (NAJUC), ambos ligados à Faculdade de Direito da Universidade

Federal do Ceará (UFC); Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU), ligado à Universidade de

Fortaleza (UNIFOR); e o Programa de Assessoria Jurídica Estudantil (PAJE), ligado à Universidade Regional do

Cariri (URCA). A REAJU é ligada à Rede Nacional de Assessoria Jurídica Universitária (RENAJU), fundada em

1996, e que conta hoje com vinte e três projetos de Assessoria Jurídica Universitária em todo o país. (Informação

disponível em: <http://assessoriajuridicapopular.blogspot.com/2010/01/noticias-da-renaju.html>; acesso em 29

mai. 2010). 52

A convivência com estes grupos no decurso do Mestrado aponta que novas práticas e percepções sobre AJP

têm sido criadas e que alguns documentos vigentes na época em que participava, como o Regimento do CAJU e

a Missão do CAJU, não são mais utilizados, ou sequer conhecidos, por seus membros atuais. 53

Dos quatro, as duas advogadas assessoram também comunidades urbanas no que tange ao direito à moradia, à

cidade e à democratização do espaço urbano, contudo, para efeitos desta dissertação, observei o trabalho delas

relativo ao meio rural.

Page 26: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

25

À guisa de informação, nenhum(a) dos(as) advogados(as) apresentou-me, à época da

consecução da pesquisa, trabalhos de AJP junto a Quilombos. Após, soube que dois desses

advogados estavam estabelecendo contatos com comunidades quilombolas.54

Desenvolvi esta pesquisa de dissertação sob duas feições principais: bibliográfica e

de campo. E, desde as primeiras incursões em campo, realizei: entrevistas (não estruturadas,

estruturadas e semi estruturadas, a depender do contexto), observação participante, diálogos e

escutas de histórias, poemas e canções.

Como pesquisadora, busquei não “falar sobre” ou encaixar o que vi e vivi em pré-

concepções acadêmicas, e sim “falar com” e praticar um encontro de saberes e conhecimentos,

acadêmicos e não acadêmicos55

.

Utilizei diversos meios de registro: áudio (gravador), anotações (de entrevistas e

diário), filmagens e fotografias. Realizei também estudos por meio de sites e redes de e-mails

ligados aos movimentos populares, aos(às) advogados(as) populares, e à temática apresentada

nesta pesquisa, a fim de acessar informações comunicadas com base no ponto de vista desses

movimentos e advogados(as)56

.

Tal delimitação, nascida de pré-compreensões e experiências acadêmicas e

profissionais, bem como de reflexões e estudos teóricos, ocorreu também em incursões em

campo vividas entre 2009 e 2010. Desse modo, essa dissertação vem sendo escrita há muitos

anos. As inquietações e reflexões que por aqui aportam vêm de espaços acadêmicos e não

acadêmicos, e de grupos diversos, ainda que interconectados57

.

Traçado o desenho, passo agora à descrição das atividades desenvolvidas em campo,

conforme esboçarei a seguir.

54

“Estimo que as 79 comunidades registradas por um professor de Pará não representam nem a metade do real

número de quilombos no Ceará. Em mais de 100 dos 184 municípios cearenses, há comunidades quilombolas.

São tanto quilombos rurais, quanto quilombos urbanos, formados por negros que fugiram do Interior do Estado

para tentar encontrar trabalho em Fortaleza”. (HOLANDA, Cecília. Em entrevista concedida a An Coppens.

Publicada no Jornal Diário do Nordeste, em 5 ago. 2007. Informação disponível em

<http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=458392>; acesso em 11 jun. 2011). 55

Durante a pesquisa, cada artigo escrito sobre o tema era publicizado para os(as) advogados(as)

pesquisados(as), e, em algumas ocasiões, eles(as) me procuravam e dialogavam sobre o que havia escrito,

refletindo e problematizando acerca de algumas questões relativas à temática em estudo. Em junho de 2010, com

Luciana Nóbrega, viajei para Curral Velho a fim de apresentar os artigos produzidos sobre a comunidade e os

conflitos socioambientais que enfrentam. 56

Destacam-se: <http://assessoriajuridicapopular.blogspot.com/> (acesso em 24 abr. 2011);

<http://ilsa.org.co:81/> (acesso em 24 abr. 2011); < http://www.mst.org.br/> (acesso em 24 abr. 2011);

<http://www.cdpdh.org.br/> (acesso em 24 abr. 2011); <http://www.portaldomar.org.br/> (acesso em 24 abr.

2011); e participação em grupos de e-mails da RENAP-CE e REAJU. 57

“É melhor começar, creio, lembrando aos principiantes que os pensadores mais admiráveis dentro da

comunidade intelectual [...] não separam seu trabalho de suas vidas. Encaram a ambos demasiado a sério para

permitir tal dissociação, e desejam usar cada uma dessas coisas para o enriquecimento da outra”. (MILLS, C.

Wright. DUTRA, Walstensir (trad.). A Imaginação Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 211-212).

Page 27: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

26

2.2 Percursos no campo

Como primeira atividade de campo mais voltada para esta pesquisa dissertativa, em

fevereiro de 2010, acompanhei o trabalho de um dos advogados junto à Comunidade de

Curral Velho, havendo levantamento de dados primários de pesquisa. Intuitivamente, já

havia iniciado os percursos no campo58

.

Por meio de grupos focais, entrevistas semiestruturadas e observação participante,

pesquisei em Curral Velho sobre: a relação da comunidade com o território e os significados

gestados pela comunidade em torno dos direitos à terra e ao território; suas histórias, falas e

canções sobre suas resistências à devastação socioambiental causada, principalmente, pela

produção de fazendas de carcinicultura existentes no entorno da comunidade, e em defesa de

seu território e do ecossistema manguezal; a relação com o advogado que os assessora

juridicamente; e o que compreendem como Direito e advocacia popular.

No percurso da viagem, realizei entrevistas sem roteiro ou com roteiro

semiestruturado com o advogado, com o fito de compreender tanto sua práxis na advocacia

popular, bem assim sobre como ocorre a relação jurídica deste com a comunidade de Curral

Velho. Ele é um advogado-poeta, e, nas viagens e entrevistas realizadas, uma de suas formas

preferidas de comunicação era a leitura de suas poesias escritas sobre suas experiências como

advogado popular e os movimentos assessorados, precedidas da contagem de histórias e

casos que o inspiraram59

.

Duas outras entrevistas (março de 2010), utilizando-se de roteiro semiestruturado,

foram realizadas com esse advogado a fim de me aprofundar em questões como propriedade,

terra, território, advocacia popular e assessoria jurídica popular.

58

Foram realizadas quatro visitas à comunidade com a finalidade de realizar a pesquisa. A primeira, em fevereiro

de 2010, acompanhando o advogado popular. A segunda, em março de 2010, foi realizada em conjunto com o

advogado e Luciana Nogueira Nóbrega, a fim de produzir (com esta), em coautoria, artigos sobre Curral Velho.

A terceira, em junho de 2010, com o objetivo de apresentar os artigos por nós escritos. E a quarta, em agosto de

2010, acompanhando o advogado. Frutos dessas visitas foram publicados os artigos seguintes: JOCA, Priscylla;

NOBREGA, Luciana. “Não mangue de mim, não mangue, sou mangue vou lhe mostrar": um estudo sobre os

impactos socioambientais da carcinicultura na comunidade de Curral Velho - Acaraú/Ceará. II Encontro da

Sociedade Brasileira de Sociologia, 2010, Belém. In: Sociedade Brasileira de Sociologia da Região Norte (Org.).

Amazônia: mudanças sociais e perspectivas para o século XXI. Belém: Universidade Federal do Pará, 2010;

JOCA, Priscylla; NOBREGA, Luciana. O Direito a Terra, ao Território e ao Meio Ambiente do Povo do

Mangue. In: WACHOWICZ, Marcos; MATIAS, João Luis Nogueira (Org.). Propriedade e Meio Ambiente: em

busca de sua convergência. Florianópolis: Boiteux, 2010; e JOCA, Priscylla; NOBREGA, Luciana. Populações

Tradicionais, Território e Meio Ambiente: um estudo sobre a carcinicultura e a comunidade de Curral Velho -

Acaraú/Ceará. XIX Encontro Nacional do CONPEDI, 2010, Fortaleza. In: Anais do XIX Encontro Nacional do

CONPEDI – Fortaleza. Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux, 2010. 59

Um dos dias mais ricos no decurso da pesquisa se deu na segunda viagem a Curral Velho, em que ficamos em

um posto de gasolina, na estrada, esperando o socorro mecânico para o carro particular que nos transportava, e,

durante longo tempo, o advogado declamou suas poesias e contou histórias.

Page 28: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

27

Ainda em março de 2010 procurei a Secretaria Estadual do Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra no Ceará (MST-CE), a fim de pedir permissão para

pesquisar o trabalho do advogado e da advogada que os assessoram.

Em abril de 2010, em meio a atividades da “Jornada Nacional de Lutas por Reforma

Agrária”60

, iniciou-se o acompanhamento de atividades da advogada, com base em

observação participante na primeira audiência de negociação sobre a ocupação rururbana61

Comuna da Terra 17 de Abril62

, onde estavam presentes o Movimento dos Conselhos

Populares no Ceará (MCP-CE), o MST-CE, os legalmente proprietários, a Secretaria de

Desenvolvimento Agrário do Ceará (SDA) e o Instituto de Colonização e Reforma Agrária

no Ceará (INCRA).

Em outra ocasião (abril de 2010), fiz uma viagem pelo interior do Ceará com a

advogada a uma (então) recente ocupação do MST-CE. Nesse dia, a advogada foi ao Fórum

da cidade e conversou com o oficial de justiça sobre a medida liminar de reintegração de

posse já concedida para os legalmente proprietários da terra. A advogada e o coordenador do

movimento na cidade deram uma entrevista à emissora de rádio local sobre a ocupação, o

MST e a realidade do não acesso à terra no Brasil. Após, passamos parte do dia na ocupação.

60

“A Jornada Nacional de Lutas por Reforma Agrária é realizada [anualmente] em memória dos 19

companheiros assassinados no Massacre de Eldorado de Carajás, durante operação da Polícia Militar, no

município de Eldorado dos Carajás, no Pará, em 1996. O dia 17 de abril, data do massacre que teve repercussão

internacional, tornou-se o Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária”. No ano de 2010 teve como tema: “Lutar

não é Crime”. (Informações disponíveis em <http://www.mst.org.br/node/9460 >; acesso em 29 mai. 2010). 61

Essas ocupações nascem de ações comuns entre o MST e movimentos urbanos pelo direito a moradia, onde se

busca, além da morada, reservar espaços para o agrocultivo e a criação de animais de pequeno porte. A ocupação

Dandara (Belo Horizonte, desde abril de 2009) define-se como: “[...] a Dandara traz dois diferenciais. O primeiro

é o perfil rururbano da ação, que reivindica um terreno de 40 mil metros quadrados no bairro Céu Azul, na

periferia de Belo Horizonte. A idéia é pedir a divisão em lotes que ajudem a solucionar o passivo de moradia de

Belo Horizonte, hoje avaliado em 100 mil unidades, das quais 80% são de famílias com ganhos abaixo de três

salários mínimos. E também contribuir na geração de renda e na segurança alimentar, ao adotar-se um sistema de

agricultura periurbana, em que cada lote destine uma área de terra possível de se tirar subsistência ou

complemento de renda e alimentação saudável”. (Informação disponível em:

<http://ocupacaodandara.blogspot.com/2009/04/um-mar-de-barracos-de-lona-o-que.html>; acesso em 2 ago.

2010). 62

A Comuna da Terra 17 de Abril define-se em seu blog como “[...] a primeira ocupação urbana realizada em

Fortaleza/CE em parceria pelo MCP-Movimento dos Conselhos Populares e MST-Movimento dos Trabalhadores

Rurais Sem Terra, que aconteceu no dia 14 de abril, em um Latifúndio Urbano de 500 Hectares localizado no

José Walter, Fortaleza-CE (AV I com a AV Perimetral)”. (Informação disponível em:

<http://comuna17deabril.blogspot.com/>; acesso em 29 mai. 2010). “[...] foram muitas as lutas e [...] vitórias

construídas coletivamente. Como exemplo: a Bodega Vitória Coletiva, que é hoje fundamental para garantir

preços populares nos produtos de primeira necessidade das famílias acampadas. Mas, ainda tem a Cooperativa de

Costura, o Salão de Beleza Comunitário, a Horta entre outras. No dia 02 de março [de 2011], uma importante

vitória foi alcançada pelas famílias que há cerca de um ano estão acampadas na Comuna 17 de abril: serão

construídas 1.200 moradias no terreno do acampamento em benefício das pessoas que lá estão”. (Informação

disponível em: <http://comuna17deabril.blogspot.com/>; acesso em 23 abr. 2011).

Page 29: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

28

Na Jornada de Lutas acompanhei também uma manifestação do MST-CE diante do

Palácio Iracema63

, a fim de reivindicar uma reunião com o governador (do Estado do Ceará)

com o fito de tratar de uma pauta enumerada pelo Movimento64

.

A advogada foi entrevistada em maio de 2010, noutra ocasião, por meio de um

roteiro semiestruturado, mediante perguntas já formuladas ao outro advogado (de Curral

Velho).

Em janeiro de 2010, fui à XV Assembleia Estadual dos Povos Indígenas do Estado

do Ceará65

, onde tive o primeiro contato com Povos Indígenas. No início de abril (2010),

conversei com uma liderança indígena do Povo Tapeba. Ainda que, com essa liderança,

tenha dialogado só essa vez, tal ocasião apresentou-se como de enorme importância, pois

esta me deu consistentes relatos acerca da identidade e da cultura indígena no Ceará, do Povo

Tapeba e de sua luta pela terra.

Após os primeiros contatos, em abril de 2010, fui com a advogada popular que

trabalha com Povos Indígenas à Sessão Solene em Homenagem aos Povos Indígenas do

Ceará na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará. Lá pedi a permissão do Povo Tapeba e

do Povo Pitaguary para acompanhar o trabalho dela junto a esses povos. A advogada

vincula-se ao Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos da Arquidiocese de

Fortaleza (CDPDH) e, por meio desta, assessora os Povos Tapeba, Pitaguari, e Jenipapo-

Kanindé66

.

Em meados de abril, encontrei uma liderança do Povo Jenipapo-Kanindé em

Fortaleza, a qual me indicou que fosse a uma apresentação, no dia do índio (19 de abril), do

Povo Jenipapo Kanindé, em Aquiraz67

. Nesse encontro, tive a oportunidade de ter o primeiro

contato e diálogo com ela acerca de seu Povo Indígena e da relação deste com a terra

63

Local onde se encontrava, na época, o gabinete do governador do Ceará. 64

A pauta geral nacional está disponível em <http://www.mst.org.br/node/9606>; acesso em 29 mai. 2010. Cada

Estado, no entanto, traça uma pauta a partir das reivindicações nacionais e da realidade de cada local, onde entra,

por exemplo, pedido de desapropriações de terras específicas ou a questão da seca verde no Ceará no ano de

2010. (Informações colhidas durante a manifestação, por meio de diálogos com a advogada e militantes do MST-

CE). 65

Informações sobre esta Assembleia estão disponíveis em:

<http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:wDqgxOy0qt4J:xa.yimg.com/kq/groups/17742077/91

5183630/name/XV%2BASSEMBLEIA%2BESTADUAL%2BDOS%2BPOVOS%2BINDIGENAS%2BDO%2B

ESTADO%2BDO%2BCEAR%C3%81%2BREALIZADA%2BNA%2BTERRA%2BIND%C3%8DGENA%2B

ANAC%C3%89%2BEM%2BCAUCAIA.doc+assembl%C3%A9ia+dos+povos+ind%C3%ADgenas+no+cear%

C3%A1&cd=2&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br&client=firefox-a>; acesso em 29 mai. 2010. 66

Para mais informações sobre o CDPDH ir em <http://www.cdpdh.org.br>; acesso em 29 mai. 2010. 67

“O Povo Jenipapo-Kanindé localiza-se às margens da Lagoa Encantada com uma área de 1.731 hectares de

terra, situada no Distrito de Jacaúna, no município de Aquiraz, Ceará, há cerca de 55 Km de Fortaleza”.

(Informação disponível em <http://www.cdpdh.org.br/projetos/prot_indigena.html>; acesso em 29 mai. 2010).

Page 30: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

29

indígena. No dia 19 de abril, fui a Aquiraz, com o objetivo, cumprido, de pedir a autorização

desse Povo.

Em maio de 2010, acompanhei a advogada à aldeia Jenipapo-Kanindé, em uma

reunião que ocorre mensalmente para informa-la sobre os procedimentos judiciais, e onde se

dialoga com representantes do Povo sobre seu cotidiano e problemas, como questões

socioambientais por eles vivenciadas. Em duas ocasiões (em maio de 2010), fiz entrevistas

com essa advogada utilizando-me do mesmo instrumental aplicado ao advogado e à

advogada anteriormente citados68

.

Duas entrevistas foram vitais para me auxiliar na compreensão de aspectos da

RENAP no Ceará e da Advocacia Popular. Estas, com a utilização de roteiro semiestruturado,

foram feitas com o fundador e primeiro articulador da RENAP-CE, em março e maio de 2010.

Por fim, em julho de 2010, participei do Encontro Nacional da RENAP, em Goiás.

Ouvir advogados(as) populares de vários recantos do Brasil, realizar breve entrevista com

João Pedro Stédile69

e com fundadores(a) da RENAP Nacional consistiram em momentos

valiosos para seguir na compreensão da significância da advocacia popular70

.

O caminhar na pesquisa foi clareando as seguintes percepções, como pesquisadora:

ainda que tenha compreendido novos conceitos, até mesmo contrários aos meus pré-conceitos

e compreensões, tudo com o intuito de adquirir conhecimento acerca do tema em estudo, as

experiências, reflexões e os diálogos fluídos nas atividades de campo e buscar aprender, como

pesquisadora, a deixar-me afetar71

constituíram conhecimentos e visibilizaram-me saberes,

experiências e práticas, os quais nenhuma palavra escrita podia, por si, fazer-me conhecer.

68

Observei que esta advogada, no início, apresentava-se resistente ao uso do gravador. Após as primeiras

entrevistas, disse-me que podia usar o gravador, mas que não a avisasse quando fosse utilizá-lo. Nas últimas

entrevistas ela sentia-se a vontade com o uso do gravador, pedindo-me apenas para pausá-lo em determinados

momentos. 69

Membro da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Para mais

informações ver em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Pedro_St%C3%A9dile>; acesso em 11 mai.

2011. 70

Utilizo a expressão advocacia popular porque é por eles utilizada como equivalente a assessor jurídico popular. 71

A dicção é utilizada, inspirando-me em Jeanne Favret-Saada, a qual diz: “meu trabalho sobre a feitiçaria no

Bocage francês levou-me a reconsiderar a noção de afeto [...] primeiro, para apreender uma dimensão central do

trabalho de campo (a modalidade de ser afetado) [...]. [...]. Afirmo [...] que ocupar tal lugar no sistema de

feitiçaria não me informa nada sobre os afetos do outro; ocupar tal lugar afeta-me, quer dizer, mobiliza ou

modifica meu próprio estoque de imagens, sem contudo instruir-me sobre aquele dos meus parceiros. Mas [...] o

próprio fato de que aceito ocupar esse lugar e ser afetada por ele abre uma comunicação específica com os

nativos: uma comunicação sempre involuntária e desprovida de intencionalidade, e que pode ser verbal ou não”.

(FAVRET-SAADA, Jeanne. SIQUEIRA, Paula (Trad). “Ser afetado”. Cadernos de Campo n13. Revista dos

Alunos de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP, 2005, p. 155,159). Marcio Goldman ao discorrer

sobre Jeanne Favret-Saada, expõe que “[...] uma das originalidades de seu trabalho talvez resida no fato de que o

principal operador desse agenciamento sejam os afetos suscitados ou revelados em uma experiência vivida de

alteridade, seja no trabalho de campo, seja por outros meios. O que produz resultados que, evidentemente,

reagem sobre os próprios afetos agenciados: “há, em mim, uma espécie de perpétua retroação entre um modo não

Page 31: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

30

Destaco que os primeiros passos em campo, desde antes da delimitação do objeto,

foram importantes por ajudar-me a aclará-lo, e constituem-se, ademais, em fontes de dados

primários de pesquisa, ainda que a riqueza dos dados apreendidos só tenha sido mais bem

apropriada no momento em que, ao reler os diários de campo, escrevi (em julho/agosto de

2010) o projeto de pesquisa de dissertação72

.

Após as primeiras incursões, interconectadas às minhas pré-compreensões e

experiências vividas, me encontrei pronta para traçar os caminhos por meio dos quais se

deram meus posteriores percursos em campo a fim de buscar melhor compreender o objeto em

estudo. Após realizar reflexão teórica na escrita do projeto de pesquisa, retomei, com maior

solidez e foco, as atividades de campo.

Entre agosto e novembro de 2010 voltei ao campo. Realizei entrevistas

semiestruturadas com os(as) advogados(as). No questionário semiestruturado, salvo algumas

diferenciações a depender do grupo que assessoram, estavam as mesmas perguntas.

Fiz, também, entrevistas semiestruturadas com lideranças dos movimentos

assessorados por parte de cada um(a) dos(as) advogados(as). Essas lideranças foram

escolhidas pelos próprios assessores jurídicos populares, com base em questionamento sobre

quem seria referência para eles(as) na consecução de seu trabalho junto aos movimentos. Essa

dinâmica funcionou para os(as) advogados(as) de Povos Indígenas e do MST, tendo sido

entrevistadas três lideranças de cada movimento73

.

Essas entrevistas versavam sobre suas compreensões acerca de questão da terra e do

território, suas demandas, reivindicações, resistências e concretização de direitos, advocacia

popular e significados atribuídos ao Direito. As perguntas eram semelhantes, contudo,

variavam de acordo com o movimento entrevistado. Quanto ao advogado de Curral Velho, as

partidário de ser em política e um modo não escolar de fazer pesquisa” [FAVRET-SAADA, Jeanne. In Idées

Contemporaines. Entretiens Le Monde. Paris: La Découverte, 1984]”. (GOLDMAN, Marcio. Jeanne Favret-

Saada, os afetos, a etnografia. Cadernos de Campo n13. Revista dos Alunos de Pós-Graduação em

Antropologia Social da USP, 2005, p. 149-153). 72

“Embora, durante a pesquisa de campo, não soubesse o que eu estava fazendo, e tampouco o porquê,

surpreendo-me hoje com a clareza das minhas escolhas metodológicas de então: tudo se passou como se tivesse

tentado fazer da “participação” um instrumento de conhecimento. Nos encontros com os enfeitiçados e

desenfeitiçadores, deixei-me afetar, sem procurar pesquisar, nem mesmo compreender e reter. Chegando em

casa, redigia um tipo de crônica desses eventos enigmáticos [...]. Esse diário de campo [...] foi durante longo

tempo meu único material [...]”. (FAVRET-SAADA, Jeanne. SIQUEIRA, Paula (Trad). “Ser afetado”.

Cadernos de Campo n13. Revista dos Alunos de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP, 2005, p.

157; 158). 73

Como esta pesquisa objetiva observar a práxis jurídica dos(as) advogados(as) junto aos movimentos

assessorados, ainda que a advogada de Povos Indígenas se vincule ao CDPDH, optei por entrevistar lideranças

indígenas.

Page 32: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

31

rodas de conversas e entrevistas foram realizadas com pessoas ligadas à Associação de

Marisqueiras e Pescadores de Curral Velho74

.

Nos percursos investigativos acompanhei o advogado de Curral Velho em outras

atividades, junto ao Povo Indígena Tremembé e uma comunidade de agricultores75

. Realizei

uma entrevista com uma liderança desse Povo, utilizando-me, basicamente, do mesmo

questionário semiestruturado aplicado às lideranças cujos povos são assessorados pela

advogada do CDPDH. Quanto à comunidade, não houve tempo no decurso da pesquisa para

realizar entrevistas e rodas de conversa, no entanto, a realização de uma visita acompanhando

Luiz Gama permitiu-me colher dados por meio de observação participante.

Em setembro de 2010, realizei um grupo focal com os(as) advogados(as) envolvidos

na pesquisa a partir do seguinte tema: “as demandas dos movimentos que vocês assessoram

estão contempladas atualmente pelo ordenamento jurídico brasileiro?”.

Em outras ocasiões, na avaliação dos(as) próprios(as) pesquisados(as), no decurso da

pesquisa, houve poucos ensejos de acompanha-los(as) no contato direto com os movimentos,

por choque de atividades, por impossibilidades minhas, ou mesmo por essas atividades não

terem ocorrido durante esses meses dedicados mais intensamente ao campo. Percebo, contudo,

que os momentos em que estive presente foram-me ricos e férteis na aferição do objeto.

Durante esses três meses acompanhei os(as) advogados(as) em ocasiões diversas,

institucionais, acadêmicas, judiciais e extrajudiciais, e em atividades ligadas às manifestações

dos grupos assessorados.

74

O advogado foi indicado para a Associação pelo Instituto Terramar, o qual se define como “uma organização

não-governamental, sem fins lucrativos, do campo popular democrático que atua na Zona Costeira do Ceará,

visando o desenvolvimento humano com justiça socioambiental, cidadania, participação política, autonomia dos

grupos organizados e fortalecimento da identidade cultural dos Povos do Mar do Ceará”. (Informação disponível

em: <http://www.terramar.org.br/oktiva.net/1320/secao/3774>; acesso em 25 abr. 2011). 75

Comunidade da Lapa em Potiretama, Ceará. Essa comunidade é uma das afetadas pela construção da Barragem

do Figueiredo. A Secretaria dos Recursos Hídricos do Governo do Estado do Ceará alega que “A barragem

Figueiredo tem capacidade para acumular 519 milhões de metros cúbicos de água destinados ao abastecimento,

controles de cheias no baixo Jaguaribe e irrigação de 8.000 ha de terras, gerando 96.000 empregos diretos e

indiretos. A produção diária de 15.000 kg de pescado acarreta 4.250 empregos diretos e indiretos, além do

turismo e lazer”. (Informação disponível em: <http://portal.cogerh.com.br/noticias/barragens-do-ceara-sao-

incluidas-no-pac>; notícia veiculada em 12 jan. 2009; acesso em 25 abr. 2011). Em agosto de 2010, “faltando

poucos meses para a conclusão da Barragem do Figueiredo, dezenas de famílias, que moram dentro da área que

será inundada pelo açude, ainda não têm para onde ir. Há mais de dois anos esperam as indenizações e casas

prometidas pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs). Como nenhuma casa foi construída,

os moradores resolveram impedir os trabalhos de construção da parede no leito do Rio Figueiredo até que o

órgão federal defina e comece a cumprir o cronograma de desapropriação”. (Informação disponível em:

<http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=839026>; notícia veiculada em 25 ago. 2010; acesso em

25 abr. 2011). Quando da ocupação, o advogado foi procurado e acompanhou um grupo junto à sede da

Defensoria Púbica da União em Fortaleza, ocasião em que estive presente. Posteriormente, o advogado visitou a

Lapa e o acompanhei como pesquisadora.

Page 33: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

32

O diálogo com os(as) advogados(as) em trânsito, em momentos de refeição, no

decurso das atividades, me proporcionou escuta de falas e reflexões dialógicas, muitas vezes,

mais elucidativas do que no momento das entrevistas, estando tudo registrado em diário.

Ainda que não tenha constituído objeto desta pesquisa, por se tratar de questão rural e

urbana, a Comuna 17 de Abril adquiriu vida própria nesta investigação. Durante o ano de

2010 visitei algumas vezes a Comuna. Nos primeiros dias de ocupação, ia ao encontro da

advogada do MST, ou na ânsia de compreender melhor o que se construía por lá. Indo

entrevistar uma liderança do MST para a pesquisa, onde aproveitei para realizar mais uma

visita, levando um professor para visitar o local, ele me ajudou a questionar o problema da

terra e minha pesquisa com suas perguntas; e, em especial, levando dois professores

considerados referência na Assessoria Jurídica Popular. Pude, então, ouvi-los falar para o

povo que ocupava a terra e dialogar com integrantes do MST. Os contatos com a comuna

instigaram-me diversas reflexões sobre a questão da propriedade e a luta pela terra e pelo

território.

No ano de 2010, também, mantive contato, em reuniões presenciais, virtuais, por

grupo de e-mails, com pesquisadores(as) em AJP e temas afins de vários recantos do Brasil.

Em dezembro de 2010, participei da oficina “Cartografando Experiências de Assessoria

Jurídica Popular”, ocorrida no VI Seminário Internacional de Direitos Humanos da

Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Esses diálogos e escutas, ainda que não consistam

em dados primários da pesquisa, afetaram-me de muitos modos e contribuíram na

ressignificação de conhecimentos acerca do objeto.

Com o objetivo de nomear os(as) advogados(as), sem, no entanto, identificá-los, bem

como buscar perceber o que os(as) motiva na advocacia popular, lhes pedi que se

“batizassem”, dizendo-me um nome pelo qual gostariam de ser chamados nesta dissertação, e,

caso o quisessem, dissessem o porquê76

77

. As respostas seguem abaixo:

A advogada de Povos Indígenas no Ceará, apontando o nome de Tuíra, relatou: 76

O pedido foi-lhes feito desde abril de 2010, contudo, apenas o advogado de comunidades tradicionais me

respondeu pouco tempo depois, os demais, apenas ao final da pesquisa deram-me a resposta. 77

Durante a defesa desta dissertação me foi questionado o motivo de não ter identificados os(as) advogados(as),

ao que respondi: para proteção de suas identidades e por tratar-se de análises de suas falas, e não de seus

interlocutores, por não ter trabalhado com história de vida ou outro aporte metodológico que me permitisse

analisar o perfil desses(as) advogados(as). Eis que, o Prof. Dr. Carlos Frederico Marés chamou-me atenção para

o fato de que esses(as) advogados(as) estavam produzindo doutrina jurídica e, portanto, havia por isso de serem

identificados, ao que foi acompanhado por outros membros da banca. Autorizada, pois, pelos advogados(as),

identifico-os como: Claudio Silva (advogado do MST-CE); Maria de Lourdes Vieira (advogada de Povos

Indígenas no Ceará); Patrícia Oliveira Gomes (advogada do MST-CE); Rodrigo de Medeiros (advogado de

comunidades tradicionais, como Curral Velho e Lapa). A fim de manter o formato original da dissertação e

conservar o relato dos caminhos percorridos no decurso desta pesquisa, opto por manter seus nomes de

“rebatismo”, tal qual se observa a seguir.

Page 34: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

33

Tuíra, liderança indígena kayapó que colocou uma faca no rosto de um diretor da

Eletronorte há muitos anos, na verdade esse deveria ser o meu nome, mas como

minha avó havia falecido há pouco tempo meu pai colocou o nome dela. Minha mãe,

por estar desaldeada, tem fascínio pelas lideranças guerreiras e queria batizar seus

filhos com nomes de guerreiros, mas só rolou com meu irmão que se chama Raoni,

por causa do cacique que ganhou o mundo78

.

O advogado de Comunidades Tradicionais e Povos Indígenas, assim se “batizou”:

Escolhi o Luiz Gama, advogado negro, filho de um português e de uma negra líder

da revolta dos Malês, posto como escravo por seu próprio pai. Sempre tive uma

admiração por esta revolta. Ele tentou estudar no Largo do São Francisco, mas o

preconceito dos filhos de fazendeiros tornou insuportável o estudo. Foi militar [...],

policial. E acho que em sua época era um advogado popular, totalmente identificado

e atuando, não só na esfera técnico jurídica, por suas causas. Ele participava de ação

direta, ajudando nas fugas de escravos. Atuava no debate público, escrevendo em

jornais. Parece que soltou por volta de 500 escravos, usando, inclusive, o direito

romano. Ele também atuava politicamente, foi fundador do Partido Republicano e

rompeu em sua formação, porque não quiseram enfrentar a questão da libertação dos

escravos. Enfrentava coronéis militares, fazendeiros, etc. Na época em que faleceu,

trouxe grande comoção a São Paulo. Mas como todo advogado popular, um herói

anônimo, esquecido pela história oficial79

.

A advogada do MST disse que se chamaria Flor de Liz80

. O advogado do MST

chamou-se Carlos Alencar, assim explicando:

Carlos para fazer referência a dois Carlos que tenho conhecido ultimamente e têm

me servido de admiração e inspiração. O primeiro é Carlos Mariguela, um homem

que atravessou duas ditaduras no Brasil, sempre firme na luta. Um revolucionário

que não se prendeu à dogmas. Foi liderança estudantil, militante do PCB (depois

rompe, por divergência com o reformismo da III Internacional), filia-se a tradição

cubana e ingressa na guerrilha armada. Um lutador do povo, sambista, capoerista e

poeta. O outro Carlos é o Fonseca, liderança da Frente Sandinista de Libertação

Nacional. Estou lendo sobre a Revolução Sandinista e é inevitável não se inspirar na

última revolução que nosso continente viveu. Bem. "Alencar" não dá nem para

esconder. Nosso cearense lutador e que tanto nos motivou nos últimos dias81

.

Por fim, já em março e abril de 2011, ante a inesperada exoneração, pela Assembleia

Legislativa do Estado do Ceará, de todo o quadro de advogados(as) e estagiário(as) do

Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar, pude

78

Por e-mail, enviado em 26 abr. 2011. Sobre Tuíra: “A índia kaiapó Tuíra – que, em 1989 empunhou um facão

contra o atual presidente da Eletrobrás, José Antonio Muniz Lopes, então diretor da Eletronorte, em um protesto

em defesa do Xingu – ficou de pé em frente à mesa da Comissão de Direitos Humanos e apontou o dedo para o

representante da Funai: "O Xingu está nas minhas mãos, então eu não posso deixar a construção desta barragem.

Eu não vou deixar construírem Belo Monte, porque eu nasci na beira do Xingu”, afirmou Tuíra. Ela falou que a

Funai está fazendo trabalho escondido e que não perguntaram para eles, nas aldeias, se Belo Monte era bom ou

ruim. “A Funai não conhece os índios na área. O governo nos abandonou e agora ele mesmo nos ameaça”,

acrescentou”. (SOTOMAYOR, Katiuscia; MACEDO, Gustavo Rodrigues. Governo foge do debate sobre a

construção da Usina de Belo Monte. Publicado em 4 dez. 2009. Disponível em:

<http://blogapib.blogspot.com/search?q=tu%C3%ADra>; acesso em 27 abr. 2010). 79

Por e-mail, em 2 mai. 2010. 80

Por e-mail, em 27 abr. 2011. 81

Por e-mail, enviado em 18 abr. 2011. O sobrenome Alencar refere-se a Frei Tito de Alencar, o qual inspirou o

nome e a criação do Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar. A

motivação a que o advogado se refere diz respeito à repentina exoneração sofrida pelos(as) advogados(as) do

EFTA, como segue nas próximas linhas escritas nessa dissertação.

Page 35: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

34

contribuir com o processo de organização em torno da luta pela manutenção do espaço como

um Escritório de Direitos Humanos radicado na práxis da AJP82

.

Iniciou-se um processo de negociação e diálogo com a Assembleia Legislativa do

Estado do Ceará (ALCE) no intuito de esclarecer as atividades do Escritório, seus objetivos, a

especificidade e diferenciação da AJP em relação à assistência integral e gratuita prestada pela

Defensoria Pública do Estado do Ceará, e os meios de melhorar efetivamente seu

funcionamento. Pude estar presente à feitura de parecer apresentado à ALCE83

, em reuniões

com os Movimentos Populares, e na Comissão responsável pela elaboração de um projeto de

Lei institucionalizando o EFTA84

, formada por um representante da ALCE, um da Defensoria

e um dos Movimentos Populares85

.

Nesses meses, a participação nesse processo, como pesquisadora e como sujeito do

campo da Assessoria Jurídica Popular no Ceará na defesa do EFTA, incitou-me a

problematizar, refletir, buscar meios de comunicar de modo mais claro e direto a significância

da AJP86

.

82

“Surpresa ontem no Escritório de Direitos Humanos Frei Tito de Alencar, da Assembleia Legislativa: todos os

funcionários foram exonerados dos cargos, deixando, assim, um ponto de interrogação sobre o futuro do órgão. A

entidade atua há 11 anos na defesa da sociedade contra violações dos direitos humanos, em demandas coletivas

ou individuais de grande repercussão como casos de violência policial, tortura, negação do direito à moradia e

demais causas. [...] “Os motivos das dispensas não foram esclarecidos", afirma a advogada [...]. Nervosa com a

demissão, ela conta que há tempos a estrutura do local estava frágil, faltando computadores, com salários baixos

e pouco apoio político da Comissão de Direitos Humanos, agora presidida pela Deputada Estadual, Eliana

Novaes. "As exonerações foram tão estranhas que nem fomos avisados oficialmente, só atentamos quando vimos

nossa conta do banco sem dinheiro", frisa. Ela conta ainda que membros da Diretoria Operacional da Assembleia

Legislativa lhe informaram que não há possibilidade de retorno dos profissionais e nem a data para retomada dos

trabalhos. A advogada teme abandono das comunidades e perda dos prazos judiciais”. (Informação disponível

em: <http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=943144>; notícia veiculada em 4 de mar. 2011;

acesso em 25 abr. 2011). 83

O parecer contou com o diálogo, revisão, autoria conjunta, assinatura de vários professores(as) e

advogados(as) populares ligados à AJP no Brasil. Ver em: COLETIVO DE ASSESSORES JURÍDICOS

POPULARES. Parecer sobre Pertinência e Legalidade do funcionamento do Escritório de Direitos

Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar da Assembleia Legislativa do Estado do

Ceará (EFTA), 2011. (Disponível em <http://www.portaldomar.org.br/observatorio/portaldomar-

bd/categoria/luta-por-direitos/pertinencia-e-legalidade-do-funcionamento-do-escritorio-de-direitos-humanos-e-

assessoria-juridica-popular-frei-tito-de-alencar-da-assembleia-legislativa-do-estado-do-ceara-efta>; acesso em 04

jul. 2011). Tal processo repetiu-se na busca pela resposta à pergunta: “quais as singularidades e diferenças

apontadas na distinção entre AJP e Assistência prestada pela Defensoria, no que tange, especificamente, a

atuação judicial prestada por assessores jurídicos populares?”. 84

A lei foi promulgada pela Assembleia Legislativa do Estado do Ceará sob o n 14922/11, tendo sido publicada

em 2 (dois) de junho de 2011, e entrado em vigência na data da sua publicação. 85

Participei como representante indicada pelos Movimentos. 86

Falar para/com quem nunca teve contato com a práxis da AJP, juristas ou políticos, foi um exercício de

comunicação e despertou-me para outros aspectos da AJP antes não vislumbrados.

Page 36: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

35

Em uma das últimas atividades de campo, estive presente na manifestação feita por

diversos movimentos em defesa do EFTA, realizada em frente à Assembleia Legislativa87

. No

diário, escrevi:

Disseram-me que havia umas 500 pessoas. Ouvi dizer que a concentração na

Praça da Imprensa foi belo de ver. Assim como a caminhada do povo até a

Assembleia. Quando lá cheguei a comissão de negociação estava reunida.

Receberam a comissão [três] deputados [...]. Os três declararam que cabia a

mesa diretora da Assembleia a decisão de reintegrar as(o) advogadas(o)

exonerados. Da mesa diretora estava apenas [um] deputado. Ele disse que

toda terça a mesa se reunia e que haveria uma reunião as 16h do mesmo dia.

Após o informe dado ao povo todos(as) resolveram ficar, até obterem uma

resposta que, se acreditava, adviria da reunião. Eram homens, jovens, muitas

mulheres e algumas crianças. E eles(as) ocuparam a avenida. A

Desembargador Moreira. Via que dá acesso próximo ao coração empresarial

da cidade: a Aldeota. Eles(as) pararam no sentido praia. O sentido que passa

pelo balão da Praça Portugal, ao lado dos shoppings elitizados da cidade. O

sentido que vai para a Beira-Mar. O sentido para onde seguem a maior

quantidade de carros importados por metro quadrado. Eles(as) pararam. A

tropa de choque passou, olhou, retornou e, dando a volta foi para a esquina

da Desembargador Moreira com Pontes Vieira, e depois mudaram o curso do

transito. [...] Quando retornei a tarde o povo continuava lá. Lona azul

estendida no chão. Crianças brincando no meio da avenida. Três homens

(que lá protestavam) se aproximam e convidam a comissão de negociação a

entrar na Assembleia para obter informações. 17h ela fecha. "E vai que a

gente fica aqui sem saber de nada?". Entraram pedindo para assistir como

ouvinte a reunião. [Souberam que] naquele dia, mesmo sendo terça-feira, dia

em que é ordinária a reunião da mesa diretora, dia em que um dos

componentes da mesa diretora que estava na negociação pela manhã disse

que se decidiria sobre a reintegração das(o) advogadas(o), não haveria

reunião. Combinaram, então, de ocupar a Assembleia. O povo foi entrando,

em pequenos grupos, de mansinho. Até que fecharam a porta, e boa parte

ficou lá fora. Era noite e o povo continuou ocupando a avenida. Do lado de

dentro, ouvia carros fortemente buzinando. O barulho forte de uma chuva

caindo. Do lado de dentro ouvia por telefone as notícias de que o povo estava

dançando ciranda, ou embaixo da lona esperando a chuva passar: ocupando a

avenida, "arredar o pé dali? só com uma resposta!". Era noite. A [Presidente

da Comissão de Direitos Humanos] disse que só receberia três da comissão

[...]. Saio de lá. [...] Quando liguei para saber notícias soube que a deputada

disse que [haveria uma reunião amanhã]. [...] pensei: "será que amanhã será

terça-feira e eles se reunirão?". De tudo que vi, ouvi, vivi, uma cena ficou-

me: a do povo, ocupando uma das maiores avenidas da cidade, do final da

manhã à noite, impedidos de entrar na "Casa do Povo", em defesa de um

Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular, exigindo o

imediato retorno não de advogados(as), e sim, daquelas(e) advogadas(o).

[...]. E ficou-me [...] a esperança... [...] por sentir a profunda força e beleza do

povo dançando ciranda no dia em que a avenida parou88

.

87

“Cerca de quinhentas pessoas participaram da passeata da praça da imprensa até a Assembleia Legislativa. Boa

parte destas chegou a ocupar a frente do gabinete da presidência após 16hs, quando haveria uma reunião da mesa

diretora para tratar a reabertura do Escritório Frei Tito, tendo sido misteriosamente desmarcada. A maioria só

saiu após uma reunião com a Dep. Eliane Novais que sinalizou uma proposta para reabrir o Escritório. Só então,

por volta das 20h, a Av. Desembargador Moreira foi liberada, após 12h de manifestação”. (Informação

disponível em: <http://www.portaldomar.org.br/blog/portaldomar-blog/categoria/noticias/escritorio-frei-tito-

manifestacao-na-assembleia>; notícia veiculada em 7 abr. 2011; acesso em 25 abr. 2011). 88

Escrito em diário em 05 de abril de 2011.

Page 37: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

36

Na trança dos bilros, inicio pelos fios que tecem resistências e reivindicações de

movimentos populares na luta pela terra e pelo território, desfiados na escuta de suas histórias,

falas e canções.

3 HISTÓRIAS, FALAS E CANÇÕES: AS LUTAS PLURIÉTNICAS E

MULTICULTURAIS PELO DIREITO À TERRA E AO TERRITÓRIO EM MEIO

RURAL NO CEARÁ

As incursões em campo puseram-me em contato com diversas realidades,

comunidade de marisqueiras e pescadores, comunidade de agricultores, sociedades indígenas,

trabalhadores rurais sem terra: cada uma dessas populações com suas singularidades e

historicidades fazem emergir questões que lhe são próprias e devem ser consideradas em suas

diferenças.

Essas e outras tantas populações organizam-se em movimentos populares em torno

de suas resistências e reivindicações, e constituem significados de direito à terra e ao território

compreendidos em perspectivas pluriétnicas89

e multiculturais90

.

89

Na compreensão de etnicidade inspiro-me em João Pacheco de Oliveira, para quem “a etnicidade supõe

necessariamente uma trajetória (histórica e determinada por múltiplos fatores) e uma origem (uma experiência

primária, individual, mas que também está traduzida em saberes e narrativas aos quais vem se acoplar). O que

seria próprio das identidades étnicas é que nelas a atualização histórica não anula o sentimento de referência à

origem, mas até mesmo o reforça. É da resolução simbólica e coletiva dessa contradição que decorre a força

política e emocional da etnicidade”. (OLIVEIRA, João Pacheco de (Org.). A viagem da volta: etnicidade,

política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. 2. ed. Rio de Janeiro: Contra Capa/LACED, 2004, p.32;

33). Assim, reflito sobre o que caracteriza a etnicidade com base nas palavras de Manuela Carneira da Cunha, de

acordo com a qual a etnicidade é uma “linguagem que usa signos culturais para falar de segmentos sociais”,

podendo-se entender, ainda segundo a autora, a “identidade como sendo simplesmente a percepção de uma

continuidade, de um processo, de um fluxo, em suma, uma memória. A cultura não seria, nessa visão, um

conjunto de traços dados e sim a possibilidade de gerá-los em sistemas perpetuamente cambiantes. Por

comodidade, poderíamos chamar esta postura de heracliteana. [...] as culturas são entidades vivas, em fluxo”.

(CUNHA, Manuela Carneiro. O futuro da questão indígena. Estudos Avançados, 1994, p. 121; 122; 135.

Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ea/v8n20/v8n20a16.pdf>; acesso em 17 jun. 2011). No Ceará e no

Brasil, etnias organizam-se em diversas sociedades indígenas, por isso o termo pluriétnico. 90

“A partir da década de 1980, [...] as abordagens das ciências humanas e sociais convergiram para o campo

transdisciplinar dos estudos culturais para pensar a cultura como um fenômeno associado a repertório de sentido

ou de significado partilhados pelos membros de uma sociedade, mas também associado à diferenciação e a

hierarquização, no quadro de sociedades nacionais, de contextos locais ou de espaços transnacionais. A cultura

tornou-se, assim, um conceito estratégico central para a definição de identidades e de alteridades no mundo

contemporâneo, um recurso para a afirmação da diferença e da exigência do seu reconhecimento e um campo de

lutas e contradições”. (SANTOS, Boaventura de Sousa; NUNES, João Arriscado. Introdução: para ampliar o

cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para

Libertar: Os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 28). O

Page 38: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

37

Os movimentos populares, inseridos no universo dos movimentos sociais, podem ser

compreendidos como populações ou grupos com pouco ou nenhum acesso aos meios de

reprodução da vida (ou que estão ameaçados de perdê-los) e que se organizam para resistir,

reivindicar, buscar transformar, em torno de compreensões e objetivos comuns91

. Seus modos

de existência possuem fundamentos que, por vezes, contrapõem-se explicitamente (por meio

de seus projetos comuns) ao sistema hegemônico, ou seus modos de vida não só não se

harmonizam como também são vistas como obstáculos ao desenvolvimento desse sistema.

Em se compreendendo que as opressões apresentam-se como múltiplas faces de um

sistema hegemônico, e que confrontá-lo, pois, é buscar romper com uma dinâmica de

violência matricialmente colonial/racista/patriarcal/capitalista/antropocêntrica, que atinge não

só a maioria das populações humanas, como também a biosfera natural, noto que os

movimentos populares, ainda que elejam determinadas “bandeiras de luta”, a elas não se

resumem. Suas pautas políticas conectam-se a muitos satisfatores, por estarem sob essas

múltiplas violências hibridizadas. Ricardo Prestes Pazello compreende que:

[...] movimentos sociais e movimentos populares se distinguem na medida em que os

primeiros aparecem como gênero e os segundos, como espécie. Como todo gênero,

por conseqüência, os movimentos sociais abraçam mais de uma espécie. (...) os

movimentos sociais não necessariamente se vinculam a uma pauta política popular,

ao passo que os movimentos populares têm tal vínculo por pressuposto. Movimentos

populares (ao invés de sociais) devem ser entendidos a partir de uma perspectiva

total, não podendo vincular suas lutas, de forma absoluta, a uma necessidade

específica. Quer dizer, na organização política popular há várias necessidades a

serem satisfeitas (por vários satisfatores). É certo, ainda, que as organizações

termo “multicultural” pretende caracterizar a multiplicidade de populações, em sua diversidade cultural, que

estão organizadas pelo direito à terra e ao território no Ceará e no Brasil. Não para apenas reconhecer essa

multiplicidade e corrermos, talvez, o risco de olhá-las como isoladas em suas lutas e localidades, reafirmando a

cultura etnocêntrica hegemônica como única generalizante. E sim para reafirmá-las como diversos modos de

existência humana, cada qual em permanente ressignificação em sua historicidade e em contatos com múltiplas

culturas em determinados contextos sócio-políticos. Essa multiplicidade pode adquirir sentidos contra

hegemônicos na construção de modos de se contrapor (e propor alternativas) ao sistema do capital hibridizado às

dimensões colonial/patriarcal/racista/antropocêntrica das violências humanas. Para tanto, uma cultura não pode

ser tornada como a única referência sobre as demais. Nasce, assim, o desafio de se pensar, dentre outras

possibilidades, em se constituir ecologias de saberes e concepções interculturais de direitos humanos para

aprender a conviver com a diversidade e a construir em meio à diversidade. (Aqui, inspiro-me em SANTOS,

Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006, p. 137-

163; e SANTOS, Boaventura de Sousa. AÑÓN, Carlos Lema (Trad.). Sociología Jurídica Crítica: Para un

nuevo sentido común en el derecho. Bogotá: TROTTA, 2009, p. 509-541). 91

Ilse Sherer-Warren define movimentos sociais como: “uma ação grupal para transformação (a práxis) voltada

para a realização dos mesmos objetivos (o projeto), sob a orientação mais ou menos consciente de princípios

valorativos comuns (a ideologia) e sob uma organização diretiva mais ou menos definida (a organização e sua

direção)”. (SCHERER-WARREN, Ilse. O caráter dos novos movimentos sociais. In: Uma Revolução no

Cotidiano? Os novos movimentos sociais na América Latina. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 37). A autora

destaca que: “não há, todavia, um acordo sobre o conceito de movimento social. Para alguns, toda ação coletiva

com caráter reivindicativo ou de protesto é movimento social, independente do alcance ou do significado político

ou cultural da luta. [...] No outro extremo encontra-se o enforque que considera movimento social apenas um

número muito limitado de ações coletivas de conflito: aquelas que atuam na produção da sociedade ou seguem

orientações globais tendo em vista a passagem de um tipo de sociedade a outro”. (SCHERER-WARREN, Ilse.

Redes de Movimentos Sociais. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 18).

Page 39: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

38

costumam eleger uma necessidade (ou violência/opressão específica) e erigir sua

bandeira sobre essa especificidade. É o caso, no contexto brasileiro, das mulheres,

dos negros, dos estudantes, dos crentes, dos ecologistas, dos pacifistas, dos

homossexuais e assim por diante. Esse também é o caso dos sem-terra, dos sem-teto,

dos atingidos por barragens, dos indígenas, dos quilombolas, dos pescadores, dos

camponeses explorados, dos trabalhadores aviltados e muitos etcétereas. Ocorre que

entre um grupo e outro de organizações políticas populares (ou movimentos sociais,

abarcando-se as não-organizações) há uma diferença bastante incisiva, ao menos

ainda não ultrapassada no estágio atual das lutas sociais: no primeiro caso, elege-se

uma opressão específica (machismo, preconceito racial, educação bancária...) e, no

segundo, também (falta de terra, de teto, de casa) com o adendo de que neste último

o primeiro está potencialmente incluído. 92

Ilse Scherer-Warren expõe que o “sentimento de uma tripla exclusão relativa –

econômica, política e cultural/ideológica”, instiga a luta desses movimentos por

“reivindicações, as quais são assumidas como um direito”93

. Antonio Carlos Wolkmer

compreende que esses movimentos sociais vêm constituindo no campo jurídico tensões e

conflitos pela concretização de suas reivindicações concebidas como direitos. Wolkmer

compreende que esses novos movimentos atuam não só como fonte de produção jurídica, mas

também podem ser considerados como sujeitos coletivos de direitos. Segundo o autor:

[...] “os novos movimentos sociais” devem ser entendidos como sujeitos coletivos

transformadores, advindos de diversos estratos sociais e integrantes de uma prática

política cotidiana com certo grau de “institucionalização”, imbuídos de princípios

valorativos comuns e objetivando a realização de necessidades humanas

fundamentais. [...] Os centros geradores de Direito não se reduzem, de forma

alguma, às instituições e aos órgãos representativos do monopólio do Estado, pois o

Direito, por estar inserido nas e ser fruto das práticas sociais, emerge de vários e

diversos centros de produção normativa, tanto na esfera supra-estatal (organizações

internacionais) como no nível infra-estatal. [...] A partir de interesses cotidianos

concretos e necessidades históricas, internalizadas por sujeitos sociais que têm

consciência, percepção, sentimento, desejo e frustações, emerge nova concepção de

juridicidade que não se identifica com os direitos estatais consagrados nos códigos e

na legislação dogmática. Impõem-se, assim, não mais um direito desatualizado,

estático, ritualizado e equidistante das aspirações da coletividade, mas “direitos”

vivos [...]. Esses [...] têm sua eficácia na legitimidade dos múltiplos “corpos

intermediários” existentes na sociedade, cabendo a primazia à representação dos

movimentos sociais. É inegável a presença e a interferência dos movimentos sociais

para dar eficácia a nova legalidade, uma legalidade autêntica e autônoma capaz não

92

PAZZELO, Ricardo Prestes. A Produção da Vida e o Poder Dual do Pluralismo Jurídico Insurgente:

ensaio para uma teoria de libertação dos movimentos populares no choro canção latino-americano. Dissertação

(Mestrado em Direito) – UFSC/Florianópolis, Santa Catarina. 2010, p. 295-297. 93

Outros pesquisadores no campo do Direito (dentre outros ramos do conhecimento) percebem os movimentos

populares como fonte de produção jurídica, dentre estes, cito os seguintes PAZELLO, Ricardo Prestes. A

Produção da Vida e o Poder Dual do Pluralismo Jurídico Insurgente: ensaio para uma teoria de libertação

dos movimentos populares no choro-canção latino-americano. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade

Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2010; RIBAS, Luiz Otávio. Direito Insurgente e Pluralismo

Jurídico: assessoria jurídica de movimentos populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-2000).

Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2009;

ANDRADE, Shirley Silveira. O Movimento Popular como Sujeito Criador de Direitos. Dissertação

(Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, 2003. Destaco que não há um

homogeneidade no que tange as conclusões e premissas adotadas por esses(as) pesquisadores(as), ainda que

confluam no que tange à percepção de que o Direito não é monopólio do Estado e que os movimentos populares

criam direitos.

Page 40: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

39

só de redefinir democraticamente as regras institucionais de convivência, mas

também de influenciar, reordenar e alterar os critérios que fundamentam o Direito

Estatal Moderno.94

Investigar a riqueza dessas realidades em sua plenitude é exercício para toda uma

vida de pesquisas e reflexões. Com a despretensão de esgotar o tema, no campo, este sempre

mais revelador e rico do que qualquer pressuposição da realidade, pude colher histórias, falas

e canções desses movimentos, as quais, em conjunto com a realização de pesquisa

bibliográfica, teceram fios para a trança da renda.

3.1 “Vivemos em Curral Velho, mas não queremos viver encurralados” 95

: a luta em

defesa do território e do ecossistema manguezal de um Povo do Mangue96

“De manhã cedo eu fui pra praia rezar, só pra ver os encantado, ô que vem nas ondia

do mar [...], vem jurema, vem manguezá [..], viva a Rainha das Água e o nosso Rei Guajá

[..]”97

.

Ao som dessa canção, inicia-se o vídeo “Manguezais e Carcinicultura: o verde

violado”. As canções, bem como os cordéis e poemas inseridos nessa publicação, falam-nos

do sentir e da sabedoria de populações que vivem no mangue, do mangue e pelo mangue.

Assim, quando ao término da canção, nesse mesmo vídeo, o Pajé diz: “todo encante

do mar, do rio e das água, está entre a Mãe D’água e o Rei Guajá, que tudo é a morada é o

mangue, ele mora nesse mangue, por isso é que nós quer a proteção do nosso mangue”. A vida

do mar, do rio e das águas alimenta-se, em algum momento, de um ciclo que passa pelo

ecossistema manguezal. O Pajé sabe que há muita, muita vida, no mangue! Vida ambiental,

compreendida como vida natural e vida sociocultural.

94

WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo:

Alfa Omega, 2001, p. 121; 153; 158. 95

Fala de um pescador, morador de Curral Velho, referindo-se à implantação de muitas fazendas de criação de

camarão ao redor do espaço onde se encontram casas de moradores(as) de Curral Velho e em áreas de

manguezais . 96

Parte das reflexões sobre Curral Velho presentes nesse item foram feitas em conjunto com Luciana Nogueira

Nóbrega, estando registradas em JOCA, Priscylla; NOBREGA, Luciana. O Direito à Terra, ao Território e ao

Meio Ambiente do povo do mangue. In: WACHOWICZ, Marcos; MATIAS, João Luis Nogueira (Org.).

Propriedade e Meio Ambiente: em busca de sua convergência; e JOCA, Priscylla; NOBREGA, Luciana.

Populações Tradicionais, Território e Meio Ambiente: um estudo sobre a carcinicultura e a comunidade de Curral

Velho - Acaraú/Ceará. XIX Encontro Nacional do CONPEDI, 2010, Fortaleza. In: Anais do XIX Encontro

Nacional do CONPEDI – Fortaleza. Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux, 2010. 97

Canção entoada pelo pajé Luis Caboclo no vídeo contido no DVD CASTRO, Gigi (Org.). Manguezais x

Carcinicultura: lições aprendidas. Fortaleza: Fórum em Defesa da Zona Costeira do Ceará, 2009. Outro trecho

dessa música encontra-se na versão impressa do DVD CASTRO, Gigi (Org.). Manguezais x Carcinicultura:

lições aprendidas. Fortaleza: Fórum em Defesa da Zona Costeira do Ceará, 2009, p. 129, seguido da informação

de que essa canção é da autoria do próprio pajé Luis Caboclo, do Povo Indígena Tremembé de Itarema-Ceará.

Page 41: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

40

Nos últimos anos, todavia, o litoral cearense é um dos lugares mais procurados por

grandes grupos empresariais e pelo Poder Público para a instalação de uma série de

empreendimentos, como resorts, usinas de energia eólica, fazendas de camarão em cativeiro,

complexos industriais e portuários. Embora bastante distintos entre si, esses empreendimentos

apresentam características em comum, dentre estas a ocupação de um território onde já estava

localizada determinada população, na maioria das vezes, tradicional; e uma utilização dos

recursos naturais pautadas na exploração e degradação do meio ambiente.

Ocorre que, ao contrário do senso comum empresarial98

pressupõe, a região litorânea

do Ceará é o lugar em que diversas comunidades indígenas, quilombolas, de pescadores

artesanais, marisqueiras, ribeirinhas e camponesas realizam suas existências, mantendo com

os ecossistemas litorâneos relações de pertença, de subsistência, de atividades tradicionais.

Curral Velho é uma das comunidades de marisqueiras(os), pescadores(as) e

agricultores(as) familiares que podem ser chamados de Povos do Mangue99

. Localizada na

Praia de Arpoeiras no Município de Acaraú-Ceará, é uma comunidade litorânea que subsiste

principalmente da catação de mariscos, da pesca artesanal e da agricultura familiar, atividades

que vêm sendo impactadas com o cultivo de camarão em cativeiro100.

A criação de camarão em cativeiro começou a se instalar em Curral Velho no final

dos anos de 1990 e início dos anos 2000, quando se observou um crescimento mais intenso

dessa atividade no Brasil. A instalação das fazendas e viveiros de camarão em cativeiro seguiu

os moldes do que havia ocorrido em outros locais no Brasil: sem um ordenamento adequado,

com base legal insuficiente para regular a atividade, com incentivos governamentais e

ocasionando impactos ambientais e sociais graves.

98

O modelo de desenvolvimento referenciado na dominação da naturez, na concepção desta como mercadori, na

utilização dos recursos naturais por meio de um hiperprodutivismo/hiperextrativismo e de maneira não

sustentável ambientalmente (nas dimensões natural e social do meio ambiente) caracterizam a prática de boa

parte desses empreendimentos empresariais. Boaventura de Sousa Santos chama-nos atenção para a

racionalidade moderna, criticando-a, dentre outros fatores, por pautar-se em uma relação de (pretensa)

dominação e de consumo desenfreado da natureza e por fundamentar uma ciência moderna que se utiliza de um

saber pretensamente hegemônico e universal, o qual obscurece ou invisibiliza outras formas de conhecimento,

alternativos ao modelo vigente. Como, por exemplo, no caso em tela, em que o modelo de desenvolvimento aqui

citado inicialmente coloca-se como o único modo de desenvolvimento possível (SANTOS, Boaventura de Sousa.

A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006, p. 102, 94 e 97;). 99

A expressão “Povos do Mangue” é conceituada em TEIXEIRA, Ana Cláudia de Araújo. O trabalho no mangue

nas tramas do (des)envolvimento e da (des)ilusão com “esse furacão chamado carcinicultura”:

conflitosocioambiental no Cumbe, Aracati-CE. Tese (Doutorado) – Centro de Humanidades, Programa de Pós-

Graduação em Educação Brasileira/Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2008. 100

Além da carcinicultura, há outros empreendimentos igualmente degradadores do ecossistema manguezal e

desestrururadores do modo de produção e de vida da comunidade de Curral Velho. Alguns(mas) moradores(as)

apontam, entre outras ameaças possíveis, a instalação da energia eólica de modo insustentável ambientalmente e

a pesca predatória. Para conhecer mais a história de Curral Velho na fala de jovens da comunidade, ver o vídeo

disponível em <http://www.portaldomar.org.br/blog/portaldomar-blog/categoria/tv-povos-do-mar/encante-do-

mangue>; acesso em 10 jun. 2011. Ver também <http://curralvelho.blogspot.com/>; acesso em 11 mai. 2011.

Page 42: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

41

Nas narrativas de Curral Velho, os impactos da carcinicultura ocupam páginas e

páginas da memória coletiva. Os trechos a seguir, reproduzidos do poema Rastros na Lama do

Manguezal, de autoria de Maria do Livramento Santos (Mentinha), moradora de Curral Velho,

retratam bem as consequências da carcinicultura para a comunidade:

Pescávamos seus produtos/ Na maior satisfação/ As áreas verdes dos mangues/ Nos

chamavam a atenção/ Hoje eles estão sofrendo/ Com a grande devastação/ [...]/ A

praia sem o seu mangue/ Não tem mais animação/ Não produz e não tem nada/ Pode

até ter furacão/ Pois da costa é o mangue/ A sua maior proteção/ [...]/ Por todo esse

litoral/ Onde os manguezais resistem/ Pescadoras e crianças/ Vivem à vontade e

assistem/ A proteção que eles fazem/ Onde essa cultura existe./ Os bosques de

manguezais/ São feitos por natureza/ Seus produtos, valiosos/ Isso eu digo com

firmeza/ Deixei rastros pela lama/ Contemplando sua beleza./ Porém pela queimação/

Que houve nos manguezais/ Até gamboas soterram/ E elas já não enchem mais/

Sumiram até os peixinhos/ Que dava lá nos currais./ Rastros na lama eu deixo/ Quando

vou no mangue entrar/ Ligeiramente me lembro/ Que espécie vou pescar:/ Será ostra,

sururu/ Ou o caranguejo-uçá?/ Essas espécies, contudo,/ Muitas delas se acabaram/

Sofreram grande ameaça/ Do fogo e do maquinário/ Daí os bichinhos sumiram/ Do

abrigo que é o estuário./ O mangue é uma árvore/ O manguezal, a floresta/ Mas se

instalou dentro dele/ Uma coisa que o detesta:/ A tal carcinicultura/ Que faz dele o que

não presta./ [...]./ Muitos Estados contestam/ A invasão do manguezal/ Mas sem

dúvida, o Ceará/ Tem sido fenomenal/ Resistindo à atividade/ Que destrói o litoral./ O

Brasil muito a saber/ Tem sobre esse ecossistema/ Pro governo ele não é nada/ Pra nós

sempre vale a pena/ Espero que Semace101

e Ibama102

/ Não licencie mais, e aprenda

[...].103

Suas histórias e canções revelam como a chegada da carcinicultura interferiu, de

modo destrutivo, na vida da comunidade, e de como esta provocou o desequilíbrio no

ecossistema manguezal. A pergunta aos(às) moradores(as) sobre o que eles(as) mais sentiram

após a chegada da carcinicultura, faz emergir como resposta consensual, em momentos

diversos da pesquisa, a sensação de serem vigiados(as), a restrição da mobilidade e do acesso

aos recursos naturais providos pelo mangue, bem como a dor pela destruição do ecossistema

manguezal.

Muitos caminhos tradicionais que levavam a população de Curral Velho às áreas de

pesca não puderam mais ser utilizados, haja vista que, com a instalação das fazendas de

camarão, parte considerável da área de manguezal foi cercada. Há vigilantes armados durante

todas as horas do dia, o que levou a uma mudança na dinâmica da comunidade. Os pescadores

passaram a andar em grupos, utilizar acessos mais demorados ao mar e evitar pescarias à

noite.

A gente não tinha assim um local certo pra entrar nesse mangue, a busca do nosso

produto, dos produto natural, né. Aonde chegava entrava a qualquer hora, em

101

Superintendência Estadual do Meio Ambiente (SEMACE). 102

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). 103

SANTOS, Maria do Livramento. Rastros na lama do manguezal. Curral Velho, Ceará, 06 nov. 2005. Para

ver vídeo sobre Curral Velho narrado por Mentinha, declamando um de seus cordéis, ir em

<http://www.youtube.com/watch?v=fJpYvIudjB4>; acesso em 23 jun. 2011.

Page 43: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

42

qualquer lugar, saia pra onde queria, não tinha nada que impedisse a não ser a maré,

né, que tivesse cheia, aí quando esse povo chegaram a gente já começou a perceber

que ia mudar porque eles ia tornar o nosso mangue, uma área livre, em propriedade

privada, e adepois de tá sendo privatizada, aí, ia aparecer dono, e esse dono ia

impedir que a gente andasse dentro.104

Moradores(as) entrevistados(as) ainda denunciam que as atividades tradicionais que

desenvolvem em Curral Velho estão sendo ameaçadas. O artesanato diminuiu bastante com o

desmatamento da matéria-prima, os carnaubais. Os(as) moradores(as) informam que “as ilha

de carnaubeira de onde as mulheres tiravam os espinhos, as palhas, os urus para fazer

artesanato foram derrubados para dar lugar aos viveiros”.

As pescas e a mariscagem também sofreram e sofrem com a mudanças na quantidade

e qualidade do pescado, aterramento das gamboas, poluição do mangue em razão do

lançamento dos resíduos da carcinicultura, desmatamento de áreas de mangue, poluição de

mananciais de água potável, salinização do solo. Hoje, os pescadores afirmam que “a gente

tem que ir pescar é lá pro mar lá dentro, pra mais de 30 braços, 40 braços, adonde pega algum

peixe de linha, de anzol, né. Porque aqui na beirada mesmo do mar não tem mais nada aí não”.

A agricultura, por sua vez, é impactada com a salinização dos mananciais

subterrâneos (cacimbas e poços artesanais). As falas de moradores(as) comunicam que “a

água que penetra na gamboa mata os peixes, onde antes existia muito, hoje nem siri tem mais,

pois a água envenenada penetra na gamboa e mata até as ostras”.

Em algumas casas, o quintal fica bem próximo aos tanques de criação de camarões.

Com a falta de tratamento adequado e a impermeabilização do solo, os resíduos tóxicos

resultantes da carcinicultura atingem os terrenos próximos, provocando um aumento na

quantidade de sais. Isso levou à improdutividade das terras utilizadas para plantio de feijão,

milho, mandioca e outros, localizadas próximas aos criatórios de camarão. Um dos moradores

contou-me que

Os cercado que dava essas fartura, bananeira, melancia, tudo, acabou-se tudo,

salgou-se tudo, aí todo mundo perdeu os quintal, os vários coqueiro, né, e tudo por

causa disso, porque a parede do viveiro, o canal que corre a água por exemplo passa

bem pertinho, né, e a água penetra no terreno e aí salga o terreno e aí vai matando as

planta.

Caminhando por Curral Velho percebi a nítida diferença entre as casas próximas às

fazendas e as que se situam mais afastadas. Em uma das casas de um velho casal de moradores

fui convidada a conhecer o quintal. No chão, próximo à rede de pesca e outros instrumentos,

uma árvore de siriguela chamou-me a atenção. Após dizer que não comia a fruta há tempos, a

104

Fala de um(a) morador(a) de Curral Velho.

Page 44: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

43

senhora que lá morava deu-me uma boa quantidade. Logo na primeira mordida, achando o

gosto estranho e salgado, disse “essa siriguela é um pouco salgada, né?”. “É por causa disso aí,

menina”, disse a senhora, apontando para a grande e extensa parede de uma fazenda que se

encontrava a poucos metros do quintal da casa, dizendo mais: “desisti de plantar mamão aqui,

só nasce salgado, e nunca vi mamão salgado não...”. E continuou, descrevendo: “tinha um

mangue aqui, um mangue aqui quando era de manhã, o mangue aqui tinha era era tanto do

caranguejo, era tanto do caran, ói, era tanto do caranguejo, tanto do caranguejo, caranguejo,

marifarinha, tudo que é aí nesse mangue era verméin”.

Nessa mesma oportunidade, seu marido, após mostrar os instrumentos que utiliza

para pescar, apontou para o mesmo muro e disse: “antigamente era só descer aqui e ir pro mar,

hoje não, com isso aí [apontando para o muro] tem que dar uma volta danada” e “quando

queria dizia, minino eu vou já já ali, era só atrevessar aqui e agora vai vai atrevessar pra saber

se num come bala...”. Mais tarde, ao explicar por que os currais (de peixe) ficavam velhos

cada vez mais rápido, disse que “quando o mar tá zangado bota tudo pra fora” e que o mar

ultimamente está assim, “está valente”, porque andam “zangando com ele” e que isso “é

porque tem tanta gente que não tava já aqui, que aí Deus, Deus tá mandando o mar judiar com

eles também e com nóis também um bocado, né?”. Ao ser perguntado se o mar era mais calmo

antes da implantação das fazendas de carcinicultura, prontamente respondeu: era.

Outra casa, esta abandonada após a chegada da carcinicultura, marcou-me como

exemplo da degradação. Ao ver o muro rachando, o quintal com lixo e córregos sujos, perguntei

a um jovem que lá morava antigamente por que a casa estava assim. Ele respondeu que era o

“salgado da carcinicultura que vem do chão”, e começou a apontar “ali a gente criava galinha,

ali era um criatório de peixe, ali minha mãe e meu pai plantavam [...]”. “E esse tanto de lixo no

chão?”, perguntei. “Antes num era assim não, olha lá, nas outras casa tá tudo assim”, disse-me

ele. Olhei e vi lixo acompanhando a cerca que separava algumas casas próximas (também em

estado de deterioração) da mesma fazenda cujo muro avizinha o quintal da casa do velho casal

de moradores. Diante dessa realidade, uma resposta deles dita em um grupo focal veio-me à

mente, como uma reafirmação dos(as) moradores(as) de pertença ao lugar:

[Pesquisadora] - E com tudo isso, vocês tem vontade de sair daqui?

- Eu não.

- Eu, eu, eu, eu, eu daqui só saio pro cemitério.

- E eu.

Visitando a casa de moradores(as) de Curral Velho e caminhado pelas ruas mais

afastadas das fazendas o cenário era completamente diferente. As ruas eram limpas, as casas

bem conservadas, e os cocos, assim como outras frutas dos quintais, eram doces.

Page 45: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

44

Durante as atividades de campo realizadas, pude constatar que em Curral Velho há

fazendas de cultivo de camarão em cativeiro tanto em área de vegetação densa de mangue, nas

margens das gamboas, como principalmente em área de apicum, local de vegetação rasteira,

que exerce importante papel nas relações de troca de energia com as demais unidades da

paisagem manguezal.

Para a comunidade de Curral Velho, a área do apicum é um local de grande

relevância socioambiental. Além de utilizado como via de acesso ao mar e a outros locais do

ecossistema manguezal, os mariscos que vivem no apicum são a base alimentar da

comunidade, como descreve um pescador:

[...] na época que houve um deputado que vêi questionar cum nois, que até hoje eu

tenho raiva dele porque ele disse isso, que qual era a serventia que tinha, desse

salgado aqui, uma área de apicum, [...] ele disse que... Que serventia tinha esse

salgado? Num tem pra ele que num tem pricisão, mas que aqui, aqui foi que criou,

que sustentou muita gente e vive sustentano, porque? [...] Os maçarico, essas

avezinha que tem por aí... Eles mariscam aí nesse salgado, na maré seca. Os peixe,

que vem comer lá esses caranguejim desse tamanho assim eles vem comer aí,

quando a maré é grande eles vem comer aí nessa beira desses, disso aí. Então, eu

acho que isso aí tem muita serventia, pode num ter pra ele que é rico, não tem

contato com a natureza, tem com o dinheiro dele, é poderoso, e também num tem

pricisão de graça disso aqui [...], mas que pra nois tem, tem muita serventia [...].

Consoante o narrado pelos(as) moradores(as) de Curral Velho, nas épocas de maré

grande, a área do apicum se enche de peixes e mariscos, facilmente capturados pelos(as)

moradores(as), renovando a flora e a fauna do local. Esse é um dos momentos mais

importantes para o grupo, quando crianças, idosos e adultos se reúnem em torno do apicum.

Por tudo isso, há plena convicção de que o apicum é componente do ecossistema

manguezal, sendo uma área de domínio de marés, necessitando, portanto, de proteção e

cuidados. O grupo partilha de uma forte consciência ecológica do funcionamento do

ecossistema manguezal, expressando uma interligação da preservação do mangue com a

sobrevivência dos produtos dos quais dependem para viver.

Conforme identificado pela comunidade de Curral Velho, a carcinicultura é uma

atividade socioambientalmente insustentável, pois desestrutura e inviabiliza o modo de vida

da população local, desconstituindo a teia da vida do manguezal. Ao interferir no meio-

ambiente, como meio natural e meio cultural, essa atividade desconsidera a complexidade das

relações de interdependência que a comunidade de Curral Velho mantém com o ecossistema

manguezal. Isso se fez ainda mais perceptível quando os(as) moradores passaram a contar

como a chegada da carcinicultura afetou o modo de vida dessa comunidade105

.

105

A carcinicultura, pela sua prática de degradação, não atende ao art. 1°, §2°, II da Lei n° 4.771, de 15 de

setembro de 1965 (Lei do Código Florestal), que define o ecossistema manguezal como área de preservação

Page 46: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

45

- Umas das veiz que a gente chegou lá naquela área acolá, [...], acho que umas cinco

horinha da tarde... [...] aquele povo queimando o mangue, carnaubal que não existia

mais, aquilo me deu uma tristeza tão grande, eu chorei, chorei...

[Pesquisadora] - O que que tu sentiu [...]?

- Ai eu senti uma coisa tão estranha, resolvi escrever Lamentação no Manguezal [...].

Eu, eu escrevi o texto Lamentação do Manguezal porque? Porque eu vi o mangue

chorando, o mangue chorando, cê tirar o mangue verdim naquela hora e jogar dentro

do fogo, aí a aguinha do mangue chega iscorria, aí meu Deus aquilo me deu uma

tristeza.

[Pesquisadora] - E o que que tu sentiu contigo assim?

- Ai minha gente, eu num gosto de lembrar não, se não eu vou chorar também...

[Pesquisadora] - Parecia que era uma coisa contigo?

- Era muito estranho, claro. Era, aquilo era como se fosse um bocado de... cada

galhinho daquele era como se fosse cada um de nóis porque aquela água era o

sangue, é como se fosse um sangue iscorrendo daquela, viu? Aí você olha, chega lá,

tão pouco tinha, mas tinha carnaubal tinha tudo e no dia depois você foi e num tinha

mais nada, [...] gente tá entendendo? Se vocês tivesse vivido aqui com a gente nesse

período, graças a Deus que vocês num tava viu? Eu num sei como era, era, era, era

triste a situação triste.

Ante tal compreensão partilhada, a comunidade de Curral Velho mobilizou-se desde

a chegada da carcinicultura, organizando ações que expressam o sentimento de defesa de seu

território e do ambiente que lhes provê a vida:

Bem, a gente começou a se organizar a partir do é... a gente via o desmatamento, via

e ninguém num sabia como é... né, as pessoas iam cortando e queimando dentro do,

manguezal, e aí a gente vinha na comunidade e dizia: ó, tá acontecendo isso, desse

jeito, é aí o que é que nós vamo fazê? Aí a gente saiu nos cochicho, cochichando uns

com os outros, né? Pra gente podê fazê alguma coisa. Era homem, era mulher,

criança, jovem. A gente falava: olhe o que é que nós vamos fazê, o que é que nós

temos que usá? A gente se mobilizava, todo mundo tinha uma hora pra gente saí,

hora prá chegá, quais eram as nossas armas que a gente tinha que levá. Aí todo

mundo se empolgou e a gente enfrentou a luta mesmo assim, dura. Ameaçavam nós,

sempre tinha um momento que a gente foi ameaçado de morte, homem e mulhé, a

gente levava facão, foice, pau, não no intuito de matar ninguém, mas sim pra

defender o que era nosso. Foi assim talvez num período de uns quatro anos direto.

A primeira coisa que a gente fez foi chamar a pessoa que vinha se aproximando

através do nosso mangue né, atrás de invadir, melhor dizendo, a gente chamar ele pra

uma conversa, pra uma negociação, aí ele veio, conversou com a gente, prometeu de

não fazer nada na nossa área de manguezal né, não invadindo, ia utilizar só o salgado

líquido, e aí nesse pouco que acomodou foi que ele se fez. Então quando a gente

acordou um pouco viu que o negócio tava mesmo demais aí a gente foi pra agressão

mesmo, né? Derrubamo cerca, a gente destruiu algumas máquina deles, né, essas

coisas né, teve a coisa meia feia. Aí foi quando entramos na justiça através das ONG,

aí foi que parou mais um pouco, mas, parou assim entre aspas, mas eles continuam

sempre, atacando sempre o nosso mangue aqui, nas outra comunidade, às vezes aqui

mesmo aqui. A gente não pode dar assim uma luta por vencida. A gente continua em

alerta por que a gente continua nesse período de que a ganância tá falando mais alto

permanente, pois não preserva os recursos, o solo, a biodiversidade, os fluxos; e desestrutura e inviabiliza o

modo de vida e a sustentabilidade das populações humanas, sendo inviável, assim, sua instalação em área de

ecossistema manguezal considerada em toda a sua extensão, agregando-se ao mangue o apicum e o salgado.

Estudos diversos apontam a inviabilidade da atividade de carcinicultura em ecossistema manguezal, incluídos,

nesse conceito, o mangue, o apicum e o salgado. Confira em INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO

AMBIENTE E DOS RECURSOS RENOVÁVEIS (IBAMA). Diagnóstico da carcinicultura no Estado do

Ceará, relatório final. Diretoria de Proteção Ambiental (Dipro), Diretoria de Licenciamento e Qualidade

Ambiental (Diliq) e Gerência Executiva do Ceará (Gerex-Ce). Vol. I, 2005.

Page 47: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

46

né, do que a solidariedade. E, essa tal carcinicultura ela vem mesmo pra destruí a

natureza.

Os(as) moradores(as) de Curral Velho passaram a defender os direitos que

consideram como sendo seus: direito à terra, ao território e de acesso aos recursos naturais do

mangue, motivados pelo sentimento de defesa do ecossistema manguezal e do seu modo de

vida e produção inter-relacional com o mangue.

A fim de compreendermos melhor essa relação e os significados que os moradores de

Curral Velho atribuem ao direito à terra e ao meio ambiente, é preciso conhecer um pouco de

sua história106

.

Na história oral partilhada pelos membros da comunidade, não há referências

expressas sobre quando surgiu a comunidade de Curral Velho. Muitas pessoas com as quais

conversamos tinham um discurso comum, ao dizer que seus avôs/avós contavam que os

avôs/avós deles(as) já tinham nascido ali. O que se sabe é apenas que o grupo vive no local há

muito tempo, sendo netos(as), bisnetos(as) dos(as) primeiros(as) moradores(as):

Eu não sei em que ano a comunidade se formou, mas com certeza ela tem quase uns

duzentos anos.

Eu já tenho 76 anos. Quando eu me entendi, eu já conhecia meus avós tudo véi. E

eles já tinham nascido aqui.

Nós não, mas antigamente morava muito índio aí nessas terra.

Nossa comunidade não sabemos de onde vem, nós só sabemos que nós somos

descendente das primeiras pessoas que moraram aqui.

Embora não se tenha gravado na memória a origem do grupo, um fato foi apontado

durante as entrevistas realizadas como marco inaugural da comunidade:

A nossa comunidade, ela surgiu com o nome que ela recebeu, Curral Velho, segundo

a nossa pesquisa dentro da comunidade com os mais antigos [...]. Nós tínhamos um

senhor chamado Chico Salomão que já morreu com 92 anos, e esse senhor falou que

Curral Velho teve esse nome por causa dos currais de pesca, um tipo de material que

se usa na área da pesca. [...] esses currais, tem uma época, que eles ficam velhos, ele

cai, o mar derruba, né, aí os pescadores tiram ele de dentro d’água, põe no seco e vão

reformar novamente o material velho e vão utilizar outros novos. [...] então quando

nós viemos ao mundo, já viemos sabendo que já existia esse nome, que a nossa

comunidade já era Curral Velho.

Interessante é perceber que, para a comunidade, o batismo com o nome de Curral

Velho constitui-se no fato identificado como inaugural para o grupo. Isso é revelador, pois o

nome tem estreita relação com as atividades exercidas pela maioria dos moradores de Curral

Velho: a pesca artesanal e a mariscagem. Nesse sentido, o marco criador da comunidade

(momento em que ela recebeu um nome) é também um reforço a uma identidade do grupo,

ligada à atividade tradicional que desenvolvem.

106

Os poemas, cordéis, músicas e paródias produzidos por alguns membros da comunidade são importantes

registros da história oral de Curral Velho.

Page 48: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

47

A pesca, realizada em barcos ou jangadas fabricadas na própria comunidade ou em

Acaraú, é feita nas áreas de mangue ou em mar aberto, utilizando linha, anzol e os currais, que

são estruturas de madeira, cordas e naylon entrançados para capturar peixes, lagostas e

outros107

.

Paralela a essa atividade, a comunidade vive da catação de mariscos (caranguejos,

siris, ostras, búzios) e da agricultura de subsistência. A batata, o milho e o feijão são os

principais produtos cultivados pelo grupo. As atividades não são excludentes, sendo possível

que um(a) pescador(a) também seja agricultor(a): “tem pessoas que vivem mesmo diretamente

da pesca, mas tem pessoas que vive das duas função: pesca e agricultura”. Os(as)

moradores(as) relatam que, nos quintais de muitas casas, plantavam melancia, mamão,

siriguela e verdura. E apontam locais na comunidade utilizados para o plantio:

Bom, prá cá é nossa área de pesca. Daqui pra lá onde vocês foram prá cu lá tudo é

pesca. Pra cá é agricultura. Inclusive pra onde tem esses coqueirais aí pra esse lado é

onde se encontra a roça, coqueiro, é onde planta a batata.

A vida antes da implantação das fazendas de camarão em cativeiro é narrada no

cordel “História de Curral Velho”, de autoria de José Edson, morador de Curral Velho:

A história de Curral Velho/ É mais ou menos assim/ De um povo respeitoso/ Em que

nada era ruim/ E ninguém se preocupava/ Que alimento não faltava/ Pro comer dos

buchudinho/ Eu falo mesmo é assim/ Pela liberdade que tinha/ Na cata do

caranguejo/ Gente ia e gente vinha/ Quando alguém distanciava/ Sempre a colega

gritava:/ Cadê tu, ô amiguinha?/ Havia muita sardinha/ Lá na pesca de curral/ O que

ainda é uma cultura/ Muito tradicional/ E a pesca de canoa:/ Eita, pescaria boa!/

Onde o gelo era o sal./ Para alegria geral/ Tinha a ostra e o aratum/ A intã e o sururu/

Pata larga e o guaiamum/ Tudo tinha à vontade:/ Era tanta a quantidade/ Que vinha

até pro apicum!/ E era pra cada um:/ Ninguém tinha cara feia!/ Ia pras casa um do

outro/ Sentava era na areia/ E aquele mais idoso/ As histórias de trancoso/ Contava

na lua cheia/ O caneco de aseia/ Era enfiando num pau/ A geladeira era um pote/ O

armário era um girau/ Guarda-roupa nem se fala:/ Era baú ou uma mala/ Feita de

couro ou de pau/ E tudo era normal/ Era só satisfação/ Nas gamboa, além do peixe/

Tinha muito camarão/ E o fazer artesanal/ Da palha do carnaubal/ Virava até

profissão/ Tinha os sambas, as tertúlias/ Isso também já existia/ Começava noite

cedo/ Ia ao amanhecer do dia/ A luz era a divina/ Ou o claro da lamparina/ Porque

não tinha energia [...]. 108

O cordel narra um período de muita fartura. Ostras, peixes, caranguejos, camarões,

sardinhas existiam em muita quantidade, o que assegurava alimentos suficientes para todos os

107

O conhecimento necessário para a feitura dos currais é partilhado entre os membros da comunidade, sendo os

mais novos ensinados, por exemplo, a trançar a rede de naylon. O modo como as redes são trançadas depende da

posição que elas assumirão nos currais: se ficarão na parte de cima, os espaços entre os nós são maiores,

permitindo que elas suportem os ventos; se ficarão mais embaixo, os espaços são menores, de modo a evitar que

algum peixe ou lagosta escape. A captura de peixes, lagostas e outros pescados aproveita o movimento da maré:

na maré cheia, os peixes são conduzidos aos currais, ficando presos quando é época de maré seca. 108

EDSON, José. História de Curral Velho. Curral Velho, Ceará, 26 jul. 2008.

Page 49: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

48

membros do grupo. Muitas falas contam que era tanto peixe que se dividia com as outras

pessoas da comunidade.

Durante as entrevistas, os(as) moradores(as) também identificaram o período que

antecedeu à chegada da carcinicultura como um período de muita tranquilidade:

Pra nós aqui, antes da carcinicultura a gente vivia super despreocupado, né,

sossegado, cada um vivendo a sua vida como pudesse, é... todo mundo era primo,

amigo, irmão, sobrinho, tio, todo mundo era família, né, e somos família ainda, pelo

menos acho que todo mundo é [...].

A liberdade que se tinha antes da instalação dos viveiros de camarão em cativeiro é

evocada em diversas falas, que remontam a uma noção de liberdade muito interligada à

compreensão do território: a liberdade de ir e vir, de entrar e sair pelos caminhos do

manguezal. Os(as) moradores(as) dizem que

Porque a gente... Porque a gente é pescador, né? E sempre a gente tem que passar

dentro... Às vezes tem pesca que a gente tem que entrar na área de mangue pra

pescar, por exemplo, se eu for pescar o caranguejo dentro do mangue eu tenho que

passar pelo mangue, né?

E aí, a gente não tinha assim um local certo pra entrar nesse mangue, a busca do

nosso produto, dos produto natural, né. Aonde chegava entrava a qualquer hora, em

qualquer lugar, saia pra onde queria, não tinha nada que impedisse a não ser a maré,

né, que tivesse cheia [...].

No que tange especificamente à relação entre o espaço em que vivem e o direito de

propriedade estatal, as narrativas indicam que não havia uma preocupação prévia dos(as)

moradores(as) em ser proprietários das terras que ocupavam e utilizavam para suas atividades

tradicionais. Não havia o intuito de titularizar as terras:

A gente vivia na tranqüilidade, nós num tinha esse problema de dizer assim eu vou

no INCRA, segurar essa parte de terra aqui porque sei que pode mais tarde alguém

querer tomar, não, nós num tinha essa preocupação. E principalmente na área de

manguezal, né?

De modo a compreender melhor essa relação com o território, a questão da

propriedade e da titularidade da terra foi retomada. Em um grupo focal realizado, emergiu o

diálogo seguinte:

[Pesquisadora] - Vamos supor que amanhã chegasse uma pessoa aqui com um papel

na mão, um papel passado no cartório e tudo, dizendo que isso aqui tudinho é dela

porque ela descobriu que herdou de um antepassado dela é..., há duzentos anos atrás.

Tá aqui o título da terra, quê que vocês diriam pra essa pessoa? Ele diria que ele era

proprietário da terra pra vocês que vocês tinham até tal dia pra desocupar a terra.

Que é que vocês diriam pra essa pessoa?

- Aí, ia ter guerra de novo...

- O que que nóis dizia pra ela?

- Ela num ia entrar não...

[Pesquisadora] - Vocês acham que um papel é o que faz com que a pessoa seja dono

da terra? O quê que faz com que a gente tenha uma terra?

- Porque faz muito falso, papel tem em falso, a pessoa...

Page 50: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

49

[Pesquisadora] - Mas vamos supor que esse papel fosse verdadeiro. [...] vamos

supor, imaginação né, que o papel não era falso, que o papel diante do Estado, num

tô falando diante da natureza, num to falando diante de Deus, mas diante do Estado

brasileiro, das leis do Estado, esse papel é verdadeiro, ele realmente é o dono da

terra, aí vocês percebem que ele é o dono da terra porque tá no papel, ele tem o

título, [...] aí [...] o quê que vocês fariam? O quê que vocês diriam?

- Pronto. A gente teve um dos ataques que a gente fez lá na [fazenda de

carcinicultura], e, e se num me engano era o dono da empresa que tava com um

documento de posse... porque disse que tava se apossando: Táqui o documento,

táqui, táqui. Deixa nóis vê aqui esse documento, puxamo da mão dele e rasgamo.

[risos de todos]

[Pesquisadora] - Mas mesmo que fosse verdadeiro?

- Mermo que fosse verdadeiro...

- Nóis pegava o papel e rasgava também...

- O dono da terra mora aqui há muito tempo...

- ... num sabe nem se ela existia, vem tumar uma terrinha que é nossa há muito

tempo...

- [...] Porque todo tempo a gente considero essa comunidade como dona, [...] aqui

tudo a gente considero tudo como dono, nóis somo dono [...]. Ninguém nunca

resistrô, ninguém nunca achou que ia ser atacado dessa forma, num ia...

[pergunta] - O papel era importante pra vocês? O que é mais importante que o papel?

- [...] eu acho que mais importante do que o papel é você acreditar e saber que tem

certeza que você realmente é que tem direito porque o direito dá direito né? Se, se o

direito deu direito pra ele, que num era nem da comunidade, porque que num dá

direito a comunidade que era dali. Então, é direito pelo direito ta entendendo? E, o

papel nessa hora num vale mais do que o direito, é, é como nós moradores, porque

realmente a gente somos espelhos e somos, somos exemplo, e somos mais do que

um papel tá entendendo?

Nessas falas, expressa-se um conflito entre a tradição jurídica brasileira e o sentido

de Direito que emana da comunidade de Curral Velho. Nossa sociedade é uma sociedade em

que os papéis assumem performances, ou seja, representam relações, direitos e decisões. Os

papéis, no Direito Estatal, são performáticos. Essa característica da nossa sociedade é

questionada. Para a comunidade de Curral Velho, não é o papel que confirma o título de

propriedade. São outros elementos que não estão escritos dos quais surgem o direito à terra, tais

como as relações de pertença que a comunidade detém com o território e uma absoluta

consciência de que o Direito lhes dá direitos.109

109

Tratando de problemática semelhante que envolve uma característica da historiografia tradicional, qual seja,

de não reconhecer a cientificidade da história oral, adotando como únicas fontes as escritas, João Pacheco de

Oliveira observa que: “(...) o Brasil se constituiu como ponto de convergência de grupos populacionais oriundos

de três continentes, portadores de grande diversidade cultural interna. Tanto indígenas americanos quanto aqueles

provindos do continente africano são grupos de tradição oral: suas histórias constam não em códices escritos,

mas sim de uma memória apreendida, exercida e reelaborada coletivamente. O processo de conquista e

colonização estabeleceu entre esses três grupos uma relação assimétrica de poder. A verdade se tornou

monopólio dos grupos de origem européia, expressando-se por meio da escrita. Apesar de todas as

transformações ocorridas na sociedade brasileira, nota-se a persistência de traços do pensamento colonial quando

se continua a atribuir status de verdade somente a documentos escritos, em detrimento da tradição oral. Desse

modo, privilegia-se a forma de registro histórico proveniente de apenas um dos continentes, desprezando o aporte

oriundo dos dois outros grupos formadores da nacionalidade. Ao historiador – e especialmente ao antropólogo –

cabe conduzir uma crítica da naturalização dessa lógica etnocêntrica e explicar as escolhas políticas que ela

supõe”. (OLIVEIRA, João Pacheco de. Os Caxixó do Capão do Zezinho: uma comunidade indígena distante da

Page 51: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

50

Mesmo com a instalação das fazendas de criação de camarão em cativeiro, o

sentimento dos(as) moradores(as) de Curral Velho com relação ao território, não mudou. Foi,

antes, reforçado. A fala seguinte ilustra essa afirmação:

A gente sente que essas terras são da comunidade porque a gente nasceu e encontrou

a gente considera nós como dono. Porque naqueles tempo a gente num tinha,

segundo que eu nunca vi, nenhuma perseguição aqui na nossa área, pode ter

acontecido em outros lugares, né? Mas aqui pra nós ninguém ouviu falar em

perseguição de terra, principalmente de manguezal, ou apicum, pessoas querendo

implantar isso na área de mangue ninguém nunca ouviu falar.

Embora haja um sentimento de que a área de manguezal pertence à comunidade, esse

sentimento não tem correlação com a ideia de propriedade como se encontra definida na

dogmática jurídica. Para esta, a propriedade é um direito exclusivo do titular de usar, gozar e

dispor da coisa. Para a comunidade de Curral Velho, no entanto, não há relação de

exclusividade com o território. Bem como o uso do território, para eles(as), pressupõe uma

obrigação de cuidado para com a natureza.

Aqui na comunidade, o manguezal não é utilizado só pela comunidade de Curral

Velho, várias comunidades se beneficiam de algum, de alguns produtos né aqui, aqui

dentro do mangue, com o sururu, o peixe nas gamboa, o caranguejo, a maria-farinha,

que é uma espécie de caranguejo, mas que é diferente. E, são esses os produto que é

utilizado nesse mangue e é esses o produto que nós pretende preservar porque serve

pra nossa alimentação, né? Então vêm várias comunidades se beneficiar aqui nesse

mangue, até mesmo da própria cidade, né, do Acaraú, vem de Caruaçu, vem de

Jeritianha, até bem distante, né, bem distante daqui.

A gente tem um sentimento de que o mangue é nosso. Não assim porque eu comprei

e fiquei é meu né? Porque a gente... é, é, a natureza. A natureza eu acho que, se você

nasceu e se criou ali, sabendo que você é filho daquele pai que fez aquela casa, né?

Então você tem que defender a sua casa junto com seu pai, sua mãe, seus irmãos, né?

Você num nasceu num foi ali debaixo daquele teto? Então você tem que defender ali

junto com a família. E, porque a gente nasceu e se criou vendo nossos pais pescar,

derramar o suor pra dá sobrevivência a nós, eu acho que área de marinha num tem

dono, o dono é a nação, é a natureza e eu acho que a gente deve cuidar, respeitar,

né?110

Em outras ocasiões, aflora essa relação não privatista e não exclusivista com o

território que ocupam. No mangue, um dos moradores de Curral Velho, ao encontrar um

homem mergulhando no rio, observou com curiosidade e o mostrou para o grupo: “olha lá”;

no entanto, ao ser perguntado sobre o que estava o homem a fazer, o morador deu de ombros e

disse “pescando”, novamente perguntei “é gente de vocês?” e ele respondeu com tranquilidade

“não é não”. A reação das demais pessoas do grupo (de Curral Velho) que nos acompanhavam

imagem da primitividade do índio genérico. In: SANTOS, Ana Flávia Moreira; OLIVEIRA, João Pacheco de.

Reconhecimento étnico em exame: dois estudos sobre os Caxixó. Rio de Janeiro: Contracapa, 2003, p. 152). 110

Falas de moradores(as) de Curral Velho.

Page 52: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

51

foi de curiosidade, no sentido de buscar saber quem era, e de naturalidade, como se aquilo

fosse um fato corriqueiro111

.

As falas do grupo e as observações permitem-me compreender que as diversas

comunidades que se beneficiam do mangue que fica em Curral Velho o empregam também de

forma não predatória. Há a permissão para que todos pesquem e catem mariscos, desde que

mantenham com esse ecossistema uma relação de cuidado e respeito.

Conviver e caminhar com alguns(mas) pescadores(as) e marisqueiras de Curral

Velho provocou-me o esforço em compreender a relação que vivenciam com a natureza

circundante, o sentimento de pertença ao mangue, e a percepção deles, que aflora em falas,

gestos e olhares, do direito que têm àquela terra em uma imbricada tessitura com a defesa da

vida natural que os alimenta e da qual sentem fazer parte.

Certa vez, na terceira visita que fiz a Curral Velho, caminhando com um morador e

uma moradora pelo mangue, eles iam mostrando os tipos de vegetação, os animais e seus

modos de reprodução, além de me contarem histórias do lugar. Carregando uma máquina, ia

tentando filmar. Contudo, meus pés iam pisando com tanta estranheza e meu olhar via tão

pouco que as imagens que captei não traduziam a riqueza dos lugares por onde passei. Percebi

isso pelo seguinte: após filmar um tempo pedi para o morador filmar o que ele gostava mais no

mangue. A diferença das imagens, entre o momento em que filmava e ele, eram marcantes,

como entre o borrão de imagens distorcidas e a riqueza de quem olha e percebe as belezas

nítidas e escondidas de um lugar que conhece há tempos.

Em outras ocasiões de caminhada ou de barco pelo mangue, a música “Portal do

Mar” era entoada entre silêncios e diálogos. Ainda que essa canção não tenha sido criada,

diretamente, pela comunidade, é como se essa música ressignificasse e fortalecesse o sentir pelo

mangue112

. Em passeio de barco por uma das gamboas de Curral Velho, passando ao lado de

uma fazenda de criação de camarão, onde mostraram com felicidade e orgulho maria-farinha,

peixes e alguns camarões que pulavam ao redor do barco, ao mesmo tempo em que nos falavam

da forma como a fazenda despejava água dos viveiros e matava a vida do mangue, a canção,

espontaneamente, se fez cantada baixinho pelo grupo:

Não mangue de mim, não mangue, sou mangue vou lhe contar./ Não mangue de

mim, sou mangue, por feio me querem dar./ O caranguejo que na praia você come, o

111

Nesse dia encontrava-me com Luciana Nogueira Nóbrega e Luiz Gama. 112

Demonstram conhecer o ritmo dos ciclos de reprodução da natureza e respeitá-lo. Falam bem-humorados

sobre o modo como a maria-farinha adora uma festa, que basta fazer barulho em uma lata e cantarolar ou

assoviar para ela vir correndo para dentro da lata. Uma das pessoas diz que elas (maria-farinha) são “tão

boazinhas que vem para nos alimentar”. Nesse momento, ressaltam que se alimentam apenas daquelas que não

são fêmeas em fase de reprodução ou muito pequenas. Dizem que “a gente dá pro mangue e o mangue nos dá”.

Page 53: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

52

camarão que pula na sua barrilha, ê./ Vê se me entende homem, o que em mim se

cria./ Vê se me entende é o que mata sua fome, ê./ Vê se me entende homem, o que

em mim se cria./ Vê se me entende é o que mata sua fome./ Não mangue de mim,

não mangue, sou mangue vou lhe contar./ Não mangue de mim, sou mangue, por

feio me querem dar./ A lama negra que você não quer dar nome/ Tem aratu, tem

sururu, ostra do mangue, ê./ Vê se me entende homem, o que em mim se cria./ Vê se

me entende é o que mata sua fome, ê./ Vê se me entende homem, o que em mim se

cria./ Vê se me entende é o que mata sua fome.

Andando pelas dunas, um pescador falou: “isso aqui”, apontando para a areia da

duna, “foi trazida lá da África”, “a maré leva, a maré traz”, expressando a sua percepção de que,

na natureza, tudo está em íntima interligação. Ao ouvir a comunidade de Curral Velho um

pensamento surge forte na mente e um sentir se faz presente: “eles são o mangue, e o mangue

são eles também”.

Essa constatação faz refletir que a relação deles com o mangue vai além de produção

de alimentos para subsistência. É uma relação que revela um modo de vida, uma pertença ao

lugar. Seu cotidiano, crenças, culturas, tradições, modo de (re)produção e de vida têm uma

íntima relação com o manguezal. Por vezes referiram-se aos “invisíveis” que habitam o

manguezal, como os “verdadeiros donos da natureza” e ao “assobiador”, protetor do mangue.

Conhecer essa comunidade despertou-me para indagações sobre quais instrumentos

normativos estatais podem se relacionar à conservação da vida socioambiental e da diversidade

biológica presentes em Curral Velho, e à defesa e proteção do território em que vive essa

comunidade há gerações.

Uma resposta possível pode ser encontrada na análise da Lei n° 9.985 de 18 de julho

de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, combinada

com o Decreto n° 6.040 de 7 de fev. 2007, que Institui a Política Nacional de

Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.

O artigo 225 da Constituição Federal de 1988 (CF/88), após afirmar em seu caput

que todos(as) têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum

do povo, determina, no §1°, III, que, para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao

Poder Público definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus

componentes a serem especialmente protegidos. Eis que a Lei do SNUC surge a fim de

regulamentar o artigo 225, §1°, I, II, III da CF/88, dentre outras providências.

A Lei do SNUC, em seu artigo 2°, I, define unidade de conservação como

Art. 2º. [...].

II – unidades de conservação: espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo

as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído

pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime

especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção.

Page 54: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

53

No artigo 4°, XIII, é aferido como um dos objetivos do SNUC: proteger os recursos

naturais necessários à subsistência de populações tradicionais, respeitando e valorizando

seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente (XIII) 113

(grifos

meus).

Ponto central é saber se a comunidade de Curral Velho é uma comunidade

tradicional, conforme as definições legais, para, assim, possibilitar a aplicação de disposições

constantes na Lei que institui o SNUC e no Decreto regulamentador.

A Convenção Internacional sobre Diversidade Biológica, promulgada internamente

pelo Decreto nº 2.519, de 16 de março de 1998, reconhece, em seu preâmbulo, “a estreita e

tradicional dependência de recursos biológicos de muitas comunidades locais e populações

indígenas com estilos de vida tradicionais [...]”. A Convenção, no entanto, não traz uma

definição para comunidades locais ou populações indígenas com estilos de vida tradicionais.

O conceito de população tradicional era estabelecido no artigo 2°, XV, do Projeto de

Lei do SNUC:

Grupos humanos culturalmente diferenciados, vivendo há, no mínimo, três gerações

em um determinado ecossistema, historicamente reproduzindo seu modo de vida, em

estreita dependência do meio natural para sua subsistência e utilizando os recursos

naturais de forma sustentável.

O dispositivo, contudo, foi vetado. Na Mensagem n° 967, de 18 de julho de 2000,

enviada pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, restaram consignadas as razões

do veto, no seguinte sentido: “o conteúdo da disposição é tão abrangente que nela, com pouco

esforço de imaginação, caberia toda a população do Brasil”114

.

Outros dispositivos da Lei n° 9985/2000, que não foram vetados, estabelecem, ainda

que indiretamente, o conceito de populações tradicionais. Vejamos:

Art. 18. A Reserva Extrativista é uma área utilizada por populações extrativistas

tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente,

113

Analisando esses dispositivos, Juliana Santilli conclui que “entre os objetivos do Snuc estão não apenas a

conservação da biodiversidade, como também a conservação da sociodiversidade, dentro do contexto que

privilegia a interação do homem com a natureza, e as interfaces entre diversidade biológica e cultural”.

(SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. São Paulo: Petrópolis, 2005, p. 124). 114

A mensagem também enuncia que: “De fato, determinados grupos humanos, apenas por habitarem

continuadamente em um mesmo ecossistema, não podem ser definidos como população tradicional, para os fins

do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. O conceito de ecossistema não se presta para

delimitar espaços para a concessão de benefícios, assim como o número de gerações não deve ser considerado

para definir se a população é tradicional ou não, haja vista não trazer consigo, necessariamente, a noção de tempo

de permanência em determinado local, caso contrário, o conceito de populações tradicionais se ampliaria de tal

forma que alcançaria, praticamente, toda a população rural de baixa renda, impossibilitando a proteção especial

que se pretende dar às populações verdadeiramente tradicionais”. (Mensagem n 967 de 18 de julho de 2000. In:

CONSELHO NACIONAL DA RESERVA DA BIOSFERA DA MATA ATLÂNTICA. SNUC Sistema

Nacional de Unidades de conservação: texto da Lei 9.985 de 18 de julho de 2000 e vetos da presidência da

República ao PL aprovado pelo Congresso Nacional. Cadernos, n 18. 2. ed. São Paulo: Conselho Nacional da

Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, 2000).

Page 55: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

54

na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem

como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e

assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade.

[...].

Art. 20. A Reserva de Desenvolvimento Sustentável é uma área natural que abriga

populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de

exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e

adaptados às condições ecológicas locais e que desempenham um papel

fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade

biológica. (grifos meus)

A Lei traz, portanto, dois conceitos de populações tradicionais, sendo um aplicável

para as reservas extrativistas e outro para as reservas de desenvolvimento sustentável, que são

duas categorias de unidades de conservação de uso sustentável, destinadas a abrigar e proteger

modos de vida e cultura dessas populações.

No Decreto n° 6.040/2007, artigo 3°, encontram-se as seguintes definições:

Art. 3°. [...].

I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se

reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que

ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução

cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos,

inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição;

II - Territórios Tradicionais: os espaços necessários à reprodução cultural, social e

econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma

permanente ou temporária [...].

Esse Decreto, então, consagra, no artigo 3°, I, outra definição para populações

tradicionais, apresentando os seguintes elementos: grupos culturalmente diferenciados, com

formas próprias de organização social, ocupação do território e dos recursos naturais como

condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica e utilização dos

conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. Essa descrição, me

parece, conflui com todo o observado e descrito em Curral Velho.

O conceito de populações tradicionais não é exclusividade da legislação. Antes de o

Direito se debruçar sobre esses grupos, outros ramos do conhecimento, em especial as

Ciências Sociais, já reconheciam a importância da categoria “populações tradicionais”, tendo

cunhado conceitos relativamente bem aceitos, ainda que a dicção

“comunidades/sociedades/populações tradicionais” ainda seja algo em análise nas Ciências

Sociais e junto aos movimentos populares. Por exemplo, as sociedades indígenas parecem

trazer problematizações a essa categorização aplicada aos Povos Indígenas, e há dúvidas

suscitadas sobre se comunidades de agricultores poderiam ser caracterizadas como populações

tradicionais.

Page 56: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

55

Manuela Carneiro da Cunha e Mauro Almeida, tentando responder à pergunta “quem

são as populações tradicionais?”, escrevem que:

O emprego do termo “populações tradicionais” é propositadamente abrangente.

Contudo, essa abrangência não pode ser confundida com confusão conceitual.

Definir as populações tradicionais pela adesão à tradição seria contraditório com os

conhecimentos antropológicos atuais. Defini-las como populações que tem baixo

impacto sobre o ambiente, para depois afirmar que são ecologicamente sustentáveis,

seria mera tautologia. Se as definirmos como populações que estão fora da esfera do

mercado, será difícil encontrá-las hoje em dia. [...] Já podemos afirmar que as

populações tradicionais são grupos que conquistaram ou estão lutando para

conquistar (através de meios práticos e simbólicos) uma identidade pública que

inclui algumas, mas não necessariamente todas as seguintes características: o uso de

técnicas ambientais de baixo impacto, formas equitativas de organização social, a

presença de instituições com legitimidade para fazer cumprir suas leis, liderança

local e, por fim, traços culturais que são seletivamente reafirmados e reelaborados.115

No Ceará, não há uma cartografia das comunidades tradicionais (em suas

diversidades). Max Maranhão, em um mapeamento no qual o próprio pesquisador qualificou

como “esforço inicial”, conseguiu reunir informações sobre:

13 categorias de sujeitos coletivos que compreendem uma parte significativa dos

povos e comunidades tradicionais: pescadores; coletores de caranguejo; produtores

ou catadores de algas; marisqueiras; indígenas; quilombolas; vazenteiros;

pequizeiros; ciganos; povos de santo ou de terreiros; cipozeiros; atingidos por

barragens e louceiros.116

Nessa pluralidade, o autor indica que:

O maior movimento social situado na zona costeira cearense é autodenominado de

“povos do mar”. Maior pela quantidade de categorias de sujeitos que o movimento

abarca, congregando organizações de pescadores, catadores de caranguejo,

marisqueiras, produtores de algas, “moradores” e, em certas circunstâncias,

indígenas e quilombolas. 117

Sobre a dicção sociedades tradicionais; Diegues e Arruda aferem que:

[...] utiliza-se [...] a noção de ‘sociedades tradicionais’ para definir grupos humanos

diferenciados sob o ponto de vista cultural, que reproduzem historicamente seu

modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base na cooperação social e

relações próprias com a natureza. Essa noção refere-se tanto a povos indígenas

quando a segmentos da população nacional, que desenvolveram modos particulares

de existência, adaptados a nichos ecológicos específicos. 118

115

CUNHA, Manuela Carneiro da; ALMEIDA, Mauro W. B. Populações tradicionais e conservação ambiental.

In: CAPOBIANCO, João Paulo Ribeiro et al. (orgs). Biodiversidade na Amazônia Brasileira: avaliação e ações

prioritárias para a conservação, uso sustentável e repartição de benefícios. São Paulo: Estação Liberdade,

Instituto Socioambiental, 2001, p. 184-193 apud SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos. São

Paulo: Peirópolis, 2005, p. 128. 116

AIRES, Max Maranhão Piorsky. Povos e Comunidades Tradicionais no Ceará. In: PALILOT, Estêvão

Martins. Na mata do sabiá: contribuições sobre a presença indígena no Ceará. Fortaleza: SECULT/Museu do

Ceará/IMOPEC, 2009, p. 51; 52. 117

AIRES, Max Maranhão Piorsky. Povos e Comunidades Tradicionais no Ceará. In: PALILOT, Estêvão

Martins. Na mata do sabiá: contribuições sobre a presença indígena no Ceará. Fortaleza: SECULT/Museu do

Ceará/IMOPEC, 2009, p. 43. 118

DIEGUES, Antônio Carlos; ARRUDA, Rinaldo S. V. (Orgs.). Saberes tradicionais e biodiversidade no

Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente; São Paulo: Editora da USP, 2001, p. 27.

Page 57: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

56

Buscando definir melhor as populações tradicionais, Diegues e Arruda apresentam as

seguintes características, comuns aos diversos grupos humanos que se reproduzem

historicamente com base na cooperação social e nas relações próprias com a natureza:

Dependência da relação de simbiose entre a natureza, os ciclos e os recursos

naturais renováveis com os quais constroem um modo de vida;

Conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos, que se reflete na

elaboração de estratégias de uso e de manejo dos recursos naturais. Esse

conhecimento é transferido por oralidade de geração a geração;

Noção de território ou espaço onde o grupo social se reproduz econômica e

socialmente;

Moradia e ocupação do território por várias gerações, ainda que alguns

membros individuais possam ter-se deslocado para os centros urbanos e voltado para

a terra de seus antepassados;

Importância das atividades de subsistência, ainda que a produção de

mercadorias possa estar mais ou menos desenvolvida, o que implicaria uma relação

com o mercado;

Reduzida acumulação de capital;

Importância dada à unidade familiar, doméstica ou comunal e às relações de

parentesco ou compadrio para o exercício das atividades econômicas, sociais e

culturais;

Importância das simbologias, mitos e rituais associados à caça, pesca e

atividades extrativistas;

Tecnologia utilizada, que é relativamente simples, de impacto limitado sobre

o meio ambiente. Há uma reduzida divisão técnica e social do trabalho, em que

sobressai o artesanal, cujo processo o produtor e sua família dominam desde o início

até o produto final;

Fraco poder político, que em geral reside nos grupos de poder dos centros

urbanos;

Auto identificação ou identificação por outros de pertencer a uma cultura

distinta. 119

Reflito sobre a possibilidade de “identificação por outros de pertencer a uma cultura

distinta” apontada por Diegues e Arruda. Ainda que reconheça a importância do diálogo entre

diversos saberes sociais, onde se pode apresentar e discutir alguns conceitos em uma

perspectiva dialógica com essas populações concebo que, em sua autonomia, historicidade,

identidade e cultura, somente essas populações detêm a possibilidade de se identificar e

declarar como tradicionais, como dispõe a Convenção 169 da Organização Internacional do

Trabalho, adotada pelo Brasil pelo Decreto Nº 5.051/2004, em seu artigo 1º, inciso I, alínea

“a” e inciso II, combinado com o Decreto n° 6.040/2007, em seu artigo 3°, inciso I. Outros,

como Sérgio Sauer, analisam:

O embate sobre o significado de populações tradicionais ocorre desde o início dos

anos 90, porque carrega uma diversidade de valores. [...] A expressão populações

tradicionais remeteria a uma carga valorativa bastante complicada. Por trás, há toda

uma concepção equivocada de tradição, porque a tradição é dinâmica, evolui, muda,

transforma-se e não necessariamente é contra o ser moderno. Esse é um dos

problemas. O segundo problema relacionado é que certos segmentos da sociedade

119

DIEGUES, Antônio Carlos; ARRUDA, Rinaldo S. V. (Orgs.). Saberes tradicionais e biodiversidade no

Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente; São Paulo: Editora da USP, 2001, p. 26.

Page 58: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

57

não se incluiriam ou não se sentiriam incluídos nessa discussão de populações

tradicionais. Por exemplo, assentados de reforma agrária, certos segmentos de

ribeirinhos na Amazônia e outros. [...] A discussão é até que ponto populações

tradicionais dariam conta de responder a diferentes segmentos. Aí, o terceiro

argumento: as chamadas populações tradicionais têm uma diversidade não só de

identidades, mas de demandas. A discussão é até que ponto um conceito geral como

esse daria conta de atender aos diferentes segmentos. É importante, quando trazemos

à tona essa discussão, primeiro, o reconhecimento dos novos sujeitos. Não que eles

não existissem, não estivessem presentes, mas há emergência. Tornam-se visíveis

para o Estado, portanto, há discussão de direitos. Tornam-se visíveis para a

academia, portanto, são necessários estudos para entender essas populações. Os

geraizeiros, os ribeirinhos, os quilombolas existem há muito tempo, mas não eram

visíveis. São sujeitos emergentes, inclusive porque se mobilizam, passam a lutar e se

identificar com determinadas demandas, como a luta dos quilombolas pelo território.

Em segundo lugar, quando nós falamos de populações tradicionais, há um problema

porque a expressão generaliza, portanto, destrói a diversidade. Talvez, em vez de

lutarmos por uma concepção como esta, de populações tradicionais, pudéssemos

reconhecer a diversidade, os quilombolas, os indígenas, os ribeirinhos, os

geraizeiros, as quebradeiras de coco e tantos outros sujeitos emergentes. 120

121

Assim como Sauer, também reflito sobre essa diversidade, reconhecendo-a. Há uma

multiplicidade de populações cuja cultura, modo de existência e identidade coletiva constitui

marcos de diferenças em relação a outras populações, e vivenciam múltiplas relações com o

território e o meio ambiente natural. Respeitá-las e promover meios de garantir sua autonomia

e modo de (re)produção material e simbólico parece-me ser pressuposto de uma democracia

real, como também se insere na perspectiva de conservação da sociodiversidade brasileira.

Não há pilastras seguras em qualquer sistema de conhecimento para se aferir por si só

a identidade do outro. Dizer quais são as populações “verdadeiramente tradicionais”,

garantindo a estas uma proteção jurídica específica, faz-me pensar sobre a racionalidade que

nega à “maioria da população brasileira de baixa renda do meio rural” o reconhecimento de

120

SAUER, Sérgio. Palestra proferida no Seminário “20 anos da Constituição Federal – Desafios para

garantir a aplicabilidade do direito humano à terra e ao território”. Na Câmara dos Deputados, Brasília, 26

nov. 2008. Compilação realizada pelo Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação da Câmara dos

Deputados. Disponível em <http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-

permanentes/clp/notas-taquigraficas/2008/direito-humano-a-terra-e-ao-territorio>; acesso em 22 jun. 2011. 121

Outros autores, ainda, classificam essas populações também como campesinas: “[...] podemos afirmar que o

campesinato, como categoria analítica e histórica, é constituído por poliprodutores, integrados ao jogo de forças

sociais do mundo contemporâneo. [...] Se a relação com o mercado é característica distintiva desses produtores

(cultivadores, agricultores, extrativistas), as condições dessa produção guardam especificidades que se

fundamentam na alocação ou no recrutamento de mão-de-obra familiar. [...] A diversidade da condição

camponesa por nós considerada inclui os proprietários e os posseiros de terras públicas e privadas; os

extrativistas que usufruem os recursos naturais como povos das florestas, agroextrativistas, ribeirinhos,

pescadores artesanais e catadores de caranguejos que agregam atividade agrícola, castanheiros, quebradeiras de

coco-babaçu, açaizeiros; os que usufruem os fundos de pasto até os pequenos arrendatários não-capitalistas, os

parceiros, os foreiros e os que usufruem a terra por cessão; quilombolas e parcelas dos povos indígenas que se

integram a mercados; os serranos, os caboclos e os colonos assim como os povos das fronteiras no sul do país; os

agricultores familiares mais especializados, integrados aos modernos mercados, e os novos poliprodutores

resultantes dos assentamentos de reforma agrária”. (CONSELHO EDITORIAL. Apresentação à Coleção. In:

Diversidade do Campesinato: expressões e categorias. Vol. 2. Estratégias de Reprodução Social. GODOI,

Emilia Pietrafesa de; MENEZES, Marilda Aparecida de; MARIN, Rosa Acevedo (Orgs.). São Paulo: UNESP;

Brasília: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009, p. 9-11).

Page 59: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

58

uma cultura distinta122

; e as associações possíveis entre essa racionalidade e a “autorização”

de expulsar e deslocar essas comunidades, ou inviabilizar seus modos de vida por questões

socioambientais, a fim de promover a reprodução do capital e/ou o desenvolvimento nacional,

assim como as interconexões desse não reconhecimento e lógicas subjacentes à permanência

da estrutura fundiária brasileira.

Investigar essas plurirrealidades é importante para vários ramos do conhecimento,

contudo há de se buscar elaborar essas definições em conjunto com essas populações,

atentando-se para o disposto na Convenção n 169 da OIT123

. Creio que um dos pontos

centrais é, ou deveria ser, compreender como essas populações vivem, buscar mecanismos de

proteção do seu modo de vida em conjunto com essas, e meio de promoção de melhor

qualidade de vida a essas populações desde a localidade em que vivem, respeitando suas

escolhas e autonomia. O Direito, em diálogo com esses outros ramos do conhecimento, tem o

desafio de buscar modos de proteção e respeito à maneira de existência dessas diversas

populações.

Partindo dessas pré-compreensões, tomando como base de análise a definição

esboçada na legislação brasileira, inspirada em definições de autores(as) de outros ramos do

conhecimento, em especial Manuela Carneiro da Cunha, e em diálogo com algumas

características observadas por Diegues e Arruda, compreendo a comunidade de Curral Velho

como uma comunidade tradicional124

.

Isso porque, no que diz respeito ao modo de vida da comunidade, há traços e signos

distintivos específicos que a diferencia dos moradores do Município de Acaraú, ao mesmo

tempo em que revelam uma dinâmica profundamente hibridizada com os ciclos naturais.

Vejamos:

as atividades produtivas desenvolvidas pela comunidade estão

relacionadas ao ecossistema manguezal – cata do caranguejo,

mariscagem, na pesca artesanal nas gamboas e nos currais; à

agricultura tradicional e à produção de artesanato;

122

Ao modo do veto a artigos da Lei do SNUC, constante na Mensagem n 967 de 18 de julho de 2000 vista

acima. 123

Nesse sentido, destaco o Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil

(PPGSCA/UFAM – FUND. FORD – MMA – MDS) coordenado pelo antropólogo Alfredo Wagner, a

historiadora Rosa E. Acevedo Marin e o advogado Joaquim Shiraishi Neto. O projeto utiliza-se de elaboração

cartográfica baseada no ponto de vista da comunicação dos próprios sujeitos, onde determinada comunidade, por

exemplo, se reconhece e se identifica em seu território e identidade. Para ver sobre o Projeto ir em

<http://www.novacartografiasocial.com/default.asp>; acesso 23 jun. 2011. 124

Cabendo essa autoidentificação, reafirmo, à população de Curral Velho, em sua historicidade, expressões

culturais, territorialização e processos políticos.

Page 60: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

59

nos significados construídos sobre essas atividades produtivas, é

marcante o sentimento de autonomia partilhado pelo grupo. A hora de

trabalhar e de descansar não é determinada por terceiros, e sim pela

dinâmica da natureza, como as marés, os períodos chuvosos, etc.;

há conhecimento profundo dos ciclos biológicos;

utilizam técnicas de catação de mariscos, que lhes foram

repassadas pelos antepassados por meio da tradição. Esses

conhecimentos são, do mesmo modo, repassados às gerações mais

novas, que vão ressignificando e adaptando tais conhecimentos;

há uma relação de pertença ao ecossistema manguezal,

utilizando-o de forma sustentável, valorizando a sua biodiversidade

(fauna e flora), o que assegura, ao longo dos anos, a sua conservação;

nesse sentido, o ecossistema manguezal não é considerado uma

fonte de recursos naturais a serem explorados, mas vertente de

sobrevivência e de saúde, a casa e o território onde expressam seus

traços culturais;

há diversas expressões artísticas do lugar: artesanato – bolsas,

cestos e outros feitos com palha de carnaúba, bordados, pinturas e

desenhos do manguezal, composição de cordéis, poemas e músicas por

moradores do lugar;

conhecimento do território e dos seus caminhos tradicionais de

acesso ao mar;

utilização de materiais de pesca de baixo impacto ambiental e

dinâmica das relações sociais construídas com base na

solidariedade, na partilha, na generosidade, na confiança, nos laços de

amizade, de trabalho, de companheirismo e de parentesco.

Logo, por todos esses elementos esboçados e combinando-se o artigo 4°, do SNUC

com o artigo 3° do Decreto n° 6.040/2007, poderia apontar a viabilidade da instalação de uma

unidade de conservação na Comunidade de Curral Velho, reconhecendo-a como população

tradicional, que usa a terra em uma perspectiva territorializada, com base em uma relação

autossustentável e ambientalmente equilibrada com o meio natural, tratando-se, portanto, de

uma comunidade tradicional em um território tradicional.

Page 61: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

60

Sendo uma comunidade essencialmente formada por pescadores(as) e

marisqueiras(os) e alguns poucos(as) agricultores(as), onde esses(as) praticam agricultura de

subsistência125

, e utilizando-se a comunidade desses recursos naturais para o consumo próprio

e para o mercado local, é compreensível que a Unidade de Conservação em tela é uma

Reserva Extrativista126

.

Assim, compreendia que as Resexs constituem-se hoje em o mecanismo de proteção

do Direito Estatal mais próximo à realidade de Curral Velho, observando-se o respeito ao seu

modo de vida e (re)produção e sua relação com o ecossistema manguezal da Praia de

Arpoeiras. Essa ideia, longe de ser algo inviável, ou sequer original, já se concretizou em

algumas outras comunidades tradicionais de pescadores(as) e marisqueiras, como é o caso da

Resex de Canavieiras127

.

Ao final de algumas visitas realizadas, no entanto, minha visão sobre o lugar foi se

ampliando. Percebi algumas das outras relações de posse/propriedade por lá existentes.

Caminhando com um pescador este me mostrou dois grandes terrenos que pertencem a famílias

que “moram lá na capital”, informando-me de que outros moradores trabalhavam nos terrenos

como meeiros ou de outros modos.

Após, levou-me para conhecer outro morador que gerencia as terras de um

determinado proprietário (que também lá não morava); o gerente, apontando, disse “tá vendo

ali, é tudo dele, é terra até perder de vista”. Em nenhum momento o pescador e o gerente

pareceram problematizar essas grandes posses/propriedades.

O processo de cercamento em Curral Velho parece ser algo recente. Em outra

ocasião, ao darmos uma carona para Fortaleza a outro morador, este apontou para as cercas e

125

Ou praticavam, a depender da localização da casa, se era próxima ou não de fazenda de carcinicultura, em

razão da salinização do solo, o que inviabiliza a produção agrícola. 126

O art. 18, caput, e § 1° do SNUC define a Reserva Extrativista como uma área utilizada por populações

extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de

subsistência e na criação de animais de pequeno porte; tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a

cultura dessas populações e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade. É considerada de

domínio público, com uso concedido às populações extrativistas tradicionais. Ainda que, nas incursões em

campo, não tenha percebido a presença de animais de pequeno porte, compreendo não ser isto condição

necessária para a criação de uma Resex. Até porque a própria Lei do SNUC, em seu art. 5°, I, diz que SNUC será

regido por diretrizes que assegurem que no conjunto das unidades de conservação estejam representadas

amostras significativas e ecologicamente viáveis das diferentes populações, habitats e ecossistemas do Território

Nacional e das águas jurisdicionais, salvaguardando o patrimônio biológico existente. 127

“Criada por decreto presidencial, em junho de 2006, a Resex de Canavieiras protege um dos principais

manguezais da Bahia, que origina grande parte da produção de caranguejos do estado. Com isso, a unidade

beneficia cerca de 2.300 famílias de pescadores, marisqueiros e extrativistas que vivem dos recursos naturais e

pleiteam um modelo de desenvolvimento sustentável para a região”. (Informação disponível em

<http://web500.com.br/resex/?p=123>, página da Reserva Extrativista Marinha Canavieiras, Bahia, Brasil.

Acesso em 24 mar. 2010). Citam-se, também, como exemplos de Resexs que protegem áreas de mangue: a

Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé (Santa Catarina), a Reserva Extrativista Marinha de Soure (Pará), e a

Reserva Extrativista do Cassurubá (Bahia).

Page 62: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

61

disse: “tá vendo ali? Num era assim não, começou de uns tempos pra cá, eu ainda vi isso tudo

aqui solto”.

Perguntei a quem pertenciam as terras daquelas fazendas de carcinicultura que hoje

se encontram ao redor da comunidade. Eles(as), nessa e em outros momentos, referiram-se a

um “velho”, que “tinha tudo aquilo ali”, ele “tinha uma salina”, “eu trabalhava lá quando era

criança”, “ele sempre deixava todas as famílias daqui pegar sal a vontade”. Sobre esse ex-

proprietário, disseram ainda que ele os respeitava muito, e que sempre dizia para todos respeitar

a comunidade, reconhecendo que “eles sempre estiveram aqui”. Essas grandes propriedades não

constituem causas de inviabilização de uma Resex, a própria Lei do SNUC prevê

desapropriações para a instalação dessas unidades de conservação (artigo 18, § 1º).

O que me pareceu mais importante foi o que me revelou os últimos diálogos com

moradores(as), os(as) quais, por diversas ocasiões, contaram-me que têm algumas terras

(pequenas) para plantar, sozinhos ou com suas famílias. Alguns me disseram que poucos na

comunidade possuem o “papel da casa”. E essa ampliação veio acompanhada de uma pergunta

que Luiz Gama me fez quando lhe apresentei as ideias sobre a área de Curral Velho vir a ser

uma Resex. Disse-me ele: “e será que o povo de Curral Velho quer isso?”.

O artigo 1º, VIII, do Decreto n° 6.040/2007 determina que as ações e atividades

voltadas para o alcance dos objetivos da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável

dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPTC) deverão observar o reconhecimento e a

consolidação dos direitos dos povos e comunidades tradicionais; e o art. 3°, incisos I e V, do

Decreto, exprimem como objetivos específicos da PNPCT garantir aos povos e comunidades

tradicionais seus territórios, e o acesso aos recursos naturais que tradicionalmente utilizam

para sua reprodução física, cultural e econômica (I); e garantir os direitos dos povos e das

comunidades tradicionais afetados direta ou indiretamente por projetos, obras e

empreendimentos (V).

As populações tradicionais encontram também importante aporte jurídico na

Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, adotada pelo Brasil pelo Decreto

5.051, de 19 de abril de 2004, a qual, em seu artigo 15 diz que:

Art. 15.

1. Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nas suas terras

deverão ser especialmente protegidos. Esses direitos abrangem o direito desses

povos a participarem da utilização, administração e conservação dos recursos

mencionados.

O artigo 13 dessa Convenção, ainda, esclarece que:

Art. 13.

Page 63: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

62

1. Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos deverão

respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos

interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos,

segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e,

particularmente, os aspectos coletivos dessa relação.

Assim, o art. 1º, VIII, do Decreto n° 6.040/2007 e a Convenção 169 da OIT (em seus

artigos 13 e 15), e a pergunta de Luiz Gama levaram-me a refletir que seria necessária a escuta

dos(as) moradores(as) de Curral Velho acerca de como acreditam que se poderia dar a proteção

jurídica de seu território e do ecossistema manguezal com o qual se relacionam, combinada

com o recurso da cartografia e de outros estudos interdisciplinares, a fim de se compreender

como sucede a distribuição de terras (de modos formal e informal) em Curral Velho. Inclusive,

se poderia dialogar sobre a Lei do SNUC.

Compreendo ser bastante complexa essa distribuição de terras em Curral Velho. Há a

relação territorializada da comunidade com o ecossistema manguezal, os terrenos em que

moram, plantam, os lugares em que festejam e vivenciam lazer128

, dentre outros lugares

identificados/identificáveis.

A Lei do SNUC determina que, em sendo necessário, sejam desapropriadas áreas

particulares incluídas nos limites dos tipos de unidades (art. 18, §1°; art. 20, §2°). O artigo 22

da Lei do SNUC determina que as unidades de conservação sejam criadas por ato do Poder

Público, e o § 2° desse artigo diz que a criação de uma unidade de conservação deve ser

precedida de estudos técnicos e de consulta pública que permitam identificar a localização, a

dimensão e os limites mais adequados para a unidade. O artigo 18, § 1º, declara que a Reserva

Extrativista é de domínio público, e o artigo 23 da Lei do SNUC institui que a posse e o uso

das áreas ocupadas pelas populações tradicionais nas reservas extrativistas e reservas de

desenvolvimento sustentável serão regulados por contrato, sendo observado o seguinte:

Art. 23. [...].

§ 1° As populações de que trata este artigo obrigam-se a participar da preservação,

recuperação, defesa e manutenção da unidade de conservação.

§ 2° O uso dos recursos naturais pelas populações de que trata este artigo obedecerá

às seguintes normas:

I - proibição do uso de espécies localmente ameaçadas de extinção ou de práticas que

danifiquem os seus habitats;

II - proibição de práticas ou atividades que impeçam a regeneração natural dos

ecossistemas;

III - demais normas estabelecidas na legislação, no Plano de Manejo129

da unidade de

conservação e no contrato de concessão de direito real de uso.

128

Como a casa de praia coletiva da comunidade que fica um pouco afastada do local onde há moradas

permanentes. 129

O art. 2°, XVII, da Lei do SNUC define o plano de manejo como um documento técnico mediante o qual,

com fundamento nos objetivos gerais de uma unidade de conservação, se estabelecem o seu zoneamento e as

normas que devem presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação das estruturas

físicas necessárias à gestão da unidade. O art. 18, §5°, expressa que o Plano de Manejo da unidade será aprovado

Page 64: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

63

Por fim, o artigo 18, § 2º da referida Lei determina:

Art. 18.

§ 2º A Reserva Extrativista será gerida por um Conselho Deliberativo, presidido pelo

órgão responsável por sua administração e constituído por representantes de órgãos

públicos, de organizações da sociedade civil e das populações tradicionais residentes

na área, conforme se dispuser em regulamento e no ato de criação da unidade.

Assim, as desapropriações que fossem necessárias de pequenas propriedades, o

contrato e a existência do Conselho Deliberativo, as possíveis interferências nas relações de

posses individuais e familiares porventura existentes, dentre outras questões, trariam uma

dinâmica que provocaria mudanças na relação da comunidade com o território, devendo, pois,

ser tal possibilidade (da Resex) analisada com maior tranquilidade em conjunto com a

comunidade de Curral Velho, o que foge às possibilidades e objetivos deste relatório de

pesquisa.

Os artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988 trazem importantes

normatizações em relação ao Direito à Cultura e podem também servir de esteio para

interpretações sobre a proteção jurídica devida pelo Estado às expressões culturais, saberes e

fazeres tradicionais em/de Curral Velho, promovendo assim a proteção à sociodiversidade

brasileira. Manuela Carneiro da Cunha expõe que

As culturas constituem para a humanidade um patrimônio de diversidade, no sentido

de apresentarem soluções de organização do pensamento e de exploração de um

meio que é, ao mesmo tempo, social e natural. Como fez notar Lévi-Strauss em uma

conferência feita no Japão há alguns anos, nesse sentido a sócio-diversidade é tão

preciosa quanto a bio-diversidade. Creio, com efeito, que ela constitui essa reserva

de achados na qual as futuras gerações poderão encontrar exemplos — e quem sabe

novos pontos de partida — de processos e sínteses sociais já postos à prova. [...]

Quando se fala do valor da sócio-diversidade, não se está falando de traços e sim de

processos. Para mantê-los em andamento, o que se tem de garantir é a sobrevivência

das sociedades que os produzem.130

Em tempos de crise ambiental, na busca por sustentabilidade ambiental na relação

entre meio ambiente natural e sociocultural, os(as) moradores(as) de Curral Velho não só

vivenciam relações sustentáveis com o ambiente natural, bem como, em tendo controle sobre

o território, “deixando rastros na lama”131

, adentrando o mar, ou cultivando a terra, tecem teias

de proteção e defesa do meio ambiente na Praia de Arpoeiras, Acaraú, Ceará.132

Antonio Carlos Diegues analisa que:

pelo seu Conselho Deliberativo, inserindo-se nesse Conselho, como o exposto no § 2° (do art. 18), as populações

tradicionais residentes na área. 130

CUNHA, Manuela Carneiro. O futuro da questão indígena. Estudos Avançados, 1994, p. 1347; 135.

Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ea/v8n20/v8n20a16.pdf>; acesso em 17 jun. 2011. 131

SANTOS, Maria do Livramento. Rastros na lama do manguezal. Curral Velho, Ceará, 06 de nov. 2005. 132

Na VI Marcha do Povo Tremembé de Almofala, em 2010, no momento em que parceiros da luta indígena

foram convidados para falar a todos(as), ouvi uma das lideranças de Curral Velho discorrer nesse sentido.

Page 65: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

64

[...] apesar de muitas consequências da degradação ambiental serem de ordem

global, afetando a biosfera como um todo, os processos geradores desses

desequilíbrios têm origem no interior de diversas sociedades, nas formas como estas

constroem, representam e manipulam a natureza. Dessa forma, é fundamental buscar

soluções para esses problemas na relação dessas diferentes culturas e sociedades com

o mundo natural. [...] as sociedades tradicionais requerem alta diversidade de

recursos naturais e [...] estas sociedades ainda existem porque desenvolveram

práticas culturais de utilização dos recursos que mantém a biodiversidade.

Consequentemente, assegurar a sobrevivência dessas práticas é um excelente método

para conservar a diversidade biológica. 133

Deve-se ter o cuidado, contudo, para não se olhar para Curral Velho, e tantas outras

comunidades tradicionais, sociedades indígenas, quilombolas, que mantêm relações similares

com o meio ambiente natural, como “guardiões da natureza” e do “patrimônio natural”,

delegando a essas populações a conservação da sócio e biodiversidade, como se estes fossem

“bens guardados em poupanças rentáveis”, enquanto se mantém um padrão de consumo e

tipos de desenvolvimentos insustentáveis em outras localidades do Planeta134

. A questão

ambiental é interconectada globalmente; instaurar outros modos de existência, refletir sobre

crescimento zero (ou próximo a), consumo sustentável (em modo e quantidade), sobre

diversas concepções de desenvolvimento, é necessário e transcende o foco nas populações

tradicionais, por exemplo.

Ao refletir sobre como nossa sociedade percebe a plurietnicidade e a diversidade

cultural intrínsecas a essas populações, permito-me uma digressão... Penso no olhar purista do

arcadismo sobre o “bom selvagem”; no orgulho lusitano em colonizar os povos “pré-

históricos”; nas “boas intenções” cristãs em salvar almas, catequizando-as; e, se ao menos

nossos pensamentos colonizados e coloniais fossem registros na História, minhas digressões

por aqui se encerrariam.

Hollywood, no entanto, e a literatura inglesa fazem-me pensar nos tempos presentes,

levando-me a algumas reflexões. Essas populações não são “Na’vi”, que requerem sempre a

compreensão de um estrangeiro “Avatar” que possa defende-los135

; nem “Shangri-la”, um

133

DIEGUES, Antonio Carlos. Etnoconservação da Natureza: enfoques alternativos. In: DIEGUES, Antonio

Carlos (Org.). Etnoconservação: novos rumos para a proteção da natureza nos trópicos. São Paulo: HUCITEC;

NUPAUB-USP, 2000, p. 4; 11. 134

A leitura das obras de Antonio Carlos Diegues não me parece levar a essas interpretações, muito pelo

contrário. 135

Refiro-me ao filme Avatar (2009), dirigido por James Cameron, no qual um humano no corpo de um avatar

passa a conviver com os Omaticaya, uma das sociedades Na’vi que habitam o Planeta de Pandora, aprendendo o

seu modo belo e singular de se relacionar com o meio natural. Ao final, esse avatar defende e salva os Na’vi e

alguns de seus locais sagrados do ataque de colonizadores humanos que também viviam em Pandora; no entanto,

ele consegue a façanha, não por conhecer as tecnologias usadas pelos seres humanos e poder dispor dos segredos

de como imobilizá-las, e sim por ter conseguido domar um Toruk, criatura que apenas cinco Na’vi conseguiram

montar. Após, Tsu’Tey (uma das liderança dos Omaticaya) impressionado, une-se ao avatar, o qual, montado no

Toruk, consegue convencer outras sociedades a se unir a eles na luta contra os colonizadores, e, ao final, a

“natureza desperta” e passa a atacar os colonizadores, por meio de bandos de pássaros, por exemplo. O filme é

Page 66: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

65

paraíso perdido onde reina a mais perfeita harmonia e de onde, paradoxalmente, alguns

querem fugir136

; nem um local isolado em um “Admirável Mundo Novo”137

. Tais populações

têm autonomia, historicidade e interações econômicas, sociais, políticas e naturais com o

território que ocupam, (res)significadas em sua cultura; e com elas pode-se aprender saberes e

fazeres que trouxessem à memória a ideia de que outros modos de relação com a vida são

possíveis e concretos.138

Buscando compreender sentidos comuns concebidos por Curral Velho, Povos

Indígenas e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra em torno da questão da terra,

com base em percepções de moradores(as) de Curral Velho, em um grupo focal perguntei-lhes:

“vocês acham que alguma coisa liga a luta de vocês à luta pela terra dos povos indígenas, à luta

pela terra do movimento dos sem terra, [...] tem alguma coisa que liga?”. Em seguida falaram-

me sobre os Povos Indígenas, destacando que a preservação da cultura e da luta pela terra como

espaço de morada e plantio são questões comuns. Ao final, destacaram a relação com o mar, a

área de pesca, como algo que os diferencia, como uma (re)afirmação do que, em suas

percepções, os identifica.

Liga, porque aquilo que vem de origem, né? Aquilo que vem de origem é o que a

gente tem que fazer é respeitar e preservar, porque ali é da cultura do lugar, da

cultura, né? E a cultura da área da pesca num é diferente da área indígena não, num é

não porque os indígena hoje é a mesma coisa que eles faz, que eles faz, a gente luta

em defesa da, de suas moradia né? Em defesa das terra, né?

No nosso caso a gente luta em defesa das terra e também da área de pesca, porque os

indígena eles, se for uma comunidade que vive lá só da terra ele luta só em defesa da

área deles né? Da terra deles né? Pra eles ter a chance de plantar, de cultivar né? Já

no nosso caso não, além da nossa moradia ainda luta em defesa do pão de cada dia

né? Que pra lá é que tá a nossa sobrevivência né? Isso, então é complicado, mas

porque é duas causa numa só né? 139

interessante sob muitos aspectos, mas um em particular fez-me refletir: por que o avatar domou o Taruk, porque

não o Tsu’Tey ou outro(a) Na’vi? 136

“Shangri-la, da criação literária de 1925 do inglês James Hilton, Lost Horizon (Horizonte Perdido), é descrito

como um lugar paradisíaco situado nas montanhas do Himalaia, sede de panoramas maravilhosos e onde o tempo

parece deter-se em ambiente de felicidade e saúde, com a convivência harmoniosa entre pessoas das mais

diversas procedências. Shangri-la será sentido pelos visitantes ou como a promessa de um mundo novo possível,

no qual alguns escolhem morar, ou como um lugar assustador e opressivo, do qual outros resolvem fugir”

(informação disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Shangri-La>; acesso em 22 jun. 2011). 137

Refiro-me a “Admirável Mundo Novo”, livro escrito por Aldous Huxley que tece críticas ao Totalitarismo

como tipo de Estado opressor da liberdade individual. Na história, os “selvagens” são vistos como “o outro”,

exóticos mantidos em reservas para o deleite de turistas de castas consideradas como superiores, em uma

sociedade em que o progresso da ciência, ou o projeto de desenvolvimento apontado pelas teorias e práticas

consideradas como científicas é o que determina o modo de vida social. A analogia aqui esboçada expressa, de

modo caricatural, a sociedade contemporânea e alguns modelos de desenvolvimento, os quais, ainda que se

declarem sustentáveis ambientalmente, degradam o meio natural, reduzem a biodiversidade, inviabilizam modos

de vida tradicionais e empobrecem populações, em nome de pressupostos técnico-científicos aliados a grupos de

interesses econômicos e sociais que se impõem como hegemônicos. 138

Faço as digressões aqui registradas pensando nas populações tradicionais, Povos Indígenas, quilombolas e nas

múltiplas culturas e etnicidades que povoam o mundo que se cunhou chamar de “ocidental”. 139

Falas de moradores(as) de Curral Velho.

Page 67: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

66

A resposta em relação ao MST veio mais pensada, entrecortada com silêncios

reflexivos. Primeiro, disseram que, ao ocupar uma “fazenda desativada”, esta poderia ter

dono, diferente da situação deles, que eram donos de suas terras. Nesse momento, questionei-

os sobre o que concebiam como donos da terra. Pensaram um tempo em silêncio e, após,

reconheceram o direito de trabalhadores se “apossarem” de terras “para morar e criar suas

famílias”, destacando que “grileiros” que se “apossam de grandes extensões de terra” não

podiam ser considerados na mesma situação dos trabalhadores rurais ocupantes. Por fim,

refletindo sobre o que “liga as lutas” associaram à necessidade do trabalhador de estabelecer-

se em uma terra para dali tirar o sustento de si e de sua família.

- Mas fica ruim, veja bem, na parte da dá... A diferença que tem de nois, da nossa

luta aqui pros indígena, segundo diz os sem terra, vamo supor, porque o que mais a

gente vê hoje, os sem terra, vocês tem uma fazenda que tá abandonada, é...

Desativada um ano, dois ano, três ano... Se ela tá desativada, nos podemo entender

assim que ela, ela pode ter um dono ainda, a fazenda tá desativada, mas ela pode ter

um dono sim, mas essa área aqui, essa nossa área aqui tem uma grande diferença,

porque? Nós moramos aqui, como nós moramos aqui, nós tamos preservando onde

nós tamos morando, nós tamos preservando o nosso porto, nós tamos preservando ter

esse salgado aqui. [...] No caso dos sem terra, como muitas vezes a gente vê, muitas,

é... muitas disputas deles lá, é por aquelas terras que elas tem um documento que

consta que aquela pessoa é dono.

[Pesquisadora] – Mas [...], assim, só pra gente tentar aprofundar um pouco aqui a

reflexão, vocês acabaram de dizer que o que caracteriza ser dono da terra não é o

documento, é outra coisa né? [...].

- Pois é, pois é, mas geralmente é isso. Se essa terra ela é uma terra desocupada, num

tem morador, num... eu acho assim, que aquele povo que se apossa daqueles terreno

lá no amazonas, pra morar, pra criar suas famílias ali, tudo bem, eu concordo, mas

aqueles grileiros né? Que vem lá de num sei aonde que se apossa de uma terra muito

grande lá na amazonas, ali ele num pode, ele tá entrando no céu a força, tá

entendendo? Então eu não acho isso aí de acordo.

[Pesquisadora] - Então, deixa eu compreender, [...] a luta [do MST] pela terra tem

alguma coisa a ver com a luta de vocês?

- Tem.

[Pesquisadora] - O que que tem a ver?

- Tem porque aquela terra se quando eles se apossa daquela terra, que eles vão,

quando eles se apossaram daquela terra pra eles trabalhar, pra o meio de

sobrevivência deles. Eles num tem o emprego, geralmente eles num tem o emprego,

o emprego deles é trabalhar na roça, e então é como nós aqui também, dificilmente

nós pescadores aqui temo emprego, nosso emprego é esse. Nós vamo pro mar, tem

dia que nós pega peixe, nós come, vende e dá, e tem dia que num pega, nós fica sem

comer porque num tem outro jeito. É a mesma coisa deles lá, porque? Porque eles

lutam em defesa da terra, em defesa deles, dos filhos, né? E que não gera só isso,

gera também pra muitas outras pessoas, num é? Por isso eu acho que nessa parte...

[Pesquisadora] - É o que liga a luta?

- É o que liga a luta uma com a outra140

Em uma de minhas últimas incursões em campo, um pescador da comunidade, como

quem havia ficado a pensar sobre o diálogo há pouco transcrito, disse que achava que a única

140

Diálogos realizados com moradores(as) de Curral Velho em grupo focal.

Page 68: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

67

coisa que os separava dos trabalhadores sem terra era que esses tinham sido expulsos. Essas

palavras ficaram guardadas em minha mente.

3.2 “É como diz o ditado antes era hora de parar, agora é hora de falar” 141

: a retomada

das lutas dos Povos Indígenas142

por seus territórios

Imaginem a seguinte cena. Alguém, com um microfone e acompanhado por uma

câmera, sai andando pelas ruas do centro de Fortaleza (capital do Ceará) e faz a seguinte

pergunta: “como é um índio para você?”. As respostas são descritivas: “um moreno bem

moreno mesmo, cabelo lisinho, aquilo para mim é um índio”; “é a cor dele que identifica”;

“ele é todo fantasiado, ele tem penas, né?”; “ele anda nu com os cocá na cabeça”. João

Venâncio, cacique do Povo Indígena Tremembé, a tudo assiste próximo aos entrevistados 143

.

Logo após, Caboclinho (índio Potiguara, da Paraíba) aparece em outra cena e diz: “a

questão não é a característica, é ser índio, é ser aquela pessoa, porque índio índio para quem

não sabe é aquela pessoa que se orgulha de ser índio [...], que pratica seus rituais, sua religião,

que tem tradição”.

141

Fala de uma liderança indígena Tremembé, colhida em entrevista realizada durante atividade de campo, a qual

remonta à memória de tempos em que as sociedades indígenas no Ceará silenciaram em relação à sua etnicidade,

temendo (e sofrendo) repressões e violências de não índios. Durante as incursões em campo ouvi outras

lideranças indígenas a repetirem, bem como outras frases similares como “antes era hora de calar, agora é hora de

falar”. 142

No decorrer desta dissertação uso a expressão “sociedades indígenas” inspirada em João Pacheco de Oliveira,

segundo o qual: “Os direitos indígenas não decorrem de uma condição de primitividade ou de pureza cultural a

ser comprovada nos índios e coletividades indígenas atuais, mas sim do reconhecimento, pelo Estado brasileiro,

da condição destes de descendentes da população autóctone. Trata-se de um mecanismo compensatório pela

expropriação territorial, pelo extermínio de incontável número de etnias e pela perda de uma significativa parcela

de seus conhecimentos e de seu patrimônio cultural. Por isso, a categoria jurídica que está em vias de afirmação é

a de sociedades indígenas, e não a de culturas, povos ou nações. A demonstração de que uma coletividade

enquadra-se nessa situação – e que, portanto, deva ser objeto de demarcação de terras e assistência – faz-se

mediante a investigação de seus critérios identitários e a explicitação de fatores simbólicos que conectam os

índios atuais com as populações autóctones, nada tendo a ver com alguma comprovação de pureza cultural

segundo antigos padrões museológicos ou representações do senso comum”. (OLIVEIRA, João Pacheco de. Três

teses equivocadas sobre o indigenismo: em especial sobre os índios do Nordeste. In: ESPÍRITO SANTO, Marco

Antônio do (Org.). Política Indigenista: Leste e Nordeste Brasileiro. Brasília: FUNAI/DEDOC, 2000, p. 24);

assim como, por compreender que a carga semântica dada à expressão usada por João Pacheco conflui com o

significado atribuído a Povos Indígenas pelo Movimento dos Povos Indígenas no Ceará (conforme as entrevistas

com lideranças do Movimento apontaram), e em respeito ao modo como essas sociedades se denominam, usarei

as expressões sociedades indígenas e Povos Indígenas para me referir a mesma população. 143

O Povo Indígena Tremembé, hoje, localiza-se nos Municípios de Itarema, Acaraú e Itapipoca; atualmente,

conta com uma população de mais de 4.820 pessoas. Assim encontra-se situação de suas Terras Indígenas (TI):

“Córrego João Pereira e Telhas – TI regularizada; Almofala: TI delimitada e identificada oficialmente, com

processo administrativo suspenso pelo Ministério da Justiça, desde 1996; Queimadas, São José e Buriti – TI’s

com estudos preliminares, através de grupo de trabalho da FUNAI, em 2003/2004; Comondogo – TI ainda não

estudada pela FUNAI” (informação disponível em <http://www.tribodasaguas.org.br/o-povo-tapeba/povos-

indigenas-no-ceara>; acesso em 16 jun. 2011).

Page 69: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

68

Em outra tomada, voltam então à cena outras pessoas sendo entrevistadas na rua,

dessa vez dizendo que havia índios em vários estados do Norte do Brasil (como Amazonas e

Mato Grosso), mas não aqui no Ceará. Uma pessoa apenas disse que talvez por aqui houvesse

índios, “ali por Caucaia”144

. E o cacique João Venâncio, de Almofala (Itarema, Ceará), a tudo

escutando. As cenas descritas encontram-se no documentário “As Caravelas Passam”145

, que

versa sobre os Povos Indígenas do Nordeste, em especial, do Ceará.

Os colonizadores por aqui aportaram na região hoje conhecida como Nordeste do

Brasil. Caboclinho, nesse mesmo vídeo, lembra que: “nós [índios] temos 500 anos de contato

com a sociedade, não são 500 dias, nem 500 horas, nós temos 500 anos de contato com tudo

isso que é chamado desenvolvimento”.

Esse contato no Ceará, no entanto, deu-se por processos de silenciamento e

violências. Inclui-se o “Relatório Provincial apresentado pelo Presidente José Bento da Cunha

Figueiredo à Assembleia Legislativa do Ceará por ocasião de sua instalação” 146

(1863), o qual

tratava de assuntos diversos, dentre estes, terras públicas e aldeamentos. Sobre aldeamentos

indígenas, o Relatório enuncia que

Já não existem aqui índios aldeados ou bravios. Das antigas tribos de Tabajaras,

Cariris e Pitaguaris, que habitavam a província, uma parte foi destruída, outra

emigrou e o resto constituiu os aldeamentos da Ibiapaba, que os jesuítas no princípio

do século passado formaram em Vila Viçosa, S. Pedro de Ibiapina, e S. Benedito

com os índios chamados Camussis, Anacaz, Ararius e Acaracú, todos da grande

família Tabajara. Com a extinção dos jesuítas, que os governavam teocráticamente,

decaíram esses aldeamentos, e já em 1813 informava um ouvidor ao governador

Sampaio que os índios iam-se extinguindo na Ibiapaba, onde tinham aqueles

religiosos um célebre hospício no lugar denominado Vila Viçosa, que com os outros

acima indicados abrangem a comarca deste nome. É neles que ainda hoje se encontra

maior número de descendentes das antigas raças; mas acham-se hoje misturados na

massa geral da população, composta na máxima parte de forasteiros, que excedendo-

os em número, riqueza e indústria, tem havido por usurpação ou compra as terras

pertencentes aos aborígenes. A mesma sorte que as da Ibiapaba tiveram as aldeias da

capital, compreendidas as da antiga vila de Aquiraz (onde existiu o hospício dos

jesuítas, fundado no princípio do século passado), Mecejana (missão de Paupina),

Arronches (missão de Parangaba), Soure (missão de Caucaia), e Monte-mór Velho

144

“O povo Tapeba é resultado de um longo processo de junção de elementos étnicos dos povos originários em

uma dinâmica de mútua assimilação. Potiguara, Tremembé, Cariri e Jucá foram etnias indígenas que, sob a

autoridade do poder colonial, agruparam-se na Aldeia de Nossa Senhora dos Prazeres de Caucaia - que deu

origem ao município de mesmo nome. A população Tapeba é composta, atualmente, por aproximadamente 6.439

indígenas que vivem distribuídos em 17 comunidades. Seu território está localizado na Região Metropolitana de

Fortaleza, no município de Caucaia – estado do Ceará. A Terra Tapeba foi identificada em 1986 com uma área

de 4.675 ha, pela FUNAI, e atualmente encontra-se em processo de demarcação”. (Informação disponível em

<http://www.tribodasaguas.org.br/o-povo-tapeba/o-povo-tapeba>; acesso em 16 jun. 2011). 145

As Caravelas Passam. Direção: Ivo Sousa, Marcos Passerine. Realização: Instituto Nosso Chão. Fortaleza-

Ceará, 2002. Disponível em três partes: <http://www.youtube.com/watch?v=i6uKfwd93hk>;

<http://www.youtube.com/watch?v=mjC3u-Y8Opk&feature=related>;

<http://www.youtube.com/watch?v=sK7UzcXEr04&feature=related>; acesso em 16 jun. 2011. 146

BRAZ, Isabelle. O Relatório Provincial de 1863: um documento, muitas leituras. Trabalho apresentado no

XXV Simpósio Nacional de História, Simpósio Temático 36: Os Índios na História, 2009, Fortaleza. Disponível

em: <http://www.ifch.unicamp.br/ihb/Trabalhos/ST36Isabelle.pdf >; acesso em 16 jun. 2011.

Page 70: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

69

(missão dos Paijacús). Os respectivos patrimônios territoriais foram mandados

incorporar à fazenda por ordem imperial, respeitando-se as posses de alguns índios.

O que se diz a respeito dessas aldeias é também aplicável às dos Trambabes

(Almofala) no termo do Acaracú, dos Jucás (Arneiroz) do termo de S. João do

Príncipe, e dos Cariris (Missão Velha e de Miranda) hoje Crato. No ano de 1860

Manuel José de Souza, do termo de Milagres, aldeou os restos a uma antiga tribo de

índios chocos, em número de 28, que erravam, perseguidos, entre os limites das

províncias de Pernanbuco, Parahyba e Ceará. [...] Tais são, em resumo, os

esclarecimentos que sobre aldeamentos ministrou-me o diligente autor da Estatística,

em ofício de 21 de julho do ano passado. (Relatório Provincial de 09 de outubro de

1863. Relatórios dos Presidentes da Província. BPGMP. Núcleo de

microfilmagem).147

Em 1878, em carta escrita pelo Ministro do Império ao Presidente da Província do

Ceará, a afirmação é confirmada:

Tendo deixado de existir, de fato, aldeamentos, que foram fundados nessa província,

em data recente ou remota, por se haverem dispersado seus habitantes ou fundido

nas outras classes, remetam ao ministério ao meu cargo quantos esclarecimentos for

possível para revelar a criação dos terrenos que constituíram tais aldeamentos. 148

O documento de 1863 insere-se na lógica instaurada pela Lei de Terras (1850),

segundo a qual se institucionalizava a terra como mercadoria e propriedade privada, ainda que

reservasse uma parte das terras devolutas para a “colonização dos indígenas”149

. Ora, se não

havia índios no Ceará, as terras ficariam à disposição da apropriação privada e criação de

cidades150

. Desde o Período Colonial, o direito das sociedades indígenas à terra foi

sucessivamente reconhecido pela legislações no Brasil. Izabelle Braz, então, reflete que:

Apesar disso, ao longo dos séculos as terras indígenas foram permanentemente

espoliadas. Objeto da cobiça dos latifundiários em grande parte das situações, as

terras indígenas foram tratadas na maioria das vezes como “terras de ninguém”.

Terra de ninguém não só pelo descaso com que eram tratados os seus ocupantes –

um “zé ninguém” – , mas pela literal desconsideração destes: se não era possível

desconhecer o Direito, tratava-se de não reconhecer o sujeito desse Direito. Se não

era possível ignorar o direito dos índios a terra, trata-se de negar a existência desses

índios. 151

No Ceará, a negação dessa existência veio acompanhada da afirmação de que os

índios estariam “misturados” à população. Ao debruçar-se sobre o estudo acerca dos Índios do

147

Ibid., p. 2; 3. 148

Informação disponível em <http://www.ecodebate.com.br/2008/12/22/o-reconhecimento-das-etnias-

indigenas-no-ceara-passa-pela-demarcacao-de-suas-terras/>; acesso em 16 jun. 2011. 149

Lei de Terras n 601/1850.

Art. 12. O Governo reservará, das terras devolutas, as que julgar necessárias: 1, para a colonização dos

indígenas [...]. 150

“Em ofício de 1859, [...] a Tesouraria da Fazenda [do Ceará] representava ao Governo Imperial “já não

existem ali hordas de índios selvagens e acham-se descendentes destes confundidos na massa da população

civilizada”. O que autorizava a mesma Tesouraria, em relação às terras indígenas “expedir ordens para que elas

fossem sequestradas e incorporadas aos próprios nacionais”” (BRAZ, Isabelle. O Relatório Provincial de

1863: um documento, muitas leituras. Trabalho apresentado no XXV Simpósio Nacional de História, Simpósio

Temático 36: Os Índios na História, 2009, Fortaleza. Disponível em:

<http://www.ifch.unicamp.br/ihb/Trabalhos/ST36Isabelle.pdf >; acesso em 16 jun. 2011). 151

Ibid., p. 9.

Page 71: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

70

Nordeste, João Pacheco de Oliveira narra que, em tendo vivenciado essa região fluxos

colonizadores antigos, as terras foram sendo incorporadas e as sociedades indígenas

exercendo suas posses em partes de seus antigos territórios. O desafio, então, é “reestabelecer os

territórios indígenas, promovendo a retirada dos não índios das áreas indígenas,

desnaturalizando a “mistura” como única via de sobrevivência e cidadania” 152

.

Ocorre que essa denaturalização da “mistura” passa pela compreensão de que há um

fato social que é característico “do lado indígena do Nordeste”, o que Oliveira chama de

“etnogênese”, termo que abrange “tanto a emergência de novas identidades como a reinvenção

de etnias já reconhecidas” 153

.

Em Oliveira, a etnogênese liga-se à ideia de territorialização. O autor diz que a

presença colonial instaura novas relações entre as sociedades indígenas com os territórios que

ocupavam, ou seja, “um processo de reorganização social”, o qual implica:

i) a criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma

identidade étnica diferenciadora; ii) a constituição de mecanismos políticos

especializados; iii) a redefinição do controle social sobre os recursos ambientais; iv)

a reelaboração da cultura e da relação com o passado.154

E isso acontece por processos de territorialização, que é um “movimento pelo qual

um objeto político-administrativo [...] vem a se transformar em uma coletividade organizada,

[...] reestruturando suas formas culturais” 155

.

Oliveira esclarece que, no Nordeste, as populações indígenas atuais “provêm das

culturas autóctones”, tendo passado por processos de territorialização, provocados pelas

missões e aldeamentos religiosos (século XVII e XVIII) e pelas agências indigenistas oficiais

(século XX).

No primeiro processo, caracterizado por uma política asssimilacionista e

preservacionista, há, nas missões, o disciplinamento pelo trabalho e pela catequese e uma

produção econômica voltada para o mercado, e é onde ocorre a primeira “mistura” com o

intuito de homogeneizar as culturas e “amansar” os índios. Posteriormente, há os casamentos

interétnicos estimulados pela “fixação de colonos brancos dentro dos limites dos antigos

152

OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e

fluxos territoriais. In: OLIVEIRA, João Pacheco de (Org.). A viagem da volta: etnicidade, política e

reelaboração cultural no Nordeste indígena. 2. ed. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/LACED, 2004, p. 20. 153

Ibid., p. 20; 21. 154

OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e

fluxos territoriais. In: OLIVEIRA, João Pacheco de (Org.). A viagem da volta: etnicidade, política e

reelaboração cultural no Nordeste indígena. 2. ed. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/LACED, 2004, p. 22. 155

Ibid., p. 24. Na mesma obra, o autor diferencia a “territorialização (um processo social deflagrado pela

instância política)” de “territorialidade (um estado ou qualidade inerente a cada cultura)”, exercendo ainda uma

crítica a esse último termo dizendo que “é uma noção utilizada por geógrafos franceses (Raffestin, Barel) que

destaca, naturaliza e coloca em termos atemporais a relação entre cultura e meio ambiente” (Ibid., p. 24).

Page 72: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

71

aldeamentos” (segunda “mistura”); e a formação de municípios e nova ocupação de

fazendeiros e agricultores não indígenas em territórios indígenas, acompanhados da

regularização das propriedades rurais trazidas pela Lei de Terras de 1850 (terceira “mistura”),

limitando assim as suas posses156

. No primeiro processo de territorialização

Ao final do século XIX já não se [falava] mais em povos e culturas indígenas no

Nordeste. Destituídos de seus antigos territórios, não são mais reconhecidos como

coletividades, mas referidos individualmente como “remanescentes” ou

“descendentes”. São os “índios misturados” de que falam as autoridades, a

população regional e eles próprios, os registros de suas terras e crenças sendo

realizados sob o título de “tradições populares”. 157

O segundo processo de territorialização, iniciado na década de 1920, diferencia-se do

primeiro, pois pretende interromper a “assimilação compulsória”, contudo, dentro de políticas

paternalistas, as quais impõem às sociedades indígenas um padrão de indianidade, como a

estrutura política (cacique, pajé e conselheiro) e os rituais diferenciadores. Oliveira destaca

que “a política indigenista oficial exige demarcar descontinuidades culturais em face dos

regionais”, e deixa para os não-índios o desenvolvimento das regiões158

.

Esses processos de territorialização, entretanto, observados por Oliveira ocorrem em

interação entre índios e não índios. A via não é “de mão única”. As diversas etnias, então,

repensam esses processos e a “mistura”, e “a sua atualização pelos indígenas conduz

justamente ao contrário, isto é, à construção de uma identidade étnica individualizada daquela

comunidade em face de todo o conjunto genérico de “indíos do Nordeste””159

. Nesse repensar,

Os antepassados seriam “os troncos velhos” e as gerações atuais “as pontas de

rama”. Quando as cadeias genealógicas foram perdidas na memória e não há mais

vínculos palpáveis com os antigos aldeamentos, as novas aldeias têm de apelar aos

“encantados”160

para afastar-se da condição de “mistura” em que foram colocadas.

Só assim podem reconstruir para si mesmas a relação com os seus antepassados (o

seu “tronco velho”), podendo vir a redescobrir-se como “pontas de rama”. 161

156

Ibid., p. 24-26. 157

Ibid., p. 26. 158

Ibid., p. 25-28. 159

Ibid., p. 28. 160

“Os encantos, encantados, mestres encantados, gentios ou caboquinhos são entidades sobre-naturais em

princípio benéficas, que auxiliam os índios de diversos modos. Enfatiza-se sobremodo seu caráter de entidades

“vivas”, isto é, que já são da natureza ou que, tendo sido humanos, não passaram pela experiência da morte, isto

é, não são “espírito de morto”, que é coisa de gente branco, numa alusão ao espiritismo, umbanda, ou outros

“trabalhos” que não são “coisa de índio”, mas que eles conhecem ou têm notícia. Assim, alguns deles tiveram

existência humana, foram antepassados que se teriam encantado, ido para o “reino dos encantados” ou “reino da

jurema” ou “juremá”, mas sem que tenham morrido”. (NASCIMENTO, Marco Tromboni de S. Toré Kiriri: O

sagrado e o étnico na reorganização coletiva de um povo. In: GRÜNEWALD, Rodrigo de Azeredo (Org.). Toré:

regime encantado dos índios do Nordeste. Recife: Fundaj, Editora Massangana, 2005, p. 43; 44). 161

OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e

fluxos territoriais. In: OLIVEIRA, João Pacheco de (Org.). A viagem da volta: etnicidade, política e

reelaboração cultural no Nordeste indígena. 2. ed. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/LACED, 2004, p. 29.

Page 73: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

72

Outro processo de territorialização, ocorrido nos anos 1970-1980, é descrito por

Oliveira. “Quando chegam ao conhecimento público reivindicações e mobilizações de povos

indígenas que não eram reconhecidos pelo órgão indigenista nem estavam descritos na

literatura etnológica”, citando, entre exemplos diversos, os Tapeba (Ceará) 162

. João Pacheco

de Oliveira compreende que esses processos de territorialização, apropriados e ressignificados

pelas sociedades indígenas, levam os índios a realizar a “viagem da volta” 163

.

Sylvia Porto Alegre registra que a FUNAI só tomou conhecimento da existência de

sociedades indígenas no Ceará quando foi procurada pelos Tapeba, em 1985/1986, “para pedir

a regularização de suas terras, logo seguidos pelos Tremembé” 164

. Desde então, diversas

etnias indígenas vêm requerendo à FUNAI a demarcação de suas terras no Ceará.

Sobre as populações que recém-iniciavam sua “viagem da volta”, Sylvia Porto

Alegre descreve que

A forma de ocupação da terra é um fator inseparável da unidade grupal. [...] O

espaço é vital porque a organização social se realiza nele e também porque é no

espaço que se expressa o simbolismo, a cognição, a transmissão de conhecimentos, a

cosmologia... Muitas festas seguem o calendário anual das colheitas, há uma

farmacopeia tradicional cuja eficácia depende de práticas rituais integradas ao

ecossistema circundante, as narrativas orais estão repletas de seres que habitam as

matas e lagoas, e assim por diante. A terra representa um elo de ligação com os

antepassados, cuja memória está associada à ocupação espacial, seus limites e

marcos físicos e sua variação no tempo. As terras reivindicadas para demarcação

correspondem a parcelas dos mesmos espaços em que as etnias identificadas estão

fixadas há pelo menos trezentos anos. [...] Deve-se ressalvar que a manutenção dos

antigos domínios foi assegurada apenas em parte e de modo relativo, devido a

invasões por não indígenas ocorridos em todas as áreas, em períodos diversos. 165

Por que durante mais de cem anos as sociedades indígenas silenciaram no Ceará? Há

uma frase, com algumas variações, que costumam dizer quando se referem à retomada da luta

por suas terras, seus territórios: “antes era hora de calar, agora é hora de falar”, ou “antes era

hora de parar, agora é hora de falar”. Desde há muito, a luta pelas terras indígenas no Ceará

está ligada ao reconhecimento, seja pelo ardil desconhecimento registrado na historiografia

cearense por parte da elite agrária e do Estado, seja pelos caminhos percorridos pelas

sociedades indígenas para falar. Na análise de Manuela Carneiro da Cunha

162

Ibid., p. 30. 163

João Pacheco de Oliveira refere-se à relação entre etnicidade e território presente nas sociedades indígenas no

Nordeste por uma “imagem – a de viagem da volta”. O autor esclarece que “no sentido usado [...] a viagem é a

enunciação, auto-reflexiva, da experiência de um migrante, transposta para os versos de Torquato Neto: “desde

que saí de casa, trouxe a viagem da volta gravada na minha mão, enterrada no umbigo, dentro e fora assim

comigo, minha própria condução””. E esclarece que: “a viagem da volta” não é um exercício nostálgico de

retorno ao passado e desconectado do presente (por isso não é uma viagem de volta)”. (Ibid., p. 32). 164

ALEGRE, Sylvia Porto. De ignorados a reconhecidos: a “virada” dos povos indígenas no Ceará. In:

PINHEIRO, Joceny (Org.). Ceará terra da luz, terra dos índios: história, presença, perspectiva. Fortaleza:

Ministério Público Federal, 2002, p. 28. 165

Ibid., p. 30; 31.

Page 74: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

73

O princípio dos direitos indígenas às suas terras, embora sistematicamente

desrespeitado, está na lei desde pelo menos a Carta Régia de 30 de julho de 1609. O

Alvará de 1º de Abril de 1680 afirma que os índios são “primários e naturais

senhores” de suas terras, e que nenhum outro título, nem sequer a concessão de

sesmarias, poderá valer nas terras indígenas. É verdade que as terras interessavam,

na Colônia, muito menos que o trabalho indígena. Mas até quando se inverte o foco

desse interesse, em meados do século XIX, e que menos do que escravos, se querem

títulos sobre terras, ainda assim se respeita o princípio. Para burlá-lo, inaugura-se um

expediente utilizado até hoje: nega-se sua identidade aos índios. E se não há índios,

tampouco há direitos. 166

Na escuta de suas falas, uma das perguntas que fiz às lideranças indígenas

entrevistadas foi como se sentiam tendo que “provar” sempre que são índios. As respostas

expressaram um sentir de que “já foi pior”, “já foi mais chato, mas agora melhorou...”. E a

razão disso apontada é que, “fruto da organização do próprio povo”, hoje eles sentem que têm

“mais reconhecimento”. Uma das lideranças disse-me que:

Eu diria que eu já cansei de mostrar que sou índio, já passei dessa etapa aí, hoje eu já

não tenho mais condições de tentar debater com uma pessoa, com um grupo de

pessoas para mostrar que eu sou indígena, isso é um fato, o que nós podemos fazer é

tentar sensibilizá-los. Porque como que eu vou mostrar que eu sou índio? Tem-se

que desconstruir toda uma história que se tem aí, infelizmente um livro de quarta

série do ensino fundamental ainda coloca lá no livro de história a visão do indígena

remetido ao passado, aquela imagem estereotipada, aquele indígena que está vivendo

nu numa selva, eu não falaria nem na Amazônia, na Amazônia nós temos vários

povos indígenas que já tem contatos históricos e já estão com situação muito

parecida com a nossa, são povos que inclusive deixaram de falar sua língua, não por

querer, mas por outros aspectos, aqui no Ceará a situação é muito complicada porque

no relatório provincial, de 1863, aproximadamente, se dá como extinta a população

indígena no papel, então toda essa reorganização política demandou esforços, foram

as próprias comunidades indígenas e forças externas também, a própria arquidiocese

de Fortaleza foi precursora em apoiar o povo Tapeba, então a igreja católica que

antes contribuía para dizimar, retorna para apoiar a organização política desses

povos, geralmente em alguns debates que eu participo, mesas redondas, quando vou

ministrar alguma palestra ou alguma coisa assim, que a pessoa me pergunto porque

você é indío, são perguntas tolas, mas que de fato requer uma resposta a altura, essa

resposta vem do Brasil diverso que precisa de fato reconhecer a diversidade e

reconhecer que a cultura indígena não é estática, ela evolui, não é porque sou

indígena que eu vou estar todo o tempo com a minha tanga, pintado de Jenipapo com

lança na mão. Para o povo Tapeba e para vários povos tem momento para isso, que

são momentos ritualísitcos e festas tradicionais, que infelizmente o europeu veio,

vestiu o indígena e ensinou o português, aí 510 anos depois esse mesmo descendente

de europeu quer que volte a falar a língua tradicional e tirar a roupa para poder ser

índio, essa visão que é do passado, então o que a gente tem que tentar construir

nesses espaços de diálogos que a gente tem, remontar uma outra visão de indígena e

é justamente essa visão de diversidade. 167

166

CUNHA, Manuela Carneiro. O futuro da questão indígena. Estudos Avançados, 1994, p. 127. Disponível

em <http://www.scielo.br/pdf/ea/v8n20/v8n20a16.pdf>; acesso em 17 jun. 2011. 167

José Augusto Sampaio, antropólogo, professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), no

documentário “As Caravelas Passam”, comenta que a imagem que se tem de índios é ligada a filmes

hollywoodianos de “bang-bang” sobre a “heróica” ocupação do oeste estadunidense, ou de povos indígenas no

passado; e que esse pensamento “rouba aos índios sua própria imagem para desautorizar sua indianidade. Isso foi

usado muito fortemente em nossa história para construir uma falsa ideia de unidade nacional no Brasil,

desautorizando as diferentes culturas, as diferentes histórias, os diferentes povos”.

Page 75: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

74

Adentrando outras questões, uma diferença é esclarecida a mim nas entrevistas, entre

território e terra indígena. A concepção de território parece ligar-se às suas terras tradicionais,

enquanto a Terra Indígena é a porção do território que conseguem, politicamente, ver

demarcada. Uma liderança diz-me que “a terra indígena é um local demarcado e reconhecido.

E o território é um local bem mais amplo em que você reconhece locais de rituais, os locais de

caça, os locais de pesca, o território é tudo que o povo indígena faz e que o povo indígena

constrói, e a terra é só uma parte desse território”. Outra liderança entrevistada aponta os

lugares tradicionais degradados, ou dos quais se perdeu o acesso, mas que continuam vivos na

memória, assim como, ao final, cita a retomada como um importante meio de reaver o acesso

e o domínio de antigas localidades ligadas ao território. As falas seguintes expressam o

reconhecimento da amplitude de territórios ligados a etnias de lideranças entrevistadas e a

difícil luta pela terra.

Primeiro que o território tradicional Tapeba é um território de 30 mil hectares, é um

dado histórico. Desde o século XVII nós temos a Carta [...] que assegura o território

tradicionalmente [...], esse 30 mil hectares seriam basicamente o centro do município

de Caucaia e áreas adjacentes168

, então hoje infelizmente o povo Tapeba sofre

perseguições históricas, de matanças de índios inclusive, o povo Tapeba ele se

refugiou nas periferias do município de Caucaia, para quem não conhece a história

do município de Caucaia, ela começou pelo aldeiamento de Nossa Senhora dos

Prazeres, que o centro desse aldeiamento foi na praça da matriz do município de

Caucaia, esse aldeiamento se tornou uma vila [...] e depois se tornou Caucaia, foi um

município instalado dentro do território tradicional Tapeba, então esse território

tradicional, ter um dispositivo legal que nós temos hoje, ele não contempla a nossa

realidade, não teria viabilidade, digamos assim, então o povo Tapeba reivindica a

terra indígena que é diferente de territótio de aproximadamente 5 mil hectares. [...]

nós conseguimos amadurecer politicamente durante os anos, e ver que de fato não há

viabilidade política para a demarcação desse território tradicional, a gente tem

apontado uma área para que o governo federal possa estar delimitando e

identificando aquela área para posteriormente demarcar e homologá-la. Por que

existe uma diferença muito clara de território indígena para terra indígena. O

território é essa visão mais ampla do que seria uma tradicionalidade de ocupação da

comunidade Tapeba. [...] A terra indígena que nós estamos apontando para a Funai

hoje para demarcar é uma parcela do território tradicional Tapeba. Um trabalho de

pesquisa bastante extenso, pelas próprias comunidade indígenas, nós verificamos que

a maior parte desses espaços simbólicos se encontram hoje dentro dos limites das

áreas que são ocupadas pelas comunidades indígenas, só que nós temos alguns

pontos que infelizmente estão fora, hoje se cita, por exemplo, o parque botânico do

Ceará, que é uma área que tinha a predominância do Murici que é uma fruta

apreciada pelas comunidades, para se fazer suco, e antigamente muitas famílias se

deslocavam das comunidades onde estão localizadas hoje, para essa área lá do

parque botânico para colher murici, madeiras... Então são espaços de memórias que

168

Carlos Frederico Marés aponta a contradição “entre os títulos coloniais [dados a sociedades indígenas] e seu

não reconhecimento pelos Estados Nacionais [como o Brasil]”, assim se expressando: “os reinos ibéricos [...]

reconheceram para alguns povos, trechos de potestade, talvez não tão pleníssimo, nem necessariamente o mesmo

território que os próprios indígenas reconheciam como seus, mas porções de terras, normalmente longe e

inóspitas. Esses títulos de terras invariavelmente eram “concessões” nos critérios de domínio privado da época,

cujo valor foi também invariavelmente rejeitado pelo sistema jurídico que viria a seguir e atribuía ao direito de

propriedade da terra conceito muito diverso”. (SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos

Povos Indígenas para o Direito. 6. reimp. Curitiba: Juruá, 2009, p. 45).

Page 76: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

75

foram tirados... [...] e tem as áreas de praia, Icaraí, Iparana que hoje são praias que

estão acabadas, arrasadas por conta de grandes empreendimentos que foram

instalados ali naquela região, essencialmente os dois portos, do Mucuripe e do

Pecém, e o povo Tapeba perdeu o domínio e acesso daquelas áreas, mas era uma

área de predominância e ocupação do povo Tapeba. Mas as outras áreas que antes

nós não tínhamos acesso, até recentemente como a Lagoa dos Tapeba, recentemente

nós não tínhamos acesso a ela, e com o processo de retomadas que é um processo

político extremamente importante, pode se reaver o acesso e domínio daquela região.

[Nosso território] na verdade passava [pelo município], né? Só que no relatório da

FUNAI, nos estudos geográfico da FUNAI, nós num, nós num... A nossa terra era do

Presídio, o Morro do Batoque, tudo bem, passava em Aquiraz também, mas nós num

quisemos porque vai encher de baronês169

, aí nós num vai querer confusão não.

Mesmo ali, naquele cantinho ali, nós já tem muita confusão, né?

Após, busquei compreender o sentido que davam a esse território, questionado por

alguns não índios como equivalente à dicção “território nacional”. Uma liderança falou-me, de

modo bem direto, que quando falavam de território não estavam se referindo a Nação, nem à

ideia de “construir um presidente aqui dentro que vá gerenciar um Estado”. Fala isso e sorri.

Completa dizendo que somos nós (não índios) que criamos conceitos a fim de entendê-los.

Reflito sobre essas palavras, casadas às seguintes de José Augusto Sampaio: “isso talvez seja a

maior expressão do preconceito, supor que nós sabemos o que é índio e não os próprios

índios”170

. A mesma liderança define território dizendo:

[a gente entende] que o território é um simbolismo da gente, é um local onde você

tem todos os elementos formadores da sua cultura e dê condições de você reproduzir

a sua cultura, a gente não fala território como se fosse uma nação, um Estado, a

gente fala território por aquele simbolismo de onde está a água, a terra, a mata.

E isso pressupõe autonomia, acesso e gestão da terra e dos recursos naturais ali

existentes; conceito que parece confluir com o que dispõe a Constituição Federal de 1988:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,

crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente

ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus

bens.

§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em

caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis

à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a

sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse

permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos

lagos nelas existentes. (grifo meu) 171

169

Como se referem aos não índios moradores próximos à região onde se localizam, a expressão parece ser um

termo pejorativo que caracteriza também uma não parceria com esses “baroneses”. 170

No documentário “As Caravelas Passam”. 171

Manuela Carneiro da Cunha destaca que, “quanto ao Direito Constitucional, desde a Constituição de 1934, é

respeitada a posse indígena inalienável das suas terras”. (CUNHA, Manuela Carneiro. O futuro da questão

indígena. Estudos Avançados, 1994, p. 127. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ea/v8n20/v8n20a16.pdf>;

acesso em 17 jun. 2011).

Page 77: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

76

A Constituição Federal de 1988 não usa, claramente, a expressão território indígena

para referir-se às suas terras tradicionalmente ocupadas, e ressalva que pode haver remoção de

grupos indígenas, entre outras hipóteses, no interesse da soberania do país, garantindo, em

qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco172

. Nesse contexto normativo,

lideranças entrevistadas expressam

Primeiro que terra indígena não contempla os interesses dos povos indígenas. Por

outro lado, ela [a Constituição] é uma legislação bastante completa. Por que assim, a

Constituição Federal garante no artigo 231 a terra indígena, descreve o que seria

terra indígena e nós temos um decreto presidencial que disciplina todo o

ordenamento jurídico para verificar, delimitar, demarcar e homologar essa terra

indígena. Então é uma legislação bastante completa, isso pra demarcar a terra

indígena, no caso de território tradicional, nós não temos hoje uma proteção jurídica

que garanta esse direito [...].

Ao serem, porém, questionados sobre se uma perspectiva territorializada da ocupação

indígena de suas terras estaria contemplada na Constituição, as lideranças remetem a duas

questões: a) interpretação do Direito (“depende do ponto de vista”); b) aplicação e

concretização do Direito.

Quanto à interpretação, destacam que “geralmente os juristas entendem como

ocupação tradicional apenas uma forma de habitação permanente”. Reflito sobre a perspectiva

dos juristas sobre outras culturas, em geral a partir de si, sem o exercício da alteridade. Uma

das lideranças exemplifica essa compreensão com o caso do Parque Botânico do Ceará, onde

se encontra uma área de muricizal, dizendo:

[...] os indígenas vinham [de uma] região [mais distante], a pé, para colher murici

nessa área do parque botânico e retornavam para suas casas, estavam numa área e

172

Esse imediato retorno, previsto no art. 231, § 5º, da Constituição Federal de 1988, por muitas vezes é

inviabilizado ao modo de Belo Monte ou da industrialização nas Terras Anacé no Ceará. “A polêmica em torno

da construção da usina de Belo Monte na Bacia do Rio Xingu, em sua parte paraense, já dura mais de 20 anos.

Entre muitas idas e vindas, a hidrelétrica de Belo Monte, hoje considerada a maior obra do Programa de

Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal, vem sendo alvo de intensos debates na região, desde

2009, quando foi apresentado o novo Estudo de Impacto Ambiental (EIA) intensificando-se a partir de fevereiro

de 2010, quando o MMA concedeu a licença ambiental prévia para sua construção. Os movimentos sociais e

lideranças indígenas da região são contrários à obra porque consideram que os impactos socioambientais não

estão suficientemente dimensionados. Em outubro de 2009, por exemplo, um painel de especialistas debruçou-se

sobre o EIA e questionou os estudos e a viabilidade do empreendimento. Um mês antes, em setembro, diversas

audiências públicas haviam sido realizadas sob uma saraivada de críticas, especialmente do Ministério Público

Estadual, seguido pelos movimentos sociais, que apontava problemas em sua forma de realização”. (Informação

disponível em <http://www.socioambiental.org/esp/bm/index.asp>; acesso em 17 jun. 2011). “Nos últimos anos,

as comunidades que vivem em São Gonçalo do Amarante e Caucaia, municípios da região metropolitana de

Fortaleza, Ceará, vem sendo impactadas pela construção do uma série de empreendimentos na área de

infraestrutura e indústrias primárias, como siderúrgicas, termelétricas e refinaria, integrantes de um projeto

denominado Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP). Dentre as comunidades afetadas, um grupo, em

especial, tem resistido ao processo de implantação do CIPP, reivindicando a identidade étnica Anacé e relações

diferenciadas com o território, o que pressupõe outros modelos de uso e gestão dos recursos naturais”.

(NÓBREGA, Luciana; JOCA, Priscylla. Povo Indígena Anacé e o Complexo Industrial e Portuário do Pecém:

tessituras socioambientais de um “Admirável Mundo Novo”. In: WACHOVICZ, Marcos; MATIAS, João Luis

Nogueira (Org.). A Efetivação do Direito de Propriedade para o Desenvolvimento Sustentável: relatos e

proposições. Florianópolis: Boiteux, 2010).

Page 78: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

77

utilizavam aquela área de coleta, então aquilo ali é uma forma de ocupação, é

usufruto também daquela área.173

Essa liderança dá como outro exemplo o caso de uma lagoa (dos Porcos) que se

encontra sob a posse de um não índio. Refere-se à lagoa como um “lugar de memória”, um

“espaço simbólico”, ao qual conseguiram o acesso junto a Justiça Federal, “então várias

comunidades se deslocam das suas áreas de habitação permanente para ir lá, tem gente que

passa 2 ou 3 dias pescando, faz fogueira na lagoa, interage com família de outras aldeias”.

Conta, no entanto, que o advogado do não índio que detém a posse do local “defende que

aquela área não é área de ocupação [indígena], porque não temos famílias indígenas morando

lá dentro, mas não temos famílias morando lá dentro pela história de expulsão, de

sobreposição de poder”. Por fim, essa liderança diz que “na esfera jurídica é defesa de ponto

de vista mesmo. Aí nós temos que buscar prevalecer o nosso ponto de vista”.

Outras lideranças falam sobre a necessidade de concretização dos direitos indígenas

constitucionalmente assegurados:

É o que tá lá escrito, né? Mas precisa dos presidente que tá aí... É... É demarcar a

terra pros povo indígena, né? É cumprir o que tá escrito, porque muita coisa que tá

escrita e num é cumprida.

A gente tem um pouco de conhecimento da Constituição, deu direito aos Povos, a

suas terra de origem, onde o povo caça, pesca, a terra prometida ao povo. [pergunto

se o que se quer a constituição fala, ele prontamente responde que sim] A

constituição fala, mostra os artigos de lei onde se tem o direito, só que o Poder

Judiciário que tem a lei, ele não cumpre. O judiciário não cumpre pelos interesses,

essa questão de terra é uma questão muito séria, ela só beneficia aos povos

indígenas, que não tem moradia, que é carente, não tem sobrevivência, o cara que

tem terra nunca vai abrir mão, ele não vai abrir mão para quem não tem, enquanto

ele puder, ele não vê essa dimensão dos povos indígenas, eles não cumprem a

palavra que tá dentro da lei, são poderosos, tem o dinheiro, como tem o dinheiro

acham que compram tudo.

Mais uma liderança diz que “a maioria das reivindicações posso dizer que está

contemplado [na Constituição]”. Pergunto, então, “e o que não está contemplado?”. Ao que

ela responde:

Essa questão de você demarcar uma terra num tamanho, se pensar o povo precisa de

4000 hectares, e não fazer essa projeção de que o povo vai aumentar. Acho que isso

poderia ser mais aberto. A qualquer hora que o povo achar que tem que ampliar sua

terra, será reservado o direito daquele povo ampliar a terra. Não tem escrito isso lá, e

não pode, o Supremo fechou agora. Agora você não pode ampliar a terra de maneira

alguma. Que é uma forma de segregar o povo, de matar aquele povo. Com o passar

173

Antonio Carlos Diegues faz uma crítica à cultura dos parques como modo de preservação da natureza apartada

da presença humana. Na análise do autor “a noção de parques ou áreas protegidas que excluem as populações

tradicionais é incompreensível para as culturas portadoras desse pensamento biantropomórfico. A disjunção

forçada entre a natureza e a cultura tradicional, em que os homens são proibidos pelo Estado de exercer suas

atividades do fazer patrimonial, e também do saber, representa a imposição de um mito moderno: o da natureza

intocada e intocável, próprio da sociedade urbano-industrial sobre mitos das sociedades tradicionais”.

(DIEGUES, Antonio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 61; 62).

Page 79: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

78

dos anos do jeito que a gente tá aumentando, nós vamos pra onde? Nós vamos nos

bater dentro das aldeias. 174

Outro ponto levantado por aquela liderança atinge diretamente os Povos do Ceará

(dentre outros no Nordeste e restante do Brasil). Em terras cearenses, diversas etnias vêm se

apresentando ainda sob o efeito de medos e temores atavicamente passados e registrados em

memórias coletivas175

.

João Pacheco de Oliveira, referindo-se às sociedades indígenas do Nordeste como as

“que mais sofreram com o avanço da civilização”, percebe que a passagem desses cinco

séculos não as levou à “resignação e passividade”, pelo contrário, as têm levado,

[...] através de uma permanente manifestação de vontade, a um exercício reiterado de

criatividade, em que [as] vamos encontrar em um processo histórico de auto-

afirmação enquanto coletividades que se reivindicam como indígenas176

.

E, se as vamos encontrar em meio a esse processo histórico, a quantidade de

coletividades que se reivindicam como sociedades indígenas, e de índios que se declaram

como “pontas de rama” de “troncos velhos” vêm aumentando no Ceará.

Em 2002, em “As Caravelas Passam”, o cacique João Venâncio dizia que “apesar

disso tudo, nós tamo vivo e crescendo com a nossa organização, são 10 Povos no Estado do

Ceará, 4 reconhecido pelo órgão indígena da FUNAI e 6 para ser reconhecido, tem mais

pipocando por aí”. No mesmo documentário, José Augusto Sampaio diz que

No Nordeste é onde a população indígena mais tem crescido, não somente pelo

crescimento vegetativo dos índios, mas por sua organização, movimentos, interesse

dos índios em assumir sua identidade, em lutar politicamente para garantir seus

direitos.

Hoje, a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e

Espírito Santo (APOINME) declara a existência de 14 etnias no Ceará: Tapeba, Jenipapo

174

Em sede de Ação Popular (n 3388/2005), o Supremo Tribunal Federal decidiu pela constitucionalidade da

demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e estabeleceu 19 condicionantes que dispõem sobre

questões a serem observadas em relação à Terras Indígenas no Brasil. A condicionante n 17 determina: “é

vedada a ampliação da terra indígena já demarcada” (Acórdão do STF, Pet 3388, Relator (a): Min. CARLOS

BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2009, DJe-181 DIVULG 24-09-2009 PUBLIC 25-09-2009 EMENT

VOL-02375-01 PP-00071). Para aprofundar-se sobre as consequências da condicionante n 17 sobre as

sociedades indígenas no Ceará, ver em: CAMILO, Ana Sinara Fernandes. O STF, a Condicionante n 17 do

Caso “Raposa Serra do Sol” e a sua Possível Repercussão na Demarcação das Terras Indígenas no Ceará.

XIX Encontro Nacional do CONPEDI, 2010, Fortaleza. In: Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI –

Fortaleza. Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux, 2010. 175

Uma das lideranças entrevista disse que a mãe dela conta que a repressão e violência contra seu Povo foi tão

grande que teve “sangue pra dar nas canelas”. A mãe dessa liderança, em outra oportunidade, contou-me que o

pai dela dizia que os avós dela contavam que quando Aquiraz (Ceará) foi construído foi “sangue pra dar nas

canelas”, “milhares e milhares de índios mortos”. Para ver outra versão da história de Aquiraz, ir a

<http://www.aquiraz.ce.gov.br/historico.asp>; acesso em 27 jun. 2011. 176

OLIVEIRA, João Pacheco de. Prefácio. In: OLIVEIRA, João Pacheco de. Prefácio. In: GRÜNEWALD,

Rodrigo de Azeredo (Org). Toré: Regime encantado do índio do Nordeste. Recife: Fundaj, Editora Massangana,

2005, p. 9.

Page 80: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

79

Kanindé, Kanindé, Kalabaça, Kariri, Tupinambá, Tabajara, Potiguara, Pitaguary, Tremembé,

Tapuia-Kariri, Anacé, Gavião e Tubiba-Tapuia177

. Em 2007, declarava-se que eram “12 etnias

que perfazem uma população estimada em 18.000 habitantes”178

. Uma liderança diz que

Quando foi feita a Constituição, não se pensou nem nessa questão da declaração.

Nem se passava na cabeça a auto declaração. Mas é colocado uma terra que tenha

condições da reprodução física e cultural. Se for feita uma projeção em dez anos, a

população indígena vai aumentar, como vem aumentando, sem a auto declaração já

está aumentando, como alguns estudiosos tinham a ideia e os governos também, de

que o povo indígena ia se acabar. Iam ser incorporados, eles nem pensavam em auto

declaração, e também de ir morrendo, e se você pegar agora as pesquisas o povo

indígena está aumentando a sua taxa de natalidade e fora a auto declaração, a

pesquisa do IBGE179

deu uma margem de pessoas que o cadastro da FUNASA180

e

da FUNAI dá outro, porque as pessoas mesmo na cidade elas se auto declaram, não

perderam esse vínculo.

Com efeito, as demais lideranças expressam que: “a autodeclaração é muito boa para

nós do Estado do Ceará”. Uma das lideranças faz uma ressalva que a autodeclaração pode até

“não funcionar” para os “povos da região Norte”, mas que aqui no Nordeste é “o principal”.

Perguntei-lhe porque não funcionaria ao que ela responde:

Porque eles vêm daquela tradicionalidade da floresta não ser muito penetrável, e aí

eles têm a cultura deles, [...] eles têm os traços característicos do povo de lá. Então se

você olha, a pessoa nem precisa se autodeclarar, a pessoa já tá dizendo que você é

índio. Aqui não, você precisa de uma auto declaração!181

.

177

Informação disponível em <http://www.apib.org.br/org_apoinme/>; acesso em 23 jun. 2011. 178

BRAZ, Isabelle. Direitos Humanos e Observatório dos Direitos Indígenas. In: BRAZ, Isabelle;

MARANHÃO, Mas (Orgs.). Direitos Humanos e a Questão Indígena no Ceará. Fortaleza: Imprensa

Universitária, 2009, p. 11. De acordo com dados da Coordenação dos Povos indígenas do Ceará de 2007. A

FUNAI reconhece a existência de

nove etnias no Ceará (informação disponível em <http://www.funai.gov.br/mapas/etnia/etn_ce.htm>; acesso em

20 jun. 2011. 179

“Segundo dados divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o Censo Demográfico

realizado em 2010 no Brasil encontrou 817 mil pessoas que se declaram indígenas no Brasil, o que representa

0,42% do total da população brasileira. O número representa um crescimento de 11% em relação ao registrado no

Censo de 2000, quando 734 mil pessoas se declararam indígenas”. (Informação disponível em

<http://www.funai.gov.br/ultimas/noticias/1_semestre_2011/abril/un2010_17.html>; acesso em 20 jun. 2011). A

taxa média atual de crescimento da população brasileira, registrada entre 2000 e 2010, foi de 1,17%, havendo um

decréscimo no crescimento dessa população, cujo índice apontado anteriormente pelo censo de 2000 foi de

1,64%. (Informação disponível em <http://noticias.r7.com/brasil/noticias/taxa-de-crescimento-da-populacao-

brasileira-desacelera-em-dez-anos-aponta-censo-20101129.html>; acesso em 20 jun. 2011). O censo

populacional de 2000 do IBGE apontou que a população indígena localizada na região Nordeste era a segunda

maior do país; 29,1% estavam na região Norte; 23,2% na região Nordeste (BRAZ, Isabelle. Direitos Humanos e

Observatório dos Direitos Indígenas. In: BRAZ, Isabelle; MARANHÃO, Max (Orgs.). Direitos Humanos e a

Questão Indígena no Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2009, p. 11). 180

“O Sistema de Informação de Atenção à Saúde Indígena – Siasi apresentou em 2010, um total de 600.518

indígenas cadastrados. [...] Segundo o Siasi, nas regiões Norte e Centro-Oeste do país reside 64% da população

indígena, em 98% das terras indígenas. Em contrapartida, nas demais regiões localiza-se apenas 2% das terras

indígenas legalizadas e em processo de legalização, com 36% da população indígena do país. Neste ano, a

distribuição da população indígena pelas regiões brasileiras foi: 46,2% da população indígena na região Norte,

25,4% no Nordeste, 17,7% no Centro-Oeste e 10,7% nas regiões Sul-Sudeste” (Informação disponível em

<http://www.funasa.gov.br/internet/desai/sistemaSiasiDemografiaIndigena.asp>; acesso em 20 jun. 2011). 181

O critério da autodeclaração é previsto na Convenção n 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre

Povos Indígenas e Tribais, promulgada pelo Decreto n 5.051/2004 no Brasil, segundo a qual:

Art. 1º. [...].

Page 81: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

80

Nos diálogos com as lideranças entrevistadas, estas afirmam a importância da

organização do Movimento Indígena para a conquista da concretização de seus direitos. Uma

das lideranças, ao ser questionada pela pergunta “ você acredita nas instituições como meio de

fazer valer o direito de vocês?” respondeu

[Liderança] - Eu não acreditaria se houvesse somente as instituições, eu acredito na

função do movimento indígena como instância de busca da efetivação desses

direitos, eu não acredito que a instituição, o governo ele vai lá e faça cumprir o que

está estabelecido em lei, que nós temos uma legislação hoje bastante ampla, uma

legislação que contempla todos os interesses dos povos indígenas, mas que

infelizmente não são efetivamente aplicados, então cabe ao movimento indígena

buscar mecanismos para fazer com que essa legislação seja efetivada, que é o que

nós temos feito.

Buscando, também, investigar as percepções dessas lideranças sobre as possíveis

interconexões do direito de propriedade com os direitos territoriais indígenas no Brasil, as

questionei nesse sentido182

. As respostas atinentes à questão revelaram: a) a dificuldade de

acesso, até mesmo em caso de necessidade de ações fiscalizatórias e preventivas da FUNAI

em terras indígenas não demarcadas sob a posse de não índios, em virtudes das proteções

jurídicas estatais do direito de propriedade; b) a percepção das lideranças de que magistrados,

membros do Ministério Público, olham para as sociedades indígenas ainda sob a lógica da

defesa dos direitos de propriedade; c) a compreensão das lideranças de que a “forte bancada

ruralista” no Congresso Nacional e a falta de um “representante lá” dificultam a conquista de

seus direitos e d) reafirmação da importância do Movimento Indígena para a consecução de

seus direitos. As lideranças narram que

[...] nós temos uma esfera judiciária que ela muitas vezes não está pronta para

receber um novo, ou então conceber esses direitos das comunidades tradicionais, em

especial as comunidades indígenas. Que se tem uma visão, geralmente o poder

econômico, às vezes os poderes políticos, sobrepõe o que está estabelecido na

legislação.

1. A presente convenção aplica-se:

a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam

de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios

costumes ou tradições ou por legislação especial;

b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que

habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do

estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas

próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas.

2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental

para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.

(grifos meus) 182

A normatização dos direitos territoriais indígenas não se confunde com o regime jurídico estatal da

propriedade privada no Brasil. A Constituição Federal e leis infraconstitucionais normatizam a demarcação de

terras indígenas. A pergunta foi realizada no intuito de compreender, com base nas falas de lideranças indígenas

entrevistadas, os conflitos porventura existentes entre o direito de propriedade e a concretização dos direitos

territoriais indígenas.

Page 82: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

81

Hoje os maiores obstáculos que nós temos enfrentando é justamente isso, a própria

FUNAI, [...] certas situações tem dificuldade inclusive de entrar em áreas para

realizar ações de fiscalizações, [...] ou uma denúncia que a comunidade vem e trás

pra FUNAI que tem um determinado posseiro que tá desmatando uma área, e essa

área está dentro do limite da terra indígena [...] mas está na posse do posseiro, é uma

área de litígio que a FUNAI tem por obrigação garantir que essa área não seja

descaracterizada, então a FUNAI tem o poder de fiscalizar essa área, geralmente ela

chega lá, aí o posseiro, fazendeiro ou latifundiário coloca a ideia de que a posse é

dele e que a FUNAI não teria o direito de entrar na propriedade, e teria que ter um

mandato judicial para poder entrar, então infelizmente nós temos uma estrutura de

poder que de fato assegura esse direito do camadarada! [...] infelizmente a história de

direito de propriedade é muito forte dentro das terras indígenas.

[...] nós temos aí no próprio congresso nós temos a bancada ruralista forte e os

indígenas não tem nenhum representante lá [...].

[...] a luta judicial, muitas vezes ela é desigual [...]. Então [no Ceará] nós temos

procuradores que entendem a realidade dos povos indígenas como deve ser feito e

tem procuradores que não se importam muito não, de comprar a briga [...]. Mas qual

é o nosso papel?! Nosso papel como indígena é primeiro buscar com que o que está

estabelecido na legislação seja cumprido, e buscar mecanismos institucionais,

através da FUNAI, do Ministério Público e de outras instituições para fazer com que

aquele direito seja interpretado da forma como ele está previsto ali, quando fala de

ocupação permanente, não é a habitação, a casa em si, tem toda uma questão

histórica que os antropólogos conseguem subsidiar da melhor forma possível nos

relatórios de identificação e delimitação.

O não reconhecimento da identidade indígena por parte de não índios usado como

justificativa para a não concretização de seus direitos territoriais e para a apropriação privada

de territórios indígenas; o controle de localidades de seus territórios por não índios, os quais se

encontram sob a proteção da legalidade estatal; a interpretação de ocupação tradicional como

ocupação permanente, dentre outros fatores, revelam a lógica da propriedade privada em

conflito com os direitos territoriais dessas sociedades indígenas, obstaculizando sua

concretização.

José Augusto Sampaio assevera que “quem está ocupando as terras indígenas ou está

de olho nelas são as velhas elites agrárias brasileiras, nossas antigas oligarquias rurais, que

infelizmente ainda estão poderosos, e hoje também por interesses econômicos

internacionais”183

. No Ceará, as etnias indígenas estão em conflito socioambiental e/ou

territorial com posseiros, latifundiários, empresas nacionais e multinacionais,

empreendimentos turísticos, empreendimentos estatais.

Objetivando buscar pistas investigativas para conhecer, ainda que inicialmente, os

significados dados ao Direito, perguntei: “o que você chama de Direito?”. As respostas

confluíram em parte com o explicitado por moradores(as) de Curral Velho e integrantes da

coordenação estadual do MST entrevistados(as). Disseram que “direito é o que seria essencial

183

No documentário “As Caravelas Passam”.

Page 83: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

82

para a nossa vida” (aparecendo o direito ao território em primeiro plano junto a outros, como

saúde, educação). Outro aspecto emerge de suas falas: direito como um exercício coletivo,

tanto em seu significado, como um direito da coletividade à “gestão ambiental territorial dessa

área [demarcada]” e de autonomia de suas comunidades.

Partindo do princípio de quando se faz uma retomada, vai um grupo de pessoas, isso

aqui é um direito coletivo que nós vamos usufruir daquela terra coletivamente.

Mesmo que depois a gente divida em quadradinhos, mas se você fechar o quadrado

ele fica coletivo para todo mundo.

O que eu chamo de direito é o que seria essencial para a nossa vida, então o que é

essencial para a vida de um povo indígena, essencialmente o direito ao território,

então, o direito à terra, que seria essencial para garantir a minha vida, a vida da

minha família, a vida da minha comunidade, a vida do meu povo, por isso que

quando se fala de direito à terra já se fala do direito indígena à reprodução física e

cultural, tem que garantir isso, o direito à vida pro meu povo, tem que garantir a

terra, tem que garantir a saúde, tem que garantir a educação [...].

[...] a gestão ambiental, territorial dessa área tem formas que vão ser realizadas pelas

próprias comunidades [...]. A autonomia da comunidade, as formas de representação,

as atividades de subsistência vão ser garantidas por conta do território, a forma de

garantir uma educação diferenciada também, se relaciona muito ao nosso território, a

manutenção da cultura, o fortalecimento da identidade, a revitalização da memória,

então tudo isso está ligado diretamente à questão territorial, então o que a gente

considera como direito essencialmente é o que se garante a nossa vida, e é uma vida

com qualidade, é uma vida digna, uma vida que não seja suprimido os direitos

coletivos do nosso povo...

Na conquista de seus direitos territoriais, ressaltam que as retomadas de terras são

estratégias vitais; e se ligam ao sentimento de que agem pelo Direito, ainda que possam se

contrapor a títulos de propriedade184

:

Todas as terras que nós ocupamos hoje que não era nossa, comprada, ela é de

retomada [...] aqui na aldeia [...] foi um retomada, a gente colocou dois posseiros

para fora da terra indígena em 2002 com o apoio dos outros povos, e nesse caminho

que você viu que disse que tem muitas casas, a gente foi fazendo a ocupação que

eram terras do Estado, e a gente foi fazendo a ocupação, a maioria da nossa terra

hoje ela foi por conta de retomada. A gente faz porque achamos que temos direito.

Se não fosse a gente não faria. Nós só fazemos retomadas de áreas que nós temos na

memória como sendo nossas. A gente não vai fazer numa área que não é nossa, nós

sabemos que nós iremos sair. A gente só faz nas áreas que nós temos certeza que é

nossa. Quando a gente está lá e chega um policial, é um direito nosso, e eles dizem:

“Ah! Mas vocês não têm direito, o dono tem o título”. Eu não quero saber, mas é

nosso!

Ao serem questionados acerca do que sentem falta em suas comunidades, o que lhe

parecia o “pior problema”, todos apontaram: a questão da demarcação da terra e os conflitos

socioambientais. “O pior problema jurídico é o andamento do processo de demarcação”, “o

principal é a demarcação da terra definitiva”. Quanto aos conflitos, dizem:

184

Lembrou-me a fala de moradores(as) de Curral Velho discorrendo sobre o que os faz sentir em uma relação de

pertença com a terra que ocupam, algo que os legitima mais do que qualquer “papel” (título de propriedade).

Page 84: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

83

[Liderança 1] E que aquela empresa deixe a gente tirar água da nossa Lagoa e ela

fosse retirar água num açude. Foi feito um acordo já a 8 anos atrás com a prefeita

[...]. Que é puxado, mal cozinhado, e nunca foi cumprido esse acordo. Porque aquela

empresa acabou com a nossa mãe. Porque nós sem aquela Lagoa num somo nada.

Aquela Lagoa era muito rica de natureza. Hoje, quando eu chego dentro da aldeia,

que eu vou pra casa choro o meu coração de ver uma coisa daquela ali. Tão linda,

maravilhosa que era, e hoje se encontrar pedindo socorro. Que a Lagoa da Encantada

era uma belíssima lagoa é uma belíssima, e hoje pede socorro [enfática]. E a gente

ver que os órgão que era pra ajudar ela, o IBAMA, que é o principal, ficam

dormindo, sem dar as coisa pra ela. Nossa mata é muito viva lá [passa a referir-se a

locais ligados à espiritualidade].

[Liderança 2] No passo hoje que a gente tá o mais difícil é a demarcação de terras,

educação entramo, saúde, entramo na política e ganhamo espaço, não tem política

clara para a demarcação, as terras estão privatizadas nas mãos de posseiros,

fazendeiros, grileiros. [...] por detrás disso tudo tem a [nome de uma empresa] que

tem uma boa percentagem de área indígena.185

Essas questões vêm intimamente conectadas ao enfrentamento à lógica da

propriedade privada e a significados atribuídos ao que se chama de desenvolvimento. Nas

falas das lideranças, há a compreensão de que são vistos [por não índios] como “empecilhos”

ao desenvolvimento do País. As lideranças também compreendem que a pressão política e

econômica que vem de determinados grupos sociais torna hegemônica uma visão de

desenvolvimento186

e influencia fortemente o campo jurídico, obstaculizando a concretização

de direitos territoriais indígenas.

O artigo 3 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas

reconhece que “os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito

determinam livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento

econômico, social e cultural” (grifei)187

. Confluente com esse e outros enunciados presentes

na Declaração, a concepção do etnodesenvolvimento traz, em seus princípios, o respeito à

autodeterminação e autonomia das sociedades indígenas188

.

185

Nas visitas que fiz acompanhando Tuíra e Luiz Gama a localidades indígenas de sociedades diversas, observei

a presença de escolas diferenciadas e postos se saúde com agentes indígenas. 186

Essa visão de desenvolvimento pauta-se em não conservação do meio ambiente (como meio social e natural) e

não fortalece a autonomia local, priorizando a criação de infraestrutura para empreendimentos empresariais e

provocando o empobrecimento de populações, ainda que haja a promessa de que esse desenvolvimento reverter-

se-ia em benefício para estas. Percebi a crítica a esse modelo de desenvolvimento também nas falas de moradores

de Curral Velho e da Lapa. 187

Essa Declaração foi aprovada em 13 de setembro 2007. Para saber mais sobre a Declaração ver em:

UNESCO; ISA. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas: perguntas e respostas.

Brasília: 2008. Disponível em <http://unesdoc.unesco.org/images/0016/001627/162708POR.pdf>; acesso em 03

jul. 2011. 188

Rodrigo de Azeredo Grünewald faz uma análise sobre o etnodesenvolvimento na perspectiva dos Povos

Indígenas do Nordeste. Conferir em: GRÜNEWALD, Rodrigo de Azeredo. Etnodesenvolvimento indígena no

Nordeste (e Leste): aspectos gerais e específicos. In: ATHIAS, Renato. Revista AntHropológicas. Ano 7,

volume 14, Universidade Federal de Pernambuco: 2003, p. 47-71.

Page 85: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

84

Na VI Marcha do Povo Tremembé de Almofala (setembro de 2010) a que estive

presente acompanhando Luiz Gama189

, observei uma frase expressa em destaque, a qual dizia:

“Demarcação sim, turismo não”. Em outra oportunidade, entrevistando uma liderança

indígena desse povo, perguntei-lhe o que queriam dizer com a frase, ao que este respondeu:

Queremos preservar nossa liberdade, nosso direito, nosso lugar. Queremos turismo

local, cultura, que respeite as nossas dunas, nosso jeito de ser. [...] Temos que

trabalhar por uma educação diferenciada, que respeite a natureza, nosso jeito de ser;

saúde de qualidade que respeite nossa medicina tradicional. Que respeite nosso

território, nossas dunas, nossa tranquilidade, a beleza do nosso lugar.

Em outras ocasiões, indaguei a lideranças de outras etnias: “se vocês pudessem ir pra

outro canto e viver em paz, vocês iriam?”. De uma delas ouvi a seguinte resposta: “minha

filha ofereceram, e muito dinheiro [fala bastante enfática] pra nós e nós num... Nós nascemo

aqui, nós se criamo, vamo morrer aqui, e vamo terminar tudinho aqui, nessa terra”.

Essa fala, em diálogo com uma história contada a mim por outra liderança190

, fez-me

sentir a força centrada na luta em torno de seus direitos territoriais, na qual o Toré(m) é

descrito como:

[...] uma forma de expressão de identidade, ele ocupa a função de simbolismo e de

espiritualidade muito forte. Então é essa função de simbolismo que fez com que a

identidade do nosso povo permanecesse sempre forte, sempre viva, né? E de fato o

Toré serve pra isso ainda hoje. O Toré consegue unir, deixa as divergências de lado,

se tem o Toré. E aí em qualquer luta política se tem o Toré. Se realiza uma retomada

a abertura da retomada é feita com o Toré. Se se consegue efetivar a permanência da

comunidade naquela área de retomada depois de um ano se comemora um ano da

retomada daquele espaço com o Toré. Se faz uma manifestação em frente a um

prédio público ou se ocupa um prédio se dança o Toré. Se for um momento festivo,

um momento de tristeza e manifestação política tudo isso se usa o Toré. O Toré é de

fato o principal instrumento que fortalece a identidade dos povos indígenas e é o

Toré de fato que conduz a luta dos nossos povos, né. A espiritualidade é quem

conduz a luta indígena do nosso povo. 191

189

O advogado, convidado a falar após o decurso da marcha como parceiro na luta do Povo Tremembé, assim se

expressou para os ouvintes: “no Direito há muita gente que não foi preparada para lidar com os povos” (anotação

em diário, no dia 7 set. 2010). 190

Sobre a história, a liderança contou-me que: “[...] E lá foi uma história interessante, porque tinha interesses de

fora do país, um grupo espanhol querendo instalar um macro empreendimento hoteleiro, campo de golfe, aquela

coisa toda, e teria apoio do Governo do Estado, e as duas comunidades lá, que eram pequenininhas, com um

número muito pequeno de famílias conseguiu desmoronar todo um projeto milionário que estaria sendo instalado

naquela região”. 191

“Definido pelos indígenas como “tradição”, “união” e “brincadeira”, o toré é um fenômeno complexo,

compreendendo dimensões contrastantes e possuindo uma importância crucial em suas vidas. Em certos aspectos

é nele que mais perfeitamente essas coletividades se materializam, transmitindo e reafirmando valores e

conhecimentos. Como uma performance politica, é no toré que se realiza mais plenamente uma demarcação

identitária, sem deixar de ser para os próprios participantes uma atividade lúdica e ligada aos desejos

individuais”. (OLIVEIRA, João Pacheco de. Prefácio. In: GRÜNEWALD, Rodrigo de Azeredo (Org). Toré:

Regime encantado do índio do Nordeste. Recife: Fundaj, Editora Massangana, 2005, p. 10). O Povo Indígena

Tremembé (Ceará) se expressa no torém. Para ver documentário onde índios Tremembé falam sobre a ligação

entre oTorém, sua identidade étnica e a questão da terra, ir em

<http://www.youtube.com/watch?v=zsu6G9ciGn0>; acesso em 30 mai. 2011. Sobre o Torém e os Tremembé,

consultar também OCTAVIANO DO VALLE, Carlos Guilherme. Torém/Toré: tradições e invenção no quadro

Page 86: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

85

Por fim, inquiri as lideranças entrevistadas sobre o que achavam que a luta dos Povos

Indígenas pela terra tem em comum com outras lutas, como de comunidades tradicionais e do

MST.

As respostas iniciaram-se com diferenciações, estas mais voltadas ao MST:

Uma diferença que se tem do MST, é que o MST não tem um princípio de um

território tradicional, então uma terra que for adequada para eles se assentarem, eles

vão reivindicar e as políticas públicas vão ser inseridas naquele território que eles

estão reivindicando, das comunidades indígenas não, existe um território tradicional

onde existe troncos velhos, antepassados, viveram os nossos velhos, foram criados

ali e a gente entende como sendo uma área importante, essencial para a reprodução

física do nosso povo, então há um vínculo com o território, existe uma terra

indígena, um território que a gente quer que seja regulamentado, que é diferente do

MST. E também tem as formas de estratégia de ocupação, primeiro quando nós

vamos fazer uma ocupação dentro de uma área nós pegamos o nome de “retomadas”,

porque a gente utiliza o nome de retomadas, porque de fato nós vamos retomar uma

área que anteriormente esteve em nossa posse e que por questões políticas, de

massacre, de expulsão de indígenas, nós perdemos essa posse e nós hoje nos vemos

em condições de ocupação, vamos lá e ocupamos, então é a retomada em si que é

diferente de pegar uma área estudada pelo MST, tem todo um planejamento para eles

também, acredito e eles entram ali, mas não tem esse vínculo...

As semelhanças entre os três movimentos192

, contudo, afloram nos diálogos, que

apontam: a) a luta política pela terra, pois os movimentos estariam em busca de garantir a

sobrevivência das famílias envolvidas na luta193

; b) o enfrentamento à lógica da propriedade

privada; e c) os conflitos contra os proprietários de extensas terras, identificados como

“latifundiários”, “fazendeiros” e “políticos”.

Reconhecem, ainda, que suas lutas se assemelham mais à de comunidades

tradicionais no que tange à defesa de territórios com os quais têm ligação, contudo destacam

que não se consideram como parte dessa categoria “comunidades tradicionais”. Parecem

identificar os diferentes segmentos que são assim considerados (“quilombolas”, “pescadores”,

“ribeirinhos”). E uma das lideranças destaca que cada um desses segmentos, assim como os

Povos Indígenas, tem “características próprias”, justificando: “é a diversidade, o Brasil é rico

por conta disso”. Outra liderança indígena pondera que

[...] o movimento indígena tem algumas convergências com o MST, mas tem uma

hora que é cada um pro seu lado. A diferença principal, terra! O MST não tem terra.

O povo indígena tem a sua terra, quando não tem ele na sua memória onde é a sua

terra. O que já diferencia muito, já houve vários atritos com o MST, do MST invadir

de multiplicidade étnica do Ceará contemporâneo. In: GRÜNEWALD, Rodrigo de Azeredo (Org). Toré: Regime

encantado do índio do Nordeste. Recife: Fundaj, Editora Massangana, 2005, p. 221-256. 192

Movimentos dos Povos Indígenas no Ceará, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Movimento de

Pescadores e Marisqueiras em Curral Velho. 193

Observei que nas falas de moradores(as) de Curral Velho, integrantes da Coordenação Estadual do MST e

lideranças indígenas, referem-se muito a famílias, comunidade, o coletivo, e, raramente, falam do plano

individual, não que desconheçam a dimensão da individualidade, no entanto, a luta parece centralizar-se e

fortalecer-se no coletivo.

Page 87: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

86

terra indígena! Na Bahia houve assentamento de sem terra dentro de terra indígena!

Não é culpa deles, da maioria deles, mas nessa questão da capacitação, da

organização do MST, a gente tem muito o que aprender. [...] é interessante para os

governos que o MST e o movimento indígena fiquem separados! [...] Mas é

interessante juntar até onde der! O movimento indígena, com o MST, com o povo

das comunidades tradicionais, para causar um manifesto, para que os movimentos

estejam organizados, isto é legal!

3.3 “Cante lá, que eu canto cá”194

: A inundação da Lapa pelas águas do

desenvolvimento195

A comunidade da Lapa encontra-se em Potiretama-Ceará. É uma das três

comunidades196

que serão removidas em virtude da construção da Barragem Figueiredo197

.

Em outubro de 2010, acompanhei Luiz Gama a uma visita à comunidade. Ao caminhar por lá,

pensando no poema de Patativa; “Cante lá, que eu canto cá”; evoquei as palavras de um dos

agricultores da localidade: “a minha vida inteira fui agricultor, há mais de 40 anos planto, não

sei escrever, o que eu quero com esse tal de desenvolvimento? Que indústria vai querer me

empregar?”198

.

A primeira vez que ouvi falar do caso foi em uma reunião na Defensoria Pública da

União no Ceará (DPU-CE), em setembro de 2010, quando fui acompanhando Luiz Gama.

Entre defensores, advogado e representantes das comunidades afetadas pela barragem do

Figueiredo dialogaram-se sobre a (então recente) ocupação que as comunidades haviam feito

na parede da barragem199

.

194

“[...] Aqui findo esta verdade/ Toda cheia de razão: /Fique na sua cidade/ Que eu fico no meu sertão./ Já lhe

mostrei um ispeio,/ Já lhe dei grande conseio/ Que você deve tomá./ Por favô, não mexa aqui,/ Que eu também

não mêxo aí,/ Cante lá que eu canto cá”. (ASSARÉ, Patativa do. Cante lá, que eu canto cá. Disponível em:

<http://www.blocosonline.com.br/literatura/poesia/p01/p010389.htm>; acesso em 18 jun. 2011). 195

O relato aqui exposto é baseado em um relatório que elaborei sobre a visita a Lapa, entregue ao advogado

popular Luiz Gama em novembro de 2010, encaminhado por este à Cáritas e outros órgãos. Todo o material por

mim colhido, por meio de fotografia, filmagem, em áudio, foi entregue a um Professor, Doutor em História, da

Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos (FAFIDAM), em Limoeiro do Norte-Ceará, ligada a Universidade

Estadual do Ceará (UECE), interessado em seguir em pesquisas sobre a comunidade. 196

As outras são: Vila São José e Assentamento Boa Esperança, ambas localizadas em Iracema-Ceará. 197

“A obra, executada pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), conta com o investimento

de R$ 130 milhões do Ministério da Integração Nacional. As águas da Barragem Figueiredo beneficiarão além de

Alto Santo, as cidades de Iracema, Potiretama, Pereiro e Ererê. A capacidade da barragem será de 520 milhões de

metros cúbicos de água e permitirá o desenvolvimento da piscicultura e irrigação na região. Segundo técnicos,

cerca de 30 mil empregos diretos e indiretos serão gerados pela pesca e pelo cultivo de frutas nas proximidades”.

(Informação disponível em <http://www.altosanto.com/?p=232>; acesso em 18 jun. 2011). 198

O agricultor assim se manifestou na primeira reunião entre as comunidades e a Defensoria Pública da União

(setembro, 2010), em Fortaleza-Ceará. 199

Para ver notícias sobre essa ocupação, ir em: <http://ujsceara.blogspot.com/2010/09/vale-do-jaguaribe-ujs-

divulga-nota-de.html>; acesso em 03 jul. 2011; e

<http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=835967>; acesso em 03 jul. 2011.

Page 88: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

87

A causa da ocupação apresentada pelas comunidades foi a de que ainda não haviam

recebido indenização nem sido reassentadas, ao tempo em que a barragem ia sendo construída,

e com a proximidade da estação chuvosa isso poderia provocar inundação nas comunidades. A

Lapa apresentava uma especificidade a possibilidade de reassentamento que receberam seria

longe de sua localidade, e recusavam-se a sair dos arredores; não queriam ficar longe do

espaço onde mantêm há gerações vínculos familiares e comunitários.

A ocupação da barragem deu-se de modo espontâneo. As comunidades reuniram-se e

foram ocupando. Após, a Cáritas Diocesana de Limoeiro do Norte - Ceará e o Conselho de

Justiça e Paz desse Município aproximaram-se das comunidades ocupantes, articulando, em

conjunto com essas e a RENAP-CE, a reunião em que estive com Gama na DPU-CE.

Durante a reunião a escuta das falas fizeram-me imaginar que as comunidades

pareciam tecer modos tradicionais de existência. Pelas informações que comunicavam,

estavam recebendo indenização apenas por suas casas, sendo removidos para casas menores,

pré-moldadas, sem espaço para plantação ou criação de animais. E eles concentravam-se em

pedir que a obra de suas casas fosse acelerada, para não correrem o risco de ficar

desabrigados, e no valor de indenização de suas casas, que alegavam ter sido injusto.

Pedindo licença ao advogado, perguntei se eles criavam animais, como criavam, se

tinham área para plantio, se plantavam em seus quintais, se tinham árvores frutíferas, se

tinham poços ou cacimbões, ao que responderam afirmativamente para tudo, informando que

os animais eram criados nos quintais ou soltos. Um morador da Lapa passou-me um pedaço

de papel contendo informações sobre o que plantavam, onde plantavam, como plantavam e

conservavam as sementes, as finalidades dessas diversas plantas e, em uma fala para o grupo,

ele disse que havia pedido para a professora e a agente de saúde escreverem o que me passou,

pois era analfabeto. Ele e pessoas de outras comunidades emendaram, dizendo que estavam

escrevendo a história de suas comunidades “antes de tudo se perder”.

Naquele momento, algumas questões me inquietaram: a) se as comunidades já

estavam escrevendo suas histórias, como poderiam ser apoiadas na realização do registro de

seus modos de vida; e b) como promover a proteção do patrimônio histórico e cultural e da

sociobiodiversidade existentes nas comunidades. Para melhor dialogar com as comunidades

sobre se as indenizações recebidas eram justas e se o reassentamento pensado para essas

famílias respeitaria os seus modos de (re)produção material e simbólico, era necessário

conhecer e realizar pesquisas nessas comunidades.

Page 89: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

88

Luiz Gama e eu dialogamos e ele organizou uma visita à Comunidade da Lapa.

Seguimos para lá no dia 21 de outubro de 2010, chegando até a Sede da Cáritas, em Limoeiro

do Norte, onde encontramos um professor e uma aluna de história da UECE200

, seguindo

todos(as) para Potiretama, onde encontramos uma liderança da localidade e seguimos para a

Lapa.

Quando lá chegamos, alguns(mas) moradores(as) receberam-nos de modo afetuoso e

resolutos a nos mostrar tudo o que pudessem sobre o modo como vivem. Fomos caminhando

juntos até a Casa de Farinha, a qual se encontra já bem deteriorada. Um senhor me disse que

lá, antes, fazia-se muita farinhada. Hoje, ela está desativada. Ele me disse que o costume foi se

perdendo, no entanto, um jovem, de 20 e poucos anos, que me acompanhou durante toda a

visita, disse que a Casa de Farinha começou a ser abandonada após a chegada das obras da

barragem.

Muitas vezes depois, em momentos diversos, outros moradores se referiram a isso.

Por exemplo, um dos moradores (que nos recebeu em sua casa para almoçar) disse que

gostaria de construir dois quartos, um para cada filho, no terreno ao lado da sua casa, e que

queria fazer melhoras em sua casa, mas que se desanimava porque “a gente quer construir

onde cria raízes”, “de que adianta a gente construir e ir embora?”. Vários moradores me

disseram que haviam recebido a informação de que não seriam mais ressarcidos por nenhuma

melhoria (por conta das indenizações das obras da barragem), por isso foram abandonando

alguns espaços: cercas foram deixando de ser consertadas, por exemplo. A sensação que tive

foi de que eles estavam sempre à espera que tudo aquilo acabasse e eles pudessem seguir

vivendo.

Saindo da Casa de Farinha, fomos até o engenho, o qual datava de 1911. Eles

disseram que quando o engenho chegou teve batismo, porque, “se não batizasse, quebrava

uma peça”. Ensinaram-nos como movimentavam o engenho e nos falaram dele com imenso

orgulho.

Quando fui passar por baixo de uma cerca o jovem que me acompanhava chamou

atenção para o fato de que ali “a gente passa pela terra de todo mundo”, pois “todos eram da

mesma família”201

, havia a confiança de que ninguém faria confusão e ninguém mexeria em

200

Mais precisamente da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos (FAFIDAM), em Limoeiro do Norte-

Ceará, pertencente à Universidade Estadual do Ceará (UECE). 201

No caso da comunidade da Lapa esse registro pode ser literal, pois as falas dos moradores(as), pelo que me

esclareceu depois o professor e historiador que nos acompanhava, indicam que descendem de um mesmo

antepassado ou de um mesmo tronco familiar.

Page 90: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

89

algo que não é seu. Disse-me que raramente havia conflito, e, quando havia, eles se resolviam

entre si.

Eles(as) costumam casar entre si (entre primos), ainda que, pelo que me disse uma

senhora, isso venha mudando com a geração mais jovem. Seu filho (um jovem de 20 e poucos

anos) confirmou, dizendo que suas primas eram suas amigas e ele namorava nas festas outras

meninas.

Os meios de transporte mais comuns são a motocicleta e a bicicleta. Há um bom

espaço entre as casas. Todas elas são construídas com tijolos e telhas fabricados pelos próprios

moradores (em geral homens, mas as mulheres também participam) e, em suas palavras,

“sempre foi assim”. Poucas têm reboco. Eles me mostraram o lugar onde fabricam o material

de construção. Vi porcos, jumentos, cavalos, cabras, vacas, bois e galinhas, criados nos

quintais ou soltos entre as casas.

Um jovem e sua mãe levaram-me até a casa do seu avô, que já havia falecido. Por lá

encontrei muitos objetos antigos. Perguntei se eles levariam aqueles objetos com eles.

Disseram que não, que não teria como e não daria tempo. Informaram-me, também, que havia

muitos objetos como esses em outras casas na comunidade. Observei que outros(as)

moradores(as) parecem também conservar e guardar objetos antigos utilizados por

antepassados.

Eles apontaram-me o local onde costumam plantar. Pescam em açudes e rios e

também tecem a própria rede de pesca. Demonstram conhecer diversas plantas, suas

possibilidades de uso para benefício humano, os ritmos do meio ambiente natural. Em muitos

quintais vi hortas, plantas (que me apontaram como “boas para curar um monte de

problema”202

) e árvores frutíferas.

Possuem diversos poços artesanais. Falaram-me que há também, no local onde existe

um rio intermitente (o rio estava seco), uma fonte de água, que me informaram não secar, de

onde recolhem água para beber (após colocar em filtros de barro). Ainda que se localizem no

sertão do Ceará, a presença do rio intermitente, de lençóis de água e dos vários poços

artesanais localizados em pontos diversos da comunidade permitiu-lhes desenvolver uma

produção agrícola modesta, no entanto, suficiente para a subsistência da comunidade e para a

comercialização203

.

202

Interpretei-as como plantas para usos medicinais e outros fins (como proteção da casa, e “tirar quebranto e

mal olhado”). Uma senhora passou um bom tempo explicando-me a finalidade de cada uma delas. 203

Como me informou um morador, na época.

Page 91: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

90

Deram-me a água do poço para beber. E contaram-me histórias de como a

comunidade ficava em festa quando o rio enchia. Em certo momento, enquanto meus sentidos

dessensibilizados “pisavam” em uma vasta terra (que me parecia seca), alguns moradores me

chamaram para o centro da vastidão. Educadamente, caminhei achando estranho... Quando lá

cheguei, vi que era um quadrado que delimitava um buraco cavado no solo e que ficava

abaixo de uma pequena poça d’água “que nunca seca”, “de onde o rio nasce”, e me contaram

que olhava para a fonte.

Disseram-me que não sentiam falta de nada ali, a não ser de água encanada. Pensei,

então, em um paradoxo: eles iriam ser reassentados em casas sem quintais, bem próximas

umas das outras, sem lugar para a criação de animais, onde seu modo de reprodução ficaria

inviabilizado, e teriam água encanada, cara o bastante, talvez, para que em suas casas o “rio

secasse”.

A primeira visita originou um projeto de pesquisa orientado pelo Professor da

FAFIDAM-UECE que nos acompanhou, sobre um registro histórico mais cuidadoso da

comunidade da Lapa204

, bem como uma série de desdobramentos nascidos dos diálogos entre

Luiz Gama, a RENAP-CE, representantes da comunidade e integrantes dos movimentos

sociais que os vinham acompanhando. Com a paralisação das obras provocadas pela ocupação

da barragem, os(as) moradores(as) da Lapa e de outras comunidades afetadas conseguiram

barrar, até o presente momento, as águas do desenvolvimento.

Posteriormente, Luiz Gama contou-me o que lhe disse um morador quando de sua

segunda visita à Lapa: “pergunta-se [ao morador] sobre como ele se sente em sair dali por

causa da barragem... Ele olha para a janela e diz: “Tá vendo aquela canafistula ali? Se você

arrancar pra plantar noutro canto ela pode viver, mas vai murchar...””205

. 206

As obras da Barragem do Figueiredo inserem-se na mesma razão de desenvolvimento

que atinge outras populações, como os povos indígenas e comunidades de marisqueiras(os) e

pescadores(as). Esses projetos que visam a acelerar o crescimento econômico desconhecem,

estrategicamente, o modo de vida de comunidades atingidas; e desrespeita modos de

(re)produção material e simbólica no reassentamento dessas comunidades, dando-lhes

condições pérfidas em suas reterritorializações.

204

Em razão da necessidade de me dedicar a esta pesquisa de dissertação, não pude participar. 205

A canafístula é uma árvore também conhecida com o nome de cássia-imperial. 206

Por mensagem, via telefone celular, 2 abr. 2011.

Page 92: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

91

Ademais, essa lógica de desenvolvimento hibridiza-se à logica da apropriação

privada da terra em uma perspectiva produtivista207

e “mercadorizada”. As porções de terras

mais férteis são destinadas ao cultivo monocultor, ligado ao agronegócio208

(no caso em tela,

fruticultor), retirando agricultores tradicionais de suas terras e transformando-os, quase

compulsoriamente, em trabalhadores assalariados.

No caso da comunidade da Lapa, em outra questão emerge o conflito entre grandes

extensões de propriedade da terra individuais versus uso comum da terra. Os moradores da

Lapa, quando lá estivemos, indicaram a existência de uma fazenda próxima à comunidade

para onde gostariam de ser reassentados. No caminho de volta passamos ao lado dessa

fazenda, e integrantes da Cáritas que nos acompanhavam disseram que a propriedade possui

boas porções de terra aparentemente sem uso. A proprietária recusa-se a deixar o imóvel, e o

Estado, desapropriando as terras dos moradores(as) da Lapa para a construção da barragem,

vem se mostrando respeitoso quanto a essa propriedade privada em detrimento de toda uma

coletividade que teme murchar.

3.4 “De quem é essa terra? Nossa!” 209

: trabalhadores rurais em movimento na luta pela

terra

Ao se lançar a visão por entre dados acerca da concentração fundiária em terras

brasileiras, é perceptível um retrato pérfido que tem como cenário de fundo a abissal diferença

entre lei e a vida no Brasil. O II Plano Nacional de Reforma Agrária aponta que

[...] a desigualdade no acesso a terra no Brasil, [...] é ainda maior do que a

desigualdade da distribuição de renda. O índice de Gini mede o grau de

concentração, sendo que, zero indica igualdade absoluta e 1 a concentração absoluta.

Para o Brasil, o índice de distribuição de renda é 0,6, e para a concentração fundiária

está acima de 0,8. [...]. Segundo o Cadastro do Incra [Instituto Nacional de

Colonização e Reforma Agrária], no estrato de área até 10 ha encontram-se 31,6%

do total de imóveis que correspondem a apenas 1,8% da área total. Os imóveis com

207

Ideologização da terra como somente um espaço de produção mercadológica, descaracterizando-a como

espaço de vida e (re)produção socioambiental. 208

O agronegócio constitui forma de produção de alimentos e criação de animais em grandes glebas, com o

escoamento de grande parte de seus produtos para a exportação, utilizando-se de agrotóxicos, fertilizantes

químicos e rações manipuladas quimicamente que façam produzir mais em menos tempo, com forte presença de

máquinas na produção, com pouca ou nenhuma preocupação socioambiental, e, ainda que respeite formalmente

os direitos trabalhistas, torna os agricultores mal assalariados e empobrecidos, sem acesso aos meios de produção

que lhes permita plantar para alimentar a si e sua família em padrões alimentares saudáveis; além de provocar a

migração de enorme contingente populacional de agricultores sem-terra para as cidades urbanas. 209

Fala de acampados e de manifestantes do MST-CE, ouvida, respectivamente, em ocupação e manifestação em

frente ao Palácio Iracema (sede do Governo do Estado do Ceará na época).

Page 93: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

92

área superior a 2.000 ha correspondem a apenas 0,8% do número total de imóveis,

mas ocupam 31,6% da área total. 210

Destaco, ainda, que “o Censo Agropecuário de 2006, divulgado [...] pelo Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) [em 2009], mostra que a concentração de terras

persiste no País. [...] os dados mostram um agravamento da concentração de terras nos últimos

10 anos”. Vê-se que

A desigualdade na distribuição de terras no país permaneceu inalterada nos últimos

20 anos. Enquanto as unidades rurais com até 10 hectares ocupam menos de 2,7% da

área total dessas unidades, a fatia ocupada pelas propriedades com mais de mil

hectares concentram mais de 43% da área total. Essa realidade é a mesma indicada

nos censos agropecuários de 1985, 1995-1996 e 2006 [...]. 211

Frei Sergio Gorgen, ao realizar análise do Censo Agropecuário de 2006, aponta que:

Os pequenos agricultores têm 24% de todas as terras privatizadas do Brasil. [...] Os

médios e grandes tem 76% de todas as terras. [...] Os camponeses são mais de 4

milhões e 360 mil estabelecimentos. Os médios e grandes são apenas 807 mil

estabelecimentos. Os grandes proprietários acima de mil hectares são apenas 46.000.

E os latifundiários acima de 2 mil hectares são apenas 15 mil fazendeiros que detêm

98 milhões de hectares. [...] Os camponeses produzem 40% da produção

agropecuária do Brasil (medida pelo Valor Bruto da Produção Agropecuária Total),

apesar de terem apenas 24% das terras, e ainda, nas piores condições de topografia e

fertilidade. Além disso, sabe-se que grande parte da produção do camponês é para

auto sustento, e, portanto, não é vendida. Os médios e grandes produzem 60% da

produção agropecuária do país, tendo 76% de todas as terras do país, entre elas as

mais planas e férteis e melhor localizadas para o mercado. [...] Daquilo que vai para

a mesa dos brasileiros, 70% é produzido pelos pequenos agricultores, pelos

camponeses. Só 30% do que vai para a mesa dos brasileiros vem das grandes

propriedades, que priorizam apenas as exportações, ou seja, não produzem comida,

querem produzir apenas “commodities”! [...] As pequenas propriedades dão trabalho

para 74% de toda mão de obra no campo brasileiro. As médias e grandes empresas

do campo, o agronegócio, mesmo com muito mais terra, só empregam 26% das

pessoas que trabalham no campo. Pois preferem utilizar mecanização intensiva e

muito agrotóxico. Por isso, o Brasil se transformou na safra de 2008/2009 no maior

consumidor mundial de agrotóxicos. São aplicados no campo brasileiro 713 milhões

de litros de veneno por ano!212

Segundo Medeiros, no Ceará, o índice de Gini para a concentração fundiária era de

0,857 em 2006, ultrapassando o índice da Região Nordeste nesse mesmo ano, que foi de

0,849. Em 1970, o índice no Ceará era de 0,784, aumentando expressivamente nos anos

seguintes, enquanto no Nordeste do Brasil esse índice era de 0,836, mantendo-se quase

constante nos censos agropecuários seguintes (1975, 1980, 1985, 1996 e 2006). O autor

analisa também a ideia de que, no Ceará 210

BRASIL. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. II Plano Nacional de Reforma Agrária:

Paz, Produção e Qualidade de Vida no Meio Rural, 2003, p. 11. Disponível em:

<http://sistemas.mda.gov.br/arquivos/PNRA_2004.pdf>; acesso em 08 jul. 2010. 211

Notícia disponível em <http://oglobo.globo.com/economia/mat/2009/09/30/desigualdade-na-distribuicao-de-

terras-a-mesma-de-20-anos-atras-mostra-ibge-767844626.asp>. Publicada em 30 set. 2009; acesso em 08 jul.

2010. 212

GORGEN, Frei Sergio. Análise do Censo Agropecuário de 2006, algumas informações importantes. Revista

Ecodebate: Cidadania & Meio Ambiente. 9 jan. 2010.

Page 94: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

93

[...] no ano de 1996, 72,32% dos estabelecimentos agropecuários possuíam menos de

10 ha, representando, entretanto, apenas 7,07% da área total. Já os estabelecimentos

com mais de 100 ha constituem 5,22% do total dos estabelecimentos e representam

65,24% da área total. No ano de 2006, a situação de concentração da posse da terra

aumentou, pois o número de estabelecimentos com menos de 10 ha foi elevado

(75,40%) enquanto que a área dos mesmos foi reduzida (6,74%). Em contrapartida,

os estabelecimentos com mais de 100 ha foram reduzidos para 4,54%, mantendo

praticamente o percentual de área estável (64,66%). 213

Com esses dados em mente, percorri caminhos investigativos em busca de

compreender essa realidade com suporte nas falas de integrantes do Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra no Ceará (MST-CE)214

. Quando fui a um acampamento com

a advogada do MST, ouvi algumas das perguntas e angústias de acampados, bem como alguns

diálogos entre eles ditos baixinho, como quem sussurra: “essa é a minha terceira ocupação,

será que dessa vez vai?”, “essa é a minha segunda”... O sol escaldante no sertão, a poeira de

terra seca, a lona coletiva, algumas redes, jovens tocando violão, grupos conversando, grupos

trabalhando, lembro-me de ter olhado para seus rostos e pensado: “o que leva alguém a ocupar

uma terra?” 215

. Realizar a ocupação, resistir; construir o acampamento, resistir; construir o

assentamento, resistir; seguir construindo, resistir... Tudo demanda luta e esforço.

213

MEDEIROS, Cleyber Nascimento. Análise da Estrutura Fundiária da Região Nordeste e do Estado do

Ceará durante o período 1970-2006. Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará, 2010, p. 5; 10.

Disponível em <http://www2.ipece.ce.gov.br/encontro/2010/trabalhos/Analise_da_estrutura_fundiaria.pdf>;

acesso em 12 jun. 2011. 214

“Para o MST são considerados sem terra: os arrendatários, meeiros e parceiros; os pequenos posseiros e

ocupantes de áreas com menos de 5 ha; os minifúndiários proprietários de menos de 5 ha; os filhos adultos dos

pequenos proprietários e os trabalhadores rurais que vivem como assalariados” (STÉDILE, J. P. (Org). Questão

Agrária no Brasil. São Paulo: Atual, 1997, p. 28 apud STEFANIAK, Jeaneth Nunes. Propriedade e Função

Social: perspectivas do ordenamento jurídico e do MST. Ponta Grossa: UEPG, 2003, p. 113). 215

Anteriormente, o outro advogado do MST-CE, em entrevista, havia me feito essa indagação, ao que ele

respondeu: “o que leva uma pessoa pai/mãe de família que passou 30, 40 anos em situação de subordinação no

campo a ocupar uma fazenda com seus 4 ou 5 filhos? A pessoa quer propriedade, é uma não-proprietária e quer a

propriedade. O que move em última instância as lutas é a necessidade de vida. O MST tem uma função

pedagógica: “quando chegar a terra lembre-se de quem quer chegar”. A luta pela reforma agrária começa com a

luta individual, mas ela não tem que se encerrar nisso”. Reflito sobre se o sentido de propriedade almejada pelo

camponês é o mesmo constituído pela interpretação jurídica hegemônica sobre o direito de propriedade privada

da terra. Em artigo produzido com Luciana Nogueira Nóbrega, daquela e de outras falas colhidas por entrevistas

estruturadas, concluímos, na época, que: “[...] as falas expressas nas entrevistas de advogados(as) populares e as

leituras bibliográficas acerca do direito à terra explicitaram que os novos movimentos sociais propõem e

reivindicam (re)interpretações e outros sentidos ao direito de propriedade estatal e fundam percepções acerca da

significância de uma função social da terra, muitas vezes descolada de um viés produtivista e mercadológico, as

quais ora encontram aporte na Constituição Federal de 1988, ora levam-nos a lutar por direitos ainda não

reconhecidos pelo Estado (na legislação ou na dimensão da aplicação e interpretação do direito). Tais caminhos,

apontados em uma investigação inicial e não conclusiva, fazem presentes e emergentes outras formas de relações

sociais com a terra, bases de uma real concretização de direitos ligados a terra, tais como o direito de auto

sustentar-se e alimentar-se, o direito a uma relação socioambiental sustentável e equilibrada com o meio-

ambiente; o direito de proteger-se em uma morada, e o direito de relacionar-se com a terra, seja em uma relação

simbólica, tradicional ou de fruição pelo trabalho. Nesse sentido, compreender como esses movimentos

percebem a propriedade e de que forma eles identificam a função social da propriedade é imprescindível se

quisermos construir uma sociedade justa em suas possibilidades, plural em seu contexto político-social, e

solidária na edificação de meios de sustentabilidade econômica”. (JOCA, Priscylla; NÓBREGA, Luciana. O

Olhar de Advogados(as) Populares: os movimentos sociais organizados em torno do direito à terra. In:

Page 95: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

94

Nesse ensejo, destacaram-se, ainda, três momentos particularmente importantes para

esta pesquisa, sendo esses a oportunidade para dialogar com o aludido integrante da

coordenação do MST na cidade sobre a ocupação e os sentidos de direito à terra do MST;

assistir à mística realizada no momento da visita a ocupação216

; e observar a estética da

ocupação217

. Na entrada, havia uma bandeira do MST fincada junto à cerca e um desenho no

chão utilizando-se de pedras com os dizeres “MST” “20 anos”218

, e, da entrada ao centro da

ocupação, um caminho delineado por duas linhas feitas de pequenas pedras, o qual levava a

um mandacaru onde, fincada, estava outra bandeira do MST entre duas pedras maiores219

.

Perguntei a um dos trabalhadores rurais se ele poderia tirar fotos da ocupação. Ele

concordou e, das várias fotos que tirou, a que se repetiu muitas vezes, em diferentes ângulos,

foi justamente a da bandeira do MST junto ao mandacaru, vegetação-símbolo de resistência

no Nordeste brasileiro220

.

Na manifestação a que estive presente na frente do Palácio Iracema tirei algumas

fotos de um velho sorridente militante. Analisando as fotos, após, observei que enquanto ele

segurava a bandeira do lado de fora do Palácio, por trás dele, do lado de dentro do Palácio,

havia policiais e uma placa sinalizadora para tráfego de carros escrita “PARE”.

WACHOWICZ, Marcos; MATIAS, João Luis (Org.). Direito de propriedade e meio ambiente : novos desafios

para século XXI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2010). 216

A mística era baseada em uma música com o tema: “Ocupar, resistir e produzir”. O ritmo iniciou-se tímido,

após algum tempo os(as) militantes cantavam animadamente. Ao final, perguntou-se: “De quem é essa terra?”, ao

que todos(as) respondiam repetidas vezes: “Nossa!”. 217

Construída, conforme me informou o coordenador do MST na cidade, pelos trabalhadores rurais nos primeiros

dias da ocupação. 218

O primeiro Congresso do MST realizou-se em 1984. Para conhecer um pouco da história do MST Nacional

ver em: <http://www.mst.org.br/node/7702>, acesso em 29 mai. 2010. No Ceará o Movimento tem 20 anos de

história. 219

“A bandeira tornou-se símbolo do MST em 1987, durante o 4º Encontro Nacional. Ela está presente nos

acampamentos e assentamentos, em todas as mobilizações e lutas, nas comemorações e festas, nas casas dos que

tem paixão pelo Movimento. Significado das cores e desenhos que compõem nossa bandeira: cor vermelha:

representa o sangue que corre em nossas veias e a disposição de lutar pela Reforma Agrária e pela transformação

da sociedade; cor branca: representa a paz pela qual lutamos e que somente será conquistada quando houver

justiça social para todos; cor verde: representa a esperança de vitória a cada latifúndio que conquistamos; cor

preta: representa o nosso luto e a nossa homenagem a todos os trabalhadores e trabalhadoras que tombaram,

lutando pela nova sociedade; mapa do Brasil: representa que o MST está organizado nacionalmente e que a luta

pela Reforma Agrária deve chegar a todo o país; trabalhador e trabalhadora: representa a necessidade da luta ser

feita por mulheres e homens, pelas famílias inteiras; facão: representa as nossas ferramentas de trabalho, de luta e

de resistência”. (Informação disponível em: <http://www.mst.org.br/node/7674>; acesso em 29 mai. 2010). 220

O mandacaru, comum em vegetações de caatinga no Nordeste brasileiro, é símbolo de resistência e beleza.

Seu caule acumula água e resiste a longos períodos de seca; na primavera, do mandacaru desabrocham lindas

flores brancas que duram apenas uma noite e começam a murchar ao amanhecer. Pode ser utilizado com diversos

fins, como alimentação e com fins medicinais.

Page 96: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

95

Tanto na visita à ocupação como nessa manifestação, foram os olhares, as danças na

frente do Palácio221

, as músicas entoadas, os rostos cansados e, ao dialogar com alguns(mas),

a percepção da resolução deles(as) em permanecer até serem ouvidos, que me fez perceber

que aquelas pessoas estavam reunidas por necessidades legítimas222

, e também como um

coletivo radicado em sentidos comuns de luta pela concretização do seu direito à terra. E

essas impressões levei-as comigo para a realização das entrevistas com integrantes da

coordenação do MST no Ceará.

Primeiramente, inquiri os(as) entrevistados(as): “o que caracteriza o MST, como

defini-lo?”. Um me falou sobre sua finalidade: é um “movimento social que luta por justiça,

luta por reforma agrária, né?”. Uma me disse as possibilidades que o MST traz: “de

transformar algo, de se ter algo novo, que represente o que os trabalhadores possam

conquistar. Inclusive já fiz a pergunta: o que faz você ir para o movimento? Os jovens

respondiam que era construir algo diferente, que mude”. Outra definiu o MST “como uma

grande esperança”:

O movimento é essa esperança de ter um novo tipo de desenvolvimento no nosso

país, não podemos admitir que a reforma agrária seja tratada como uma política

compensatória, ela tem que ser tratada como uma política de desenvolvimento

principalmente do povo, do nosso povo. Eu definiria o movimento como essa

grande esperança dos pobres, esperança de organização, de luta, de transformação

social.

Ainda em busca de definições para o Movimento, uma fala apontou que a luta é pelo

direito de acesso à terra, à agua, à energia e outras fontes naturais, provedoras de recursos tão

necessários à sobrevivência e reprodução da vida humana:

Nessa semana mesmo eu tive uma oportunidade de visitar uma fazenda [...], a

fazenda é abastecida com água tratada da CAGECE223

[...]. Então pra você ver que

esse direito a uma água tratada e de qualidade não pode ser de todos os

221

Na ocasião, observei que os(as) manifestantes cantavam as músicas ligadas às suas lutas, dançavam e exibiam

bandeiras e blusas identificando-se como sendo do MST. 222

Minha compreensão de “necessidade” é inspirada nas palavras de Antonio Carlos Wolkmer: “Não se reduz

meramente às necessidades sociais ou materiais, mas compreendem necessidades existenciais (de vida), materiais

(subsistência) e culturais. Ora, na real atribuição do que possa significar “necessidade”, “carência” e

“reivindicação”, há uma propensão natural, quando se examina o desenvolvimento capitalista das sociedades

latino-americanas, de se enfatizar uma leitura “economicista” dessas categorias, ou seja, priorizar-se as

necessidades essenciais como resultantes do sistema de produção. Entretanto, ainda que se venha inserir grande

parte das discussões das “necessidades” ou “carências” nas condições de qualidade, bem-estar e materialidade

social de vida, não se pode desconsiderar as variáveis culturais, políticas, filosóficas, religiosas e biológicas. [...]

Por serem inesgotáveis e ilimitadas no tempo e no espaço, as necessidades humanas estão em permanente

redefinição e recriação”. (WOLKMER, Antonio Carlos. As Necessidades Humanas como Fonte Permanente de

Direitos Insurgentes. In: PIRES JUNIOR, Paulo Abrão; TORELLY, Marcelo Dalmás (Orgs.). Assessoria

Jurídica Popular: leituras fundamentais e novos debates. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009, p. 114; 115). Jacques

Távora Alfonsin analisa a relação entre necessidades vitais e Direitos Humanos em ALFONSIN, Jacques Távora.

O Acesso à Terra como Conteúdo de Direitos Humanos Fundamentais à Alimentação e à Moradia. Porto

Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, p. 19-64. 223

Companhia de Água e Esgoto do Ceará.

Page 97: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

96

trabalhadores? De todas as famílias camponesas? E às margens dessa adutora, eu

parei para beber água, uma água grossa, da cor de lama. Eu tive que beber porque

estava com sede. E ao mesmo tempo passando uma água tratada, uma água de

qualidade. E aquela família que estava lá, de trabalhadores do fazendeiro, não podia

ter acesso a essa água. Essa questão é uma questão política.

Hoje é impossível de a gente achar que nossa luta é simplesmente pela terra. Nossa

luta é pela água, energia. Não adianta se ter terra hoje e não ter água, não se

sobrevive. Da mesma forma que se não tiver respeito às matas, aos animais, estando

lá. Hoje precisamos ter outras fontes de energias renováveis, como de biomassa, de

energia solar, eólica. Como aproveitar isso a serviço da agricultura? Hoje é tudo

também controlado por empresas. Controlam a terra, a água, daí a privatização, a

transposição. A serviço de quem vem essas transposições? Não é para os

agricultores, é para se vender a metros caros, cedido como incentivo às empresas que

vão se instalar no Ceará: fruticultura, horticultura, etc.

Levei a eles um questionamento que me fazia desde a ida à ocupação: “o que faz

alguém ir para o movimento?”. A palavra “necessidade” foi central nas respostas,

“necessidade básica de terra, de trabalho, de comida, de educação”. Um militante (e

agricultor) respondeu-me:

Primeiro essa necessidade de melhorar de vida. Porque hoje um sem terra, se você

quiser ver uma das maiores torturas é um agricultor, caindo a chuva, ele não podendo

plantar. Digo isso porque eu já passei por isso né. Minha família, lá em casa nós

somos 11 filhos e quando nós não tínhamos terra o papai ficava quase louco, andava

quilômetros e quilômetros pra plantar. Então essa questão de não ter terra é uma

porta de entrada pro MST. Segundo, que essa terra, através da terra você vai

melhorar de vida, você vai ter uma casa, vai ter seu gado, vai melhorar as condições

de vida para avançar na luta. Se tu pegar hoje a situação das famílias assentadas, por

dificuldade que ela passa no assentamento, você não tem uma família que não tenha

uma vaca pra tirar leite de manhã, pra tirar leite pra família, você tem o feijão, você

tem o açude, você tem o peixe lá pra pescar, tem a galinha, tem os ovos, enfim. Isso

aí de certa forma dá uma cidadania, um estimulo de vida para essas famílias. Essa é a

primeira porta de entrada, apesar de que isso aí dura 1 ano debaixo da lona preta,

temos acampamentos que [duraram] 12 anos.

Em busca de compreender os significados que dão ao direito à terra, comecei por

inquiri-los sobre a relação do trabalhador rural com a terra. As respostas apontaram diversas

questões, cada uma delas sendo complexas em si, ainda que interligadas.

Primeiro, disseram que “o relacionamento do camponês com a terra é que ela é mais

do que um meio de produção”,

[...] a terra é um lugar de trabalho, é um lugar de bênçãos, é um lugar de alimento. A

coisa que dá mais alegria ao camponês é colher o alimento, é a sua mesa farta. Pra

nós [...] a terra é a terra de trabalho, a terra de vida, a terra de alimento, a terra de

produção, de cultura, de celebração. Toda vida que a gente vai pro roçado a gente

celebra quando a gente vê os frutos, a gente cultiva. A alegria da gente é quando a

gente vê lá o feijão florando, o milho pendurando, as frutas brotando. O fruto é a

celebração do nosso trabalho, e isso é uma coisa que mais anima a gente.

Page 98: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

97

A terra, então, não é percebida apenas como espaço de produção agrícola. Na terra se

dá o trabalho para o cultivo e colheita dos alimentos; na terra ocorrem relações materiais e

simbólicas (de celebração e de bênçãos, por exemplo).

Em outra fala, aparece a “mistura” entre o camponês e a terra, percebida em uma

dimensão social, em que as relações entre as famílias de agricultores e entre essas e a terra é

vivenciada e historicizada em uma “mistura” com o meio natural.

A relação é uma relação terra e agricultor, terra e camponês se mistura. Ali é tudo,

dali saí todo o resultado, toda a alimentação da sua família, dali sai todo o sustento,

tem toda uma historia de relação, tem toda uma vivência, uma convivência dessas

famílias. É uma relação que não tem diferença, a relação do ser humano, do

camponês com a terra ela se mistura.

E essa relação de “mistura”, tirando da terra “sua sobrevivência”, faz com que as

famílias comecem a “ter a visão de não degradar o meio ambiente, de não degradar a terra”.

Essa aprendizagem ocorre por meio de uma “relação de troca de experiência, porque a gente

pensa assim que a terra ela é morta, a terra ela não é morta, ela é vida”. Percebem que se

“você degrada aquela terra ali ela já começa a negar aquilo que é mais sagrado, que é a

alimentação”. Esse aprender sobre o meio natural em que se inserem passa pelo cultivo da

terra, por uma relação em que se percebe a vida da terra (“a terra é vida”), bem como por uma

dimensão socioambiental hoje incorporada no Movimento. As entrevistas expressam também

que

[...] hoje nos assentamentos o pessoal já tão percebendo que brocar, por exemplo,

broca ali e faz uma queimada, o primeiro ano é excelente na produção, no segundo

ano ela já não dá mais a mesma coisa, no terceiro aí que ela já não dá nada, porque

mata todos os nutrientes da terra. [...] Os agricultores já tão começando a perceber

essas questões.

- Não precisa desmatar todo ano, isso era uma pratica nossa, dos pequenos

agricultores e nos assentamentos, todo ano, todo ano brocar. Com essa questão do

aquecimento global e essa questão da agricultura agroecológica que o movimento

vem, diversos movimentos vem trabalhando a agricultura ecológica. O pessoal já tá

começando a aprender a trabalhar na terra sem desmatar. Por isso que eu tô falando

de ainda não é uma coisa 100%, mas hoje já diminui bastante essa questão do

desmatamento, das brocas, das queimas. Aí você só trabalha nas manga, que já faz

esse rodízio.

[Pesquisadora] - Esse conhecimento desse rodízio, você diria que é tradicional dos

pequenos agricultores, já vieram com vocês antes mesmo de se tornarem assentados,

ou é uma coisa que veio como um conhecimento passado a vocês?

- Essa questão já é uma pratica já, porem é uma pratica espontânea. Ela se se tornou

uma pratica mais educativa, mais pedagógica, devido todas essa questões que já

vinham sendo colocadas. Era espontânea, não tinha um significado do por que tava

fazendo aquilo ali. Hoje você tem uma explicação da importância de tá fazendo isso.

Antigamente se trabalhava nas manga, mas por exemplo, trabalhava um ano, mas já

iria brocar no outro, aí ficava abandonada aquela capoeira, entendeu. E com quatro

Page 99: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

98

ou cinco anos é que ia brocar aquilo de novo. Hoje não, hoje você trabalha com mais

organizado.224

A questão socioambiental surge novamente, ao se analisar a necessidade que o

camponês tem de viver por toda a vida naquela localidade, diferentemente do grande

agricultor que precisa da terra “só para produzir um certo período”225

.

Nas falas que caracterizam essa relação com a terra emerge a comparação com o

agronegócio. Este tipo de produção é visto como um modo de relação em que os produtores

não reconhecem a dimensão de vida da terra, por isso eles “envenenam, queimam, destroem”

e veem a terra como “terra de negócio”, de lucro. Ao falarem sobre a degradação ambiental

provocada pelo agronegócio, dizem que “o agronegócio é morte, é massacre, roubam e

saqueiam dos recursos naturais que têm na terra” 226

.

224

Sobre esse sistema de plantio o entrevistado explicou: “[...] não se faz núcleos de roçados individuas pra

facilitar a pecuária, por exemplo, se dentro do assentamento tem 50 famílias, se escolhe se é de 10 em 10

famílias, de 20 em 20, já planta ali numa área. Aquela área já é transformada numa manga pra após a retirada do

milho e do feijão, já serve pra colocar o gado, já faz esse rodízio de agricultura e pecuária junto. O solo não

esgota e tem um rodízio de cultura. Por exemplo, naquele ano, planta um ano ali, daí no próximo ano já passa pra

outra capoeira, ou outra manga. Capoeira e manga é a mesma coisa. Geralmente entra mais nesse rodízio. Nesse

rodízio aí se coloca o gado. No meu assentamento mesmo nós fazemos esse rodízio em cinco mangas ou

capoeiras. Um ano nós plantamos naquela capoeira, e assim por diante, no próximo não plantamos mais naquela,

plantamos em outra. O desmatamento ele só não diminuiu 100%, mas ele diminuiu cerca de 80% porque você

não precisa tá fazendo a broca, você só precisa tá fazendo, nessa cinco manga nossa nós só faz, porque chega

num determinado tempo a gente tem que arrancar os renove, então você planta naquelas áreas de forma

alternada. Tô colocando o meu exemplo de assentamento, onde eu moro, onde eu fico, mas isso aí, quase todos

os assentamentos utilizam essa mesma metodologia”. 225

“Os processos de luta e trabalho [de acampados e assentados rurais] buscam construir um ambiente capaz de

dar sentido à existência com qualidade de vida, inclusive na manutenção de valores como o da preservação da

natureza. Por outro lado, e concomitantemente, esta visão reforça a racionalidade que questiona o atual modelo

de desenvolvimento agropecuário (baseado na lógica da Revolução Verde) e enfatiza a necessidade de um novo

padrão produtivo que permita melhorar a qualidade de vida dos camponeses e preservar o meio ambiente”.

(SAUER, Sérgio. Terra e Modernidade: a reinvenção do campo brasileiro. São Paulo: Expressão Popular,

2010, p. 68). 226

O MST expõe a agricultura que propõem: “tem como principal objetivo a produção de alimentos saudáveis,

livres de agrotóxico e produzidos com métodos e técnicas que preservem o meio ambiente, se contrapondo ao

modelo agrícola do agronegócio” (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Os

desafios da Luta pela Reforma Agrária Popular e do MST no Atual Contexto. Caderno de Debates n 1.

Outubro 2009, p. 3). Compreendem também que: “ao contrário do que dizem as grandes empresas, é possível

uma produção em que todos comam alimentos saudáveis e diversificados. A saída é fortalecer a agricultura

familiar e camponesa. No lugar dos latifúndios, pequenas propriedades e Reforma Agrária. Desmatamento zero,

acabando com devastação do ambiente. Em vez da expulsão do campo, geração de trabalho e renda para a

população do meio rural. Novas tecnologias que contribuam com os trabalhadores e acabem com a utilização de

agrotóxicos. Proibição do uso dos venenos. Daí será possível um jeito diferente de produzir: a agroecologia”.

(Informação disponível em <http://www.mst.org.br/Campanha-contra-o-uso-de-agrotoxicos>; acesso em 18 jun.

2011). O MST, em conjunto com cerca de 30 entidades da sociedade civil, vem promovendo uma “Campanha

Permanente contra Agrotóxicos e pela Vida”. Para maiores informações sobre a campanha, ver em:

<http://www.mst.org.br/node/11522>; acesso em 18 jun. 2011. Para ver entrevista com Raquel Rigotto,

professora da Universidade Federal do Ceará, sobre o uso de agrotóxicos no Brasil, ir em

<http://port.pravda.ru/busines/08-03-2011/31359-rigotto_agronegocio-0/>; acesso em 18 jun. 2011. Para ver um

artigo em que esta professora trata sobre o uso de agrotóxicos no Ceará, ver em RIGOTTO, Raquel; OLIVEIRA,

Zacharias Bezerra de. O abacaxi da Del Monte e as intoxicações com defensivos agrícolas no Apodi. 19 jun.

2006. Disponível em <http://www.terrazul.m2014.net/spip.php?article404>; acesso em 18 jun. 2011.

Page 100: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

99

Nas entrevistas, os integrantes da Coordenação Estadual destacam que o camponês

“pensa na renda, claro que ele pensa na renda, ele necessita da renda, mas em primeiro lugar

para o camponês está a soberania alimentar, ele quer comer com qualidade”. A renda,

portanto, não parece ser a dimensão central na relação entre o camponês e a terra. Assim, a

dimensão econômica é vivenciada em interligação com outras, sociais e políticas.

[A terra] é um lugar de vida, onde ele vive, produz e se reproduz tanto do ponto de

vista de reprodução humana, aumentando sua família, quanto do de reprodução

daquilo que se é, da sua continuidade política.

Em uma projeção de como seria o Brasil com reforma agrária e sobre a importância

da agricultura familiar para o abastecimento interno de alimentos no Brasil, Ariovaldo

Umbelino realiza a análise seguinte227

:

Usando os dados do Censo 2006 vamos fazer uma projeção de como poderia ser o

Brasil se fosse feita a Reforma Agrária: Tomando como base só os Estabelecimentos

com mais de 1.000 hectares. Com mais de 1.000 hectares são apenas 46.911

estabelecimentos. Ocupam uma área de 146.553.218 hectares, isto é, mais de 146

milhões de hectares. Dá uma média de 3.125 hectares por propriedade. Agora

vejamos como ficaria se fosse distribuída esta terra que está na mão de apenas 47 mil

grandes proprietários em lotes com tamanho médio de 50 hectares por Família.

Seriam criados 2 milhões e 920 mil novos estabelecimentos agrícolas, ou seja, quase

3 milhões de novos camponeses. Contando que a agricultura camponesa ocupa 15

pessoas a cada 100 hectares, esta reforma agrária criaria trabalho para 21 milhões de

pessoas, ao contrário de 2 milhões e 400 mil criados hoje através do agronegócio.

Contando que na agricultura camponesa, cada hectare gera uma renda média anual

de R$ 677,00, a renda gerada nas áreas distribuídas chegaria a mais de R$ 99 bilhões

por ano e não só os R$ 53 bilhões gerados hoje. 228

[Ao tempo em que] a agricultura familiar corresponde a 4,1 milhões de

estabelecimentos (84% do total), ocupa 77% da mão-de-obra no campo e é

responsável, em conjunto com os assentamentos de reforma agrária, por cerca de

38% do Valor Bruto da Produção Agropecuária [...], pela produção dos principais

alimentos que compõem a dieta da população – mandioca, feijão, leite, milho, aves e

ovos – e tem, ainda, participação fundamental na produção de 12 dos 15 produtos

que impulsionaram o crescimento da produção agrícola nos anos recentes. Em toda a

década de 90, a agricultura familiar teve aumento de produtividade maior que a

patronal: entre 1989 e 1999, aumentou sua produção em 3,79%, apesar de ter tido

uma perda de renda real de 4,74%. A agricultura patronal, no mesmo período, teve

perda menor (2,56%), mas aumentou a produção em apenas 2,60%. 229

As falas dos(as) entrevistados(as) indicam que a continuidade, a descendência, o

ensinar e o aprender como uma passagem dos mais velhos para os mais novos, a reprodução

humana, são incorporados aos elementos dessa relação entre o camponês e a terra. E isso é 227

Diversas obras deste autor, professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) tratam de violências e

resistências presentes nas lutas pela terra em meio rural, dentre estas, cito: OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de.

A Geografia das Lutas no Campo. 13. ed. São Paulo: Contexto, 2005. 228

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Material utilizado em palestra proferida no Seminário “Direitos Sociais

- Avanços e Perspectivas", Brasília, 17 de junho de 2010. Disponível em

<http://www.direitosociais.org.br/_arquivos/2010/344__questaoagrariaparte2.pdf>; acesso em 08 jul. 2010. 229

BRASIL. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. II Plano Nacional de Reforma Agrária:

Paz, Produção e Qualidade de Vida no Meio Rural, 2003, p. 13. Disponível em:

<http://sistemas.mda.gov.br/arquivos/PNRA_2004.pdf>; acesso em 08 jul. 2010.

Page 101: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

100

demarcado como mais uma diferença nas relações entre a terra e produtores ligados ao

agronegócio e a terra e o camponês, pois aqueles são vistos como os “de fora”, que moram na

Capital ou que estão ligados a uma empresa que tem sede no Exterior230

.

Ele [o camponês] mora na terra, os filhos e netos vivem lá. Não tem angústia maior

do que um agricultor de idade avançada não ver os familiares perto dele.

Já o empresário, o mais comum hoje, o dono de uma empresa que possui uma terra

não mora no campo. Não se vê alguém com grandes propriedades lá. Ele está na

praia, em Fortaleza ou às margens de outros cantos. Principalmente agora com essas

empresas de capital internacional, dificilmente estão no Brasil. Então, ele não precisa

dessa terra para morar, do ponto de vista da produção da vida dele, porque ele não

vive ali. Aí ele pode jogar veneno, explorar de forma cruel a terra, já que precisa dela

só para produzir por certo período, um lucro para ele. O camponês precisa viver toda

uma vida ali, com sua espécie. 231

Os(as) entrevistados(as) narram que o MST estimula espaços de produção coletivos e

o trabalho cooperado, por perceberem que “o trabalho coletivo é fundamental pro

assentamento, [e] a cooperação agrícola é fundamental para o desenvolvimento de qualquer

comunidade”. O trabalho coletivo é expresso como forma de unir forças, de superar

dificuldade, de fortalecimento: “o trabalho coletivo é uma forma de a gente superar, de a gente

adquirir meios, maquinário, no coletivo a gente tem mais força pra conseguir isso”.

Descrevem que, no Ceará, a maior parte dos assentamentos é considerado como

“misto”, ou regime “semicoletivo” (“coletivo-individual”):

Não obrigamos, motivamos a existirem coisas coletivas. Porque tem estruturas que

são indivisíveis. Não posso dividir um estábulo, por exemplo. Então é coletivo, vai

servir para os animais de todo mundo. Também não se pode dividir a cerca de todo o

assentamento. [...] Mas há outras coisas individuais.

Nas respostas aparece ainda a ideia de que a inexistência de uma cooperativa não

significa a ausência de cooperação; a dinâmica nos acampamentos, em que todos(as) ficam

sob um só barraco coletivo e trabalham conjuntamente, inicia o fortalecimento do grupo como

uma coletividade em cooperação; bem como a dimensão coletiva nos assentamentos

(“mistos”) proporciona momentos, meios, de exercício da cooperação e da solidariedade entre

as famílias campesinas. Isto fortalece o uso coletivo da terra e contribui para a constituição de

lógicas não ligadas à apropriação privada da terra.

Na maioria dos assentamentos existe cooperação, de diferentes formas, mas existe.

Desde a cooperação na cultura, celebrar junto, até as formas de cooperação nos

mutirões, no trabalho coletivo, de o vizinho ajudar, um ao outro. São os tipos de

forma de cooperação, de solidariedade.

230

Das 20 empresas que controlam (economicamente) a agricultura brasileira somente sete se declaram como

empresas nacionais. As demais são empresas europeias ou estadunidenses e tem seus escritórios no Brasil

localizados nas regiões Sudeste e Sul. Informação disponível em <http://www.mst.org.br/node/8257>; acesso em

15 jun. 2011. 231

Falas de integrantes da coordenação estadual do MST no Ceará entrevistados.

Page 102: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

101

Olha, se tu pegar grande parte dos assentamentos, não só do MST, todos os

assentamentos têm cooperação. Porque quando você trabalha de forma mista, que é

coletiva e individual, você já tá cooperando. Às vezes a gente pensa que o

assentamento que só tem cooperação, se ele tá lá com as quatro paredes, aquele

prédio, a cooperativa, a associação e tal, mas a cooperação ela se dá nos trabalhos, se

dá nos trabalhos coletivos. Na maior parte as pessoas não têm condições de pagar as

diárias, que chegam a 20 até 25 reais uma diária nos assentamentos. Mas aí o que

você faz, faz troca de serviços. Num dia, tem 10 pessoas que vai pro seu roçado,

limpa, colhe, faz todo tipo de serviço, depois tem o rodízio. Então isso é cooperação,

em vários sentidos. Nessa questão da cooperação do sistema, mais organizado, de

cooperação, de cooperativas, nós temos vários exemplos, por exemplo, o

[assentamento] 25 de maio, com a CONPAMA – que é a Cooperativa de Produção

Agropecuária lá do assentamento, que organiza também as associações.

Motivamos que tenha trabalho cooperado. Com o trabalho cooperado, amplia-se a

relação do agricultor, família e terra incluindo a comunidade, como convivência

social. Senão, individualiza-se tanto, que se passa a ter vínculo apenas com a

propriedade, passa a ser privada, apesar de pequena. Assim se tem poucas

perspectivas de avançar, de comercializar produtos, de melhorar o rebanho, o

armazenamento etc. Para todo trabalho é preciso haver interação com outras pessoas,

senão há pouca tendência a melhorar de vida.

Consideram que, no Ceará, as terras destinadas à reforma agrária são “terras ruins”, o

que estimula a organização do assentamento de modo semicoletivo:

Aqui no Ceará tem uma coisa que nos favorece é que os assentamentos não são

parcelados, eles são assentamentos coletivos. Porque a terra aqui no Ceará é muito

ruim. Numa fazenda, às vezes você tem 70% da terra que não presta pra nada, tá

entendo? Então você imagina se for parcelada. Você vai ter uma família que vai

pegar uma área totalmente ruim, que não pega nem calango, e outras que vai pegar

uma terra de baixios, as margens dos rios, que chama de baixas. 232

232

As informações seguintes, dentre outras, me fazem refletir sobre a qualidade das terras no Ceará; e sobre quais

terras, e em que condições de investimento e produção, são destinadas à Reforma Agrária no Ceará: “[...] em

algumas áreas do Nordeste, mesmo durante a seca, existe produção. [...] é viável produzir no interior da zona

semi-árida no Nordeste. [...] a seca influencia de forma diferenciada a vida dos vários grupos da população. De

um lado existe o grande proprietário, que tem acesso ao maquinário, à tecnologia e à irrigação para manter sua

produção; de outro, existem os pequenos produtores rurais que baseiam seu trabalho na agricultura de

subsistência e no trabalho nas grandes fazendas. Estes sofrem intensamente nos períodos de seca, sendo

obrigados a deixar a região. Hoje existem diferentes técnicas de manter a produção na zona semi-árida. Na região

do vale do Rio São Francisco estão sendo cultivados produtos como a uva, a cebola, o melão e outros. Essas

culturas são possíveis por causa de grandes investimentos em irrigação. A técnica utiliza a água acumulada e

mantém a produção durante os longos períodos de estiagem”. (Informação disponível em

<http://www.cienciamao.usp.br/dados/t2k/_geografia_geo28.arquivo.pdf >; acesso em 18 jun. 2011). “Mesmo

com um decréscimo de 11,53% o valor da produção agrícola no Ceará em 2007 foi de R$ 1.358 bilhões; diversos

Municípios mereceram destaque no Site Portal do Agronegócio pelo montante de suas produções”. (Informação

disponível em <http://www.portaldoagronegocio.com.br/conteudo.php?id=27702>; acesso em 18 jun. 2011). “O

Ceará apresenta-se como um Estado tradicionalmente agrícola, concentrando a maior parte de sua produção em

grãos [...]. Sabe-se que a criação dos polos de desenvolvimento em fruticultura irrigada faz parte das estratégias

do governo para promover o desenvolvimento local e do Estado do Ceará, portanto sugere-se estudos que

analisem o comportamento de outras variáveis importantes neste processo tais como: geração de emprego,

utilização apropriada do nível tecnológico, existência de assistência técnica e crédito, processo de

comercialização, destino do produto, facilidade de obtenção dos insumos, melhorias no nível de qualidade de

vida da população local etc”. (SILVA, Sonia Rebouças da; SILVA, Lucia Maria Ramos; KHAN, Ahmad Saeed.

Fruticultura e Regionalização da Produção Agrícola no Ceará. Disponível em

<http://www.sober.org.br/palestra/12/12O521.pdf >; acesso em 18 jun. 2011). Grande porcentagem das frutas

produzidas no Ceará tem como destino a exportação. Para ver dados sobre a “estimativa mensal da produção

agrícola no Ceará” ir ao Site do Instituto Agropolos do Ceará, em

Page 103: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

102

Outros modos de produção, como os “quintais produtivos nas famílias” aparecem nas

entrevistas como busca do “auto sustento da família” e da “soberania alimentar, fortalecendo a

possibilidade de renda”. A autonomia das famílias e a soberania alimentar são ideias nucleares

assentes nas falas233

.

Na conquista da autonomia das famílias campesinas assentadas, a questão da

emancipação dos assentamentos é vista como de fundamental importância. As falas apontam

que o Movimento defende o apoio do Estado ao assentamento, criando estruturas “sociais e

produtivas” e dando condições para que os agricultores produzam e vivam dessa produção. A

lógica não parece ser de apartar-se do Estado. Dizem que o agronegócio é em grande parte

subsidiado pelo Estado, que a produção agrícola é subsidiada em outros países e que isso pode

fortalecer a produção de alimentos para a constituição de uma soberania alimentar nacional.

Por isso, apontam para a defesa da concessão real de uso da terra para os(as)

trabalhadores(as)234

.

O movimento não é contra a emancipação, desde que o assentamento esteja

preparado pra tal condição, e segundo, toda a agricultura no mundo é subsidiada,

como o agronegócio brasileiro, 90% subsidiado com o dinheiro público, do povo

brasileiro. Então, nesse sentido, a gente entende que os agricultores familiares

também tem que ter um apoio. Por que a agricultura camponesa não pode ser

subsidiada, porque é um crime? Porque tem que ser inviável? Por que o que tem que

ser subsidiado é o agronegócio? Porque esse discurso fascista que existe, que tem

que emancipar pra se livrar, nós não concordamos com esse discurso. Nós

entendemos que tenha emancipação, que o assentamento tenha mais autonomia, mas

autonomia que venha dentro de um processo de fortalecimento da atividade

camponesa.

Então, com vinte anos se teria o título da terra. Para isso, o Estado teria que garantir

essa condição. Para os assentamentos serem emancipados ou titulados, tinham de ser

feitas estruturas sociais e produtivas. Teria de haver estrada, escola, telefone, posto

de saúde, toda estrutura comunitária e produtiva já. As famílias teriam de possuir

seus animais, estábulos, sua agroindústria, sua forma de auto sustentação. Com essa

dificuldade, os assentamentos não conseguem atingir esse nível. Já foram

emancipados alguns aqui. Tem uma lista enorme, só que a nossa briga é contra essa

<http://oktiva.institutoagropolos.org.br/blog/indicadores/categoria/precos/estimativa-mensal-da-producao-

agricola-do-ceara >; acesso em 18 jun. 2011. 233

“A reforma agrária popular tem por objetivos gerais: [...] d) Garantir a soberania alimentar de toda população

brasileira, produzindo alimentos de qualidade e desenvolvendo mercados locais” (MOVIMENTO DOS

TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Os desafios da Luta pela Reforma Agrária Popular e do MST no

Atual Contexto. Caderno de Debates n 1. Outubro 2009, p 14). 234

O Código Civil Brasileiro, no artigo 1.225, inciso XII, dispõe que:

Art. 1225. São direitos reais:

XII - a concessão de direito real de uso.

O MST compreende que: “frente à realidade agrária do Brasil, o correto seria que os assentados permanecessem

com o contrato de assentamento, por meio do título de concessão de uso, e não fossem atingidos pelo programa

de “titulação dos assentamentos”. Assim, a terra não seria propriedade, que significa mera mercadoria, mas sim

objeto para uso. Como disse o jurista Carlos Frederico Marés, “a cultura que confunde a terra e sua função

humana, social, com o direito abstrato de propriedade, exclusivo e excludente, faz uma opção contra a vida””

(MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Por que defender a concessão de uso.

2010. Disponível em <http://www.mst.org.br/jornal/302/realidadebrasileira>; acesso em 18 jun. 2011).

Page 104: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

103

emancipação. O que defendemos é que o Estado não saia dessa responsabilidade.

Deve haver de fato a concessão real de uso, dada pelo Estado brasileiro para que eles

usufruam da terra com respeito, como diz a lei e que isso passe de pai a filho. O

Estado hoje apoia a agricultura, mas mais do ponto de vista da agricultura patronal e

empresarial do que a camponesa, familiar. É desigual o investimento em cada uma

dessas agriculturas. 235

Inquiridos sobre as razões da impossibilidade da venda da terra pelo assentado,

justificam, dizendo que “a reforma agrária é um projeto de vida”, e essa reflexão é construída

com os camponeses nas reuniões em que se preparam para a ocupação, no acampamento, e

antes de se constituir o assentamento. A luta pela terra é associada à luta por “terra para

trabalhar, viver dela e ter sustento”, por isso dizem que o Movimento tem como diretriz ser

contra a venda da terra pelo assentado, pois

Se você entra num assentamento você não tem que pensar em entrar pra vender, pra

fazer negocio, lá é uma terra de trabalho, a lógica dele é outra. As pessoas têm essa

fase no acampamento para decidir o que elas querem. E quando você tem um

assentado, você pode desistir, pode sair por um motivo de doença. O que existe de

acordo sobre isso é, o que você fez pelo seu suor, a comunidade ressarci, o seu

trabalho, que não foi crédito do governo. Agora vender, nós não concordamos. O

movimento faz uma luta contra isso cotidianamente.

Quando a terra é coletiva, ele nem pode vender esse lote. Pois ele não sabe. Ele tem a

casa, o quintal, as áreas de plantio, as cercas para o gado. Pode ter todo o roçado

individual, mas ele não sabe qual a parte dele da terra. Sabe que é a parte de todos.

Mas ele não pode fazer um quadrado para ele e dizer que lhe pertence. Nós somos

contra a venda de lotes com o MST. Quando tenho um problema financeiro ou

adoeceu uma criança, eu vendo a primeira coisa que tem na minha frente. Pode

acontecer de eu vender esse lote e ficar sem nada. Daí não posso me assentar mais

com a reforma agrária. Também pode chegar alguém e botar na minha cabeça pra

vender o lote, pra comprar uma casa na cidade. Só que aí eu compro o seu, de um e

do outro. Daqui a pouco eu tenho vinte lotes e volto a ser proprietária de novo da

fazenda. Entendeu? É por isso que não concordamos com a venda de lote. Primeiro,

porque a gente conquista a terra para trabalhar, viver dela e ter sustento. Claro que se

tem de fazer muito investimento pra chegar nessa condição.

A fim de seguir na investigação sobre o sentido dado pelo MST ao direito à terra,

perguntei-lhes sobre quais as diferenças que indicariam entre um assentamento do MST e

235

“Agronegócio é qualquer operação comercial realizada com produtos agrícolas, mas no Brasil, virou a

denominação de um modelo próprio de organizar a agricultura na forma de grandes fazendas modernas, com

pouca mão-de-obra, com monocultura, que se especializam nas exportações. No crédito rural, houve um esforço

do governo para criar o seguro agrícola, que interessa particularmente aos pequenos agricultores. E houve um

esforço para aumentar os recursos de crédito destinados à agricultura familiar, através do Pronaf, que saltaram de

2 bilhões para 5 bilhões de reais. Mas isso não reduziu os recursos – recursos públicos – que estão sendo

alocados pelo Banco do Brasil e pelo BNDES para as fazendas que se dedicam à exportação. O próprio Banco do

Brasil fez propaganda nos jornais e revistas, mostrando que concedeu um volume de crédito de mais de 5 bilhões

de reais para aquelas dez empresas transnacionais que controlam a agricultura e para algumas poucas empresas

transnacionais da celulose. Ou seja, menos de 15 empresas receberam o mesmo volume dos recursos que foram

destinados para 4 milhões de agricultores familiares”. (OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de; STEDILE, João

Pedro. A Natureza do Agronegócio no Brasil. Via Campesina, 2005, p. 5; 30; 31). “[...] o governo Lula

financiou o agronegócio a um ritmo de 100 bilhões de reais anuais em financiamento - contra 16 para a

agricultura familiar” (RIGOTO, Raquel. Em entrevista concedida a Manuela Azenha, agencia Vi o Mundo.

22 fev. 2011. Disponível em <http://port.pravda.ru/busines/08-03-2011/31359-rigotto_agronegocio-0/ >; acesso

em 18 jun. 2011).

Page 105: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

104

outros assentamentos. As respostas disseram respeito a uma frase repetida nas entrevistas: “a

diferença é de projeto”236

:

Na reforma agrária nós temos três tipos de projetos presentes. Tem o projeto que

busca integrar os agricultores ao agronegócio [...]. Aqui no Ceará isso acontece.

Principalmente no Baixo e Médio Jaguaribe. Por exemplo, o […]. Ele dá os fios de

banana, os pés de banana, eu dou veneno e acompanhamento técnico, eu faço um

contrato com vocês. Vocês trabalham, cuidam dessas bananas na terra de vocês, mas

a produção vocês vão me vender. Se der algum prejuízo naquela produção, o

problema é de vocês. Se der resultado aí vocês vendem pra mim e eu pago a vocês.

Mas é uma total dependência, é um trabalho escravizado, mas diferente. Essa é a

ideia de integração, isso tá muito presente aqui nos perímetros irrigados do Ceará.

Então nós não concordamos com esse modelo, o movimento sem terra defende um

modelo de agricultura camponesa, e de reforma agrária, que é a política central do

desenvolvimento. Onde nós visamos à terra repartida, os meios de produção [...] pra

desenvolver as famílias numa perspectiva sustentável. Nosso movimento tem um

projeto de campo, não só no MST, mas em todos os movimentos vinculados à Via

Campesina.

Ainda em relação aos marcos dessa diferenciação retro questionada, destacam o

papel do acampamento na constituição solidária do direito à terra para todos. Na graduação,

ao presenciar momentos de mística no MST, recordo-me de ter ouvido a frase “quando chegar

na terra, lembre de quem quer chegar”237

. Pensar nela e em outras que imagino possam ser

dela derivadas, como “quando chegar na terra, lembre de dela cuidar”, ajudam-me a

compreender a seguinte fala:

Quando passa por um período de acampamento mesmo curto, o assentamento passa

por uma experiência de estudo, convivência, de busca coletiva do sonho. Diferente

de quando se tem experiência como agricultor individual. Este passa a perceber que

deve ter uma responsabilidade maior de cuidar daquilo que se conquista com a luta.

Temos de fazer acordos coletivos, dentro da convivência e produção social; “meu

direito vai até onde não atrapalhe o direito do outro”. Fazemos num processo de

acordo com a organicidade de cada assentamento. Onde um assentamento tenha

lucro de família, reúne-se coordenação, que discute o trabalho e decide. Se não

resolver, leva-se à assembleia geral, para aprovação coletiva.

O acampamento apresenta-se como momento de profunda importância na

constituição de projetos familiares, coletivos, no encontro entre os saberes inerentes à relação

236

O MST-Nacional diz que sua proposta de Reforma Agrária Popular “se insere como parte dos anseios da

classe trabalhadora brasileira de construir uma sociedade: igualitária, solidária, humanista e ecologicamente

sustentável. Dessa forma, as propostas de medidas necessárias fazem parte de um amplo processo de mudanças

na sociedade e, fundamentalmente, da alteração da atual estrutura da terra; de organização da produção e da

relação do ser humano com a natureza” (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Os

desafios da Luta pela Reforma Agrária Popular e do MST no Atual Contexto. Caderno de Debates n 1.

Outubro 2009, p. 14). 237

“Quando chegar na terra/ lembre de quem quer chegar/ Quando chegar na terra/ lembre que tem outros passos

pra dar/ Quando chegar na terra/ lembre que tem outros passos pra dar/ Mire o olhar na frente /porque atrás vem

gente / querendo lutar./ Neste caminho obscuro/ está o futuro para preparar/ Não desanime, caminhe/ Trabalhe,

se alinhe no passo de andar./ Quando chegar na terra/ Lembre que ainda não tem liberdade/ Este é o primeiro

passo/ que estamos dando nesta sociedade/ Só a terra não liberta/ Este é o alerta/[...]” (Música: “Quando chegar

na terra”. Letra: Ademar Bogo. CD: Arte em movimento. Informação disponível em: <http://www.landless-

voices.org/vieira/archive-05.phtml?rd=WHENWEAR210&ng=p&th=49&sc=1&se=0&cd=ARTINMOV039>;

acesso em 16 jun. 2011).

Page 106: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

105

camponês-terra e as pautas do MST, atribuindo significados à concepção de direito à terra

elaborada em movimento.

Sérgio Sauer compreende que

[...] os acampamentos se transformaram no lugar de construção da identidade do sem

terra. Mais do que um simples espaço de transição, é um lugar identitário, um lugar

privilegiado de reconstrução de identidade e de interações sociais. Estas

“encruzilhadas sociais” são lugares (diferente dos assentamentos) de sociabilidade e

construção de identidades, e não apenas uma passagem na luta pela terra, temporária

e marcada pela ausência de significação. 238

Os diversos processos de territorialização envolvidos no acampamento e no

assentamento, e as possibilidades de formação de múltiplos territórios interligados em rede

por meio da interconexão de acampamentos ligados ao MST, na luta pela concretização do

direito à terra e por outras transformações sociais, são assim descritos por Ilse Scherer-

Warren:

A ocupação de terras devolutas e a organização de um acampamento provisório é um

momento de desterritorialização e (re)territorialização de profundo significado

político e simbólico. A ocupação das terras é um ato de resistência e de luta pela

transformação de territórios-zona (latifúndios e terras devolutas), considerados como

apropriações históricas inadequadas e socialmente injustas. O acampamento é o

espaço onde as redes de solidariedade e de identidade simbólica e política se

desenvolvem [...]. Já na passagem aos assentamentos da reforma agrária nova

relação espacial ocorre. O assentamento se caracteriza como um misto de território-

zona e território-rede. Território-zona não no sentido mais tradicional, já que não há

o domínio econômico e político absoluto em relação à propriedade, seus membros

orientando-se politicamente pelo movimento rumo à efetivação de um projeto ou

utopia historicamente diferenciada. Esta nova forma de propriedade coletiva ou

individual se condiciona ao uso e produção da terra. Porém tem suas áreas e

fronteiras bem demarcadas. Portanto, trata-se de um microterritório-zona, sujeito a

um controle específico e acordado entre os membros de cada assentamento, mas

vinculado a um território-rede muito mais amplo, conectados por “nós” ou elos que

se espalham regional, nacional e até internacionalmente, através de significados

simbólicos e pautas de lutas políticas visando transformações sociais mais amplas e

duradouras. 239

Seguindo na busca de uma melhor compreensão dos significados de direito à terra

formulados pelo MST, questionei os(as) entrevistados(as) sobre a significância do Direito.

Iniciei essa parte da investigação com a pergunta “o que é Direito pra ti?”. As respostas

238

SAUER, Sérgio. Terra e Modernidade: a reinvenção do campo brasileiro. São Paulo: Expressão Popular,

2010, p. 62. 239

SCHERER-WARREN, Ilse. Redes para a (re)territorialização de espaços de conflito: os casos do MST e

MTST no Brasil. 2009, p. 5. Disponível em: <http://www.npms.ufsc.br/lpublic/SWarren.pdf>; acesso em 18 jun.

2011. A autora, nesse mesmo artigo, inspirada em Haesbaert, explica que “a organização espaço-territorial

compreenderia três tipos ideais de representação: 1. territórios-zona, centrados em dinâmicas sociais ligadas ao

controle das superfícies ou áreas e com “fronteiras” bem demarcadas; 2. territórios-rede, controle espacial pelo

controle de fluxos e das conexões (ou redes) e com a possibilidade de sobreposição e partilha de múltiplos

territórios; 3. aglomerados de exclusão, resultante da exclusão socioespacial de grupos segregados e com

inclusão precária, sem condições de exercer controle efetivo sobre seus territórios, seja no sentido de dominação

político-econômica ou de apropriação simbólico-cultural” (Ibid., p. 4).

Page 107: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

106

pautaram-se em três linhas: a) direito visto como satisfação de necessidades; b) direito como

“uma causa”, um objetivo a ser conquistado; e c) “direito de mudar”, de provocar mudanças

necessárias na sociedade e no “campo da reforma agrária” para ter “condições de vida

melhor”. O Direito, também, passa a ter legitimidade quando está “a serviço da vida”:

Direito pra nós é uma causa. Que quando favorece aos trabalhadores ele tem

legitimidade. Quando favorece a propriedade privada, ele não tem legitimidade pra

nós. Porque o direito só tem valor quando ele tá a serviço da vida, quando é um

direito que não tá a serviço da vida, então ele não serve de nada pra nós. Nosso

critério é esse com o direito. Então se é um direito que tá a serviço da vida, é um

direito que vai valer, mas se é um direito que vai fortalecer a opressão, nós não

defendemos esse direito, não reconhecemos. É um direito que não serve pra gente.

Falam também que o Direito é uma “ferramenta” e que, ao mesmo tempo, é

“contraditório”. É uma ferramenta, pois pode contribuir com a conquista do direito à terra e

outros, como o direito à educação (o qual reconhecem como um direito positivado em leis

estatais). É contraditório porque resguarda também outras situações que podem ser contrárias

a essas conquistas: “ah, tem o direito à propriedade, mas tem o direito à luta nossa”. E

ressaltam que a inserção no Movimento os ajuda a fortalecer a percepção de que eles têm

direito à terra, pois, em suas palavras, “só se sabe que tem direito a terra quando alguém

clama para lutar por ela”. Esse pensamento é reafirmado nas respostas à pergunta “o que você

acha que o camponês chama de Direito?”.

Usa para algumas coisas. Às vezes, a briga por um direito vai além dessa questão da

necessidade das pessoas, daquilo que está ou não dentro da lei, mas que você

precisaria para ter uma condição de vida. Há certa dúvida. É mais questionamento do

que afirmação sobre o que é um direito. Lembro das várias discussões que a gente

teve mesmo antes de vir ao movimento: por que a gente trabalha tanto e não tem o

que comer? Por que na época da seca nós fomos construir um açude na fazenda do

cara, o açude fica fechado e eu não tenho acesso à água? Como não tem

conhecimento, informação que, de fato, aquilo lhe dá o direito. Na medida em que

construo um açude na propriedade, nem poderia fazer se não tivesse um documento

de servidão pública. No dia em que se descobre isso, vai atrás. Por isso é importante

que as pessoas tenham certas informações. Antes do direito se deve ter a informação.

Quando não tenho conhecimento, não reclamo por aquele direito e outros mais. Essa

história dos camponeses não reclamarem seus direitos tem muito a ver com

informação. [...] Não é o MST que faz a ocupação de terra, são os sem terra que

souberam da informação sobre seus direitos em relação à terra.

Nessa e em outras falas, parecem reafirmar o direito como norma jurídica estatal,

destacando a importância da informação sobre essas normas por parte dos camponeses, a fim

de que possam exercitar esses direitos. Questionam, contudo, “quem está mais fora da lei: os

trabalhadores que lutam pela terra do MST ou os fazendeiros que tem propriedade?”. E esse

questionamento sobre legalidade e ilegalidade conecta-se a outra pergunta feita a eles(as)

sobre as ocupações de terra. Nas respostas apresentadas, parecem ligar o campo da legalidade

Page 108: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

107

(por eles considerado) ao “direito de qualquer ser humano ter essas condições” de satisfação

de necessidades.

[...] Então nossa avaliação, do legal e do ilegal, é que ele desaparece, pra nós, nós

queremos é que seja efetivado os direitos dos trabalhadores, e não importa o que o

Direito ou a Imprensa ache legal ou ilegal, se na nossa avaliação ele é legal. Isso pra

nós é você tirar mais de 25 mil pessoas da marginalidade da Constituição, né. Qual é

o jurista, ou quem é que vai questionar essas questões, se é legal ou não? No campo

da reforma agrária nunca houve uma ação para dizer, olha vai tá sendo feita a

reforma agrária […]. Todos esses, e eu digo sem medo de errar, todos esses, na

grande maioria, cerca de 70% dos assentamentos no Brasil foi feito na ilegalidade,

como eles queiram chamar. Foi através do MST, de alguma associação, de outros

movimentos. Essa questão da ilegalidade é muito questionável, a gente questiona

bastante. Porque eles podem fazer a reforma agrária dentro do legal, inclusive dando

mais condições. Porque se tu pegar uma família passar 4 anos, 8 anos, debaixo de

uma lona preta, no nossos sertão, sofrendo frio, sol e tudo, aí tu vai dizer “que vida

desumana, é legal ou é ilegal isso daí?”. Então, é questão pra gente questionar. Mas

essas famílias elas faz essa opção, porque dentro do legal não tem saída, ela não vai

conquistar a terra, ela não vai conquistar a reforma agrária. E a forma de conquistar é

essa, através de ocupação, é através de mobilização. Então o legal e o ilegal ele é

muito questionável. Na verdade essas ações foi feita mais no ilegal, que pra gente é

legal.

Essa percepção do que é legal para eles passa, por vezes, por interpretações dadas às

normas constitucionais e outras vezes por normas instituintes insurgentes, tais como parecem

transparecer as respostas dadas em relação a outro questionamento feito a eles, sobre como

percebem o direito posto pelo Estado.

A essa pergunta ajuntam respostas que apontam uma pluralidade de questões.

Comunicam que: a) as leis estatais não partem das relações entre o camponês e a terra,

reconhecendo também que existem outros grupos (como os povos indígenas e os pescadores)

que têm outras relações com a terra; b) o Direito pode ser “feito também pelo povo” em suas

lutas, resistências e reivindicações; c) na Constituição Federal e em outras normas jurídicas

estatais há uma gama de direitos a serem concretizados que, se o fossem, trariam grandes

avanços à reforma agrária no Brasil; d) ao tempo em que a Constituição é contraditória, na

medida em que a propriedade privada é vista como um direito fundamental ao lado de outros,

como direito a moradia e alimentação, o que pode trazer o risco de ser interpretado (o direito

de propriedade privada), preterindo, colocando para outros planos secundários, os direitos que

o Movimento considera como realmente fundamentais. Assim se expressam:

A alegria da gente é quando a gente vê lá o feijão florando, o milho pendurando, as

frutas brotando. O fruto é a celebração do nosso trabalho, e isso é uma coisa que

mais anima a gente. E as leis não enxergam isso. [...]. Nós não temos uma lei que

respalde esse tipo de relação com a terra. Não é só os sem terra, mas os quilombolas,

os povos indígenas, nativos, os pescadores, nós temos um outro tipo de relação com

a terra. [...] [Por exemplo,] eles acham que pra ser produtivo têm que ser aquelas

grandes áreas de monocultura, inclusive esse é um debate recente. Dizendo que os

assentamentos não são produtivos. Mas eles são produtivos do ponto de vista social,

Page 109: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

108

ambiental, econômico, quer dizer, tem uma visão mais completa de

desenvolvimento.

Direito também é feito pelo povo. Nós também fazemos a luta por direitos, nós

garantimos nosso direito […]. Nós, os movimentos, muitas vezes eles dizem “não,

vocês não podem”, nós podemos. A teimosia também faz o direito, não é só os

juristas não. A teimosia também é um direito, a resistência. “Ah, vocês não pode

fazer isso”, e a gente diz, “não podem por quê? Não tá servindo pra gente, não tá

defendendo a vida, não tá defendendo a luta, não tá defendendo a reforma agrária”.

[...] na Constituição temos muitas leis que foi conquistadas por nós, que foi na base

da pressão dos movimentos sociais, projetos de iniciativa popular e essa Constituição

ela tem que ser preservada. Porque que aí foi os nossos direitos, foi conquistado [...].

O Brasil não é tão ruim no ponto de vista das leis. É muito ruim no ponto de vista da

interpretação. Porque, por exemplo, quem controla hoje o poder judiciário no Brasil?

O problema não é nem tanto as leis. Claro que poderia ser melhor. Por isso que se

cria medida provisória, sei lá o que, para impedir inclusive o avanço. A própria

Constituição Federal em seus artigos, quanto à Reforma Agrária, saiu pior do que o

Estatuto da Terra. Houve perdas. O Estatuto tinha mais avanços, mas mesmo assim a

Constituição não é tão ruim quanto às leis. Ela é contraditória. Quando diz no artigo

5° que todo cidadão brasileiro tem direito à comida, casa, tal, aí já está dizendo,

quem é camponês tem de ter direito a terra. Como vou comer e onde morar se não

tenho terra? Então, já me é negado o direito. Só que quando ela diz que tem que

fazer a desapropriação, fazer a Reforma Agrária e tal, ela também garante o direito à

propriedade. Por isso é contraditória. O direito à propriedade privada é a supremacia,

inclusive, diante do direito de viver. O artigo 5° é suprimido pelo direito à

propriedade privada, pois é interpretado também por quem é proprietário. A justiça

não é cega, enxerga bem e a gente sabe para que lado. Portanto, a própria

Constituição que é contraditória, ainda é camuflada por algumas leis tais o caso da

MP que vem aí, do latifúndio, que impede a desapropriação das áreas ocupadas240

.

Se você for analisar, essa medida provisória não tem sentido. A forma como é

interpretada, quer dizer, criou-se na cabeça de todo mundo que tem de ter respeito

pela propriedade privada. É maior do que as pessoas.

Por fim, discorrem também acerca da importância de se buscar elaborar

interpretações voltadas à garantia dos “direitos do povo”:

240

A Medida Provisória 218356/2001 (referida pelos advogados(as) entrevistados(as) como MP do Latifúndio),

dentre outros dispositivos, modifica o artigo 2º, §7º da Lei no 8.629, de 25 de fevereiro de 1993 que passou a

vigorar da seguinte forma:

Art. 2º.

§7º. Será excluído do Programa de Reforma Agrária do Governo Federal quem, já estando beneficiado com lote

em Projeto de Assentamento, ou sendo pretendente desse benefício na condição de inscrito em processo de

cadastramento e seleção de candidatos ao acesso a terra, for efetivamente identificado como participante direto

ou indireto em conflito fundiário que se caracterize por invasão ou esbulho de imóvel rural de domínio público

ou privado em fase de processo administrativo de vistoria ou avaliação para fins de reforma agrária, ou que esteja

sendo objeto de processo judicial de desapropriação em vias de imissão de posse ao ente expropriante; e bem

assim quem for efetivamente identificado como participante de invasão de prédio público, de atos de ameaça,

sequestro ou manutenção de servidores públicos e outros cidadãos em cárcere privado, ou de quaisquer outros

atos de violência real ou pessoal praticados em tais situações.

Essa mesma MP modifica o art. 2º, §8º da citada Lei, passando este a viger como:

Art. 2º.

§8º. A entidade, a organização, a pessoa jurídica, o movimento ou a sociedade de fato que, de qualquer forma,

direta ou indiretamente, auxiliar, colaborar, incentivar, incitar, induzir ou participar de invasão de imóveis rurais

ou de bens públicos, ou em conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo, não receberá, a qualquer título,

recursos públicos.

Tal dispositivo dá-se como um instrumento de repressão das ocupações políticas e legítimas de movimentos

populares ínsitas a tessitura de suas lutas pelo acesso a terra.

Page 110: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

109

[...] o poder judiciário é pior do que a lei que tem no Brasil. Não é que esteja boa

também. Pode ter a melhor lei, mas se o juiz disser que você está condenado, ele

condena. Ele arranja qualquer brecha para uma lei que depois caia. Com certeza nós,

agricultores, acabaríamos com essa história de propriedade privada no latifúndio,

com muito menos fiscais, a gente modificaria o limite, o tamanho da propriedade no

país. Poderíamos ter a questão sobre o uso da água, do solo, de ter acesso a terra,

modificar a questão da alimentação, dos recursos naturais, se tivéssemos acesso à lei.

Mais do que ter a lei, tínhamos de ter força para cumprir a que já tem. Também

modificar o que tem, ampliar, avançar. Não adianta fazer modificação numa lei

depois não ter força pra fazer com que essa lei aconteça. Para isso, deve haver uma

mobilização do povo, a fim de garantir seus direitos. Hoje é proibido escravizar, mas

quantos trabalhos escravos não existem hoje? É proibido passar fome, mas quantas

pessoas estão passando fome no país? Há todo um sistema que burocratiza e

impedem as pessoas de garantirem seus direitos.

Compreendo que a legitimação do acesso e permanência na terra pelos camponeses

se dá, também, pelo cumprimento de uma função social da terra. Jeaneth Nunes Stefaniak

entende que essa função social, segundo o MST, passa pelos seguintes preceitos:

[...] primeiro, que a propriedade da terra deve ser limitada a uma área suficiente para

impedir a concentração fundiária; segundo, que a terra deve garantir a produção para

a subsistência da população, devendo produzir alimentos, na busca da segurança

alimentar; terceiro, que a zona rural deve ser transformada em núcleos sociais, em

habitat das famílias camponesas; e, finalmente, que deve ser incrementado o respeito

ao meio ambiente na linha do desenvolvimento sustentável.241

Assim, os camponeses, no encontro dialógico com o Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra, parecem constituir heterotopias242

e significados de direito à

terra onde esta é mais que um espaço de morada e produção agrícola, é um espaço a ser

apropriado pelo coletivo de famílias campesinas, as quais estabelecerão relações econômicas,

sociais, políticas e naturais com o espaço, constituindo cultura e identidades coletivas, a fim

de satisfazer suas necessidades materiais, simbólicas e subjetivas. Sérgio Sauer compreende

que

241

STEFANIAK, Jeaneth Nunes. Propriedade e Função Social: perspectivas do ordenamento jurídico e do

MST. Ponta Grossa: UEPG, 2003, p. 134. A autora realizou extensa pesquisa bibliográfica. Analisou documentos

básicos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, entrevistou lideranças do Movimento, visitou um

assentamento, tendo entrevistado aí assentados com o fito de realizar a pesquisa que originou a obra em análise.

Nesta, logo na introdução, destaca que “concluímos, inicialmente, que o conceito de função social da propriedade

adotado pelo MST é totalmente diferente daquele definido pelo Direito positivo brasileiro e pela maioria dos

autores pesquisados. [...] Observamos também que o movimento social organizado pressiona pela construção

legislativa e contribui para a alteração de conceitos do ordenamento jurídico”. (Ibid., p. 24). 242

Inspirado em Foucault, Sérgio Sauer diz que “A heterotopia é a possibilidade não de inventar um lugar

totalmente outro (ou mesmo um não lugar), mas de provocar um deslocamento do olhar, uma mudança de

perspectiva do centro para a margem. É um processo social [...] [que] têm poder para provocar transformações na

realidade contribuindo na construção de um outro rural e outras representações desse rural, inclusive na

perspectiva de um desenvolvimento social, econômico e ambientalmente sustentável. [...] A luta pela terra é a

busca por um outro lugar, em vez de simplesmente uma utopia, uma ausência de algo que não tem lugar. [...]

São apenas perspectivas porque, nos processos de “reconstrução” ou “reinvenção” simbólica e real, apontam

aspectos fundantes de um desenvolvimento sustentável, que não se restringe à sua dimensão econômica e

material. (SAUER, Sérgio. Terra e Modernidade: a reinvenção do campo brasileiro. São Paulo: Expressão

Popular, 2010, p. 69-71).

Page 111: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

110

A luta pela terra – diferentemente da noção de deslocamento e esvaziamento do

espaço como “unidade geográfica elementar” [...] – recoloca a importância da noção

de território e de lugar, como parte da experiência humana de espacialidade. [...] a

estrutura espacial (entendida como resultado de processos sociais, inclusive de

embates pelo poder) é parte fundante da construção e representação da vida

cotidiana. A luta por terra materializa essa importância porque é, explicitamente, a

busca por um lugar, geograficamente localizado e delimitado, recolocando a

dimensão de espacialidade. 243

Sauer, também, conecta a luta pela terra vivenciada por trabalhadores rurais a uma

noção de território. Na sua análise

Quando falamos em reforma agrária, nós pensamos na terra produtiva ou

improdutiva, ou seja, na relação de propriedade. Quando falamos das demais

populações tradicionais, pensamos em território. É um equívoco conceitual e

político, porque, para aqueles que lutam pela terra, a noção de terra é exatamente a

noção de território e, portanto, tem uma noção de identidade. Não é gratuita a

existência dos sem terra. Essa é uma concepção identitária, portanto, uma concepção

de território. Só que, quando falamos em luta pela terra — não sei se vocês estão me

entendendo —, quando falamos em reforma agrária, sempre pensamos num

determinado segmento, o da terra produtiva. E aí vem a ideia de que os assentados

têm que produzir, têm que ser mais competitivos que os grandes proprietários. É uma

concepção capitalista e equivocada. Senão equivocada, pelo menos stricto sensu, da

terra como propriedade privada. A discussão da função social é outra. E aí, ia dizer

isto antes, quando pensamos a terra como função social e o território como

identitário é que os conceitos se aproximam. Daí, portanto, luta pela terra é luta por

um direito, não de propriedade, mas de identidade — de sem terra para com terra.

Assentados, quilombolas são todos conceitos identitários ligados a lugar. Não estão

soltos no espaço, não são navegadores do espaço. Portanto, têm direito à identidade,

ao trabalho — porque terra e território neste País são sinônimos de trabalho — e a

um lugar para viver. A um endereço, para ser mais simplista e direto. É disso que

estamos falando quando falamos em reforma agrária. Não é para transformar o País

em produtor mundial disso ou daquilo. Essa concepção faz parte, mas é uma

concepção vinculada à propriedade. Estamos discutindo aqui o direito à terra, no

sentido de território, de identidade, e o direito a ser.244

Os trabalhadores rurais sem terra buscam a terra para, com ela, estabelecer uma

territorialização, uma relação econômica, política, social e natural com o espaço; no

acampamento e, posteriormente no assentamento, lugar este onde também exercem, ou

deveriam exercer, o livre acesso a fontes naturais, em meio a interações coletivas com o

espaço, partilhando historicidades, vivenciando as ressignificações culturais e de identidade

ínsitas à coletividade, como campesinos, e como frutos de uma luta pela terra junto ao

MST.245

243

Ibid., p. 59. 244

SAUER, Sérgio. Palestra proferida no Seminário “20 anos da Constituição Federal – Desafios para

garantir a aplicabilidade do direito humano à terra e ao território”. Na Câmara dos Deputados, Brasília, 26

nov. 2008, p. 30; 31. Compilação realizada pelo Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação da Câmara

dos Deputados. Disponível em <http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-

permanentes/clp/notas-taquigraficas/2008/direito-humano-a-terra-e-ao-territorio>; acesso em 22 jun. 2011. 245

Lembrei-me, então, interpretando, as palavras do pescador o qual definiu que havia uma diferença (que

compreendi ser para ele distintiva) entre a comunidade de Curral Velho e trabalhadores sem terra, estes teriam

Page 112: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

111

Assim, destoa o direito à terra reivindicado pelo MST da visão produtivista e

privatista que poderia ser interpretada da Constituição Federal caso as lentes usadas

ignorassem o disposto em todo o artigo 5º (CF/1988) e em outros dispositivos constitucionais

que promovem, defendem, protegem o Direito à Vida.

Nesse caminhar, na trança dos bilros, permito-me outra digressão. Imaginando um

dia em que no ritual em homenagem à morte de cada camponês sem terra não se lembre de

entoar o “Funeral de um Lavrador”246

, e sim, em meio a outras cantigas, que a música

“Assentamento” se faça ouvir ao som de vozes com acesso a terra:

Quando eu morrer, que me enterrem/ na beira do chapadão/ contente com minha

terra/ cansado de tanta guerra/ crescido de coração/ [...]/ Quando eu morrer/ Cansado

de guerra/ Morro de bem/ Com a minha terra:/ Cana, caqui/ Inhame, abóbora/ Onde

só vento se semeava outrora/ Amplidão, nação, sertão sem fim [...]. 247

A concepção da terra, reduzida a um espaço de morada e produção, liga-se

intrinsecamente à propriedade privada da terra em seu aspecto privatista, individualista,

exclusivista, cujo controle é exercido por um proprietário titularizado, o comprador da terra-

mercadoria. Ocorre que a terra, assim percebida, não é por todos assim vivida. Populações,

coletivamente consideradas, em suas historicidades partilhadas, identidades constituídas e

culturas ressignificadas, vêm se relacionando com o espaço em diferentes processos e sentidos

de territorialização.

Essas relações confluem com tensões e disputas na sociedade do capital pelo

reconhecimento de suas culturas, identidades, por autonomia em seus modos de existência,

por acesso a fontes de recursos naturais, por acesso à terra e permanência em seus territórios e

por sentidos de desenvolvimento. Essas dimensões hibridizam-se com diversas faces da

violência humana colonial/capitalista/racista/patriarcal/antropocêntrica. Em meio a esse

redemoinho de ventos que os afetam e violentam, essas populações organizam-se em torno de

movimentos populares e tecem significados ao direito à terra e ao território no encontro entre

seus modos de vida e suas experiências aprendidas na luta.

Esses vários significados apresentam-se não como bricolagem, mas como faces dos

diferentes modos de existência humana, confluindo-se em sentidos comuns de relação com a

sido “expulsos” (ainda que em momentos atavicamente guardados na memória e em histórias orais/escritas) de

uma terra com a qual estabeleciam uma relação territorializada. 246

“Esta cova em que estás com palmos medida/ É a conta menor que tiraste em vida/ [...]/ É de bom tamanho

nem largo nem fundo/ É a parte que te cabe deste latifúndio/ [...]/ Não é cova grande, é cova medida/ É a terra

que querias ver dividida/ [...]” (MELLO NETO, João Cabral ; HOLANDA, Chico Buarque de. Música: Funeral

de um Lavrador). 247

BUARQUE, Chico. Música: Assentamento.

Page 113: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

112

terra e o território e em óbices partilhados na fruição dessa relação de vida248

, incitando assim

a constituição de Direito Humano à Terra e ao Território em uma perspectiva intercultural249

.

Boaventura de Sousa Santos evoca, nesse aspecto, o “direito à transformação do direito de

propriedade segundo a trajetória do colonialismo para a solidariedade”, segundo o qual

Uma política cosmopolita250

insurgente de direitos humanos deve confrontar

abertamente o individualismo possessivo da concepção liberal de propriedade. Para

além do Estado e do mercado, um terceiro campo social deve ser reinventado:

coletivo, mas não centrado no Estado; privado, mas não vocacionado para o lucro;

um campo social que sustente social e politicamente a transformação solidárias do

direito de propriedade.251

Em um espaço de tempo curto na contagem ocidental do passar dos dias, meus

sentidos, com intensidade, viram e ouviram, falas, histórias e canções dessas populações,

aguçando minha visão e ajudando-me a ampliar minha compreensão sobre esses diversos

significados... Na trança dos bilros, passo a outro aspecto do desenho: as lutas pela terra e pelo

território nas perspectivas dos(as) advogados(as) populares.

248

Deborah Duprat compreende que “[...] o que une as várias lutas pelo território é o agronegócio. Deveríamos

ter também uma estratégia comum. Se algo ameaça a demarcação de território é essa expansão da fronteira

agrícola, da monocultura, que ameaça a reforma agrária e os territórios de povos e populações tradicionais”.

(DUPRAT, Deborah. Palestra proferida no Seminário “20 anos da Constituição Federal – Desafios para

garantir a aplicabilidade do direito humano à terra e ao território”. Na Câmara dos Deputados, Brasília, 26

nov. 2008, p. 38. Compilação realizada pelo Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação da Câmara dos

Deputados. Disponível em <http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-

permanentes/clp/notas-taquigraficas/2008/direito-humano-a-terra-e-ao-territorio>; acesso em 22 jun. 2011). 249

A fim de aprofundar-se sobre o tema, vide SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo: para

uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006; mais especificamente no capítulo “Para uma Concepção

Intercultural de Direitos Humanos” (capítulo 13, páginas 433-470). 250

O autor esclarece que “o cosmopolitismo subalterno e insurgente, [...] refere-se à aspiração por parte de

grupos oprimidos de organizarem a sua resistência e consolidarem as suas coligações à mesma escala em que a

opressão crescentemente ocorre, ou seja, à escala global”. (Ibid., p. 439). 251

Ibid., p. 466.

Page 114: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

113

4 OS OLHARES DE ASSESSORES JURÍDICOS POPULARES SOBRE AS LUTAS

PELA TERRA E PELO TERRITÓRIO

No ano de 2009 (setembro), entrevistei seis advogados(as) populares ligados à

RENAP-CE sobre o direito de propriedade e movimentos organizados em torno do direito de

terra252

. As entrevistas semiestruturadas versaram em torno de duas perguntas principais: “o

que você compreende como direito de propriedade?”; e “como os movimentos e grupos que

você assessora percebem o direito de propriedade?”.253

Em resposta a segunda pergunta, os(as) advogados(as) partiram da observação de que

a pluralidade dos movimentos expressa diversas percepções destes em torno da propriedade e

do acesso à terra urbana e rural. As falas presentes em cada uma dessas diferenciações, no que

tange ao meio rural, confluem com o disposto no capítulo anterior.

As respostas à primeira pergunta apontaram que:

Na definição do direito de propriedade aparece o título e o elemento da exclusividade

como sendo substancial a esse direito [...];

Os(as) advogados(as) associam a propriedade a relações econômicas, sociais e de poder

desiguais [...];

[Os assessores jurídicos] ressaltam os avanços a partir da constitucionalização da função

social da propriedade e suas limitações [...]. 254

Ao iniciar as entrevistas junto a Carlos Alencar, Flor de Liz, Luiz Gama, e Tuíra (no

ano de 2010), essas questões foram reperguntadas a todos(as), os(as) quais, inclusive a

advogada que não havia participado dessas primeiras entrevistas, responderam aos

questionamentos de modo confluente com o apontado há pouco.

O direito de propriedade é visto como “um domínio, [sem] necessariamente [o

proprietário] ter o contato com a terra [...]”. E é associado ao seguinte: a) exercício de

252

Conforme já informei, três dos quatro advogados ora pesquisados participaram dessas entrevistas iniciais.

Esses(as) seis advogados(as) foram escolhidos por possuírem, cada um(a) deles(as), atuação em diversos

movimentos: no meio urbano e no meio rural e litoral (junto a trabalhadores sem terra, populações tradicionais,

povos indígenas, populações nômades, dentre outros), e por terem trabalhado em escritórios e assessorado

movimentos no Ceará organizados em torno da luta pela terra e pelo território, como o Movimento dos Sem

Terra, o Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA), e o

Movimento dos Povos Indígenas no Ceará. 253

Os dados colhidos nas entrevistas foram utilizados na redação do seguinte artigo: JOCA, Priscylla;

NÓBREGA, Luciana. O Olhar de Advogados(as) Populares: o direito a terra e a pluralidade de movimentos

sociais. In: Marcos Wachowicz; João Luis Nogueira Matias. (Org.). Direito de propriedade e meio ambiente:

novos desafios para século XXI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2010. 254

JOCA, Priscylla; NÓBREGA, Luciana. O Olhar de Advogados(as) Populares: o direito a terra e a pluralidade

de movimentos sociais. In: Marcos Wachowicz; João Luis Nogueira Matias. (Org.). Direito de propriedade e

meio ambiente: novos desafios para século XXI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2010.

Page 115: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

114

exclusividade, exclusão de outrem; b) deter um título, um “papel” que consubstancia esse

direito255

.

A propriedade, associada a relações desiguais, é percebida como “fruto de uma

estrutura de poder [...] [que] faz aumentar as desigualdades”; “fundamento [...] da sociedade

capitalista”. Bem como “expressam que a propriedade em um viés puramente produtivista e

mercadológico reforça a exclusão e as desigualdades econômicas e sociais”. 256

A definição do direito de propriedade aparece ligada a um título e a exclusividade. A

propriedade é vista como causa impeditiva de acesso democrático a terra, por servir

como meio de manutenção de relações econômicas e sociais baseadas na

concentração do capital e de meios de produção em pequenos grupos, e na exclusão

da maioria populacional. 257

No ordenamento jurídico estatal brasileiro, a posse é vista, por alguns, como o

instituto mais próximo às demandas dos movimentos assessorados258

:

Ao ressaltarem a posse como instituto jurídico mais próximo das demandas dos

movimentos sociais do que a propriedade, destacam a percepção dos grupos sociais

não-proprietários de que a propriedade é o título, [mas] a terra pertence a quem dela

faz uso.259

Sobre a constitucionalização da função social da propriedade:

Expressam que [esta] representa um avanço e possibilita interpretações mais

próximas das demandas dos movimentos sociais, ainda que problematizem a

desapropriação com posterior indenização em caso de não cumprimento da função

social, por compreenderem que em não sendo efetivada a função social o bem não

deveria sequer ser reconhecido como propriedade, e não ensejar nenhuma forma de

desapropriação, portanto. Tal pensamento parece fortalecer a compreensão de que

ligam a função social (e a necessidade de cumprimento desta) ao bem e não ao título

de propriedade desse bem. 260

Durante as atividades de campo junto aos(às) quatro advogados(as) envolvidos(as)

nesta pesquisa, realizei diálogos e entrevistas formais e informais junto a estes(as), em busca

de compreender como os assessores jurídicos populares percebem as resistências e

reivindicações gestadas nos movimentos assessorados, das quais emergem demandas para a

255

Código Civil Brasileiro de 2002.

Art. 1225. São direitos reais:

I – a propriedade;

Art. 1227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com

o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos [...]. 256

JOCA, Priscylla; NÓBREGA, Luciana. O Olhar de Advogados(as) Populares: o direito a terra e a pluralidade

de movimentos sociais. In: Marcos Wachowicz; João Luis Nogueira Matias. (Org.). Direito de propriedade e

meio ambiente: novos desafios para século XXI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2010. 257

Ibid. 258

Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes

à propriedade (art. 1.196 do CCB). Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício,

em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade (art. 1204 do CCB). 259

JOCA, Priscylla; NÓBREGA, Luciana. O Olhar de Advogados(as) Populares: o direito a terra e a pluralidade

de movimentos sociais. In: Marcos Wachowicz; João Luis Nogueira Matias. (Org.). Direito de propriedade e

meio ambiente: novos desafios para século XXI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2010. 260

Ibid.

Page 116: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

115

atuação jurídico-política desses(as) advogados(as); e como compreendem as interconexões

possíveis dessas demandas, o Direito Estatal, e outros significados possíveis do Direito.

As respostas foram plurais, muito ligadas à práxis junto aos movimentos. E levaram-

me a refletir sobre inúmeras questões. Destaco, preliminarmente, que as perguntas feitas

aos(às) advogados(as) foram basicamente as mesmas, no entanto, nem sempre se achavam à

vontade para falar sobre determinados assuntos, tendo eu adotado sempre a posição de

respeito a isso, ao tempo em que buscava instigar-lhes com questões as quais pudessem levá-

los(as) a refletir sobre os temas abordados.

Quando algumas respostas não ficavam claras para mim, quando me diziam que iam

pensar sobre determinado assunto para os próximos encontros, ou quando percebia que em

suas falas voltavam espontaneamente a certas questões, os retomava em diálogos e entrevistas

posteriores.

As falas analisadas a seguir, portanto, constituem a síntese dos passos trilhados com

os assessores jurídicos. A cada encontro, dos diálogos, nasciam ressignificações em mim e

nos(as) pesquisados(as). A descrição do pari passu do caminho percorrido junto a cada um(a)

deles(as) preencheria linhas suficientes para uma história em quatro volumes. De modo

sucinto, pois, farei um resumo da obra, a seguir.

Tuíra, advogada de Povos Indígenas no Ceará, parte, em suas reflexões, da

compreensão de que esses Povos têm com a terra uma “relação cultural”, onde a terra é um

“local sagrado, onde viveram os antepassados e onde os antepassados praticavam rituais”. A

dimensão do sagrado é central em suas falas. Costumava citar o lugar sagrado de cada um dos

Povos assessorados, explicando-me, em suas percepções, a significância desses lugares.

Após algumas entrevistas com as lideranças do Movimento dos Povos Indígenas no

Ceará, perguntei-lhe o que ela compreendia como território indígena. Minutos de silêncio

transcorreram até ouvir sua resposta, na qual ela me disse crer que quando falam em território

se referem a um conjunto que vai além da terra demarcada. O que chamam de “território

pretendido” é a primeira percepção do que eles acham que é o território, a terra demarcada é o

que eles conseguem com a luta. Por diversas vezes, Tuíra retorna à questão das dificuldades

em se comprovar, diante dos órgãos estatais, a extensão das terras tradicionais de sociedades

indígenas no Ceará.

Ao discorrer sobre as singularidades que caracterizam a luta de Povos Indígenas pelo

território, Tuíra refere-se à relação com a terra, dizendo que esta não é só uma relação de

Page 117: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

116

produção. Destaca que essa relação é também vivenciada por outras populações, citando

camponeses tradicionais e pescadores.

Perguntei-lhe porque os Povos faziam retomadas. Sua resposta foi: para “efetivar o

direito”. Convidada a refletir sobre as retomadas e as manifestações realizadas pelos Povos

assessorados, Tuíra contou-me uma história que interpreto como a sua compreensão de que o

sistema jurídico estatal, por vezes, não promove a defesa do direito ao território, instigando

esses Povos à luta por sua concretização:

[...] eles [determinada sociedade indígena] entraram em conflito com uma cerâmica,

eles chegaram a duas instâncias, inclusive está parada a atividade da cerâmica. Eles

[referindo-se à cerâmica] retiram muita areia, e tem buracos enormes, já houve

inspeção judicial, até o juiz federal já foi lá, é gritante! Mas eles já conseguiram

ganhar, só que o dono da cerâmica continua na marra, construiu um muro, só que os

[índios] falaram: “Olhe, esse muro assim, assim, assado, nós temos processos, o

Ibama já disse que isso é crime ambiental, já tinha uma liminar e tal”. [...] aí eles

disseram, “vamos dar uma prazo! Ou vocês param e tiram o que tá, ou então a gente

vai tirar”, aí o proprietário brigou, aí você imagina, quando eu cheguei na BR, tinha

uns 200 [índios], todos trajados, com lança, bordão, com um pedaço de pau! todos

dançando toré no meio da pista, lá da lagoa até o canto do muro, que não era perto,

no sol rachando, todo mundo lá no sol dançando o toré, e quando chegou lá todo

mundo homem, mulher, menino, idoso, e derrubou o muro, parecia um pedaço de

papel, era uma força tão grande que parecia um pedaço de papel. Todos esses anos

que eu tenho de movimento, o que valeu mais a pena acompanhar foi esse, você vê

realmente assim aquela luta pelos direitos se efetivando na marra, onde o cidadão

responde, [...] foi lindo! O cara ainda chegou aqui, ameaçando, mas não houve nada,

eles conseguiram.

Sobre o reconhecimento dos Povos Indígenas no Ceará, Tuíra avaliou que, mesmo

com a Convenção n 169 da OIT, o autorreconhecimento não é respeitado, havendo

exigências para que os Povos comprovem sua indianidade. Citou como exemplo quando um

índio vai a um órgão estatal e algum funcionário diz “mas tu nem tem cara de índio!”.

Tuíra asseverou, ainda, a importância de se falar nessas sociedades como povos

originários, dizendo também que essa é uma das questões mais respeitadas pelo sistema

jurídico estatal na defesa de direitos dos Povos Indígenas.

Em certa ocasião, convidei Tuíra a dialogar sobre o Direto Estatal e as populações

indígenas no Brasil. Perguntei-lhe: “o que está na CF/88 contempla?”. Minha pergunta foi no

sentido de compreender se as relações estabelecidas com o território das sociedades indígenas

estariam conectadas à normatização constitucional. Ela disse que há avanços, mas que a

dicção “terras tradicionalmente ocupadas” dá margem a várias interpretações jurídicas. Pode-

se, erroneamente, interpretá-las como aquelas terras em que os Povos Indígenas resistem,

mantendo sua posse, e isso os exclui de locais de onde esses Povos foram sendo expulsos. Em

outra entrevista, Tuíra asseverou que se comete o equívoco de tomar como posse a ocupação

Page 118: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

117

territorial desses Povos. Completa, dizendo: “já houve e há tanta violência no sentido de

expulsá-los”. A advogada expõe que:

[...] tem a relação cultural com o espaço; [no território de um dos Povos Indígenas no

Ceará] tem uma parte que tem muita carnaúba e a carnaúba é uma árvore sagrada

para eles; aí eu vou dizer: “tem que estar ocupada né, vamos armar as redes embaixo

das árvores para ocupar!”.

Para Tuíra, o conceito de território presente na convenção 169 da OIT aproxima-se

bem mais do que conhece desses Povos e de sua relação com seus territórios.

Em outras falas, Tuira refere-se, preocupada, às condicionantes elaboradas pelo STF

no julgamento do caso sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Sobre o tema, ela

questiona: as condicionantes proíbem “ampliação depois da demarcação, o Povo vai crescer e

vai pra onde?”.

Entre instrumentos normativos que utiliza na defesa dos Povos Indígenas, cita, além

da Constituição Federal e da Convenção n 169 da OIT, a Declaração da ONU sobre os

Direitos dos Povos Indígenas (2007) 261

. A advogada informa também que atua juridicamente:

[...] argumentando principalmente em cima dessa questão da ancestralidade e na

necessidade de reparação, de como o próprio Estado violou os direitos indígenas, e

acessou a terra todo esse tempo, e que agora tem o dever de demarcar e

minimamente reparar [...]. 262

Ainda sobre esses argumentos, diz que “o principal mesmo é essa questão da relação

com a terra, tentar diferenciar a relação que o indígena tem com a terra com as demais

pessoas, dessa questão do território tradicional, mesmo não sendo ocupada, aí é outra briga

[...]”.

Tuíra reconhece que, internamente (nas sociedades indígenas), há relações de direito

estabelecidas que não se conectam, necessariamente, com o direito estatal. Cita como exemplo

a Lei Maria da Penha e suas dificuldades de aplicação junto aos Povos Indígenas263

. Perguntei,

então, se, diante do Estado, eles podem instituir direitos. A advogada disse compreender que

sim, pois “mesmo os povos mais próximos da cidade, [...] têm especificidades”. Fiz-lhe outra

pergunta: “tu acha que o direito ao território é um direito trazidos pelos povos indígenas, a

261

Para ver íntegra da declaração ir em <http://www.cimi.org.br/pub/publicacoes/1191526307_Encarte299.pdf>;

acesso em 28 jun. 2011. 262

Art. 28, 1, da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas: “Os povos indígenas têm direito à

reparação, por meios que podem incluir a restituição ou, quando isso não seja possível, uma indenização justa,

imparcial e eqüitativa, pelas terras, territórios e recursos que tradicionalmente tenham possuído, ocupado ou

utilizado de outra forma e que tenham sido confiscados, tomados, ocupados, utilizados ou danificados sem seu

consentimento livre, prévio e informado”. 263

Sobre o assunto, conferir em NÓBREGA, Luciana; JOCA, Priscylla. Lei Maria da Penha e mulheres

indígenas: discutindo a violência doméstica e familiar à luz do direito à auto-determinação dos povos indígenas.

I Encontro Nacional de Antropologia do Direito - ENADIR, 2009, São Paulo. In: Anais do I ENADIR. São

Paulo: Universidade de São Paulo. 2009.

Page 119: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

118

partir do que eles significaram e construíram?”. Tuíra responde, pensativa: “eu acho que sim”.

Em outra entrevista, indaguei-lhe como explicaria o pluralismo jurídico, ao que ela respondeu:

“acho que é principalmente, resumidamente, o respeito às diversas formas de se relacionar”.

Na análise de Tuíra, os principais problemas na demarcação de terras indígenas no

Ceará estão ligados ao poder político e econômico de proprietários e posseiros de grandes

extensões de terra. O Estado, na construção de empreendimentos e obras, bem como empresas

(com sede no Brasil e em outros países) aparecem também como violadores dos direitos

territoriais de sociedades indígenas.

Em sua percepção, há também a atitude por parte de órgãos estatais, de evitar

conflitos com proprietários que possuem mais poder social, político e econômico. No

momento de reconhecer a terra a ser demarcada, Tuíra disse que é comum por parte desses

órgãos a fala: “vamos tirar isso aqui [determinada posse/ propriedade] que demarca mais

rápido”, sendo que isso são as terras apropriadas por “posseiros mais ricos”. Como exemplo,

cita:

[Em um dos Povos Indígenas no Ceará] há um problema grave com a Pedreira, a

qual está dentro dos limites da terra tradicionalmente ocupada, mas que, para

“facilitar” foi deixada de fora do território, [...] a Pedreira causa rachaduras nas

casas, com a explosão a poeira vai para dentro da Aldeia causando problemas

respiratórios.

Em diferentes momentos perguntei a Tuíra o que ele entendia como Direito. Suas

respostas elaboravam significâncias relacionadas ao Direito como meio de promoção de

igualdade e de justiça.

Luiz Gama, advogado de comunidades tradicionais e sociedades indígenas, ao

discorrer sobre como percebe que as comunidades tradicionais compreendem as relações de

propriedade, diz que

As comunidades tradicionais não têm a percepção que nós temos, individual, a visão

é mais comunitária, entendem que a propriedade serve para o coletivo. No litoral, as

comunidades são seminômades por causa do movimento das dunas, sabem que o

lugar das dunas vai mudar, alguém mais formalista do Direito vai dizer que não

apresentam nenhum dos requisitos da posse, contudo a comunidade entende a

propriedade como algo que pertence a coletividade. Os bens realmente têm que

cumprir uma função, para eles não cabe um bem sem função, não entendem o bem

de uma forma abstrata, o bem tem que dar algo para a comunidade. Outros podem

olhar para isso e achar primitivo, mas, isso chega mais perto da constituição, pela

função sócio-ambiental, do que a especulação imobiliária. O que é avançado e

progressista é uma visão pública e coletiva de propriedade, não privatista.

O advogado compreende que as condicionantes elaboradas pelo STF, fruto do

julgamento sobre as Terras Indígenas Raposa Serra do Sol, representam uma derrota no que

diz respeito à disputa institucional no Direito pelo reconhecimento de direitos territoriais, os

Page 120: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

119

quais afetam os Povos Indígenas e podem afetar outras populações que ocupam a terra em

uma relação territorializada.

Convidado a refletir sobre a significância do Direito, Luiz Gama diz que este é algo

que deve ser aceito, respeitado, “por ser legítimo”. Gama fez uma ressalva, dizendo que é

difícil dizer que o Direito deve ser aceito por atender a determinados princípios, pois daí

emerge uma questão: “princípios de quem?”. Depois, usou, contudo, o mesmo termo com

outro sentido: o Direito seria legítimo por atender a princípios de convivência, ligados à

dignidade da pessoa humana. E expressou que a compreensão do que são esses princípios de

convivência e do conteúdo dessa dignidade ocorre em uma elaboração histórica, pois, diz ele,

“com a construção histórica é que a gente vai fazer leituras diferentes sobre o que é isso”.

Refletindo, ainda, sobre o Direito, diz que na CF/88 direitos de Povos Indígenas e

quilombolas foram normatizados pelo Estado, mas, com o tempo, isso se demonstrou

insuficiente. Sobre o fato, ele analisa, em meio a diálogos, que:

[Pesquisadora] É suficiente o que está no papel?

[Gama] Não. Mas é o que fica mais fácil de ser visto. Mas acho que não é suficiente

não. Agora, o que é suficiente eu não sei.

[Gama] Na constituição de 88, em certa medida, as pessoas estavam lutando por

[determinados direitos:] “preciso da terra demarcada indígena, preciso da terra

quilombola”, e aquilo ali não estava no papel. Hoje em dia vivemos noutra realidade,

em que essa busca não se mostrou suficiente, só colocar lá, e que na verdade nós

estamos em um momento de resistência pras pessoas não tirarem o que está posto lá

ou não mudarem através de decisão judicial, e não mudaram na prática política.

Questionado sobre se Povos Indígenas e comunidades tradicionais poderiam instituir

direitos, Luiz Gama expõem que, do ponto de vista político, com base no que ele crê, sim;

mas, em um debate “jurídico, técnico, institucional”, o advogado expressa que

[...] eu vou dizer que eles podem, fazendo essa interpretação mais ampliada do

ordenamento. Eles têm um modo de vida que não fere a dignidade da pessoa humana

[...] A gente tem que encaixar que isso tem que ser aceito, é uma forma de vida

diferenciada e tem que ser respeitado.

Após, perguntei se havia a busca por outros significados de Direito que pudessem

constituir outras culturas jurídicas264

. O advogado respondeu que nem na Academia, nem no

264

Utilizo a expressão inspirada em Antonio Carlos Wolkmer, para quem: “[...] não se pode ter uma visão ampla

de uma determinada forma positivada de Direito (o caso particular aqui, do Direito Estatal ocidental) se não for

identificado a que tipo de organização social está vinculado e que espécie de relações estruturais de poder, de

valores e de interesses reproduz. Cada contexto cultural de época que abrange a integração dos fatores sociais,

econômicos, políticos e jurídicos envolve, igualmente, um processo cíclico de emergência, desenvolvimento,

crise e rupturas. Os modelos culturais, que constituem paradigmas no tempo e no espaço, permeados pela

experiência humana na historicidade e sistematizados por processos de racionalização, refletem concepções,

significados e valores específicos de mundo. [...] em cada período histórico da civilização ocidental, domina um

certo tipo de ordenação jurídica”. O Direito da sociedade moderna identifica-se com a sociedade burguesa, o

modo de produção de economia capitalista, a ideologia hegemônica liberal-individualista, e com a forma de

Page 121: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

120

Poder Judiciário, nem em volume de demandas advocatícias postas para o Judiciário havia,

ainda, força para consolidar outras culturas. Luiz Gama reafirmou a importância do uso da

linguagem do Direito Estatal para a consecução das demandas vindas dos movimentos

assessorados:

[...] a gente tem de fazer uma releitura de significado, porque há teses. Se for para

um embate no judiciário, por exemplo, lá em Camocim não cheguei a ter embate em

relação a isso, porque se resolveu por outros meios. Mas uma tese que estávamos

construindo para ficar dentro da linguagem do direito positivado, era que aquela

comunidade seria seminômade, pois a partir de certo tempo, passados anos ou

décadas, ela sabia que as dunas iam se mover e um dia ela haveria de se mudar. Mas

para a prática cotidiana do judiciário e das jurisprudências, eles iam para aquela

coisa pobre de dizer: quais as manifestações de posse? Tinha cerca, não puseram

coqueiros, tinha casa? Eles iriam dizer “não”. Nem nos últimos anos? “Não.” Nem

nos últimos 5 anos, nem nos últimos 10 anos, mas ele iam para lá depois, não sei,

depois de 15 anos, porque sabem o que o movimento das dunas iria provocar. O

sentimento de posse deles era bem maior. Claro que essa ideia de seminômade e

você provar que a posse deles era bem maior, era algo talvez aceitável pelo judiciário

e pelas jurisprudências, só teria certa dificuldade. [...]. E até tentar criar conceitos

novos dentro da margem que o ordenamento jurídico permite. Mas não existe

exatamente o instituto. Por analogia poderia usar o outro instituto [a posse].

Seguindo no diálogo com o advogado, inquiri-lhe sobre como ele definiria direito

insurgente e direito achado na rua265

. Ao que Luiz Gama respondeu:

[O direito insurgente] é aquele que quando se expressa, ele se afirma, ele encontra

resistência, ou na visão ou na pratica do direito posto. Nós advogados populares,

poderíamos até fazer a discussão de que esse direito caberia no direito posto, é isso

que a gente briga, mas na hora que ele se expressa, a primeira reação do sistema é

que ele não está, não se expressa no direito posto.

[O direito achado na rua] é aquele que a gente vivencia, que a gente encontra na

vida, no cotidiano, no modo de fazer, de viver, e tudo mais. E não aquele pensado,

instituído, imposto, é aquele que é construído, pra nossa visão, nossa disputa política,

ele tem que passar por essa vivencia e construção coletiva, por isso que eu acho que

é achado na rua; não é um direito imposto, que eu digo que é isso e acabou-se, e nem

um falso diálogo, porque muitas vezes tem construções ditas coletivas, que na

verdade são ratificações que um grupo posto quer colocar.

Indaguei, também, se haveria conexões entre essas suas definições e os movimentos

que assessora. Prontamente, o advogado respondeu que sim, e que poderia fazer ligações entre

essas definições e casos concretos que acompanha. Ressaltou que os movimentos não

questionam no sentido de: “ah! [...] a jurisprudência majoritária nunca vai aceitar um negócio

desses”; pois, esses entendem que “aquele direito é claro, é posto e tem que ser respeitado”. E,

institucionalização do poder pelo Estado Soberano; constituindo um “paradigma jurídico marcado pelos

princípios do monismo (univocidade), da estatalidade, da racionalidade formal, da certeza e da segurança

jurídica”. “[...] em fins do século XX, essa cultura jurídica entra em compasso de esgotamento e de crise

estrutural, não suportando as profundas transformações econômicas e políticas geradas pela complexidade dos

conflitos coletivos [...]”. (WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura

no Direito. 3. ed. São Paulo: Alfa Omega, 2001, p. 26; 27). 265

Os termos pluralismo jurídico, direito insurgente e direito achado na rua serão analisados em capítulos

posteriores.

Page 122: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

121

nessa fala, emerge outra questão, a construção junto com os assessorados da compreensão de

que a concretização desses direitos passa por processos políticos, com a participação de

movimentos e advogados:

Então, num dialogo com a comunidade como esse, eles tem que ver que o advogado

pode realmente brigar por essa interpretação, mas tem todas as dificuldades, todos os

limites, como a luta deles real, a ação direta tem todas as suas dificuldades e seus

limites. [...] esse papo de construções diferenciadas, de ouvir, de escutar a

comunidade, de fazer esse dialogo, isso é falado de uma outra forma [para os

assessorados] quando a gente vai pegar o caso concreto e as pessoas querem que o

advogado resolva. A gente diz “peraí”, isso é toda uma construção, uma luta política

que ela é conjunta, e que tem seus limites, e que tem suas resistências aos direitos

insurgentes, às visões diferentes do direito, que não é a posta, [...], e por aí vai.

Por fim, sobre direitos que nascem nas populações organizadas em movimentos, o

advogado disse que, por vir de outra realidade (social, econômica e cultural), por mais que

“conviva um mês com Curral Velho”, o que pode fazer é tentar aproximar-se do direito

colocado pelos movimentos, tentar uma tradução entre o que pretende o movimento e o que

dispõe o ordenamento jurídico estatal, mas que não compreenderá o direito em si. Refletiu

também que

[...] é talvez dar condições, não sei como, dessas outras realidades que vivem novos

direitos, outros direitos, entrarem nessa briga que ainda, do ponto de vista prático, é

muito incipiente. Não está posto de forma a compreendermos o que são esses novos

direitos e como faremos a disputa pra consolidar.

Ao expressar sua compreensão sobre as lutas organizadas em torno do acesso à terra,

Carlos Alencar, advogado de comunidades tradicionais e do Movimento dos Trabalhadores

Rurais Sem Terra no Ceará, assim falou:

[...] uma coisa é o trabalhador e a trabalhadora, ocupar uma terra, um trabalhador que

tem uma ideologia conservadora, num primeiro momento, imagina o que é um

trabalhador, de 50 anos, pai de 6 filhos, ideologia conservadora, ocupar uma terra,

aquilo que sempre pra ele foi uma coisa imoral, uma coisa que vai contra os valores

dele indo ocupar uma terra, eu acho isso uma coisa incrível, é um despertar de

consciência que é bem rudimentar, mas que faz o maior movimento de massa do

Brasil. É [...] o que faz uma pessoa, o que separa eu e essa comida, e eu estou com

fome é o vidro, este despertar de consciência mínima [...].

Carlos Alencar compreende que

Quando um camponês diz que tem o direito à terra, ele não está na minha opinião,

dizendo: “Eu quero ter a posse da terra!” ele diz, “olha, a terra é minha porque eu

cresci nela, porque ela é minha vida, porque eu preciso da terra para me reproduzir,

para criar a minha família, então eu tenho direito à terra!”

O advogado, em outra ocasião, referindo-se a uma comunidade de pescadores que

resistem em suas terras à expulsão e impactos socioambientais provocados por um

empreendimento turístico privado, disse que, em um dos diálogos realizados com

moradores(as) da comunidade, falou sobre o “direito de ficar”, de permanecer em suas terras.

Page 123: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

122

Alencar reconhece esses direitos, e, em suas defesas técnico-jurídicas, busca

relacioná-los ao que dispõe o ordenamento jurídico estatal. Nesse esforço interpretativo,

compreende a defesa da posse como o melhor caminho que se apresenta no Direito Estatal

para defender o “direito de ficar”. Relatou também que isso é dialogado com os assessorados,

citando como exemplo:

[...] a gente vai começar a debater posse. A primeira coisa que eu acho que a pessoa

tem que saber: “nós não temos o direito de propriedade, quem tem o papel da casa?”.

[...] aí começa a problematizar. Tinha muita gente de [localidade A], aí pergunta:

“Quem mora aqui em [localidade A]? Há quanto tempo você mora?”. Aí começa a

identificar a vivencia do que é a posse, que é a moradia, o lazer, o trabalhar, o

passear. Até a gente construir essa vivência no concreto.

Carlos Alencar expõe que essa busca por interpretações e ressignificações do Direito

Estatal deve se dar com os movimentos populares. Para tanto, é necessário que os

assessorados tenham acesso à informação do que dispõe o ordenamento jurídico estatal sobre

o que os afeta. O advogado descreve, em diversos momentos de suas entrevistas, ocasiões em

que, de modo pré-planejado ou em reuniões espontâneas ou programadas pouco tempo antes,

busca informar e dialogar com trabalhadores rurais sobre seus direitos instituídos em normas

jurídicas estatais:

[...] a gente fazia muito uma formação com os trabalhadores nos acampamentos,

formação mesmo de base que a gente falava em noções bem gerais, mas que é

importante, de processo civil. De tipos penais, para um trabalhador saber que o que

muitas vezes acontece contra ele, que ele acha que é legal, estou falando de lei

mesmo, na verdade está sendo ilegal, pra ele saber que, primeiro: que tem um

arcabouço jurídico, e estou falando do direito positivo, constituição, do direito

material, processual, na legislação que trata da reforma agrária, no caso MST, que

respalda a luta dele [...]. [...] para o direito material, a gente tem hoje um avanço

razoável para o debate político, ele pode ser instrumentalizado, tem um respaldo na

sociedade que deve ser instrumentalizado pelos movimentos, pelas organizações, a

reforma agrária é um programa que está na Constituição, então a minha luta tem um

respaldo constitucional.

Carlos Alencar, no entanto, narra que discussões sobre “o que é produzir?; produzir é

produzir com agrotóxicos?” ou sobre a função social da propriedade, dentre outras, são

travadas mais no campo jurídico-politico e em momentos de educação em direitos. Na análise

de Alencar, como advogado, lhe cabe a defesa do movimento e, diante das dificuldades de

aceitação de determinadas teses jurídicas no Judiciário, em suas atuações judiciais, em geral,

lida com questões técnico-processuais.

[...] a própria função da propriedade, a gente sabe que o imóvel é produtivo não

cumpre outro requisito, não desapropria, a gente vem tentando explorar essa questão,

olhar a função social da propriedade nos aspectos ambientais, nos aspectos

trabalhistas, [...] mas aquilo que te falei, o judiciário é tão reacionário, é tão

conservador... A gente debate até questões como: o que é produzir? Produzir, é

produzir com agrotóxicos? Ou é produzir um alimento saudável, esse tipo de debate

no judiciário está muito longe... Então nós fazemos essa discussão com os

Page 124: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

123

trabalhadores com as trabalhadoras, até como forma de apropriação do discurso,

debate politicamente, mas na tese que a gente debate, tem sido muito difícil [...].

[...] eu acabo restringindo muito a repercussão processual daquilo ali, se o

movimento ocupar o juiz vai decidir, eu fui debater a função social da propriedade

numa peça a pouquíssimo tempo, a defesa que a gente fazia era muitas vezes, a gente

priorizava a boa defesa técnica [...]. [minhas referências] são advogados que são

muito pragmáticos no sentido da atuação processual, no debate com o movimento,

na estratégia política [...]. [...] quando você encontra um juiz mais progressista, você

acaba debatendo de uma forma mais progressista. [...] por outro lado, como eu te

falei, o juiz dá uma decisão liminar baseado num título, num registro precaríssimo,

você entra com um recurso né, a gente ataca a citação, a citação foi inválida [...].

Em outras ocasiões, Alencar, ao ser questionado sobre como definiria o pluralismo

jurídico, responde-me com a seguinte pergunta: “o que eles [os camponeses] chamam de

direito à terra é direito?”. O advogado, após, responde: “eu acho que não”.

Alencar, refletindo sobre o assunto, aponta diversas questões: a) há uma relação

dialética entre o jurídico e o político; o que não está positivado pode ser feito no campo

político; b) ao se reconhecer como direito diversas demandas, corre-se o risco de relativizar o

direito, ele questiona: “o direito de ser feliz é um direito?”, “o direito de matar alguém é um

direito?”266

; c) pode-se discorrer em determinados sentidos como retórica, como argumento,

no entanto o advogado questiona como constituir essa “perspectiva de ser um direito em

outras relações sociais, [...] no pragmatismo, na atuação jurídica”; e d) Alencar reflete sobre a

tendência que os juristas apresentam de “juridiscizar as relações” e completa, dizendo: “a

relação do camponês com a terra é uma relação dele com a terra, não é uma relação jurídica

com a terra”.

Após essas falas, questionei Alencar inquirindo: “por que a interpretação de um

camponês sobre o direito à terra é menos legítima do que a do STF?”. O advogado respondeu:

A pauta dos movimentos populares, elas hoje tem um respaldo no direito positivo,

falei em reforma agrária no Brasil, não faz não é porque não tem lei, é porque a

correlação de forças não permite que se faça, o que eu estou querendo dizer é que

tem um momento, de determinados movimentos, ou a gente que milita por um

processo de transformação da forma de reprodução da sociedade, tem um momento

que o ordenamento jurídico não comporta, tem um momento que o ordenamento

jurídico ele é refundado!

Em outra entrevista, ao ser reperguntado sobre como definiria o pluralismo jurídico,

Alencar expressou que tem dificuldades em perceber dois ordenamentos jurídicos convivendo

266

Sobre isso, Carlos Alencar comenta: “Eu tenho o direito a matar a alguém? Eu não estou inventando, o

nazismo teve respaldo em matar etnias inteiras, eu penso, eu tendo a um pluralismo e a uma retórica no direito,

mas ao mesmo tempo eu tenho dificuldade de pensar o direito sem a possibilidade de você efetivar aquilo ali,

inclusive com a força! Eu fiz um debate uma vez, em Brasília, debatendo a gente encarou uma situação, tinha um

grupo de discussão e tinha uma [pessoa] na roda, que disse o seguinte: “Na nossa comunidade uma pessoa matou

outra pessoa, e se reuniu um grupo, nós discordamos daquilo, se reuniu um grupo e matou essa pessoa, matou um

cara que assassinou”, isso foi um impacto, ela falou e foi um impacto mesmo, isso é direito?”.

Page 125: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

124

sem que um se sobreponha a outro. Por isso, compreende o pluralismo jurídico como

“possibilidade de convivência de debates de determinado ordenamento” e que “a partir do

momento que uma forma de organização entra em choque com outra quem vai dizer [como

resolver] isso não são os ordenamentos, eu acho, mas as relações de poder [...]”. Concluiu,

então, dizendo: “o pluralismo jurídico para mim é isso, é essa possiblidade, que pode em

determinados momentos ter uma incompatibilidade de relações políticas um com o outro”.

Em outra oportunidade, o advogado asseverou que

[...] ainda tendo a achar que o pluralismo jurídico ele requer um Estado que aceite a

pluralidade, junto do seu ordenamento, então em última instância para mim,

enquanto existir uma sociedade de classes, enquanto existir uma regulamentação

pelo Estado, das relações sociais, o direito ele vai ser intimamente relacionado a esse

conflito entre classes, inclusive para permitir um pluralismo jurídico.

Indaguei também, a Carlos Alencar sobre como ele define o direito insurgente. O

advogado, respondeu que:

[...] eu acho que tem o direito, tem o direito negando um outro direito só que é uma

coisa extremamente dialética, ele é e não é direito, porque ele é o novo e o velho ao

mesmo tempo, a gente pode falar do direito insurgente aí, eu acho que é possível,

debatendo contigo agora, eu acho que é possível, o direito que se insurgi contra um

outro direito, tentando se tornar direito, “direito sou eu, não aquilo ali”.

Questionado sobre como define o Direito, o advogado disse, no primeiro momento,

compreendê-lo como o Direito Estatal:

[...] o direito vai ser o que o Estado diz que é, uma visão muito pragmática do

direito, e ela pode ser dialética, ou seja, o direito pode ser também, o que num

processo de lutas sociais, um processo de mobilização social, num momento em que

a classe trabalhadora, os movimentos sociais, os movimentos populares, consigam

imprimir para o Estado e para outra classe aquilo que eles acham que é direito, aí

estou tentando ser dialético, então eu acho que o direito para mim ele está dentro

daquela disputa de classes sociais, que o Estado não é uma entidade neutra [...]. [...]

existe um confronto de poder, inclusive sobre o que é direito, o que é a palavra

direito. O que eu vejo é esse confronto de direito, eu estou olhando para esse poder,

se o Estado diz: “isso não é direito, nós vamos reprimir você”, esse direito se impôs

sobre o outro. Em última instância o que é que determina o que é direito? Eu acho

que essa é a relação de poder, então a gente pode até admitir que determinada relação

é uma relação jurídica, mas quem vai se impor sobre quem, quem vai dizer, não é o

direito, por isso eu falei sobre o pluralismo jurídico, como se tivesse um elemento

extra-jurídico, na relação de conflito que se dá pela violência, se dá pela coerção, que

vai se impor sobre um ou sobre o outro.

Flor de Liz, advogada do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Ceará,

refletindo sobre o que este reivindica, diz que “se luta para que uma [...] reforma agrária

aconteça, em perspectivas que a lei até protege, mas na prática não viabiliza”. E destaca que

“quando efetivamente se busca uma reforma agrária, [...] atinge interesses do capital”:

Sabe-se que a luta hoje pela reforma agrária é transformadora por si pela realidade

do desenvolvimento do capitalismo no campo. Então a reforma agrária atinge...

Como sempre se pauta muito isso que a reforma agrária é reformista, né? Mas na

verdade, hoje, se você efetivamente for lutar por reforma agrária, você vai lutar

Page 126: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

125

contra as multinacionais, contra o capital mesmo, né? É muito difícil pautar essa luta

sem enfrentar certas coisas.

Sobre a reforma agrária, também, diz que na prática é um “direito inefetivo”, pois sua

regulamentação obstaculiza, “praticamente impede que ele exista”, explicando que:

Você tem que se desdobrar pra fazer uma defesa, porque você não tem argumentos.

Eles tiraram todos os argumentos que se podia ter. O fato da terra ocupada não poder

ser vistoriada... Não posso fazer uma contestação defendendo a legitimidade da

ocupação, se não posso nem dizer que está ocupada. Como vou alegar função social

da propriedade?

Flor de Liz discorre sobre as possíveis ligações entre as reivindicações do movimento

assessorado e o Direito Estatal, remetendo à Constituição Federal. Diz que “se todo mundo

tivesse uma visão constitucional, já seria um grande avanço”. E conclui, expondo:

Uma coisa que eu aprendi [é] que o juiz não precisa virar socialista não, basta ele

respeitar a Constituição. Então, quanto mais técnico, mesmo que você use a questão

da justiça social, do direito à terra, direito à moradia, direito ao trabalho, você tem

que trabalhar isso dentro de uma lógica Constitucional. Não adianta a gente dizer que

as pessoas têm direito de lutar por seus direitos, aí o juiz vai e diz “é, seus bandos de

baderneiros”. Mas é importante defender algumas teses politicamente, acho que sim,

mas existem formas e formas de se fazer essa defesa.

Flor de Liz destaca que “não é uma transformação por dentro do Direito que vai

transformar a sociedade”. Diz, contudo, que o Direito Estatal pode servir como estratégia na

busca por esta transformação. E ressalva que saber que se tem uma pretensão respaldada em

lei fortalece, reforça, incentiva a luta, em âmbito individual e coletivo. Ainda que reconheça

que “nem tudo está positivado, nem todos os direitos que se quer conquistar estão

positivados”. E exemplifica, dizendo: “a desapropriação de propriedade produtiva não pode,

mas, de certa forma a gente luta”. Por fim, expõe que “o MST tem essa clareza do que o

Direito resolve e não resolve”.

A advogada aponta que o conteúdo das leis (as quais “mesmo sendo fruto de

conquistas são [...] disposições [...] genéricas”) condensado na práxis da assessorai jurídica

popular, é o “reflexo dessas construções e lutas que vão acontecendo”. Exemplifica com a

função social da propriedade disposta na Constituição, aferindo que “o conteúdo vai sendo

dado pelo que se vai construindo nas lutas”. A função social, ainda, na percepção da

advogada, pode vir a comprometer a conquista da terra: “não adianta defender isso na

reintegração de posse; pode ser pior”267

. Ainda sobre essa dúplice possibilidade do Direito, de

obstaculizar ou de potencializar a luta, Flor de Liz analisa:

267

Flor de Liz esclarece que, por vezes, os proprietários utilizam-se de estratégias para forjar uma função social à

propriedade. Como exemplo, cita que antes da vistoria do INCRA costumam levar gado para a fazenda, a fim de

fazer parecer que a terra é produtiva. Carlos Alencar realiza a mesma análise, citando igual exemplo, em suas

entrevistas.

Page 127: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

126

Os direitos são frutos de lutas, dos embates, o direito não nasce do nada. Se existe

uma lei que diz que a terra ocupada não pode ser vistoriada, existe porque isso foi

fruto de uma disputa de poder. E existir, por exemplo, a Educação no Campo, existir

uma legislação própria, isso foi fruto de luta do MST.

A advogada compreende que “o direito não nasce da vontade do legislador”; “nasce

das relações sociais e de como isso se conforma”, e que, “a partir daí você pensa em novos

direitos”. E, destaca que “a luta nos dá a concepção daquele direito e a gente vai tentar

defender pelo que tem na Constituição”. Continua, dizendo:

[...] a constituição é ampla, ela dá espaço para isso. Então, acho que direito seja um

pouco isso: as normas, as regulações, instruções normativas que nascem das relações

sociais a partir de uma realidade de lutas e de história que trazem um pouco desse

equilíbrio entre o coletivo e o individual. O direito mesmo, que a gente conhece, é o

de Estado, que sempre esteve atrelado a essa concepção burguesa do pacto, contrato

social e tal. Todos esses direitos novos que se constroem são em cima do Estado que

existe, das relações que existem.

Sobre a relação entre as reivindicações do MST e o Direito Estatal, Flor de Liz

expressa que

Muitos direitos são conquistados pela luta, a luta demanda a realidade histórica livre

das classes, demandam que determinada coisa vire um direito, e vira. Então, cria

direito nesse sentido. Direito Estatal. No âmbito interno mesmo, acho que o MST

propõe uma nova forma de relação social e tem muitas normatividades. Acho que a

concepção que eles têm do direito nasce da vida prática deles e muito da negação do

direito. Vão construir concepções que vão muito além do que o Direito Estatal nos

dá. Acho que o povo não vai se organizar porque alguém vai chegar e dizer “vocês

têm o direito à propriedade”. Principalmente o povo vai se organizar pela

necessidade e vai se formando na luta [...]. E vão problematizar sobre esse Direito

Estatal que a gente tem hoje, que não queremos, interagem com as lutas e

possibilidades que elas têm. “Nosso papel aqui não é defender o que está na lei, mas

o que queremos.” Se está na lei ou não é outra história, a gente vai ver o que é

possível. Têm casos em que o que está na lei pode esbarrar com nossa luta, então a

gente tem que saber avaliar como faz isso.

Flor de Liz, convidada a refletir sobre o pluralismo jurídico, diz “dentro de uma

democracia é normal existirem várias organizações que dizem o direito; pra instituir direitos

também, para criar, também é preciso dizer que muitos desses direitos serão reconhecidos pelo

Estado a partir de processos de lutas”. A advogada percebe, no entanto, que:

Esse reconhecimento pelo Estado tem implicações. Se forma uma política publica e

tem um grau de institucionalidade, e a institucionalidade tem um grau de limitação

em algum momento. Se o Estado é criado dentro de uma lógica, que é uma lógica de

uniformização, massificação, de ocultar as contradições e de servir a uma classe. A

partir do momento em que uma criação do movimento for instituída pelo Estado vai

haver uma perda, disso eu tenho certeza, e é isso.

E, a propósito do direito achado na rua, diz:

[...] quando a gente primeiro houve falar a gente acha super legal porque expressa

tudo o que a gente acredita, e é justamente essa outra fonte do direito, porque é uma

expressão que diz um monte de coisa em uma só frase. É a perspectiva do direito de

quem está na rua, e de quem está na rua em vários sentidos, né? Ou na marginalidade

Page 128: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

127

ou na rua protestando, enfim, tem muitos significados. Tem uma expressão muito

legal, [...] que é o “direito achado na luta” [...], mais do que um direito achado na

rua, até já é um avanço do que esse significado, né?

Por fim, interroguei a Flor de Liz: “tu acha que tem aplicação no Judiciário essas

ideias de pluralismo jurídico, de direito insurgente, de direito achado na rua?”. Ela respondeu,

após pensar um tempo, que talvez tenha aplicação “dentro da ótica aí da hermenêutica

constitucional” e que, mesmo isso sendo “difícil pro Judiciário”, por ser “uma coisa muito

inovadora para eles”, acha que “tem que ir tentando”.

Com o fito de proporcionar um momento em que os(as) advogados(as)

envolvidos(as) na pesquisa pudessem, conjuntamente, refletir sobre as relações entre as

resistências e reivindicações tecidas na luta pela terra e pelo território nos movimentos

assessorados e o Direito Estatal, realizei um grupo focal com esses assessores jurídicos, o qual

gravitou ao redor do tema seguinte: “as demandas dos movimentos que vocês assessoram

estão contempladas atualmente pelo ordenamento jurídico brasileiro?”.

Realizam a análise de que na Constituição Federal de 1988 há arcabouço jurídico que

pudesse privilegiar essas demandas, não necessariamente de modo explícito, e sim em

perspectivas de interpretação das normas constitucionais. Destacam, no entanto, que, no que

tange à interpretação hegemônica efetivada pelo Poder Judiciário e as normas

infraconstitucionais, há tolhimento desses direitos:

[...] não estaria no ponto de vista explícito, está no ponto de vista interpretativo.

Porque dá vazão a surgir novos direitos, respeitar essas diferenças culturais etc e tal,

isso a gente encontraria lá. Quando a gente vai para o caso concreto muitas vezes a

gente encontra grandes limites [...]. E aí? Pode-se fazer um esforço interpretativo

dizendo que se adéqua. Não no ponto de vista macro, mas no ponto de vista do que é

realmente obedecido, respeitado no direito brasileiro, nas regras das instituições, as

normas infra, aí é que realmente difere. Por que elas são feitas e direcionadas a tolher

os direitos: portarias, instruções normativas, etc. Nesse patamar mais observado, aí

está vinculado a pressões políticas e econômicas pra atender a certas demandas que

conflitam com esses direitos. As medidas provisórias pra tratar da questão da terra,

impedir que o pessoal ocupe. Nesse patamar mais infra, já tem coisas mais

direcionadas, as resoluções do CONAMA que na verdade entravam, os

licenciamentos, por aí vai.

As questões são muito complexas. Acho que o Ordenamento Jurídico contempla...?

[pensando] Acho que a gente pode ter uma atuação dentro do direito positivo. Não

falo de inventar teses absurdas. Nem de inventar uma lei aqui por que não

contempla, contempla! Principalmente depois da Constituição de 88 e da forma de

interpretação do ordenamento baseado na constituição, contempla... Você tem uma

norma ou um princípio positivado que é interessante progressista e está lá na

Constituição. Só que dentro da administração, quando você vai regulamentar isso, há

uma delimitação da interpretação que na prática inviabiliza aquele projeto. No

projeto de Reforma Agrária, um programa constitucional, tem um conjunto de

normas, interpretações, doutrinas que vão delimitando esse direito.

[...] do jeito em que está, principalmente na questão do movimento indígena, se o

Estado conseguisse efetivar, já seria um grande avanço. Na demarcação de terras,

Page 129: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

128

uma série de coisas, de proteção territorial mesmo. Mas, [...] outras normas e

algumas decisões acabam contrariando o que já está previsto. As demandas, em

grande parte, estão contempladas. [Entretanto] os retrocessos na jurisprudência,

como a decisão das condicionantes, por exemplo, atrasam bastante. Mas muita coisa

já está posta.

Avaliam ser importante a normatização de determinadas questões na Constituição

Federal, contudo atribuem a concretização dos direitos constitucionais a diversas outras

questões: a) organização e mobilização social pela concretização das normas constitucionais;

b) que haja “vontade política”; e c) que exista “força social e legitimidade” diante de outros

grupos sociais, dentre outras268

. Compreendem que “não é a norma que vai mudar a

sociedade”. Ao tempo em que percebem que o Direito insere-se nas construções de novas

realidades sociais,

Quando vou fazer a atuação, tento fazer uma leitura de três campos: legislativo,

doutrina e jurisprudência. Se você tem uma norma como a famosa MP do Latifúndio,

que altera a lei da reforma Agrária. A partir dessa leitura aí, a gente provocou uma

jurisprudência e uma interpretação que diz: ‘a área ocupada, invadida, não vai ser

vistoriada por dois anos, se for repetida por mais dois anos’. Interpretar a

fundamentação que dá essa medida é de que a ocupação, quando feita, desgasta o

solo, danifica a produtividade, precisaria de dois anos para se estabelecer a realidade.

A gente conseguiu provocar uma interpretação de que uma ocupação concentrada,

até determinada percentagem do imóvel, que não atingisse áreas produtivas, isso não

provocaria incidência dessa norma. Já teve um avanço. Foi um recuo no campo da

produção legislativa, mas a gente conseguiu avançar no campo da jurisprudência e

da interpretação, da doutrina, no debate de teses jurídicas. Para mim, o direito é isso.

Quando ele se faz no cotidiano das lutas sociais, temos de lidar com várias situações

para efetivar ou não aquela demanda, a reivindicação do movimento. Isso tudo a

gente avalia, a gente analisa, para a gente tentar atingir a reivindicação do

movimento.

Fazem a leitura de que essas populações organizadas nos movimentos por eles(as)

assessorados, ainda que estejam contempladas na CF/88, “não têm força econômica nem

política para efetivar e vão perder” e que “do ponto de vista macro do ordenamento jurídico

nós saímos contemplados para ter aqueles avanços; mas isso é irreal do ponto de vista das

forças sociais”. Um dos advogados reflete que:

Se for fazer um resgate histórico desses períodos, movimentos sociais se

organizando, apontando as mudanças sociais, etc e tal, o período que avança mais é

justamente o dessa transição [entre o período ditatorial no Brasil e a promulgação da

Constituição Federal de 1988]. Assim, nunca se sabe ao certo qual é o limite que

essa transição, que foi a que a gente conseguiu fazer quando se fez a constituição de

88, claro que houve disputa, não foi assim, deixaram e pronto, mas, o quanto foi

cedido para barrar um ascêncio maior. Não se comunica, não tem consciência, aí

quando voltam pro jogo inconstitucional, as armas continuam desiguais. É tipo como

foi no início do governo Lula, disseram que era um governo de coalizão, ‘permite a

disputa, o problema é vocês que não estão pressionando’. Só que as armas eram

totalmente desiguais, o movimento em queda e o Neoliberalismo em ascensão esses

outros interesses, na verdade está legitimando a vitória do outro, ‘ah! eu dei

268

Os(as) advogados(as) entrevistados(as) situam a questão da terra como algo atinente a “toda a sociedade”.

Page 130: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

129

oportunidade para todo mundo..’. Você pode ver a Revolução Francesa, a Russa, na

Alemanha, com a social democracia, estanca o movimento que quer mudar as coisas.

Concebem que, hoje, a questão central não é que se normatizasse uma nova

Constituição, e sim que se mudasse o modo como são aplicadas, interpretadas, as atuais

normas constitucionais:

Acho que o problema não é o que está lá, mas como interpretar o que está lá. Sempre

nos tribunais tem decisões que esquecem a função social da propriedade, de

demarcar a terra indígena por uma questão burocrática. Então, na verdade, eles [os

movimentos] queriam nesse jogo da disputa, na aplicação, não era nem colocar o

novo, mas que fosse aplicado de forma diferente do que na maioria das vezes é

aplicado.

Perguntei-lhes se o direito ao território de comunidades tradicionais estaria

contemplado na Constituição Federal, ao que responderam, novamente, que sim, em

determinadas visões interpretativas. Dizem que “está contemplado na Constituição o espaço

para se moverem”; “isso estaria contemplado na Constituição numa interpretação, por

exemplo, nossa tentando efetivar o direito deles”. No entanto, ressaltam que a “sociedade

como um todo” interpreta esses direitos de modo diferente, portanto não percebem que estão

contemplados na Constituição.

Nas suas avaliações, também, os movimentos demandam alterações na Constituição

que não representam refundação da ordem jurídica constitucional, que podem ser tratadas nos

marcos da constitucionalidade, e citam como exemplos a “PEC do Trabalho Escravo”269

e a

limitação da extensão da propriedade privada. Nesse contexto, um dos advogados expressa

que:

Se você tem a efetivação de grandes reformas sociais, você pode apontar todas as

demandas, [...] nesse sentido, a pauta do MST270

, que ele quer debater com a

sociedade, pode se efetivar em tese. É muito importante esse em tese, nos marcos da

Constituição.

Discorrem que “os problemas constitucionais não são problemas jurídicos, mas

políticos”. E que, nesse contexto, o Poder Judiciário atua como uma força conservadora, que

exerce o controle social a fim de homogeneizar as decisões, contribuindo para a permanência

269

“A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) número 438 foi apresentada em 1999 pelo ex-senador Ademir

Andrade (PSB-PA), sob o número 57/1999. Ela propõe nova redação ao Art. 243 da Constituição Federal, que

trata do confisco de propriedades em que forem encontradas lavouras de plantas psicotrópicas ilegais, como a

maconha. A nova proposta estende a expropriação sem direito à indenização - também para casos de exploração

de mão-de-obra análoga à escravidão. A PEC 438/2001 define ainda que as propriedades confiscadas serão

destinadas ao assentamento de famílias como parte do programa de reforma agrária”. (Informação disponível em

<http://www.trabalhoescravo.org.br/conteudo/proposta-de-emenda-constitucional-4382001>; acesso em 30 jun.

2011). 270

Confira em: MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Os desafios da Luta pela

Reforma Agrária Popular e do MST no Atual Contexto. Caderno de Debates n 1. Outubro 2009, p. 14

Page 131: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

130

de realidades de violação, de não equidade de distribuição da terra, e de desrespeito a

ocupações territoriais.

Citam também que as fundamentações de suas peças judiciais não são, muitas vezes,

levadas em consideração por juízes, atribuindo isso ao “senso comum teórico dos juristas”271

e

a relações “coloniais” no âmbito do Poder Judiciário:

[...] a gente faz as peças com todo cuidado, aprofunda e cita... Boas peças técnicas do

ponto de vista do direito positivo e é completamente desconsiderado. Quando a gente

vai debater uma ação possessória, com o autor que entra com uma matrícula do

imóvel, a gente faz uma fundamentação constitucional, às vezes até mais civilista e o

juiz desconsidera, porque julgou baseado no senso comum teórico dele.

[...] a gente vive numa sociedade que é um misto de sociedade que quer a eficiência

do capitalismo, mas, ao mesmo tempo tem uns comportamentos muito de colônia, de

província, de referências de nomes e tudo mais. Quando comecei a advogar no

Sindicato [...] tinha um advogado de nome, que tinha feito uma petição e foi aceita.

Quando fui olhar a petição, tinha duas linhas e o juiz deu. Daí fiz uma petição igual,

só fiz acrescentar a lei, entreguei ao mesmo juiz e o juiz negou.

Quanto a confluências entre as diversas lutas pela terra e pelo território realizadas

pelos movimentos assessorados expõem que “as demandas dialogam entre si”, contudo

expressam que “são histórias e estratégias muito diferentes”. Inquiridos sobre se os conflitos

em torno da terra teriam relação com a lógica da propriedade privada, respondem

afirmativamente, acrescentando as seguintes reflexões:

O esforço que deve haver é o de conseguir através das táticas do movimento

aproximar diferentes organizações de movimento em torno das mesmas demandas. O

movimento sozinho não abarca demandas. O MST sozinho não vai conseguir

defender a reforma agrária nunca. É esse o desafio. Tem que ter uma discussão. Daí

as várias organizações que formam a via campesina.

As falas, histórias e canções; de assessores e assessorados; comunicam lutas contra-

hegemônicas tecidas na busca pela concretização da equidade de acesso e distribuição de

terras no Ceará que ocorrem em meio a: tensões e disputas de sentidos de direito(s) e de

271

No decorrer da entrevista, o advogado esclarece que usa esse termo inspirando-se em Luis Alberto Warat,

segundo o qual: “[...] podemos dizer que de um modo geral os juristas contam com um arsenal de pequenas

condenações de saber: fragmentos de teorias vagamente identificáveis, coágulos de sentidos surgidos do discurso

dos outros, elos rápidos que formam uma minoria do direito a serviço do poder. Produz-se uma linguagem

eletrificada e invisível – o “senso comum teóricos dos juristas” – no interior da linguagem do direito positivo,

que vaga indefinidamente servindo ao poder. Resumindo: os juristas contam com um emaranhado de costumes

intelectuais que são aceitos como verdades. Por conseguinte se canonizam certas imagens e crenças para

preservar o segredo que escondem as verdades. O senso comum teórico dos juristas é o lugar secreto. As

representações que o integram pulverizam nossa compreensão do fato de que a história das verdades jurídicas é

inseparável (até o momento) da história do poder” (WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito. Vol. I.

Interpretação da lei: temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994, p. 15).

Page 132: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

131

desenvolvimento(s); questões socioambientais envolvendo o acesso e uso de fontes naturais;

interesses econômico-sociais conflitantes e outros tantos eteceteras.272

As lógicas atinentes à propriedade privada da terra, contudo, no campo jurídico-

político, parecem-me ser nevrálgicas na composição do cenário em que se articulam as

tensões e conflitos inerentes à luta pela terra e pelo território. Na “Carta Informativa da

Sociedade Civil Brasileira ao Relator Especial das Nações Unidas para o Direito Humano à

Alimentação Adequada”, denuncia-se que:

Devido à concentração de terra, um dos resultados nefastos da opção pelo modelo

agrícola monocultor, estabeleceu-se um movimento de pressão e expulsão do campo

sobre os principais produtores de alimentos no Brasil: os agricultores familiares.

Além disso, por meio de ações outras, o avanço do agronegócio monocultor está

ameaçando o direito à terra e ao território das comunidades tradicionais brasileiras,

especialmente quilombolas e indígenas.273

Alfredo Wagner também destaca o fato de que:

A narrativa mítica de terras ilimitadas, como se fossem recursos abertos e/ou

“espaços vazios”, abre em decorrência um novo capítulo de conflitos sociais no

campo, porquanto toda e qualquer extensão de terra é apresentada como disponível à

expansão dos agronegócios. Fatores étnicos, laços de parentesco e práticas

costumeiras de terras de herdeiros sem formalização de partilha, livre acesso aos

campos naturais (no golfão maranhense, no cerrado, nas campinaranas de regiões

amazônicas e nos campos da ilha de Marajó) e inúmeras outras situações de uso

comum dos recursos naturais, que se encontram formalmente abrigadas sob a

designação de terras tradicionalmente ocupadas, são vistas como representando

obstáculos às transações de compra e venda de terras.274

Teço, pois, a seguir, reflexões sobre o direito de propriedade privada da terra no

Brasil, a fim de desfiar os últimos fios necessários para compor a conjuntura em que se

constitui a Assessoria Jurídica Popular à movimentos populares organizados em torno da luta

pela terra e pelo território.

272

Os diálogos com os(as) advogados(as) suscitam diversas questões sobre direito de propriedade, direito à terra

e ao território, significados atribuídos a Direito, pluralismo jurídico, direito achado na rua, direito insurgente,

dentre outras, as quais serão analisadas no capítulo seguinte e no decorrer dos capítulos posteriores. 273

PLATAFORMA DHESCA (Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais Culturais e

Ambientais) et alii. Carta Informativa da Sociedade Civil Brasileira ao Relator Especial das Nações Unidas

para o Direito Humano à Alimentação Adequada. Disponível em <http://terradedireitos.org.br/wp-

content/uploads/2010/03/Informational-Letter-Brazilian-Civil-Society-to-the-UN-Special-Rapporteur-on-the-

Right-to-Food-1.pdf>; acesso em 08 jul. 2011. 274

WAGNER, Alfredo. Agroestratégias e Desterritorialização: Direitos Territoriais e Étnicos na mira dos

estrategistas dos agronegócios. Disponível em: <http://www.tribunalpopular.org/?q=node/392>, publicado em 27

mai. 2011; acesso em 8 jul. 2011.

Page 133: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

132

5 “PINDORAMA, PINDORAMA, MAS OS ÍNDIOS JÁ ESTAVAM AQUI!”275

:

REFLEXÕES SOBRE O DIREITO DE PROPRIEDADE PRIVADA DA TERRA NO

BRASIL

O diálogo entre Direito e História se faz com o cuidado em não se entender uma

história como única, de “toda a humanidade”, e não se tomar uma versão da história como a

verdadeira História, a fim de se justificar construções jurídico-normativas em uma perspectiva

linear, evolucionista, racionalista276

. Antonio Carlos Wolkmer enuncia que:

Examinar e problematizar as relações entre a História e o Direito reveste-se hoje da

maior importância, principalmente quando se tem em conta a percepção da

normatividade extraída de um determinado contexto histórico definido como

experiência pretérita que conscientiza e liberta o presente. Naturalmente, tal

preocupação dissocia-se de uma historicidade do jurídico, marcada por toda uma

tradição teórico-empírica assentada em proposições revestidas pela força da

continuidade, da previsibilidade, do formalismo e da linearidade. 277

Inspirada por essas pré-compreensões, a investigação acerca de como o direito de

propriedade foi se construindo no Brasil278

pode iluminar as tessituras históricas sob as quais o

275

“Pindorama (em tupi-guarani pindó-rama ou pindó-retama, "terra/lugar/região das palmeiras") é uma

designação [desde antes de 1500] dada a regiões que mais tarde formariam o Brasil”. (Informações disponíveis

em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Pindorama>; acesso em 12 jun. 2011). Compreendo que as diversas sociedades

indígenas que aqui viviam antes da colonização falavam muitas línguas e tinham com o espaço que habitavam

uma relação diversa da de “unidade do território nacional” que abrangesse a todos essas etnias. Assim, imagino

que muitos eram os nomes dados ao Brasil, assim como o que concebia cada etnia, ou grupos étnicos, acerca de

sua extensão. Uso aqui o nome Pindorama inspirada nas estrofes que seguem: “Pindorama, Pindorama/ Mas os

índios já estavam aqui/ Pindorama, Pindorama/ Já falavam tupi-tupi/ Só depois, vêm vocês/Que falavam tupi-

português/ Só depois com vocês/ Nossa vida mudou de uma vez/ [...]/ Pindorama, Pindorama/É o Brasil antes de

Cabral/Pindorama, Pindorama/É tão longe de Portugal/Fica além, muito além/Do encontro do mar com o

céu/Fica além, muito além/Dos domínios de Dom Manuel [...]/Mas, enfim, desconfio/Não foi nada

ocasional/Que Cabral, num desvio/Viu a terra e disse: "Uau!"/ Não foi nau, foi navio/Foi um plano imperial/Pra

aportar seu navio num país monumental” (PERES, Sandra; TATIT, Luiz (composição). Palavra Cantada

(música). Música: Pindorama). 276

Nessa perspectiva, a história do Direito desenrola-se em uma sucessão lógica e consequencial de institutos

normativos, sendo essa sucessão de institutos considerada no sentido de sempre tornar melhor as normatividades

anteriormente existentes, justificando as disposições jurídico-normativas como constituídas pelo exercício

valoroso da razão humana e/ou dadas por uma ordem natural da vida. As racionalidades que assim

compreendem, em geral, concebem uma só ideia de Direito, permitindo-se, ao máximo, investigar relações

sociais no seio de outras sociedades sempre no intuito de tentar encaixar as relações investigadas em

preconcepções de Direito e de seus institutos. 277

WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 13. 278

A História aponta que esse direito passa por tempos e lugares históricos, e insere-se em contextos sociais que

se davam em terras além-mar. Valcir Gassen realizou um estudo sobre o caráter histórico do direito de

propriedade e os diferentes sentidos e significados em que este foi se constituindo. Destaco de seu texto a

constatação de que “no modo de produção capitalista, a propriedade privada da terra é uma das formas que

assume o sagrado direito de propriedade; tudo está à mercê de apropriação como coisa privada”. (GASSEN,

Valcir. A Natureza Histórica da Instituição do Direito de Propriedade. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.).

Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, 192).

Page 134: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

133

direito à terra e ao território foi sendo estrategicamente ignorado pelo Direito Colonial e,

posteriormente, pelo Direito Nacional279

.

Antes de iniciada a colonização, no século XVI, o direito “natural” de conquista aos

olhos europeus constituía direito originário de aquisição das terras “descobertas”. Em 1494, o

Tratado de Tordesilhas, celebrado entre Portugal e Espanha, já delimitava as terras

“descobertas” ou “por descobrir” que ficariam sob o controle de cada um desses países. Carlos

Frederico Marés conta que

Os espanhóis e portugueses [...] antes mesmo de colocarem o pé na América, já

tinham dividido entre si esse continente. Tomar conta da terra e fixar nela jurisdição

foi uma preocupação dos conquistadores a tal ponto que Martim Afonso de Souza,

quando chegou ao Brasil, em 1530, trouxe consigo três cartas régias, uma para

exercer o cargo de capitão-mor, outra para tomar posse das terras em nome da Coroa

portuguesa e a terceira para distribuir terras a quem nelas quisesse produzir. 280

Tendo sido iniciada a colonização no Brasil oficialmente (por Portugal) em 1500,

desde seus primórdios, o pau-brasil, o ouro, a cana de açúcar... existiam para a fruição e glória

de Portugal. A extração de recursos naturais e a agricultura forneciam produtos primários para

a Metrópole e, de lá, eram distribuídos a outras localidades da Europa.

Em solo europeu, a lenta transição entre o feudalismo e o capitalismo, a formação

social burguesa, a constituição de estruturas estatais centralizadas e a busca por justificações

de interesses liberais e individualistas ao longo dos séculos XVII e XVIII281

[...] compatibilizaram-se na constituição teórica e instrumental do moderno

paradigma jurídico, marcado por determinadas características (geral, abstrato,

coercível e impessoal), principais institutos (propriedade privada, liberdade de

contratar e autonomia da vontade, direitos subjetivos) e cosmovisões jusfilosóficas

hegemônicas (jusnaturalismo e positivismo jurídico). 282

Esses elementos hibridizaram-se à herança colonial portuguesa no Brasil

(patrimonialismo, burocracia, tradição conservadora e herança liberal283

), influindo na

formação do Direito Nacional, do Império à República, e na moderna cultura jurídica

brasileira. Enquanto a Europa estava em transição do servilismo feudal para o trabalho

279

Sobre a organização territorial encontrada pelos portugueses em Pindorama, segue a reflexão de Carlos

Frederico Marés, em cuja análise “cada povo fazia, e faz, seu próprio conceito de território. A ideia de território,

ou espaço geográfico onde cada povo exerce seu poder, é fundada nos mitos, crenças e cultura, fazendo com que

os critérios da própria ocupação e da defesa contra a ocupação por terceiros seja diferente. [...] Cada povo

indígena tem, portanto, uma ideia própria de território, ou limite geográfico de seu império, elaborada por suas

relações internas de povo e externas com os outros povos e na relação que estabelecem com a natureza onde lhes

couber viver” (SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito.

6. reimp. Curitiba: Juruá, 2009, p. 43). 280

Ibid., p. 44; 45. 281

WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 31. 282

Ibid., p. 31. 283

Ibid., p. 45; 46.

Page 135: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

134

livre284

, no Brasil nascia um liberalismo-escravocrata vivenciado por uma elite agrário-

mercantil.

Desde os primórdios da colonização, efetivou-se uma aliança entre o poder

aristocrático da Coroa Portuguesa com as elites agrárias locais, havendo concentração de

poder na Metrópole. Enquanto isso, as formas de organização social, política, econômica e

cultural das sociedades indígenas foram ignoradas desde o início pelo Direito Colonial e os

africanos escravizados não gozavam de proteção em lei, a não ser a que se fornecia a quem

deles fosse o “dono”285

. O Direito Colonial era centrado nas Ordenações de Portugal, país

onde a tradição jurídica se fundava no Direto Romano286

.

Nossa “tradição legal”, nesse âmbito, nasceu e seguiu “profundamente comprometida

com uma formação social elitista, agrário-mercantil [...]” 287

. O Direito Nacional, iniciado

oficialmente (pelo Império) após a proclamação da “independência” em 1822, fundou-se em

uma adaptação do liberalismo europeu para um liberalismo-escravocrata brasileiro, no qual a

estrutura político-administrativa patrimonialista e conservadora, a presença de elites agrárias,

a economia de base escravista e a produção para a exportação constituíram a base da cultura

jurídica brasileira moderna.

A criação dos primeiros cursos jurídicos, voltados para um bacharelismo liberal, e as

nascentes leis nacionais inspiraram-se em ideais de revoluções liberais europeias288

. Como

exemplo da também nascente abissal diferença entre as leis e a vida no Brasil, porém, a

284

Ligado ao capitalismo nascente, em que a liberdade de contratar e vender a força de trabalho em troca de

determinados ganhos materiais constitui uma das bases da acumulação do capital. 285

Carlos Frederico Marés assevera que “o Estado colonial deixou como herança ao Estado Nacional brasileiro

nascente, um silêncio piedoso sobre os povos indígenas, um punhado de escravos, uma situação de direitos

confusa e uma estrutura fundiária tão ultrapassada quanto injusta” (SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de.

O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. 6. reimp. Curitiba: Juruá, 2009, p. 56). 286

“[...] com o advento da modernidade, é retomado o direito romano que tratava de propriedade. A incorporação

do direito romano pela burguesia emergente não se deu pelo fato de que este direito tinha uma “logicidade

interna”; ou que era o direito mais bem elaborado de que se tinha conhecimento, mas principalmente porque as

formulações teóricas que ele continha atendiam às necessidades de legitimação da acumulação denotadas no

modo de produção capitalista que aí surgia”. (GASSEN, Valcir. A Natureza Histórica da Instituição do Direito de

Propriedade. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte:

Del Rey, 2010, 190). 287

WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 9. 288

Com a criação dos primeiros cursos jurídicos no Brasil, fortaleceu-se a inserção de bacharéis de Direito na

vida política e cultural do País. Esses juristas, por meio de retóricos discursos, utilizaram-se da literatura e da

imprensa para divulgar ideias individualistas e liberais exportadas de outros países e, desde sempre, não

buscaram compreender o Brasil com base na sua realidade e historicidade. Ainda que inspirados em ideias

liberais, sua práxis jurídicas foi conservadora e ligada aos interesses da elite nacional. Para aprofundar-se no

tema, ir em: WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 127-

134; e KOZIMA, José Wanderlei. Instituições, Retórica e Bacharelismo no Brasil. In: WOLKMER, Antonio

Carlos (Org.). Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 415-437.

Page 136: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

135

Constituição (outorgada) de 1824 proclamava a liberdade e a igualdade de todos perante a lei

e convivia com o regime escravocrata. 289

Em relação, especificamente, à instituição do direito de propriedade no Brasil, vasta

bibliografia a registra. Importa, para os efeitos desta dissertação, apontar alguns aspectos da

Lei de Sesmarias de Portugal e da Lei de Terras do Brasil290

.

Sobre as Sesmarias, sabe-se que no século XIV, em Portugal, a concentração

populacional nas cidades e a escassez de gente para produzir na terra rural levaram à carência

de alimentos e à baixíssima produtividade nos campos. Tais razões, em 1375, motivaram a

edição da Lei de Sesmarias portuguesa. Esta Lei tinha como objetivo:

[...] remediar a séria crise de abastecimento, que afligia então o reino. O monarca

determinou, para tanto, o cultivo obrigatório de todas "as herdades que som pera dar

pam". Em consequência, se o proprietário não pudesse ou não quisesse cultivar

diretamente o solo, deveria dá-lo em arrendamento a alguém que assumisse essa

tarefa, sob pena de confisco, devolvendo-se a terra ao soberano. Esta, aliás, a origem

da expressão "terras devolutas". 291

Em 1530, adquirindo um “sentido [...] de ocupação, desbravamento, conquista,

desrespeitando qualquer tipo de uso indígena, ou ocupação pré-existente”292

, visando

também expandir terras ocupadas, defender os limites das terras “descobertas” portuguesas

de outros povos europeus, e consolidar a colonização o sistema de Sesmarias foi aplicado ao

Brasil, onde adquiriu um caráter completamente diverso de Portugal. A ideia não era de uma

ocupação territorial livre293

.

[Isso] significou, na realidade, que os povos indígenas, embora ocupassem terras,

não tinham direito a ela, salvo expresso reconhecimento de um reino distante [...].

Igualmente significou que qualquer aventureiro, ou trabalhador, que tomasse para si

um trecho de terra para livremente e em paz viver com sua família, estava fora do

Direito e deveria pagar tributo, ou meação, ou vassalagem, a quem o tal Reino

distante concedesse aquela terra. 294

[...] apesar da realidade totalmente diferente, o Instituto [das Sesmarias] foi aplicado,

sem alterações legais, durante todo o período colonial. Não havia, no Brasil, terras de

289

Confira em WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p.

93-134. 290

Para aprofundar-se sobre o Sistema de Sesmarias e Lei de Terras, no Brasil, ver em: PAULA, Roberto de.

Direito Agrário Constitucional: a propriedade privada da terra à luz da Constituição Federal e da justiça. São

Leopoldo: Oikos, 2007; STEFANIAK, Jeaneth Nunes. Propriedade e Função Social: perspectivas do

ordenamento jurídico e do MST. Ponta Grossa: UEPG, 2003; SILVA, Ligia Osorio. Terras devolutas e

latifúndio: efeitos da Lei de 1850. 2. ed. Campinas: UNICAMP, 2008, p. 25-124; GUIMARÃES, Alberto

Passos. Quatro Séculos de Latifúndio. Rio de janeiro: Paz e Terra, 6. ed., 1989. 291

COMPARATO, Fabio Konder. A Política Agrária no Brasil. Publicado em 28 ago. 2008. Disponível em

<http://www.limitedaterra.org.br/noticiasDetalhe.php?id=65>; acesso em 12 jun. 2011. 292

SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Sergio Antonio

Fabris, 2003, p. 57. 293

Ibid., p. 61. 294

Ibid, p. 56.

Page 137: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

136

lavradio abandonadas, as terras eram ocupadas por povos indígenas que tinham

outras formas de ocupação e uso. 295

O modo de distribuição das Sesmarias também contribuiu para a formação dos

latifúndios. Sobre os efeitos da adoção do Sistema de Sesmarias no Brasil, Comparato diz que

A consequência inevitável foi a implantação desordenada do sistema latifundiário no

território brasileiro: latifúndios de efetiva produção agrícola, fundada no trabalho

escravo; latifúndios totalmente improdutivos, mantidos como reserva de valor para

venda no futuro; e latifúndios de escasso aproveitamento, para criação extensiva de

gado.296

Assim ia se formando a população brasileira: de um lado, um pequeno grupo de

colonos detentores da terra e outras propriedades; de outra parte, africanos escravizados,

índios e os chamados mestiços. E, em interfaces com esses últimos, a (assim considerada pela

elite brasileira) plebe.

A plebe foi retratada por muitos pensadores importantes do Império como um setor

da sociedade que, a um só tempo, não possuía a independência das classes

proprietárias e nem era submissa às classes superiores como o eram os escravos.

Composta majoritariamente por brancos e mulatos empobrecidos ou por ex-escravos

e seus descendentes [...]. 297

João Pedro Stédile lembra que a “concessão de uso” dada pelo Instituto da Sesmaria

era “de direito hereditário, ou seja, os herdeiros dos fazendeiros-capitalistas poderiam

continuar com a posse das terras e com sua exploração”, no entanto, não podiam vender as

terras nem comprá-las de outrem. Assim “não havia propriedade privada das terras, [...] as

terras ainda não eram mercadorias” 298

. Ligia Osorio Silva, por sua vez, expressa a ideia de

que:

No início do século XIX, [...] a situação da propriedade da terra, do ponto de vista do

seu ordenamento jurídico, era caótica. Falar em termos de proprietários de terras, no

sentido estrito, portanto, não se justifica. O senhoriato rural que se desenvolvera na

Colônia ainda não se constituía propriamente uma classe de proprietários de terras

porque a maioria dos ocupantes das terras (sesmeiros ou posseiros) não possuía um

título legítimo de domínio. 299

295

SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. 6. reimp.

Curitiba: Juruá, 2009, p. 57. 296

COMPARATO, Fabio Konder. A Política Agrária no Brasil. Publicado em 28 ago. 2008. Disponível em

<http://www.limitedaterra.org.br/noticiasDetalhe.php?id=65>; acesso em 12 jun. 2011. 297

SABA, Roberto. O Libelo do Povo: um incêndio em terras saquaremas. Revista Em Tempo de História, n

14, 2009, p. 47. Disponível em Disponível em <http://www.red.unb.br/index.php/emtempos/article/view/2726>;

acesso em 12 jun. 2011. 298

STÉDILE, João Pedro. Introdução. In: STÉDILE, João Pedro (Org.). A Questão Agrária no Brasil. Vol. I. O

Debate Tradicional – 1500-1960. São Paulo: Expressão Popular, 2005, p. 22. 299

SILVA, Ligia Osorio. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de 1850. 2. ed. Campinas: UNICAMP,

2008, p. 88.

Page 138: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

137

No Brasil, em 1822, uma Resolução de D. Pedro I determinou o fim do Regime de

Sesmarias300

. Entre 1822 e 1850, ano este em que se instituiu a Lei de Terras (Lei 601/1850),

não havia uma legislação específica que tratasse do tema, “a posse tornou-se a única forma de

domínio sobre as terras” 301

.

A causa da demora da regulamentação encontrava-se em conflitos de interesses entre

o Estado (que queria controlar o processo de ocupação territorial) e os detentores da terra302

.

As pressões externas pelo fim do tráfico de escravos no Brasil, entretanto, e a instauração do

tempo Saquarema incitaram a edição da Lei de Terras no Brasil303

. Roberto Saba e Lígia

Osorio Silva expõem, sobre a visão Saquarema, que:

A hegemonia conservadora – ou saquarema – se impôs no Segundo Reinado,

isolando o idealismo liberal que agitara a plebe no Brasil das décadas de 1830 e

1840. Acontecimentos como os quebra-quebras antilusitanos, a Cabanagem, a

Farroupilha, a Sabinada, a Balaiada, os levantes de Minas e São Paulo, a Praieira etc.

haviam sido causados, do ponto de vista saquarema, pelo descontrole que o

radicalismo liberal estrangeiro tinha inculcado em grupos oportunistas. Para que a

ordem fosse mantida nas mãos dos “homens bons” era necessário que tanto os

escravos quanto os homens livres pobres fossem mantidos sob rígido controle.304

Em relação à imigração, a visão Saquarema retomava as ideias de povoamento do

amplo território nacional existentes desde os tempos de Dom João VI, agora dando

ênfase na necessidade de branqueamento da população por meio da introdução de

imigrantes europeus. [...] No centro de toda a solução Saquarema para o problema da

mão-de-obra e do povoamento estava a questão da demarcação das terras devolutas,

Uma vez demarcadas, elas seriam vendidas a nacionais ou estrangeiros que

quisessem compra-las. [...] A Lei de Terras estava, portanto, destinada a empenhar

um papel de fundamental importância na colocação em prática da concepção

Saquarema, que era a concepção, dominante no governo imperial, do processo de

transição do trabalho escravo para o trabalho livre. 305

Em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea libertava oficialmente (diante do Estado) os

africanos escravizados no Brasil, fruto de lutas abolicionistas históricas e da pressão de países

como a Inglaterra, em meio às mudanças do sistema capitalista, nas quais a utilização de mão

300

Na análise de Carlos Frederico Marés, mesmo com o “sepultamento” do Instituto da Sesmaria, “suas

consequências na ideologia da terra como poder político, da supremacia da propriedade sobre o trabalho, se

mantém até nossos dias, insistindo em considerar o documento da terra mais importante que o produto dela

nascido”. (SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direito. 6.

reimp. Curitiba: Juruá, 2009, p. 59). 301

SILVA, Ligia Osorio. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de 1850. 2. ed. Campinas: UNICAMP,

2008, p. 90. 302

Ibid., p. 127. 303

Para aprofundar-se sobre o assunto ver em MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formação

do Estado Imperial. 5. ed. São Paulo: HUCITEC, 2004; ESCOSTEGUY FILHO, João Carlos. Tráfico de

escravos e direção Saquarema no Senado do Império do Brasil. Dissertação (Mestrado em História) -

Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro, 2010. 304

SABA, Roberto. O Libelo do Povo: um incêndio em terras saquaremas. Revista Em Tempo de História, n

14, 2009, p. 28. Disponível em <http://www.red.unb.br/index.php/emtempos/article/view/2726>; acesso em 12

jun. 2011. 305

SILVA, Ligia Osorio. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de 1850. 2. ed. Campinas: UNICAMP,

2008, p. 140; 141.

Page 139: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

138

de obra escrava era considerada como “obsoleta”. Desde o início do século XIX, a Inglaterra,

que mantinha intensas relações econômicas e comerciais com Portugal e, mesmo após a

independência em 1822, com o Brasil, tencionava pelo fim da utilização de mão de obra

escrava. Eis que, no mesmo ano da edição da Lei Eusébio de Queiroz, dias depois se publicou

a Lei de Terras. Comparato, ao discorrer sobre a íntima relação entre essa Lei e a questão dos

africanos escravizados no Brasil, diz que

A estreita ligação entre as duas questões - a escravatura e o sistema agrário - foi

desde a Independência percebida por [...] José Bonifácio de Andrada e Silva. Numa

representação apresentada à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa, em 1823,

na qual propugnava a abolição da escravatura, a começar pela extinção do tráfico de

africanos, [ele] propôs, entre outras medidas, que "todos os homens de côr forros,

que não tiverem officio, ou modo certo de vida, receberão do Estado huma pequena

sesmaria de terra para cultivarem, e receberão outro sim delle os socorros

necessários para se estabelecerem, cujo valor irão pagando com o andar do tempo".

Mas a verdade é que a Lei n° 601, de 1850, conhecida como Lei de Terras, ao

contrário da Lei Eusébio de Queiroz, representou uma vitória dos grandes

proprietários rurais. Ela dispôs que ficariam doravante "proibidas as aquisições de

terras devolutas por outro título que não seja o de compra", excetuando dessa regra

"as terras situadas nos limites do Império com países estrangeiros em uma zona de

dez léguas, as quais poderão ser concedidas gratuitamente" (art. 1º) [a fim de ocupar

e defender as fronteiras nacionais].306

Nascia assim a Lei 601/1850, segundo a qual as terras passaram a ser assim

consideradas307

:

1) Sesmarias concedidas antes de 1822 e integralmente confirmadas. Reconhecidas

como propriedade privada, [...] garantidas pela Constituição. [Consideradas como] o

título originário mais importante, [bem como suas transmissões] [...];

2) Sesmarias, embora concedidas antes de 1822, não confirmadas por falta de

ocupação, demarcação ou produção. [...] A Lei 601/1850 possibilitou a confirmação

pelo Poder Público destas sesmarias desde que estivessem efetivamente ocupadas

com cultivo e morada habitual do sesmeiro ou concessionário. Depois deste

procedimento a terra passava a ser propriedade privada;

3) Glebas ocupadas por simples posse. A lei Imperial reconheceu estas posses, em

pequenas dimensões e que tivessem sido tornadas produtivas pelo ocupante que

nelas mantivesses morada habitual. A produção exigida pela Lei era a voltada para o

mercado, não a de simples subsistência ou baseada na coleta e na caça;

4) Terras ocupadas para algum uso da Coroa ou Governo local;

5) Terras sem ocupação. Todas as terras que não se enquadrassem nas categorias

anteriores eram consideradas sem ocupação, mesmo que alguém ali estivesse e dela

tirasse seu sustento e vida. [...]. Estas terras foram consideradas devolutas pela Lei

Imperial e disponíveis para serem transferidas ao patrimônio privado. As terras

306

COMPARATO, Fabio Konder. A Política Agrária no Brasil. Publicado em 28 ago. 2008. Disponível em

<http://www.limitedaterra.org.br/noticiasDetalhe.php?id=65>; acesso em 12 jun. 2011. 307

João Pedro Stédile exprime como principal característica da Lei de Terras: “pela primeira vez, implantar no

Brasil a propriedade privada das terras. Ou seja, a lei proporciona fundamento jurídico à transformação da terra –

que é um bem da natureza e, portanto, não tem valor, do ponto de vista da economia política – em mercadoria,

em objeto de negócio, passando, portanto, a partir de então, a ter preço”. (STÉDILE, João Pedro. Introdução. In:

STÉDILE, João Pedro (Org.). A Questão Agrária no Brasil. Vol. I. O Debate Tradicional – 1500-1960. São

Paulo: Expressão Popular, 2005, p. 23).

Page 140: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

139

indígenas, já anteriormente reconhecidas, têm na Lei 601/1850 sua reconfirmação

com o nome de Reservas Indígenas. 308

Desde sua constituição inicial, o direito de propriedade privada no Brasil

impossibilitou a ocupação territorial livre por brancos pobres e suas famílias, a não ser que

estes produzissem para o mercado e em pequenas glebas, ainda assim, sujeitos à concessão da

terra pelo Poder Público. Atrelou a libertação dos escravos negros no Brasil à imensa

dificuldade destes de terem acesso à terra, mantendo-os sob o regime de trabalho semiescravo

ou relegando-os à pobreza. E ignorou taticamente a preexistência de Povos Indígenas em

Pindorama, relegando-os a aldeamentos ou reservas para “aculturá-los” e “civilizá-los”.

Muitos Povos Indígenas, na época, tiveram suas terras negociadas, enquanto eram dizimados

ou tangidos aos aldeamentos ou missões, a fim de aculturar-se pela cruz ou por políticas

asssimilacionistas309

.

Paralelamente à colonização no Brasil, durante os anos que antecederam a Revolução

Francesa, os teóricos do Movimento Renascentista e do Iluminismo procuraram desvincular o

direito de propriedade de uma dimensão religiosa, fundando uma ordem, na qual o direito de

propriedade era justificado como um direito natural de matriz racional. 310

Imbuídos desse novo paradigma, diversos diplomas normativos consagraram a

propriedade como um direito inerente ao indivíduo, a saber, a Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão, adotada pela Assembleia Nacional francesa em 1789, e o Código

Napoleônico, de 1804. Em ambos, a noção de propriedade coroada é a propriedade liberal, ou

seja, baseada na apropriação individual e na vontade interior e natural do indivíduo de ter e

preservar o que é seu. Nesse sentido, Gilberto Bercovici escreve que

A propriedade liberal é a emanação das potencialidades subjetivas, constituindo

instrumento da soberania individual. A grande revolução do conceito de propriedade

consagrado no Liberalismo, para Paolo Grossi, foi a interiorização do dominium, ou

seja, a descoberta pelo indivíduo de que ele é proprietário. O domínio não necessita

mais de condicionamento externo, mas está dentro do indivíduo, é a ele imanente,

tornando-se indiscutível, pois se colore de absolutividade. 311

308

SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Sergio Antonio

Fabris, 2003, p. 68; 69. O autor, nessa mesma obra, também esclarece que “[...] a confirmação era um ato do

governo que tinha como finalidade apenas [...] confirmar a concessão”. (Ibid., p. 68). 309

Como as Vilas de Índios, instituídas pelo Diretório Pombalino, o qual estimulava que colonos passassem a

habitar em antigos aldeamentos, bem como estimulava os casamentos interétnicos. 310

As ideias presentes nesse parágrafo e seguintes, sobre a o direito de propriedade e a função social da

propriedade, em parte, foram elaboradas em conjunto com Luciana Nogueira Nóbrega e encontram-se registradas

em JOCA, Priscylla; NÓBREGA, Luciana. O Olhar de Advogados(as) Populares: o direito a terra e a pluralidade

de movimentos sociais. In: Marcos Wachowicz; João Luis Nogueira Matias. (Org.). Direito de propriedade e

meio ambiente: novos desafios para século XXI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2010. 311

BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de

1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 139.

Page 141: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

140

Amparados por esses fundamentos, a propriedade consagrada no movimento de

codificação foi tida como um direito intrínseco à própria humanidade, atemporal e absoluto,

anterior, portanto, ao Estado. Sérgio Said Jr. resume essa concepção, indicando que “a forte

propaganda revolucionária burguesa conseguiu naturalizar o que em realidade é histórico”.312

Fundado no ideário liberal e individualista estampado no Código Napoleônico, foi

elaborado o Código Civil Brasileiro de 1916, o qual, se abstendo de definir a propriedade,

dispôs, no art. 524, caput, sobre os poderes inerentes ao domínio, quais sejam, de usar, gozar e

dispor sobre bens determinados, além do direito de reaver a coisa de quem quer que

injustamente a possua. Embora não expresso, o direito de propriedade era concebido como o

poder absoluto sobre coisa determinada, visando à utilidade exclusiva do seu titular.

A propriedade passou, então, a ser o instituto central no âmbito das relações privadas,

sendo reconhecida tanto como direito subjetivo, inibindo investidas dos demais sujeitos

privados e do Estado, quanto como instituto jurídico, evitando que o legislador a desnaturasse

em seu núcleo essencial.

Orlando Gomes enuncia o direito de propriedade, considerada na perspectiva dos

poderes do titular, como

[...] o mais amplo direito de utilização econômica das coisas, direta ou indiretamente.

O proprietário tem a faculdade de servir-se da coisa, de lhe perceber os frutos e

produtos, e lhe dar a destinação que lhe aprouver. Exerce poderes jurídicos tão

extensos que a sua enumeração seria impossível. 313

Com efeito, Fábio Konder Comparato conclui, acentuando que “o núcleo essencial da

propriedade, em toda a evolução do Direito privado ocidental, sempre foi o de um poder

jurídico soberano e exclusivo de um sujeito de direito sobre uma coisa determinada”. 314

Ressalte-se que, no mesmo período em que foi aprovado o Código Civil Brasileiro,

estava sendo produzida, no âmbito internacional, outra ideação de direito de propriedade, este

não mais entendido no seu viés absoluto, individual e exclusivo. Tais eram as diretrizes

expressas nas Constituições Mexicana de 1917 e a de Weimar de 1919.

Estas Cartas Constitucionais são identificadas como marco jurídico desse processo,

por expressarem, em seus textos, esse viés funcionalizado da propriedade.

Exemplificativamente, aponta-se o art. 135 da Constituição Alemã de 1919, que trazia a

312

STAUT JR., Sérgio Said. Cuidados metodológicos no estudo da história do direito de propriedade. Revista da

Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, n. 42, 2005, p. 155-170. 313

GOMES, Orlando. Direitos Reais. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 98. 314

COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. Revista do

Conselho de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, ano I, dezembro de 1997, p. 93.

Page 142: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

141

compreensão de que “a propriedade obriga. Seu uso deve ao mesmo tempo servir o interesse

da sociedade”.

Conforme expressa Gilberto Bercovici, a Constituição de 1919 consagrava, ainda, em

outro dispositivo, que a propriedade poderia ser desapropriada a qualquer momento pela lei,

eventualmente até sem indenização. 315

Importante é mencionar que, embora a Constituição alemã trouxesse expressamente a

previsão da função social da propriedade, não foi essa a interpretação feita pelos Tribunais

Alemães, os quais, conforme demonstrou empiricamente Kirchheimer, ainda entendiam as

relações de propriedade no seu aspecto tradicional e conservador, ou seja, como direito

absoluto nos moldes do Liberalismo do século XIX. 316

Carlos Frederico Marés destaca que a Constituição de Weimar era ligada à “promessa

capitalista [...] de criar um Estado de Bem-Estar Social”. Para tanto, “a terra deveria estar

dividida em parcelas que garantissem a sobrevivência e a máxima rentabilidade de quem nela

trabalhasse mediante direta participação do Estado por meio de subsídios ou políticas de

financiamento”317

. De tal sorte, a Constituição de Weimar instituía uma função social da

propriedade a fim de garantir e maximizar os meios de produção capitalista. E essa idéia de

que “a propriedade gera obrigações passou a acompanhar o Direito ocidental por todo o século

XX” 318

.

Diferentemente, a Constituição Mexicana de 1917

[...] foi um marco mais importante do que a de Weimar porque organizava o Estado

contemporâneo em uma região cujos conflitos não se estabeleciam entre camponeses

servos transformados em trabalhadores livres e a propriedade privada, mas entre

camponeses livres, na grande maioria indígenas, que queriam continuar sendo livres

e indígenas contra o novo regime de propriedade privada. [...] [Essa Constituição]

Diferencia duas formas de intervenção na propriedade privada: por um lado

reconhecia a desapropriação que somente pode se dar por razões de utilidade pública

e mediante indenização, existente desde os tempos do nascimento do liberalismo;

por outro lado, não reconhece como propriedades áreas que não cumpram os

preceitos necessários a seu exercício, quando, então, se dá a intervenção para regular

o aproveitamento dos elementos naturais suscetíveis de exploração e a justa e

equitativa distribuição da riqueza. [...]. Determina o artigo 27, que em cada Estado se

estabeleça a extensão máxima de propriedade rural admitida por um único

315

BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de

1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 150. 316

KICHHEIMER apud BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e desenvolvimento: uma leitura a

partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 151. Bercovici atribui essa atitude dos Tribunais

Alemães de ignorar as contribuições da Constituição de Weimar em matéria de função social da propriedade ao

pensamento de Carl Schimitt e suas três categorias de direitos: direitos de liberdade, garantias institucionais e

garantias de instituto. (Ibid., p. 150-151). 317

SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Sergio Antonio

Fabris, 2003, p. 83. 318

Ibid., p. 86.

Page 143: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

142

proprietário, sendo o excedente fracionado e posto a venda se estiverem satisfeitas as

necessidades agrárias da população local.319

No Brasil, essas alterações na própria ideia de direito de propriedade refletiram na

Constituição de 1934, que assegurava, no art. 113, n° 17, a garantia do direito de propriedade,

que não poderia ser exercido contra o interesse social e coletivo, na forma em que a lei

determinasse. Sob a influência da Constituição de Weimar e do Estado do Bem-Estar, a

Constituição de 1934 estabelecia que o legislador ordinário pudesse limitar o direito de

propriedade, que perdia, desse modo, o caráter absoluto.

Destaco a ideia de que a Constituição Brasileira de 1934 e todas as demais que se

esbarraram em uma legislação civilista ultrapassada e em uma compreensão dos juristas e

operadores do Direito de que a função social da propriedade constituía mero limite ao direito

de propriedade, apenas impondo obrigações positivas ao detentor do título de domínio. Um

passo mais adiante só foi dado com a Constituição da República de 1988.

O documento político-jurídico, que vigora até os dias atuais, trouxe tempos de maior

estabilidade democrática, contendo inovações importantes para o constitucionalismo

brasileiro. Em matéria de propriedade, a Constituição, em uma série de dispositivos, garante o

direito de e à propriedade320

, atrelando-o a um viés funcionalizado, a exemplo dos arts. 5°,

caput, XXII e XXIII e art. 170, II e III.

A fim de se contextualizar a função social da propriedade inserida na CF/88, contudo,

é importante compreender as pressões políticas exercidas pela União Democrática Ruralista321

na Assembleia Constituinte (1987), por sua Subcomissão da Política Agrária e Fundiária e da

Reforma Agrária, e na votação da Constituição Federal de 1988.

Luiz Otávio Ribas analisa “dois sujeitos decisivos para a derrota da Reforma Agrária

na constituinte e nos anos seguintes: a União Democrática Ruralista (UDR) e a Sociedade

Brasileira de Defesa da “Tradição, Família e Propriedade” (TFP)”. Concluindo no sentido de

que as diversas estratégias adotadas por esses sujeitos, bem como os contextos históricos

inerentes à transição entre Estado ditatorial e o atual Estado Democrático, obstaculizaram a

319

Ibid., p. 93; 94. 320

O art. 5º, caput assegura a “inviolabilidade do direito [...] à propriedade”. Já o inciso XXII do mesmo

dispositivo estabelece a norma de que “é garantido o direito de propriedade”. Da leitura das disposições citadas,

infere-se que o legislador constituinte estabeleceu duas ordens de garantias relacionadas à propriedade, sendo

possível fazer distinção entre o direito de propriedade e o direito á propriedade. O primeiro entendido como

proteção à propriedade que já se possui e que deve, por força do inciso XXIII, cumprir uma função social,

enquanto o segundo estaria mais próximo da ideia de acesso à propriedade, acesso aos bens necessários à

efetivação da dignidade da pessoa humana. 321

A UDR, a “força do produtor rural”, é uma organização que se mantém ativa na contemporaneidade, tendo

sua sede em Brasília-DF e “defende o direito de propriedade rural”. (Informação disponível em

<http://www.udr.org.br/historico.htm >; acesso em 22 jun. 2011).

Page 144: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

143

promulgação de uma normatividade constitucional que servisse de terreno mais fértil à

democratização na distribuição e ocupação territorial no Brasil.322

Sobre o assunto, as falas de Girolamo Domenico Treccani, Deborah Duprat e Sérgio

Sauer, em palestras proferidas no Seminário “20 anos de Constituição Federal – Desafios para

garantir a aplicabilidade do direito humano à terra e ao território” (2008) acrescentam

elementos à contextualização histórica da Constituição Federal de 1988 frente à reforma

agrária e a função social da propriedade. Suas análises constatam que a forte mobilização

popular em torno da reforma agrária e da normatização de direitos humanos tensionou com

um momento político tal qual descrito por Luiz Otávio Ribas.

Sérgio Sauer lembra que

[...] em consequência da mobilização das entidades agrárias, movimentos,

confederação, Associação de Reforma Agrária e assim por diante, a emenda popular

que recebeu maior número de assinaturas, mais de 1.200.000 assinaturas de apoio,

foi justamente a emenda constitucional popular que pedia a reforma agrária. Mesmo

assim, [...] as disputas internas no Parlamento geraram um texto constitucional que

permite uma implementação, na minha opinião, distorcida do que eram então o

desejo popular e o espírito constitucional.323

A Constituição Federal de 1988, ao definir a função social da propriedade pela

produtividade e pela justa relação de trabalho (entre outros elementos), deu margem a que

fosse interpretada em rumos produtivistas e exclusivistas (privilegiando a dimensão individual

e excluindo os(as) demais da fruição da terra)324

, contribuindo com a permanência do

trabalhador rural que na terra labuta subserviente a um título de propriedade pertencente a

outrem.

A CF/1988, também, não define que tipo de produção deve ser priorizado: a do

agronegócio exportador, ou a da agricultura familiar que abastece o mercado interno e pode

possibilitar a produção agroecológica e a soberania alimentar no País.

322

Conferir em RIBAS, Luiz Otávio. UDR e TFP: A Força bruta que enterrou a reforma agrária na Constituinte

de 1987. Revista Digital Em Debate. Laboratório de Sociologia do Trabalho da Universidade Federal de Santa

Catarina. 2011, p. 1. Disponível em <http://www.incubadora.ufsc.br/index.php/emdebate/article/view/539/644 >;

acesso em 22 jun. 2011. 323

SAUER, Sérgio. Palestra proferida no Seminário “20 anos da Constituição Federal – Desafios para

garantir a aplicabilidade do direito humano à terra e ao território”. Na Câmara dos Deputados, Brasília, 26

nov. 2008. Compilação realizada pelo Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação da Câmara dos

Deputados. Disponível em <http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-

permanentes/clp/notas-taquigraficas/2008/direito-humano-a-terra-e-ao-territorio>; acesso em 22 jun. 201, p. 14. 324

Gilberto Bercovici apresenta leitura diversa, ao aferir que a propriedade só será produtiva se atender a “todos

os pressupostos da proteção constitucional” e entende que “não procede, portanto, a crítica feita à Constituição de

1988 no sentido de que, ao incluir a propriedade produtiva nos bens insuscetíveis de desapropriação, tenha

representado um retrocesso em matéria de reforma agrária”. (BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e

Desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 166; 167).

Page 145: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

144

Além de não ter firmado entendimento acerca das grandes concentrações de terra, por

ter ignorado a possibilidade de se expressar o problema do módulo máximo ou da máxima

extensão de terra, não normatizando explicitamente uma distribuição equitativa de terras 325

.326

Ademais, ao instituir a indenização por desapropriação mesmo em caso de ser a

propriedade improdutiva, fortaleceu o instituto da propriedade privada e dificultou a

interpretação da legitimidade de pertença da terra pelo uso individual e coletivo desta. Sobre

esse aspecto, Carlos Frederico Marés diz que:

O capital tinha que conciliar uma reforma agrária que melhorasse o consumo e

baixasse o preço da mão de obra, com a integridade patrimonial. Por isso as soluções

preferidas pelas elites são sempre de reforma agrária com desapropriação, isto é, com

o pagamento da recomposição do patrimônio individual, mesmo quando a terra fosse

usada em desacordo com a lei. Dito em outras palavras, a reforma agrária capitalista

propunha apenas a mudança de proprietários da terra, com uma dupla mobilização

do capital: transformar uma terra improdutiva em produtiva e liberar dinheiro aos

latifundiários para investir em outros negócios. 327

Ao determinar (a CF/1988) que a propriedade produtiva não possa ser desapropriada,

contribuiu também para estabelecer um nó quanto à periódica atualização dos índices de

produtividade, os quais não são atualizados desde 1985328

. Vanessa Ramos expressa a noção

de que:

325

De 01 a 07 setembro de 2010, foi realizado o Plebiscito Popular pelo limite da terra. Mais de meio milhão de

pessoas demonstrou ser favorável à colocação de um limite na extensão da propriedade rural. (Informações

disponíveis em <http://www.limitedaterra.org.br/noticiasDetalhe.php?id=311>; acesso em 13 jun. 2011).

Considerando como minifúndio propriedades com 1MF (90 ha), pequena propriedade com tamanho entre 1 e 4

MF (entre 90 e 360 ha), média propriedade com extensão entre 4MF e 15 MF (entre 90 e 1350 ha) e grande

propriedade tamanho maior que 15 MF (maior que 1350), e considerando, ainda, que as propriedades afetadas

pela limitação fossem maiores que 35 MF (3150 ha) ( sendo essa a proposta do Fórum Nacional pela Reforma

Agrária e Justiça no Campo) aproximadamente 44.000 imóveis particulares cadastrados no Sistema Nacional de

Cadastro Rural (SNCR) seriam afetados (somando-se todos os imóveis com mais de 35 MF no Brasil). No Ceará,

seriam apenas 260 imóveis afetados pela limitação (vide esses dados em <

http://www.limitedaterra.org.br/mapa.php>; acesso em 13 jun. 2011), sendo que os imóveis de mais de 1000 ha

representam apenas 0,91% do número total de estabelecimentos no país e 44% da área total dos estabelecimentos

agropecuários no Brasil, de acordo com o Censo Agropecuário do IBGE de 2006. “A proposta da Campanha

Nacional pelo Limite da Propriedade de Terra visa pressionar o Congresso Nacional para que seja incluído na

Constituição Federal um novo inciso que limite o tamanho da terra em até 35 módulos fiscais - medida sugerida

pela campanha do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo (FNRA)”. (Informação disponível

em <http://www.limitedaterra.org.br/noticiasDetalhe.php?id=311>; acesso em 13 jun. 2011). A campanha, ainda,

defende a demarcação das terras indígenas e a regularização das terras quilombolas. Para maiores informações

sobre a Campanha Nacional pelo Limite da Propriedade da Terra ver em

<http://www.limitedaterra.org.br/duvidas.php#7>; acesso em 13 jun. 2011. 326

Sobre uma extensão máxima, ou módulo máximo de extensão de terra, já na Antiga Roma, a “Lex Licinia

Sexta” (367 a.C): “[...] autêntica lei agrária, interditava os cidadãos romanos de terem mais de 120 hectares de

terras, não permitindo nas pastagens públicas mais de 100 cabeças de gado por proprietário e obrigava que eles

utilizassem mão-de-obra livre em proporção ao número de escravos que possuíssem”. (MOTA, Márcia.

Dicionário da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 235). 327

SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Sergio Antonio

Fabris, 2003, p. 88. 328

Lei n 8.629 de 1993.

Art. 6º. Considera-se propriedade produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge,

Page 146: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

145

[...] é fundamental lembrar a origem destes índices, ou seja, a retirada das terras

produtivas da Reforma Agrária não foi uma pauta dos movimentos sociais. Ao

contrário, foi colocada como um mecanismo para bloquear as desapropriações,

portanto, os índices de produtividade e sua atualização nunca foram pauta dos

movimentos sociais. Se a atualização [hoje] é importante, é por uma questão

instrumental, mas não por uma demanda social. Aliás, a sua existência restringiu

todo o conteúdo da função social - um mandado constitucional - da terra. Desde os

anos 1960, os diversos governos fizeram investimentos através de crédito

subsidiado, criação e manutenção de assistência técnica, da formação profissional e

universitária de técnicos, em pesquisa para o desenvolvimento de novas variedades e

adaptação às condições climáticas do país. A atualização dos índices é uma resposta

dos setores - proprietários de terras - que foram beneficiados com tais investimentos.

Esta atualização geraria um estoque de terras - hoje mal aproveitadas - passíveis de

desapropriação para fins de Reforma Agrária. Em outras palavras, cálculos de

produtividade condizentes com os avanços tecnológicos permitiriam um uso mais

justo das terras que não estão cumprindo um dos requisitos da função social, que é o

uso racional (produção). 329

O papel de definir a natureza jurídica da função social da propriedade coube à

doutrina e à jurisprudência. Nesse mister, não houve e ainda não há consensos. O modo como

o Poder Judiciário e os doutrinadores tratam da função social da propriedade parece

demonstrar que concepções privatísticas, exclusivistas e conservadoras da propriedade330

convivem com ideias humanísticas do instituto, identificadas como aquelas que têm na

dignidade da pessoa humana e na satisfação das necessidades vitais ao ser humano o seu

fundamento.

Em diversos autores, a ideia de função social da propriedade está fortemente atrelada

a um viés produtivista, no sentido de que ela implica que a propriedade seja explorada de

forma eficiente, impondo-se ao proprietário que aloque recursos de forma a maximizar a

eficiência de geração de riquezas331

.

simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão

federal competente.

Art. 11. Os parâmetros, índices e indicadores que informam o conceito de produtividade serão ajustados,

periodicamente, de modo a levar em conta o progresso científico e tecnológico da agricultura e o

desenvolvimento regional, pelos Ministros de Estado do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura e do

Abastecimento, ouvido o Conselho Nacional de Política Agrícola. 329

RAMOS, Vanessa. Latifúndio impôs índice de produtividade à Constituição, mas rejeita aplicação.

Notícia publicada em 8 dez. 2010. Disponível em:

<http://www.limitedaterra.org.br/noticiasDetalhe.php?id=336>; acesso em 13 jun. 2011. 330

Nesse sentido, Gilmar Ferreira Mendes compreende que: “Vê-se, pois, que o legislador dispõe de uma relativa

liberdade na definição do conteúdo da propriedade e na imposição de restrições. Ele deve preservar, porém, o

núcleo essencial do direito de propriedade, constituído pela utilidade privada e, fundamentalmente, pelo poder de

disposição. A vinculação social da propriedade, que legitima a imposição de restrições, não pode ir ao ponto de

colocá-la, única e exclusivamente, a serviço do Estado ou da comunidade”. (MENDES, Gilmar Ferreira. O

direito de propriedade na Constituição de 1988. In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires;

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009,

p. 483). 331

Conferir em MATIAS, João Luis Nogueira; ROCHA, Afonso de Paula Pinheiro. Repensando o direito de

propriedade. XV Congresso Nacional do CONPEDI, 2006, Manaus. In: Anais do XV Congresso Nacional do

CONPEDI – Manaus, Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux, 2006; e ARAÚJO, Telga de. A propriedade

Page 147: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

146

Gilberto Bercovici esclarece que a função social da propriedade traz mudanças nas

relações produtivas, transformando a propriedade, sem socializá-la. Assim:

A função social da propriedade não tem inspiração socialista, antes é um conceito

próprio do regime capitalista, que legitima o lucro e a propriedade privada dos bens

de produção, ao configurar a execução da atividade do produtor de riquezas, dentro

de certos parâmetros constitucionais, como exercida dentro do interesse geral. A

função social passou a integrar o conceito de propriedade, justificando-a e

legitimando-a.332

Ismael Marinho Falcão destaca, além de viés econômico, outro elemento essencial na

configuração da função social da propriedade, qual seja, o princípio de que “a terra deve

pertencer a quem nela trabalhe”:

Daí verificarmos que a doutrina da função social da propriedade traz consigo o

objetivo primordial de dar sentido mais amplo ao conceito econômico da

propriedade, encarando-a como temos afirmado até aqui, como uma riqueza, que se

destina à produção de bens, para satisfação das necessidades sociais do seu

proprietário, de sua família e da comunidade envolvente, em franca oposição ao

velho e arcaico conceito civilista de propriedade. Vê-se, pois, que o conceito de

função social está diretamente ligado ao conceito do trabalho, logo, o trabalho erige-

se em esteio preponderante para solidificação da propriedade no Direito Agrário,

trazendo-nos para a realidade de “que a terra deve pertencer a quem trabalhe.333

Para alguns doutrinadores, a ideia de propriedade como direito absoluto, baseado

apenas nos interesses daquele que detém o título de domínio, não mais encontra respaldo no

ordenamento jurídico pátrio. A Constituição da República de 1988 teria garantido o direito de

propriedade, desde que ela atenda à sua função social (art. 5º, XXIII). Fábio Konder

Comparato é exemplo dessa corrente, entendendo que, depois da Lei Fundamental de 1988,

“nem toda propriedade privada há de ser considerada um direito fundamental e como tal

protegida”.334

De acordo com o autor, a função social da propriedade se insere na própria estrutura

do direito de propriedade, caracterizando-o ou não como um direito humano, apto a receber

tutela estatal, a depender de sua observância. Com efeito,

[...] é preciso verificar, in concreto, se se está ou não diante de uma situação de

propriedade considerada como direito humano, pois seria evidente contra-senso que

essa qualificação fosse estendida ao domínio de um latifúndio improdutivo, ou de

uma gleba urbana não utilizada ou subutilizada, em cidades com sérios problemas de

moradia popular.

[...] quando a propriedade não se apresenta, concretamente, como uma garantia da

liberdade humana, mas, bem ao contrário, serve de instrumento ao exercício de

poder sobre outrem, seria rematado absurdo que se lhe reconhecesse o estatuto de

e sua função social. In: LARANJEIRA, Raymundo (Org.). Direito Agrário Brasileiro. São Paulo: LTR, 1999,

p. 160-161. 332

BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de

1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 147. 333

FALCÃO, Ismael Marinho. Direito Agrário Brasileiro. Bauru: EDIPRO, 1995, p. 209. 334

COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. Revista do

Conselho de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, ano I, dezembro de 1997, p. 96.

Page 148: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

147

direito humano, com todas as garantias inerentes a essa condição, notadamente a de

uma indenização reforçada na hipótese de desapropriação.335

Carlos Frederico Marés chama a atenção para o fato de que,

Para combinar com os compromissos de eliminar desigualdades sociais e regionais, a

constituição não poderia repetir a velha propriedade privada do Código de Napoleão,

absoluta e acima de todos os outros direitos. A propriedade privada teria que ser

desenhada como uma conseqüência dos novos direitos coletivos à vida, ao fim das

desigualdades e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, introduzindo nela

uma razão humana de existência, vinculando em todos os lugares que a reconheçam

como direito à função social, especialmente em relação à terra. [...]. Na realidade

quem cumpre uma função social não é a propriedade, que é um conceito, uma

abstração, mas a terra, mesmo quando não alterada antropicamente, e a ação humana

ao intervir na terra, independentemente do título de propriedade que o Direito ou o

Estado lhe outorgue. Por isso a função social é relativo ao bem e ao seu uso, e não ao

direito.336

Jacques Távora Alfonsin diz que

Ela [a terra] não pode ser tratada, portanto, como simples mercadoria, pois o proveito

que dela retira o proprietário através da produção e da troca, respeitada que seja a

função social [...], está enclausurada pelo destino337

próprio do seu uso, destino esse

que não pertence exclusivamente ao proprietário, a não ser que se retire da expressão

social todo sentido ou referência.338

(grifos no original)

Este raciocínio indica que nem toda propriedade deve receber proteção do

ordenamento jurídico, mas somente aquela que cumpre a função social do bem. Trata-se de

um princípio geral que deve ser observado quando da elaboração das normas, de sua aplicação

e de sua interpretação. É princípio que se dirige antes, durante e ao final dos momentos

normativos. Como destaca Pietro Perlingieri:

A função social é também critério de interpretação da disciplina proprietária para o

juiz e para os operadores jurídicos. O intérprete deve não somente suscitar

formalmente as questões de duvidosa legitimidade das normas, mas também propor

uma interpretação conforme os princípios constitucionais. A função social é operante

também à falta de uma expressa disposição que a ela faça referência; ela representa

um critério de alcance geral, um princípio que legitima a extensão em via analógica

daquelas normas, excepcionais no ordenamento pré-constitucional, que têm um

conteúdo que, em via interpretativa, resulta atrativo do princípio. Igualmente, o

mesmo princípio legitima a desaplicação das disposições legislativas nascidas como

expressões de tipo individualista ou atuativas de uma função social diversa daquela

constitucional.339

A função social não é nem um mero limite externo à propriedade, seja em um viés

negativo (de não fazer), seja em um viés positivo (de fazer), nem sua natureza jurídica é de

335

Ibid., p. 97. 336

SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Sergio Antonio

Fabris, 2003, p 115-116. 337

Jacques Távora Alfonsim desenvolveu a ideia da terra como provedora dos direitos de alimentação e moradia

na obra: ALFONSIN, Jacques Távora. O Acesso a Terra como Conteúdo de Direitos Humanos Fundamentais à

Alimentação e à Moradia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003. 338

Ibid., p. 192. 339

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. 3. ed. Rio de

Janeiro: Renovar, 1997, p. 227-228.

Page 149: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

148

conteúdo do direito de propriedade como título e direito de exclusão; a função social é do

bem, é da terra340

. Carlos Frederico Marés preleciona:

O uso ou a função da terra [...] sempre existiu na sociedade, mas há pouco tempo o

Direito passou a reconhecê-lo e integrá-lo na chamada Ordem Jurídica. Isto quer

dizer, a transformação da terra em propriedade privada foi um processo teórico,

ideológico contrário à realidade, à sociedade e aos interesses das pessoas em geral,

dos grupos humanos e dos povos, porque todos dependem da terra para viver.341

No campo da jurisprudência brasileira, ainda estão em formulação interpretações que

não privilegiem o direito de propriedade em detrimento de outros direitos humanos

fundamentais, como o direito à vida, à alimentação, à resistência, à livre manifestação. Como

exemplo do disposto, o Supremo Tribunal Federal, no exercício do seu papel de intérprete da

Constituição de 1988, em diversas ocasiões, deixou assentado o seu posicionamento acerca da

função social da propriedade342

. Em especial, analiso um julgado do Supremo Tribunal

Federal em Ação Direta de Inconstitucionalidade (STF. ADI 2213 – MC. Rel. Min. Celso de

Mello)343

:

EMENTA: [...] O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis

que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a

função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção

estatal na esfera dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites,

as formas e os procedimentos fixados na própria Constituição da República. - O

acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e

adequado do imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais

disponíveis e a preservação do meio ambiente constituem elementos de

realização da função social da propriedade. A desapropriação, nesse contexto -

340

Seguindo o pensamento de Carlos Frederico Marés e Jacques Távora Alfonsim, supra mencionados. 341

SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Sergio Antonio

Fabris, 2003, p. 48. 342

Como exemplos citam-se os julgados seguintes: STF. ADI-MC 2623. Rel. Maurício Corrêa. Julgada em 6 de

jun. 2002. Publicada no DJ de 14 de nov. 2003 e STF. RE 134.297. Rel. Min. Celso de Mello. Julgado em 13 de

jun. 1995. Publicado no DJ de 22 de set. 1995. 343

“O Supremo Tribunal Federal indeferiu hoje [em 04 de abril de 2002] (4/4) liminar nas Ações Diretas de

Inconstitucionalidade (ADI 2213 e 2411) contra a Medida Provisória (MP) 2.183-56, de 24/8/2001, editada pelo

Presidente da República que alterou dispositivos do Estatuto da Terra e da Lei de Reforma Agrária [...]. De um

modo geral, Celso de Mello considerou que a Medida Provisória não violou a Constituição Federal [...]. Quanto

ao impedimento de vistoria de imóveis invadidos por movimentos sociais em um prazo de dois anos, o ministro

Celso de Mello argumentou que essas investidas caracterizadas pelo uso da força são ilícitas. O ministro Ilmar

Galvão abriu dissidência contra o voto do relator. Ele entendeu que esse prazo de dois anos é justo somente nos

casos em que a propriedade já era produtiva antes da invasão e tem sua produção destruída por conta da

ocupação forçada. Se, ao contrário, a terra não era produtiva antes do fato, o ministro Ilmar pensa não ser

razoável que o proprietário tenha um prazo de dois anos para tornar seu imóvel produtivo. O ministro votou no

sentido de dar uma interpretação conforme a esse dispositivo, ou seja, caso isso se torne alvo de disputa judicial,

não poderia ser concedido o prazo para donos de fazenda improdutivas antes da invasão, só para aqueles que

tivessem produção anteriormente. Os ministros Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio foram além e deferiram a

liminar no todo quanto a esse ponto, pois consideraram a solução insatisfatória. O problema, para eles, é que a

vedação da vistoria não daria margem nem mesmo a saber se a propriedade era produtiva ou não. A vistoria

antecede o processo de desapropriação. Sepúlveda e Marco Aurélio consideraram a sanção de dois anos

exagerada, pois é imposta a todos os possíveis beneficiados com a reforma agrária, e por outro lado é um prêmio

aos proprietários que tem seus imóveis invadidos por movimentos sociais. Eles ficaram vencidos nessa questão”.

(Notícia disponível em <http://www.direito2.com.br/stf/2002/abr/4/supremo_mantem_estatuto_da_terra>; acesso

em: 20 dez. 2009).

Page 150: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

149

enquanto sanção constitucional imponível ao descumprimento da função social da

propriedade - reflete importante instrumento destinado a dar conseqüência aos

compromissos assumidos pelo Estado na ordem econômica e social. - Incumbe, ao

proprietário da terra, o dever jurídico- -social de cultivá-la e de explorá-la

adequadamente, sob pena de incidir nas disposições constitucionais e legais que

sancionam os senhores de imóveis ociosos, não cultivados e/ou improdutivos,

pois só se tem por atendida a função social que condiciona o exercício do direito

de propriedade, quando o titular do domínio cumprir a obrigação (1) de

favorecer o bem-estar dos que na terra labutam; (2) de manter níveis

satisfatórios de produtividade; (3) de assegurar a conservação dos recursos

naturais; e (4) de observar as disposições legais que regulam as justas relações

de trabalho entre os que possuem o domínio e aqueles que cultivam a

propriedade. O ESBULHO POSSESSÓRIO - MESMO TRATANDO-SE DE

PROPRIEDADES ALEGADAMENTE IMPRODUTIVAS - CONSTITUI ATO

REVESTIDO DE ILICITUDE JURÍDICA. [...]. O processo de reforma agrária,

em uma sociedade estruturada em bases democráticas, não pode ser

implementado pelo uso arbitrário da força e pela prática de atos ilícitos de

violação possessória, ainda que se cuide de imóveis alegadamente improdutivos,

notadamente porque a Constituição da República - ao amparar o proprietário

com a cláusula de garantia do direito de propriedade (CF, art. 5º, XXII) -

proclama que "ninguém será privado [...] de seus bens, sem o devido processo

legal" (art. 5º, LIV). - O respeito à lei e à autoridade da Constituição da República

representa condição indispensável e necessária ao exercício da liberdade e à prática

responsável da cidadania, nada podendo legitimar a ruptura da ordem jurídica, quer

por atuação de movimentos sociais (qualquer que seja o perfil ideológico que

ostentem), quer por iniciativa do Estado, ainda que se trate da efetivação da reforma

agrária, pois, mesmo esta, depende, para viabilizar-se constitucionalmente, da

necessária observância dos princípios e diretrizes que estruturam o ordenamento

positivo nacional. [...]O sistema constitucional não tolera a prática de atos, que,

concretizadores de invasões fundiárias, culminam por gerar - considerada a própria

ilicitude dessa conduta - grave situação de insegurança jurídica, de intranqüilidade

social e de instabilidade da ordem pública. [...]. Precedentes (RTJ 179/35-37, v.g.).

(STF. ADI 2213 – MC. Rel. Min. Celso de Mello. Julgado em 4 de abr. 2002.

Publicado no DJ de 23 de abr. 2004). (grifos meus)

A decisão em análise, ainda que reconheça o acesso à terra e a solução dos conflitos

sociais, utiliza-os apenas no plano do discurso. As palavras firmam o sentido da propriedade

em um viés eminentemente produtivista, ao proclamar que “só se tem por atendida a função

social que condiciona o exercício do direito de propriedade, quando o titular do domínio

cumprir a obrigação de favorecer o bem-estar dos que na terra labutam”, de “manter níveis

satisfatórios de produtividade”, além “de assegurar a conservação dos recursos naturais” e,

por fim, “de observar as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre

os que possuem o domínio e aqueles que cultivam a propriedade”. Diz-se que a função social

condiciona o exercício do direito, e não que integra o direito. O fato de se dizer nessa mesma

decisão que, mesmo em se tratando de terras improdutivas, é ilícita a ocupação de terra

(definida pelo STF como esbulho possessório), fortalece interpretação segundo a qual existe

direito de propriedade mesmo quando esta não cumpre sua função social.344

344

A fim de acessar estudos sobre como o Supremo Tribunal Federal compreende o direito de acesso à terra, bem

como se há antagonismos inconciliáveis entre o direito de acesso a terra e a feição contemporânea de propriedade

Page 151: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

150

Ademais, criminaliza-se, nessa decisão, o ato democrático de reivindicação, por meio

de ocupações, de demandas de grupos sociais tradicionalmente excluídos do acesso à terra e

de meios dignos de sobrevivência e desenvolvimento humano. Caladas essas manifestações,

pela justificativa da defesa da propriedade privada, condenam-se esses grupos à invisibilidade

social e política, e, nas mais das vezes, isso solidifica o não acesso ou a expulsão desses

grupos de suas terras.

A defesa da propriedade privada não justifica a invisibilização dessas reivindicações,

evidenciadas pelas ocupações, retomadas e outras formas de luta e resistência. Vladimir

Safatle assevera que

A democracia admite o caráter “desconstrutível” do direito, e ela o admite por meio

do reconhecimento daquilo que poderíamos chamar de legalidade da “violação

política”. Pacifistas que se sentam na frente de bases militares a fim de impedir que

armamentos sejam deslocados (afrontando assim a liberdade de circulação),

ecologistas que seguem navios cheios de lixo radioativo a fim de impedir que ele

seja despejado no mar [...], cidadãos que protegem imigrantes sem-papéis, [...],

Antígona que enterra seu irmão: em todos esses casos o Estado de direito é quebrado

em nome de um embate em torno da justiça. No entanto, é graças a ações como essas

que direitos são ampliados, que a noção de liberdade ganha novos matizes. Sem elas,

certamente, nossa situação de exclusão social seria significativamente pior. 345

Nesses contextos, importa ressaltar que, assim como o direito de propriedade deve

ser percebido em sua dimensão histórica, ou seja, não como um instituto sagrado e perpétuo,

mas inserido na e fruto da dinâmica social, não se deve olvidar, pois, que a função social da

propriedade também é marcada pela historicidade.

Isso implica que a função social não deve ser encarada como ponto de chegada das

lutas sociais que conseguiram inseri-la no Texto Constitucional e normatizar uma concepção

de propriedade legitimada pelos fins. A função social é, antes de tudo, um ponto de partida, e,

portanto, pode se modificar de acordo com as alterações nas relações sociais e na dinâmica

das reivindicações dos movimentos sociais e populares346

. Seus sentidos podem advir tanto de

nas decisões do STF; ir em MATIAS, João Luis Nogueira; FELISMINO, Lia; JOCA, Priscylla; NÓBREGA,

Luciana. As Decisões do STF e o Tensionamento Político entre a Propriedade e o Direito de Acesso à Terra.

Trabalho apresentado no 7º Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP), 2010, Recife. In:

Anais do 7º Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP). Disponível em

<http://cienciapolitica.servicos.ws/abcp2010/arquivos/11_7_2010_23_17_16.pdf>; acesso em 12 jul. 2011; e

MATIAS, João Luis Nogueira; JOCA, Priscylla. O Supremo Tribunal Federal e a Concretização da Equidade de

Acesso a Terra no Brasil. Anais do XIX Congresso Nacional do CONPEDI, 2010, Florianópolis. In: Anais do

XIX Congresso Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux, 2010. 345

SAFATLE, Vladimir. A democracia para além do Estado de Direito? O desafio de pensar a democracia em

tudo aquilo que se encontra à margem do estado de direito. Dossiê: A Democracia e seus Impasses. Cult. São

Paulo: n° 137, jul 2009, p. 44. 346

JOCA, Priscylla; NÓBREGA, Luciana. O Olhar de Advogados(as) Populares: o direito a terra e a pluralidade

de movimentos sociais. In: Marcos Wachowicz; João Luis Nogueira Matias. (Org.). Direito de propriedade e

meio ambiente: novos desafios para século XXI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2010.

Page 152: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

151

interpretações a Constituição347

como do seio desses movimentos como proponentes de

Direito Insurgente e fonte de produção jurídica em um pluralismo jurídico348

, sobre o qual

Boaventura de Sousa Santos delineia importantes pistas investigativas:

Em primer lugar, trato de demostrar que el campo del derecho en las sociedades

contemporâneas y em el sistema mundo em su totalidade es um terreno mucho más

complejo y rico de lo que se há assumido por la teoria política liberal. Em segundo

lugar me proponho demostrar que un campo jurídico así es uma constelación de

diversas legalidades (e ilegalidades) que peran em escalas locales, nacionales y

globales [...].La supremacia de la escala del Estado-nación em el análisis

sociojurídico no solo contribuyó a estrechar el concepto de derecho al vincularlo

com la autoridade del Estado, sino que también impregnó ciertas concepciones del

pluralismo jurídico com uma ideologia del derecho europeo. Este derecho, em

cuanto orden estatal, no era ni empírica ni historicamente el único vigente em los

territórios coloniales. Sin embargo, el pluralismo jurídico utilizado como técnica de

governo permitió el ejercicio de la soberania colonial sobre los diferentes grupos

(étnicos, religiosos, nacionales, geográficos, etc.), reconociendo los derechos

precoloniales para manipularlos, subordinallos e ponerlos al serviocio del proyecto

colonial. El reconocimiento de los derecho stradicionales por parte del derecho

colonial europeo implica uma noción del derecho que, em última instancia, está

sustentada em uma única fuente de validez que determina com exclusividade lo que

debe ser considerado como derecho. Em esse sentido, también el pluralismo jurídico

puede ser uma de las formas mediante las cuales se maniesta la ideologia del

centralismo jurídico. Esa concepción del pluralismo jurídico es, hoy em día, uno de

los principales legados que la expansión europea dejó a los sistema jurídicos

nacionales no europeos. De esta forma, el processo de construcción nacional em las

cociedades que de liberaron del colonialismo está también forjado por la ideologia de

la centralidade y la unicidade del Estado-nación, esto es, la creencia de que la

construcción del Estado moderno exige la homogeneización de las diferencias

sociales y territoriales.349

Assim também deve ser compreendida a Constituição Federal de 1988, em sua

historicidade, suas potencialidades, limites e contradições e, sobretudo, sua possibilidades

interpretativas na busca pela concretização do direito à terra e ao território. Carlos Frederico

Marés, em seu livro A Função Social da Terra, destaca que:

Para quem aceita as armadilhas do texto constitucional, a reforma agrária é

impossível e realizável apenas em terras públicas, devolutas (o que não é reforma

347

Nesse sentido, Gilberto Bercovici traz uma interpretação sobre a função social da propriedade: “[...] a

Constituição Federal de 1988, nos objetivos e princípios fundamentais da república (arts. 1º e 3º), determina que

a função social seja um conceito vinculado à igualdade material e à proteção da dignidade da pessoa humana. O

pressuposto para a tutela do direito de propriedade é o cumprimento da função social (art. 5º, XXIII, e 170, III, da

CF), que tem conteúdo predeterminado, pois está voltada para a dignidade humana e a busca da igualdade

material. O descumprimento deste pressuposto da função social da propriedade leva à perda da proteção

constitucional. Deste modo, no sistema jurídico-constitucional brasileiro a propriedade dotada de função social

legitima-se pela sua função. A que não cumprir função social não será mais objeto de proteção jurídica [...]”.

(BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de

1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 167). 348

Tal como propõe Boaventura de Sousa Santos ao desenvolver suas ideias de pluralismo jurídico

emancipatório em, entre outras obras: SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos

do cosmopolitismo cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 463-512; 576-593. Vide também:

SANTOS, Boaventura de Sousa. O Discurso e o Poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto

Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998. 349

SANTOS, Boaventura de Sousa. AÑÓN, Carlos Lema (Trad.). Sociología Jurídica Crítica: para um nuevo

sentido común en el derecho. Bogotá: ILSA, Editora Trotta, 2009, p. 53; 54.

Page 153: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

152

agrária, mas colonização), e nos latifúndios improdutivos segundo critérios muito

baixos de produtividade, para não ferir a liberdade e o patrimônio do proprietário e

seus credores. No texto das armadilhas somente serviria para a reforma agrária as

áreas improdutivas do ponto de vista economicista, e, ainda assim, só depois de

desapropriadas pela União.

Não é isto que salta à vista do conjunto do texto constitucional, porque esta

interpretação, majoritária nas classes dominantes, atira às traças a definição escrita

em ouro da função social do imóvel rural, mas não só, torna inaplicável e inócuo os

propósitos de erradicar a pobreza, construir uma sociedade livre, justa e solidária e

garantir o desenvolvimento nacional, considerados objetivos fundamentais da

República Federativa do Brasil no artigo 3º. E ainda mais, desestrutura a ordem

econômica estabelecida que tem por finalidade assegurar a todos existência digna

(art. 170). Ao submeter a função social à produtividade, esta interpretação

desconsidera toda a doutrina e a evolução da teoria da função social e reduz o art.

186 da Constituição a uma retórica cínica.350

Sérgio Sauer e Jackeline Florêncio, tomando como base a Constituição Federal de

1988 e a Convenção n 169 da OIT, interpretam o direito à terra e ao território no seguinte

sentido:

Enquanto meio para acesso a outros direitos básicos e fundamentais, é obrigação do

Estado nacional proporcionar o acesso à terra e a permanência no território (direito

consagrados na Constituição Federal) às comunidades tradicionais que dela

dependam, como os grupos camponeses, principalmente aos segmentos sociais de

alta vulnerabilidade. Nesse sentido, é fundamental não fazer uma distinção

(conceitual ou política) muito explícita entre “terra” (um lugar dos camponeses para

a produção) e “território” (lugar tradicionalmente ocupado por quilombolas e

indígenas). Isso porque, de acordo com a Convenção 169 da OIT, “a utilização do

termo ‘terras’ nos Artigos 15 e 16 deverá incluir o conceito de territórios, o que

abrange a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou

utilizam de alguma outra forma” (art. 13, item 2).351

Deborah Duprat entende que o direito à terra e ao território está expresso na

Constituição Federal. Na sua interpretação:

Eu acho que há [...] 3 grandes mudanças de perspectivas que ao fim e ao cabo são

mesma coisa, ou vão parar no mesmo lugar. Primeiro, muito embora o princípio

central da Constituição seja o da dignidade humana, e, portanto, ela ainda esteja

centrada numa visão do indivíduo, ela passa a considerar que esse indivíduo não

pode mais ser visto atomisticamente, ilhadamente. Ele é um ser encarnado, está no

meio de um grupo social que lhe dá identidade, que lhe dá as referências para sua

compreensão como indivíduo, inclusive. Então, é uma Constituição Federal que, ao

lado do direito individual, e do protagonismo do direito individual, reconhece

direitos coletivos também, em função desse indivíduo. Ao reconhecer direitos

coletivos, ela faz um segundo reconhecimento: o de que esse indivíduo, que está

inserido numa coletividade, está ali por uma relação de pertencimento, e essa

350

SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A Função Social da Terra. Porto Alegre: Sergio Antonio

Fabris, 2003, p. 120. 351

SAUER, Sérgui (Relator); FLORÊNCIO, Jackeline (Assessoria). Relatoria do Direito Humano à Terra,

Território e Alimentação. Relatório da Missão Petrolina e Região do Rio São Francisco (PE). Violações de

Direitos Humanos de Comunidades Quilombolas e Ribeirinhas, Povos Indígenas e famílias assentadas de

reforma agrária às margens do rio São Francisco. Plataforma de Direitos Humanos Econômicos, Sociais,

Culturais e Ambientais. Brasília (DF); Recife (PE): dezembro de 2010, p. 30. Neste mesmo documento, os

autores expõem que: “apesar da ausência de tratados ou acordos internacionais sobre o direito à terra, vários

relatores especiais da ONU têm se manifestado a favor da elaboração de um Comentário Geral sobre o direito

humano à terra (rural e urbana)” (Ibid., p. 30)

Page 154: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

153

coletividade está geograficamente situada em algum lugar que também a define; ou

seja, há uma relação. Indivíduo, grupo e território são elementos indissociáveis. E ela

faz uma terceira mudança de perspectiva, essa de um caráter fenomenal, que é a

visão de cultura. A visão de cultura nos regimes constitucionais anteriores era aquela

visão monumental, do monumento, museológica, das expressões folclóricas. A

cultura agora, na linha do que rezam os arts. 215 e 216, passa a ser a expressão de

vida de um grupo. A Constituição fala em modos de fazer, criar e viver, em modos

de expressão. Enfim, resumindo toda essa construção teórica, trata-se de uma

Constituição que reconhece que o indivíduo só é pleno se referido à sua comunidade.

É nessa comunidade que se revela a expressão de cultura desse grupo onde está

inserido esse indivíduo. E o território é o espaço indissociável para isso tudo. Então,

na da Constituição de 1988, o território adquire essa expressão de elemento

identitário de um grupo e de um indivíduo, elemento que dá a razão de ser da

existência de uma pessoa inserida dentro de uma coletividade. Então, todos aqueles

estatutos, como ação possessória, ações reivindicatórias, que servem para regular

direito de propriedade, não são aptos a tratar de um direito de índole constitucional

como é o território. Esse é informado por outros pressupostos. Quando o Judiciário

admite que, numa disputa entre um proprietário e uma comunidade quilombola, ou

um proprietário e uma comunidade indígena, ou um proprietário e uma comunidade

ribeirinha, faça-se uso de uma ação possessória, ele já está desequilibrando a disputa

entre as partes, porque está permitindo a uma delas, que é o proprietário, fazer uso

de um direito que a favorece. Então, é preciso, com uma mudança dessa

Constituição, atentar para o fato de que o direito preexistente era um direito voltado

para o proprietário privado. É preciso, portanto, que o intérprete, o juiz esteja atento

a essa mudança de paradigma tão importante. O direito de propriedade está numa

relação de subordinação aos direitos territoriais, constitucionalmente falando, e está

também numa relação de dependência do direito a ser aplicado. Como eu disse, o

território tem status constitucional, e é a partir dessa visão da Constituição que há de

ser dada a resposta para uma disputa judicialmente travada. 352

Duprat narra também que,

[...] ao falar de terras e territórios, estamos falando também dos povos indígenas,

mas, além dos povos indígenas, de outros tantos povos e comunidades que estavam

invisíveis no regime constitucional anterior e que aparecem, que se tornam visíveis,

não digo por força do texto constitucional, mas porque conseguiram com suas lutas

tornar-se visíveis pelo texto constitucional.353

Assim, o direito de propriedade privada da terra foi se constituindo no Brasil no

decurso de histórias ignoradas e silenciadas, sem, no entanto, encontrar passividade e

subalternidade, tal qual nos inspira o seguinte exemplo:

O significado que a propriedade da terra tem até hoje [no Brasil], como um elemento

que ao mesmo tempo torna viável e fragiliza a reprodução do capital, gera uma

polarização (de classe) entre o proprietário concentrador de terras (terras

improdutivas) e aquele que não tem terras suficientes. Desse fato decorrem duas

consequências principais. Por um lado, essa contradição não é residual na sociedade

352

DUPRAT, Deborah. Palestra proferida no Seminário “20 anos da Constituição Federal – Desafios para

garantir a aplicabilidade do direito humano à terra e ao território”. Na Câmara dos Deputados, Brasília, 26

nov. 2008, p. 3-5. Compilação realizada pelo Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação da Câmara dos

Deputados. Disponível em <http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-

permanentes/clp/notas-taquigraficas/2008/direito-humano-a-terra-e-ao-territorio>; acesso em 22 jun. 2011. 353

Ibid., p. 2. Desde a década de 1990, determinados modelos de desenvolvimento, conflitos socioambientais e

as novas configurações do agronegócio e de modos de exploração de fontes naturais provocam, pelo conflito, a

organização dessas a fim de resistirem em seus territórios, modos de (re)produção, relações com o meio ambiente

natural, cultura e identidade. Daí a emergência mais forte desses novos segmentos após a promulgação da

Constituição Federal de 1988.

Page 155: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

154

brasileira, constituindo-se um dos pilares de sua estrutura social; por outro a

principal luta dos camponeses é pela construção do seu patrimônio, condição sine

qua non de sua existência. Essa luta foi e continua sendo muito forte em diversos

momentos e sob as mais variadas formas. [...] é importante ressaltar a capacidade dos

camponeses de formular um projeto de vida, de resistir às circunstâncias nas quais

estão inseridos e de construir uma forma de integração à sociedade. Essas são

práticas que têm um caráter inovador ou que revelam grande capacidade de

adaptação e de conquistas de espaços sociais que lhe são historicamente inacessíveis.

Consideramos necessário registrar e reconhecer as vitórias, por mais invisíveis que

sejam. 354

Canudos, Contestado, Lampião, Zumbi dos Palmares e rebeliões indígenas (como o

Levante dos Tapuia355

) pouco conhecidos e divulgados na historiografia hegemônica, que

conta a história apenas na versão dos “colonos vencedores”, são exemplos demonstrativos de

que durante a história da ocupação territorial no Brasil, diversos modos de (r)existências e

relações com a terra se fazem presentes por diferentes populações, muitas vezes sob ameaças,

conflitos e violências356

.

Assim, compreender que o direito de propriedade foi no Brasil instituído à revelia de

boa parte da população que aqui vivia e que passou a viver após a colonização, pode ser uma

chave analítica para se compreender que, assim como lutas e resistências marcaram, desde há

muito, conflitos e tensões em solo brasileiro em torno da questão da terra, as diversas

354

CONSELHO EDITORIAL. Apresentação à Coleção. In: Diversidade do Campesinato: expressões e

categorias. Vol. 2. Estratégias de Reprodução Social. GODOI, Emilia Pietrafesa de; MENEZES, Marilda

Aparecida de; MARIN, Rosa Acevedo (Orgs.). São Paulo: UNESP; Brasília: Núcleo de Estudos Agrários e

Desenvolvimento Rural, 2009, p. 15; 16. 355

Entre os séculos XVII e início do século XVIII, os Tapuia (termo que se refere a diversos grupos étnicos),

radicados em grande parte no interior do Nordeste, enfrentaram portugueses e seus descendentes que vinham

ocupando os sertões com a criação extensiva de gado e distribuição de sesmarias na região. A historiografia

oficial apelidou o Levante dos Tapuia de “Guerra dos Bárbaros”. Para ver animação sobre essa história contada

por uma índia (a qual me lembrou, pelas paisagens iniciais e finais apresentadas, dos Tremembé de Almofala-

Itarema/CE) ir a <http://www.youtube.com/watch?v=e5duD0qNCrU>; acesso em 13 jun. 2011. 356

Conferir em MORISSAWA, Mitsue. A História da Luta pela Terra e o MST. São Paulo: Expressão

Popular, 2001; GODOI, Emilia Pietrafesa de; MENEZES, Marilda Aparecida de; MARIN, Rosa Acevedo

(Orgs.). Diversidade do Campesinato: expressões e categorias. Vol. II. Estratégias de Reprodução Social. São

Paulo: Editora UNESP; Brasília-DF: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009; STÉDILE,

João Pedro (Org.). A Questão Agrária no Brasil. Vol. I. O debate tradicional: 1500-1960. Expressão Popular:

São Paulo, 2005; STEDILE, João Pedro (Org.). A Questão Agrária no Brasil. Vol. II. O debate na esquerda:

1960-1980. São Paulo: Expressão Popular, 2005; MARANHÃO, Max. Povos e Comunidades Tradicionais no

Ceará. In: PALILOT, Estêvão Martins (Org.). Na mata do sabiá: contribuições sobre a presença indígena no

Ceará. Fortaleza: Secult/ Museu do Ceará/IMOPEC, 2009, p. 43-57; DIEGUES, Antonio Carlos; ARRUDA,

Rinaldo. Saberes Tradicionais e Biodiversidade no Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente; São Paulo:

USP, 2000; PINHEIRO, Joceny. Ceará terra da luz, terra dos índios: história, presença, perspectivas.

Fortaleza: Ministério Público Federal/ FUNAI/IPHAN, 2002; BARRETO FILHO, Invenção ou renascimento?

Gênese de uma sociedade indígena contemporânea no Nordeste. In: OLIVEIRA, João Pacheco de (Org.). A

viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. 2. ed. Rio de Janeiro: Contra

Capa/LACED, 2004, p. 93-137; ARAÚJO, Ana Valéria et all. Povos Indígenas e a Lei dos “Brancos”: o direito

à diferença. Brasília: Ministério da Educação/LACED/Museu Nacional, 2006; OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino

de. A Geografia das Lutas no Campo. 13. ed. São Paulo: Contexto, 2005; OLIVEIRA, Raquel; ZHOURI,

Andréa. Quando o lugar resiste ao espaço: colonialidade, modernidade e processos de territorialização. In:

ZHOURI, Andréa, LASCHEFSKI, Klemens (Orgs.). Desenvolvimento e conflitos ambientais. Belo Horizonte:

UFMG, 2010, p. 439-462.

Page 156: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

155

reivindicações e significados em torno do direito à terra e ao território não constituem

novidades no tempo, no entanto, a fim de serem compreendidos na contemporaneidade,

devem ser investigados em suas ressignificações e nas vozes daqueles que os reivindicam.

Ouvir essas diversas vozes reivindicativas, explicitar os olhares dos(as)

advogados(as) sobre a luta pela terra e pelo território, e refletir acerca do Direito Estatal de

propriedade da terra tornaram mais claros os contextos jurídico-políticos, sociais, econômicos

e culturais em que se constitui a Assessoria Jurídica Popular, a qual passo agora a analisar .

Page 157: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

156

6 “CAMINHANDO E CANTANDO E SEGUINDO A CANÇÃO”357

: ASSESSORIA

JURÍDICA POPULAR À MOVIMENTOS POPULARES ORGANIZADOS EM

TORNO DO DIREITO À TERRA E AO TERRITÓRIO

A práxis jurídica hegemônica, em geral, invisibiliza as relações entre o Direito, a

Política, a Cultura e a Economia. Constitui os conhecimentos jurídicos em uma perspectiva

dogmática, hipoteticamente neutra. Significa o Direito puramente como normas jurídicas

estatais que espelham a ordem e um consenso geral na sociedade. Costuma ser insensível às

resistências e reivindicações nascidas no seio de movimentos organizados e tece estratégias

que se mostram inócuas na concretização de demandas ligadas a esses movimentos.

No influxo dos (novos) movimentos sociais, outro agir teórico-prático-jurídico

emergiu no período entre as décadas de 1970-1980; qual seja, a Assessoria Jurídica Popular

(AJP), florescida na década de 1960, densificou-se nas décadas de 1970 e 1980, chegando à

contemporaneidade358

. Vladimir Luz, ao discorrer sobre a AJP, elucida:

A denominação “Assessoria Jurídica Popular” não denota, de imediato, seu

complexo significado histórico, jurídico e político. Com a identificação ampla de

assessoria popular, formou-se, no Brasil, ao menos nos últimos trinta anos, uma

gama significativa de organizações [...]. Ao lado das correntes críticas sedimentadas

na magistratura e na universidade, tais experiências foram gestadas e se

desenvolveram nos marcos históricos da advocacia popular, das entidades não-

estatais e do movimento estudantil. Todo esse processo se deu com base nas

contradições reais da sociedade brasileira e com o engajamento de operadores

jurídicos sensíveis às demandas dos movimentos sociais359

.

357

“Os amores na mente/As flores no chão/A certeza na frente/A história na mão/Caminhando e cantando/E

seguindo a canção/Aprendendo e ensinando/Uma nova lição” (Trechos da música “Pra não dizer que não falei

das flores”, de Geraldo Vandré). 358

Destaco o fato de que Vladimir Luz se refere à Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais (AATR,

localizada em Bahia, Brasil), “pioneira no Brasil, [...] [tendo] início no período da ditadura militar, na década de

1960”, como típico serviço legal popular brasileiro. (LUZ, Vladimir. Assessoria Jurídica Popular no Brasil:

Paradigmas, Formação Histórica e Perspectivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 129). A AATR define-se

com o intuito de: “Prestar assessoria jurídica popular às organizações e movimentos sociais no estado [da Bahia],

em especial aos movimentos do campo, e incidir na formação crítica e socialmente comprometida dos

profissionais do Direito - esta é a finalidade da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da

Bahia (AATR), associação civil sem fins lucrativos e econômicos fundada [como uma Associação legalmente

instituída diante do Estado] em 21 de abril de 1982 e reconhecida como de utilidade pública estadual pela lei n.º

7.289/98”. (Informação disponível em <http://www.aatr.org.br/site/aatr/index.asp>; acesso em 07 mai. 2011)

(grifos meus). 359

LUZ, Vladimir. Assessoria Jurídica Popular no Brasil: Paradigmas, Formação Histórica e Perspectivas. Rio

de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 1. Paulo Abrão e Marcelo Torelly apontam que AJP se apresenta como uma

das alternativas dos “novos serviços jurídicos”. (ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo (Orgs.). Assessoria

Jurídica Popular: Leituras Fundamentais e Novos Debates. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009, p. 13).

Page 158: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

157

Fernando Rojas, referindo-se ao nascimento de serviços legais inovadores na

América Latina, diz que estes surgiram na década de 1970, sendo que, na década de 1980 há

uma intensificação no crescimento desses serviços360

.

Vladimir Luz, apontando diversos fatores que criam um terreno fértil ao surgimento

da Assessoria Jurídica Popular no Brasil, emergentes já na década de 1970, diz que a década

de 1980 constitui confluência de condições para o surgimento “dessas novas estratégias de

apoio jurídico ao movimento popular”361

.

Rojas compreende diversos fatores como inerentes ao surgimento dos novos serviços

legais na América Latina, dentre os quais destaco o surgimento dos novos movimentos

sociais362

.

Eliane Junqueira, discorrendo sobre o Brasil, aponta o processo de democratização e

a defesa dos direitos políticos como a base da formação de uma advocacia voltada aos

movimentos populares, o que, segundo a autora, conflui com o surgimento dos novos

movimentos sociais dentre outros fatores. Junqueira destaca que “el origen y la expansión de

la abogacía popular em Brasil procede [...] del crescimento de los movimentos sociales”363

,

bem como relata:

Aunque en el caso brasileño la aparición de uma abogacía popular sea

anterior a la Constitución de 1988, sin duda que la apertura política de los

años ochenta [no Brasil] es la que permite el desarrollo tanto de los

movimientos sociales como, en consecuencia, de una abogacía

comprometida con los sectores populares.364

Consoante a descrição de Luz “no campo da Crítica Jurídica Prática”, “a experiência

de advogados[as] [...] não-alinhados com a cultura jurídica dominante, ou seja, a advocacia

popular” surge a partir da década de 1970 na defesa dos direitos de trabalhadores (sindicatos

urbanos e trabalhadores rurais)365

. Junqueira associa a atuação desses(as) advogados(as)

360

ROJAS, Fernando. Comparación entre los tendencias de los servicios legales em Norteamérica, Europa e

América Latina. Primeira Parte. EL OTRO DERECHO, Nº 1. Agosto de 1988, ILSA, Bogotá D.C., Colombia,

p. 7; 14. Rojas destaca também que 87% dos novos serviços legais institucionalizados em diversas organizações

começaram na metade dos anos de 1970, sendo que, desses, a metade começou em 1984 (ROJAS, Fernando.

Comparación entre los tendencias de los servicios legales em Norteamérica, Europa e América Latina. Segunda

Parte. EL OTRO DERECHO, Número 2. Enero de 1989, ILSA, Bogotá D.C., Colombia, p. 33). 361

LUZ, Vladimir. Assessoria Jurídica Popular no Brasil: Paradigmas, Formação Histórica e Perspectivas. Rio

de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p, 126. 362

ROJAS, Fernando. Comparación entre los tendencias de los servicios legales em Norteamérica, Europa e

América Latina. Primeira Parte. EL OTRO DERECHO, Nº 1. Agosto de 1988, ILSA, Bogotá D.C., Colombia,

p. 7. 363

JUNQUEIRA, Eliane. Los Abogados Populares: em busca de una identidad. In: EL OTRO DERECHO,

número 26-27. Abril de 2002. ILSA, Bogotá D.C., Colombia, p. 196. 364

Ibid., p. 196. 365

LUZ, Vladimir de Carvalho. Assessoria Jurídica Popular no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p.

122-123.

Page 159: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

158

também às violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar no Brasil366

e

“la necessidade de ampliar los derechos sociales de las capas populares despúes de la

aprobación de la Constituición Federal de 1988”367

. Luz assevera, ainda, que:

[...] a ampliação do “cardápio” de direitos e de garantias fundamentais, no final da

década de 1980 [...]; a nova legitimação processual coletiva; a crescente

institucionalização dos novos movimentos sociais; o surgimento de correntes críticas

na magistratura e na academia pode ser destacado como fator que contribuiu

fortemente para abertura de alguns canais de atuação de entidades especificamente

voltadas à questão do apoio jurídico popular.368

Miguel Pressburger retrata o período entre as décadas de 1970 e início de 1990 no

Brasil, descrevendo, sucintamente, o cenário jurídico e político desse tempo:

No período que sucedeu ao golpe militar brasileiro [...] dois movimentos foram

gestados por setores diferenciados da sociedade, cada um com objetivos e dinâmicas

próprias. Primeiro, as articulações de defesa de direitos humanos, objetivando

prestação de assistência jurídica às vítimas da ditadura. [...]. O segundo movimento

social surge na vacância das organizações representativas. São as associações de

bairro, de pequenos produtores rurais, de setores marginalizados da sociedade. A sua

grande característica e instrumento de eficácia foi o informalismo, uma vez que as

normas legais não contemplavam esse tipo de estrutura. Externamente ambos os

movimentos estavam identificados: a luta por direitos se travava num ambiente

social dominado pela Doutrina da Segurança Nacional. [...]. O ambiente jurídico

estava subjugado pela ditadura militar. [...]. Nesta conjuntura, os juristas tinham

verdadeiramente de “inventar” formas jurídicas que minimamente em certas

circunstâncias tivessem alguma eficácia. Essa prática, dentre outras, teve o efeito de

romper com a própria rigidez do dogmatismo positivista e formalista com que

aqueles defensores dos direitos humanos vinham impregnados desde seus cursos

escolares. Por outro lado, os movimentos populares criaram e recriaram formas de

lutas que levassem ao atendimento de algumas de suas reivindicações [...].

Desafiados por situações que não encontravam respostas no elenco institucional, os

movimentos populares iam logrando abrir caminhos, que pudessem desbloquear

aparentes impossibilidades. A busca da defesa e do respeito dos direitos

fundamentais da população carente continua [no início da década de 1990] sendo

desenvolvida pelas organizações sociais em duas grandes linhas de ação:

mobilização da comunidade envolvida e intervenção dos profissionais do direito.369

A descrição de Pressburger expressa as linhas de atuação de advogados(as) ligados à

defesa de Direitos Humanos no Brasil entre as décadas de 1970-1990: assessoria jurídica às

vítimas da ditadura militar e assessoria jurídica à organizações sociais (associações,

organizações de setores marginalizados, movimentos populares).

Em um exercício imaginativo acerca da origem da advocacia popular, penso que a

atuação de advogados(as) em campos organizados em torno da busca por transformações

366

No período entre 1964-1985. 367

JUNQUEIRA, Eliane. Los Abogados Populares: em busca de una identidad. In: EL OTRO DERECHO,

número 26-27. Abril de 2002. ILSA, Bogotá D.C., Colombia, p. 199. 368

LUZ, Vladimir de Carvalho. Assessoria Jurídica Popular no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p.

125. 369

PRESSBURGER, Miguel. A Construção do Estado de Direito e as Assessorias Jurídicas Populares. In:

CAMPILONGO, Celso; PRESSBURGER, Miguel. Discutindo a Assessoria Popular. Coleção “Seminários” n

15. Rio de Janeiro: Instituto Apoio Jurídico Popular, 1991, p. 35; 36.

Page 160: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

159

políticas e sociais se fez realidade em diversos momentos da história brasileira, como em lutas

abolicionistas370

ou pelos direitos políticos das mulheres no Brasil371

. A Assessoria Jurídica

Popular, contudo, é recente372

, e suas especificidades no campo jurídico não se confundem

com históricas atuações políticas ou jurídicas de advogados(as) em favor de determinadas

causas373

.

No contexto latino-americano e em terras brasileiras, o surgimento da Assessoria

Jurídica Popular hibridiza-se, intrinsecamente, às ressignificações e novas compreensões

jurídico-políticas advindas com os novos movimentos sociais, desde o seu surgimento aos dias

de hoje.

6.1 “Vamos caminhando, vamos dibujando el caminho”374

: Tessituras da Assessoria

Jurídica Popular

Em meados da década de 1980, o Instituto Latino Americano para uma Sociedade e

um Direito Alternativos (ILSA)375

coordenou uma pesquisa em quatro países andinos - Chile,

370

“[...] só um decênio após a Lei Eusébio de Queirós [1850] o movimento emancipacionista adquiriu novo

alento, graças, sobretudo, à ação do Instituto dos Advogados. Foram abolicionistas todos os presidentes do

Instituto, parlamentares ou não, como Carvalho Moreira, Silveira da Mota, Urbano Pessoa, Perdigão Malheiros e,

mais adiante, Nabuco de Araújo e Saldanha Marinho” (informação disponível em

<http://www.fontedosaber.com/historia/abolicao-dos-escravos.html>; acesso em 7 mai. 2011). 371

Bertha Lutz, bióloga, “foi uma das pioneiras na luta pelo voto feminino e pela igualdade de direitos entre

homens e mulheres no [Brasil]”. “A coleção Adolpho Gordo conta com mais de 30 cartas enviadas ao senador

pela feminista Bertha Lutz. A temática da correspondência entre Gordo e Bertha é majoritariamente a questão do

voto feminino. Como senador, Gordo pronuncia uma série de discursos argumentando a favor do sufrágio

feminino, mas atua também como advogado, dando uma série de conselhos jurídicos à Bertha. A

correspondência entre os dois inicia-se em 1924 e prolonga-se até a morte do senador, em 1929”. (LEONARDO,

Patrícia Xavier. MARMO, Ana Carolina. Adolpho Gordo e Bertha Lutz: A Luta pelo Voto Feminino. Publicado

na página virtual do Centro de Memória Arquivos Históricos da Universidade Estadual de Campinas

(UNICAMP), Campinas. Disponível em:

<http://www.centrodememoria.unicamp.br/arqhist/content/uploads/arquivos/pdf/votofem.pdf>; acesso em 7 Mai

2011.). 372

Rojas relata, em uma perspectiva histórica, as várias correntes de serviços legais na América Latina. Ver em:

ROJAS, Fernando. Comparación entre los tendencias de los servicios legales em Norteamérica, Europa e

América Latina. Segunda Parte. EL OTRO DERECHO, Número 2. Enero de 1989, ILSA, Bogotá D.C.,

Colombia, p. 10-13. A fim de se aprofundar sobre a “Formação Histórica da Assessoria Jurídica Popular no

Brasil”, vide: LUZ, Vladimir. Assessoria Jurídica Popular no Brasil: Paradigmas, Formação Histórica e

Perspectivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p 79-154. 373

Em 1991, Pressburger constatava que: “poder-se-ia afirmar que se inicia um processo de definição e formação

do perfil próprio do assessor jurídico popular, como um operador especializado no vasto mundo dos profissionais

do direito”. (PRESSBURGER, Miguel. A Construção do Estado de Direito e as Assessorias Jurídicas Populares.

Discutindo a Assessoria Popular. Coleção Seminários n 15. Rio de Janeiro: Apoio Jurídico Popular/FASE,

1991, p. 42). 374

Trecho da música Latinoamérica, Calle 13. 375

“ILSA - Instituto Latinoamericano para una Sociedad y un derecho Alternativos - fue creado en 1978 como

una institución de carácter civil, sin ánimo de lucro, con domicilio principal en la ciudad de Bogotá D.C.,

Colombia, que desarrolla actividades en América Latina.” (informação disponível em:

<http://ilsa.org.co:81/node/2>; acesso em 7 mai. 2011).

Page 161: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

160

Colômbia, Equador e Peru - realizando inferências também com base em dados qualificativos

acerca do Brasil sobre os, então muito recentes, novos serviços legais376

. Estes, pelos

resultados apontados nesta pesquisa, demonstraram diferenças e singularidades em relação aos

serviços legais prestados na América do Norte e Europa, bem como em relação aos chamados

serviços jurídicos tradicionais latino-americanos.

Destacando que os novos serviços legais não recobrem toda a América Latina, e

discorrendo sobre a heterogenia pulsante nessa parte do mundo, a qual reflete na diversidade

de práticas que se agregam aos novos serviços legais377

, Rojas378

entende que falar de novos

serviços legais latino-americanos se justifica pela primeira aproximação geográfica379

, e, mais

do que buscar um denominador comum a essa região, o que se valora é a compreensão dos

fatores que propiciaram o surgimento desses serviços, as estratégias por esses tecidas, seus

limites e potencialidades. Em meio à heterogênea região da América Latina e a diversidade de

experiências de novos serviços legais, Rojas acentua que:

A pesar de esta limitación, mi opinión es que el análisis de los nuevos

servicios legales en los cuatro países andinos incluídos em el estudio pueden

ser aplicados em sus partes esenciales a otros nuevos servicios legales en el

subcontinente. Las fuerzas políticas e sociales que dan cuenta de la

emergencia de estos servicios legales están también presentes em otros

países. Este es, indudablemente, el caso de Brasil.380

Diferenciando os novos serviços legais latino-americanos dos serviços prestados na

América do Norte e na Europa, Rojas diz que, enquanto os serviços destas regiões buscam o

376

Um relato sobre essa pesquisa pode ser encontrado em: ROJAS, Fernando. Comparación entre los tendencias

de los servicios legales em Norteamérica, Europa e América Latina. Primeira Parte. EL OTRO DERECHO, Nº

1. Agosto de 1988, ILSA, Bogotá D.C., Colombia; e ROJAS, Fernando. Comparación entre los tendencias de los

servicios legales em Norteamérica, Europa e América Latina. Segunda Parte. EL OTRO DERECHO, Número

2. Enero de 1989, ILSA, Bogotá D.C., Colombia. Tal pesquisa realizou-se entre 1983 e 1986 utilizando-se dos

seguintes aportes investigativos: registro, em cada país, do maior número possível de serviços prestados a

pessoas de escassos recursos; entrevistas estruturadas; e estudos de caso, sendo essa pesquisa direcionada a

advogados(as) populares e a organizações que prestavam, à época, novos serviços legais. (ROJAS, Fernando.

Comparación entre los tendencias de los servicios legales em Norteamérica, Europa e América Latina. Segunda

Parte. EL OTRO DERECHO, Número 2. Enero de 1989, ILSA, Bogotá D.C., Colombia, p. 6). Essa pesquisa

foi realizada por uma equipe de investigadores(as), sendo coordenada por Annete P. de González e por Manuel

Jacques (no Chile), Manuel Chiriboga e Luis Verdesoto (no Equador), Luis Pásara (no Peru), Fernando Rojas (na

Colômbia). (ROJAS, Fernando. Comparación entre los tendencias de los servicios legales em Norteamérica,

Europa e América Latina. Primeira Parte. EL OTRO DERECHO, Nº 1. Agosto de 1988, ILSA, Bogotá D.C.,

Colombia, p. 8). 377

Ibid., p. 9; 10. 378

Quando me refiro a Rojas, o faço como autor do artigo em estudo, ainda que compreenda que suas

elaborações teóricas sejam baseadas na pesquisa realizada pelo ILSA, e suas ideias, portanto, conectadas às

análises dos dados e resultados discutidos na pesquisa em conjunto com outros(as) pesquisadores(as), o que me

parece que o torna uma referência teórica ainda mais confiável. O autor comenta que “El artículo que aqui se

presenta es parte de um ensayo más extenso, que a la vez está baseado em um reporte de investigación”. (Ibid., p.

8). 379

Ibid., p. 11. 380

Ibid., p. 12.

Page 162: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

161

cumprimento da legalidade, os (novos) serviços na América Latina desafiam o sistema legal

capitalista e buscam estabelecer uma nova ordem social.

Outras diferenças são percebidas, com base em fatores existentes na América Latina:

níveis profundos de não acesso a recursos para (re)produção da vida, bem como desigualdades

sociais e econômicas; não inclusão de um enorme contingente de pessoas no sistema legal

oficial e na economia formal, pela ignorância de seus direitos, não acesso ao sistema de justiça

e concentração de renda e meios de produção; ensino jurídico que distancia os(as)

advogados(as) dos fatos sociais.

A formação de novas práxis no Direito, em meio latino-americano, vai além de uma

ajuda legal para o acesso à justiça e o cumprimento das normas jurídicas estatais, como Rojas

aponta que se passa em outras regiões do mundo. Essa elaboração passa por questões jurídico-

políticas, econômicas, sociais, culturais, e as mútuas e dialéticas implicações entre essas381

.

Os novos serviços legais, para Rojas, assessoram populações pobres, minorias e

outros grupos oprimidos; buscam promover mudanças sociais, o que não se limita a mudanças

na normatividade jurídica e resolução de conflitos interindividuais, e sim induz a um novo

conceito de justiça e democracia; operam com a técnica jurídica tradicional e também com

ferramentas educativas e políticas; apontam a criação de um novo tipo de poder nas mãos das

minorias, das comunidades e grupos discriminados, estimulando a auto-organização, a

autonomia e a participação ativa desses grupos; trabalham conjuntamente (advogados e

assessorados); estimulam a mobilização popular e a criação de regras internas próprias (nos

grupos assessorados)382

.

Rojas caracteriza como serviços tradicionais, contrapondo-os aos novos serviços

legais, aqueles não se dirigem às transformações das relações sociais e políticas; compartilham

do meio jurídico capitalista; restringem-se ao campo da legalidade (estatal); tratam de garantir

o apaziguamento dos conflitos sociais pela hegemonia do Direito Estatal tradicional; veem o

381

Os três últimos parágrafos foram baseados em ROJAS, Fernando. Comparación entre los tendencias de los

servicios legales em Norteamérica, Europa e América Latina. Segunda Parte. EL OTRO DERECHO, Número

2. Enero de 1989, ILSA, Bogotá D.C., Colombia, p. 7-9. Nesta dissertação não busquei aprofundar sobre os

serviços prestados na América do Norte e na Europa, apenas os cito com base na visão de Rojas e,

posteriormente, de Eliane Junqueira. A fim de constituir um conhecimento mais amplo e denso sobre AJP, espero

poder realizar uma pesquisa naquele sentido, em outras oportunidades. 382

ROJAS, Fernando. Comparación entre los tendencias de los servicios legales em Norteamérica, Europa e

América Latina. Primeira Parte. EL OTRO DERECHO, Nº 1. Agosto de 1988, ILSA, Bogotá D.C., Colombia,

p.12; 13.

Page 163: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

162

Direito como uma ciência que reflete a natureza humana e os consensos sobre a ordem social;

não refletem sobre as relações entre advogados(as) e representados(as), e sim as reforçam.383

Celso Fernandes Campilongo, em 1990, integrou uma pesquisa realizada acerca de

serviços legais prestados no Brasil384

, objetivando “(a) elaborar uma tipologia geral dos

serviços legais; e (b) comparar dois grupos prestadores desses serviços na cidade de São

Bernardo do Campo – São Paulo”385

. Campilongo aliou uma pesquisa bibliográfica à pesquisa

empírica e observou que,

Ao enfatizar a atividade dos advogados ou o “papel social da advocacia” essa

tipologia poderia aproximar o estudo mais da sociologia das profissões do que da

sociologia do direito. Contudo, essa é uma avaliação apressada, os profissionais do

direito mantém com a teoria jurídica uma relação muito peculiar. Por isso, examinar

as profissões jurídicas significa, simultaneamente, esclarecer como os juristas

encaram o direito e sua função social. Não há como separar a práxis jurídica da

concepção de direito dos advogados.386

Campilongo faz uma distinção bastante confluente com a distinção de Rojas referida

há pouco, distinguindo os tipos de serviços prestados em serviços legais tradicionais e

serviços legais inovadores. Os serviços legais inovadores enfatizam questões coletivas;

“substituem a postura paternalista pelo trabalho de conscientização e organização

comunitária”; estabelecem uma relação de coordenação, construção conjunta entre

advogados(as) e clientela387

; buscam romper com a sacralização do Direito, intentam o

desencantamento da lei388

; aliam a atuação com interesses difusos e coletivos à formação de

383

Ibid., p.13; 14. Rojas destaca também que “no siempre es fácil trazar uma línea entre los servicios legales

nuevos e los tradicionales” (Ibid., p. 14). 384

A pesquisa foi realizada pelo Centro de Estudos Direito e Sociedade – Cediso – da Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo, intitulada Justiça em São Bernardo do Campo – Perfil sócio-jurídico de clientes e

profissionais da assistência jurídica. Segundo Campilongo, esta pesquisa integrou “um projeto continental de

estudos sobre advocacia popular” concretizada pelo “Instituto Latino Americano de Serviços Legais

Alternativos, ILSA” (CAMPILONGO, Celso Fernandes. Assistência Jurídica e Advocacia Popular: serviços

legais em São Bernardo do Campo. In: ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo (Orgs.). Assessoria Jurídica

Popular: Leituras Fundamentais e Novos Debates. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009, p. 19). Para aprofundar-se,

ver em: CAMPILONGO, Celso Fernandes. Assistência Jurídica e Realidade Social: apontamentos para uma

tipologia dos serviços legais. In: CAMPILONGO, Celso; PRESSBURGER, Miguel. Discutindo a Assessoria

Popular. Coleção “Seminários” n 15. Rio de Janeiro: Instituto Apoio Jurídico Popular, 1991, p. 8-28). 385

CAMPILONGO, Celso Fernandes. Assistência Jurídica e Advocacia Popular: serviços legais em São

Bernardo do Campo. In: ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo (Orgs.). Assessoria Jurídica Popular: Leituras

Fundamentais e Novos Debates. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009, p. 19. 386

Ibid., p. 23. Compartilho dessa observação. A compreensão de uma práxis jurídica radica-se na significância

de Direito onde ela se fundamenta. 387

Termo usado por Campilongo o associo ao vocábulo “assessorados” (movimentos, organizações, grupos,

comunidades que contam com a assessoria jurídica popular). 388

“O desencantamento da lei passa, de um lado, por um processo de educação jurídica popular e treinamento

paralegal capaz de habilitar a pessoa para a autodefesa de seus direitos” (CAMPILONGO, Celso Fernandes.

Assistência Jurídica e Advocacia Popular: serviços legais em São Bernardo do Campo. In: ABRÃO, Paulo;

TORELLY, Marcelo (Orgs.). Assessoria Jurídica Popular: Leituras Fundamentais e Novos Debates. Porto

Alegre: EDIPUCRS, 2009, p. 31).

Page 164: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

163

uma “justiça alternativa” (busca por outros tipos de processo e preocupada não apenas com os

interesses individuais, mas, principalmente, com as desigualdades sociais).389

Os serviços tradicionais atuam, essencialmente, em questões individuais; são

prestados de modo assistencialista; vivenciam relações hierárquicas entre “cliente” e

advogado(a); reafirmam e fortalecem a sacralização do Direito; ocupam-se de demandas

jurídicas clássicas, “casos que compartilham idênticas características individuais: separações e

divórcios; despejos; reclamações trabalhistas etc”390

. Campilongo também garante que:

Associar os serviços tradicionais à utilização de caminhos legalistas e os serviços

inovadores ao recurso a espaços extralegais pode induzir a erros. Por isso,

preliminarmente, vale fazer o alerta de que nem sempre a postura “vanguardeira” na

luta pelo “acesso à justiça” é antiformalista. Ao contrário, o “positivismo de

combate” e o “uso alternativo do direito” encontram, em países como o Brasil, a via

legal como um campo ainda a ser conquistado. [...]. Esta é a alternativa: pedir o

cumprimento das leis que já existem. Explorar as contradições do próprio direito

positivo.391

Por fim, Campilongo classifica a atuação de advogados(as) junto ao Sindicato dos

Metalúrgicos em São Bernardo do Campo como um serviço legal inovador. Em seu relato,

contribui na caracterização da advocacia popular a descrição da fala de um sindicalista:

[Ele] dizia que na década de [19]70 os trabalhadores se reuniam em assembleias,

discutiam longamente e, quando chegavam a um impasse, convocavam o chefe do

serviço jurídico para oferecer uma solução ou encaminhar a discussão. A relação era

claramente hierárquica: o advogado como o mágico capaz de desvendar os enigmas

dos trabalhadores. [Nas palavras do sindicalista:] “Nós não queremos que o

advogado substitua o líder sindical, mesmo porque nunca aceitamos isso. No passado

era assim. [...]. No nosso caso, os advogados tem um papel de assessoria. A direção

política é a gente que determina. [...]. Nós questionamos as leis do país. Então,

quando fazemos um movimento, buscamos modificar essas leis. O advogado tem

que ter a capacidade de compreender a vontade que ele representa. É difícil, pois se o

advogado se formar para cumprir apenas o que está na lei, ele será um técnico, como

um engenheiro mecânico”.392

Percebo nesse discurso duas chaves importante na compreensão da AJP: a assessoria,

com o significado de não direção política e respeito às decisões do movimento assessorado; e

“o advogado tem que ter a capacidade de compreender a vontade que ele representa”, ou seja,

compreender as resistências, lutas e reivindicações, que se condensam em demandas

instituintes, na busca pela concretização do que se insurge nos movimentos. Buscar a

concretização do Direito com base nas demandas dos, e em diálogo com os movimentos

populares. A AJP “trata-se, pois, de um serviço prestado muito mais ‘com’ o povo necessitado

389

Ibid., p. 25. 390

Ibid., p. 38. 391

Ibid., p. 32. 392

Ibid., p. 52; 53.

Page 165: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

164

do que ‘para’ ele”393

. Confluente com esse modo de compreender a AJP, Miguel Pressburger

elabora o que ele denomina como tradução, descrevendo-a da seguinte maneira:

No caso da assessoria popular, necessariamente tem de existir uma

complementaridade entre o saber do advogado e o saber popular, operando-se

constantemente e initerruptamente traduções entre um e outro, na busca de um

pensamento que seja comum, capacitado não apenas a analisar a estrutura e o sistema

da sociedade como também interferir sob formas diversas em sua transformação e

ainda, e isto é importantíssimo, teorizar sobre as distintas práticas.394

No âmbito brasileiro, Eliane Junqueira, uma década depois (1996) do encerramento

da pesquisa efetivada pelo ILSA, realizou uma pesquisa empírica com advogados(as)

populares no Brasil395

.

Junqueira refere-se à advocacia popular como uma advocacia publicamente

orientada, a qual não é exclusiva do Brasil ou da América Latina. Ao analisar alguns tipos de

advocacia Dos Estados Unidos e Europa, diz que não há definição única para todas essas, pois

cada modo de atuação está “diretamente influída por ele régimen político, por el sistema

jurídico, por la tradición jurídica, por la relación com el orden professional e por ele proyecto

de transformación social”396

.

Junqueira não busca adentrar os meandros da singularidade dessa advocacia

publicamente orientada na América Latina, nem no Brasil, em relação aos serviços prestados

na América do Norte e na Europa. Confluente com Rojas, todavia, pensa que:

[...] la abogacía popular en Brasil y en otros países latino-americanos assume

explicitamente un proyecto de transformación social que presupone la

utilización no solo de los instrumentos clásicos de defensa de los derechos –

o sea del proprio orden jurídico – sino también de mecanismos más

claramente politizados a través de la asociación con movimientos sociales y

organizaciones de base.397

Junqueira relata os seguintes fatores assinalados pelos(as) advogados

entrevistados(as) na opção pela advocacia popular a setores populares e movimentos sociais:

compromissos políticos (no sentido partidário); compromissos ideológicos, aliados à

393

ALFONSIN, Jacques Távora. Do Pobre Direito dos Pobres à Assessoria Jurídica Popular. In: ABRÃO, Paulo;

TORELLY, Marcelo (Orgs.). Assessoria Jurídica Popular: Leituras Fundamentais e Novos Debates. Porto

Alegre: EDIPUCRS, 2009, p. 166. 394

PRESSBURGER, Miguel. A Construção do Estado de Direito e as Assessorias Jurídicas Populares. In:

CAMPILONGO, Celso; PRESSBURGER, Miguel. Discutindo a Assessoria Popular. Coleção “Seminários” n

15. Rio de Janeiro: Instituto Apoio Jurídico Popular, 1991, p. 42. 395

A pesquisa, realizada em 1996 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, utilizou como aporte

investigativo a aplicação de questionário estruturado enviado pelo correio a advogados(as) populares registrados

no censo do (hoje extinto) Instituto de Apoio Jurídico Popular (IAJUP). O objetivo da pesquisa era traçar o perfil

do advogado popular no Brasil. Com o fito de acessar um relato da pesquisa, ver em: JUNQUEIRA, Eliane. Los

Abogados Populares: em busca de una identidad. In: EL OTRO DERECHO, número 26-27. Abril de 2002.

ILSA, Bogotá D.C., Colombia, p. 193-227. 396

Ibid., p. 194. 397

Ibid., p. 195.

Page 166: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

165

indignação diante de injustiças e ideais socialistas; compromissos religiosos, percebidos como

uma missão em favor dos menos favorecidos; compromissos profissionais, derivados da

frustação com uma prática advocatícia voltada aos interesses individuais e êxito profissional e

econômico, e da necessidade de colocar os conhecimentos jurídicos a serviço dos setores

populares; compromissos pessoais, a identificação com esses setores, “um abogado que

hubiera probado diretamente una situación injusta estaria más motivado para actuar en el

combate de essas o de outra formas de injusticia”398

. Sobre o animus de um(a) advogado(a)

popular, Jacques Alfonsin relata:

A característica mais visível da pobreza, talvez seja a profunda e escandalosa

desigualdade que ela mostra em relação a outras pessoas, seja no que se relaciona

com o ter (economia), seja no que se relaciona com o poder (política) e, por via de

consequência, no que se relaciona com o próprio ser (desnível pessoal e social).

Dependendo da interpretação que o assessor jurídico popular faça desses três

déficits, ou ele perceberá uma tal realidade como lamentável, mas, talvez, transitória,

a ser vencida pelo progresso pessoal e social, o que vai deixa-lo mais ou menos

indiferente, ou ele procurará na lei uma forma de assistir tais pessoas por pena deles,

o que vai deixa-lo mais ou menos interessado na técnica jurídica capaz de ser usada

para, senão eliminar, pelo menos diminuir os efeitos daqueles déficits, ou ele

considerará toda essa realidade como inaceitável, injusta e ilegal, propondo-se

colocar seus serviços jurídicos à disposição daquelas pessoas com sincera e

profunda indignação ética (grifos meus).399

Junqueira destaca a relação da advocacia popular com o movimento de educação

popular latino-americano (iniciado em 1960)400

:

Así como la educación popular pretendia ser uma forma alternativa as sistema

educativo del estado y a la ideologia de las classes dominantes, y um instrumento de

concienciación de los sectores populares, la abogacía popular o nuevo servicio legal

pretendia utilizar el derecho y el procedimento judicial también com um objetivo de

concienciación. De la miesma manera como el movimiento de educación popular

que, a través de los intelectuales vinculados a la Iglesia católica en la vertiente de la

teologia de la liberación y de los partidos políticos de izquierda, defendió el rescate

de la cultura popular e los saberes populares, la abogacía popular pretende rescatar el

derecho popular, o se alas formas jurídicas y las nociones de justicia producidas por

los sectores bajos fuera del Estado y muchas veces contra él.401

398

Ibid., p. 198. 399

ALFONSIN, Jacques Távora. Do Pobre Direito dos Pobres à Assessoria Jurídica Popular. In: ABRÃO, Paulo;

TORELLY, Marcelo (Orgs.). Assessoria Jurídica Popular: Leituras Fundamentais e Novos Debates. Porto

Alegre: EDIPUCRS, 2009, p. 162; 163. 400

Germán Palacio narra que: “[...] los abogados e otros grupos empezaron a promover acciones inovadoras en el

campo de los derechos humanos. [...] los grupos de servicio jurídico popular que se fueron desarrolando pusieron

énfasis en acciones colectivas, promovendo la organización y la educación popular” (PALACIO, Germán. Los

abogados y la democracia en América Latina. EL OTRO DERECHO, Nº 1. Agosto de 1988, ILSA, Bogotá

D.C., Colombia, p. 105). A vivência no campo da Assessoria Jurídica Popular fez-me observar a intensa

referência e influência da Educação Popular com aporte em Paulo Freire na AJP. Para saber mais sobre Paulo

Freire vide página virtual do Instituto Paulo Freire: <http://www.paulofreire.org/Institucional/PauloFreire>;

acesso em 09 mai. 2011. 401

JUNQUEIRA, Eliane. Los Abogados Populares: em busca de una identidad. In: EL OTRO DERECHO,

número 26-27. Abril de 2002. ILSA, Bogotá D.C., Colombia, p. 199.

Page 167: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

166

Christianny Diógenes Maia associa a Assessoria Jurídica Popular à Educação

Popular, explicitando essa interconexão também na atualidade:

Sem a pretensão de substituir os verdadeiros protagonistas do processo de

transformação social, os assessores jurídicos populares realizam uma educação em

direitos humanos, como projeto pedagógico emancipatório, possibilitando um espaço

de criação, de valoração, de redefinição e de compreensão do jurídico.402

Junqueira narra ainda que, a partir da década de 1970, reivindicações ligadas a

direitos coletivos constituem a possibilidade de atuação também na via judicial403

. Joaquin

Falcão aponta o paradoxo que enovela a atuação de “abogados y otros profesionales que

protegieron ciudadanos a través de servicios legales”404

. Em suas palavras:

Al evaluar los servicios legales durante los anos de represión, constatamos que una

paradoja latente hace mucho tempo em la estructuración jurídico-social de América

Latina, se agravo e explicitó, a partir de 1964. Es la siguiente: las violaciones de los

derechos son siempre individualizadas y localizadas, la protección de estos derechos

exige, casi siempre, uma actuación colectiva e nacional: muchas veces incluso

internacional. [...]. En Brasil y em vários países de América Latina – exceptuando

los casos de tortura, desapariciones y asesinatos – la violación a los derechos

humanos fue uma violación legalizada. [...]. Se produce uma situación contractória y

paradójica. La defensa de los derechos se transforma em la defensa contra la Ley. Y

no en la defensa a través y a favor de la ley. Lo jurídico es contra lo legal. De ahi la

paradójica y fundamental interrogante: ¿Como utilizar la legislación para defender a

los ciudadanos em casos de violaciones individuales y localizadas, y al mismo tempo

contribuir y hacer presión para que, nacionalmente, se cambie la legislación?405

No mesmo sentido, Rojas discorre: “los servicios legales innovativos [...] enfrentan a

contradicciones utilizando, por ejemplo, instrumentos especializados del mismo sistema legal

que ellos pretenden transformar o eliminar”406

.

Atentando-se para as potencialidades do constitucionalismo brasileiro após 1988407

,

Maia faz uma correlação entre este e a Assessoria Jurídica Popular, ao concluir que:

[...] percebemos que, no âmbito constitucional, encontramos um campo favorável ao

desenvolvimento da AJP e das lutas populares. O amplo rol de direitos fundamentais

e o Estado Democrático de Direito proclamados pela Constituição Federal de 1988

legitimam a busca pela garantia de tais direitos. No entanto, muito ainda há que ser

feito para que a proposta constitucional se concretize. Nesse aspecto, a Assessoria

Jurídica Popular assume um papel fundamental na formação da comunidade de

402

MAIA, Christianny Diógenes. Assessoria Jurídica Popular: teoria e prática emancipatória. Dissertação

(Mestrado em Direito). Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, 2006, p. 30. 403

JUNQUEIRA, Eliane. Los Abogados Populares: em busca de una identidad. In: EL OTRO DERECHO,

número 26-27. Abril de 2002. ILSA, Bogotá D.C., Colombia, p. 199. 404

FALCÃO, Joaquin. A Manera de Introduccion Democratizacion y Servicios Legales em America Latina. In:

Los Abogados y la Democracia em America Latina. Primeira edición: ILSA – Instituto de Servicios Legales

Alternativos, Quito, Ecuador, 1986. 405

Ibid., p. 13;14. 406

ROJAS, Fernando. Comparación entre los tendencias de los servicios legales em Norteamérica, Europa e

América Latina. Primeira Parte. EL OTRO DERECHO, Nº 1. Agosto de 1988, ILSA, Bogotá D.C., Colombia,

p. 15. 407

Tem como marco a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Page 168: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

167

intérpretes, na provocação ao Judiciário com as “novas” demandas sociais, enfim, na

luta em defesa e garantia dos valores constitucionais.408

Compreendo que o citado paradoxo, na contemporaneidade brasileira, faz-se de

modo diferente do que foi apontado anteriormente. Os direitos e as garantias fundamentais e a

normatividade dos princípios erigidos pós-Constituição Federal de 1988 vêm constituindo

novas possibilidades na via judicial no que tange ao reconhecimento, defesa, proteção e

promoção de direitos. O pluralismo jurídico409

e o direito insurgente410

, entretanto, seguem

pulsantes em terras brasileiras. Ademais, a Constituição Federal de 1988, com suas

contradições e representações de interesses de segmentos sociais e econômicos diversos, não

se constitui no ápice ou ponto de chegada de uma sociedade justa, e sim em mais um passo na

caminhada. Ou seja, o citado paradoxo constatado por Falcão persiste, ainda que

ressignificado.

Interconectadas à Assessoria Jurídica Popular, algumas teorias casam-se à atuação

cotidiana da AJP. Essas elaborações teóricas são permeadas por saberes produzidos na prática

de assessores e assessorados(as), provocam reflexões influenciando na concretude da AJP e

408

MAIA, Christianny Diógenes. Assessoria Jurídica Popular: teoria e prática emancipatória. Dissertação

(Mestrado em Direito). Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, 2006, p. 133. 409

Segundo Luiz Otávio Ribas, “por pluralismo jurídico entende-se uma teoria que busca analisar o fenômeno

jurídico em sua incompletude e realidade; é uma ideia pensada pelos filósofos políticos e do direito para

assegurar a pluralidade de participação na criação das normas, uma maior efetividade às existentes e o respeito

público a ordens preexistentes ao modelo positivista liberal (como o exemplo dos povos originários da América

Latina)”. (RIBAS, Luiz Otávio. Direito Insurgente e Pluralismo Jurídico: assessoria jurídica de movimentos

populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-2000). Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade

Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2009, p. 20). 410

Miguel Baldez esclarece que: “direito Insurgente [...] é o conceito mais amplo e subordinado das ações

alternativas, de uso (alternativo) ou propriamente dita (direito alternativo). Conceito que não pode confinar-se

nas especulações e no ensaismo do mundo acadêmico, cuja importância não deve, porém, ser minimizada, este

conceito de direito insurgente encontra sua razão de ser nas lutas concretas da classe trabalhadora e na crítica

permanente às estruturas da sociedade capitalista. Significa rompimento com a ideologia classista de que o

direito é o mesmo para todas as épocas e lugares, devendo ser aplicado indistintamente, sem levar em conta as

grandes diferenças sociais, econômicas e culturais de classe, tanto aos interesses dos possuidores como aos dos

despossuídos. Pois ao romper com a ideologia jurídica dominante, o direito insurgente nega, além da ideologia

mesma, os sistemas legais dela derivados, e nesse sentido será contra a lei ou condicionante da aplicação da lei.

Na primeira hipótese, quando pela prática política dos subalternizados obstar-se ao despejo de uma comunidade;

na segunda, ao lograr-se o amoldamento da lei às lutas específicas do trabalhador, por exemplo a sujeição do

direito de posse ao estado social de necessidade ou à função social da propriedade”. (BALDEZ, Miguel

Lanzellotti. Anotações sobre Direito Insurgente. In: Captura Críptica: direito, política, atualidade. Revista

Discente do Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. n 3, Vol. 1,

jul./dez. 2010. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2010, p. 195; 196). Sobre o assunto, Luiz

Otávio Ribas compreende que: “as práticas jurídicas insurgentes são manifestações populares de pluralismo

jurídico. Entende-se por práticas jurídicas insurgentes o conjunto de manifestações por parte dos movimentos

populares: todas as reivindicações e conquistas, sejam instrumentalizadas judicialmente ou não; sejam

possibilitadas com o auxílio de advogados ou não; sejam, ainda, eficazes ou não”. (RIBAS, Luiz Otávio. Direito

Insurgente e Pluralismo Jurídico: assessoria jurídica de movimentos populares em Porto Alegre e no Rio de

Janeiro (1960-2000). Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),

Florianópolis, 2009, p. 20).

Page 169: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

168

são nascidas em espaços universitários ou advindas de pensadores(as) que não se encontram

nos muros acadêmicos.

O surgimento das assessorias jurídicas populares brasileiras está, com efeito,

intimamente vinculado ao engajamento desses intelectuais em diversos níveis, o que

se expressou em novos campos da advocacia emancipatória [...]. As primeiras

experiências de apoio jurídico popular, no Brasil e na América Latina, surgiram a

partir do trabalho de alguns intelectuais de formação crítica, de cunho marxista.411

Segundo Rojas, “Estos abogados, que han leído Marx, Gramsci, Poulantzas, Foucault

e la novelística latino-americana de los últimos veinticinco años, han experimentado el

sufrimento de la gente oprimida em aisladas zonas rurales y em grandes concentraciones

urbanas”412

. O autor narra também que:

A comienzos de los años setenta, contingentes de profisionales e intelectuales que

luchaban por el cambio social revisaron imparcialmente los pressupuestos básicos

del marxismo que ellos hablan compartido durante toda la centúria. Esta autocritica

condujo a un cambio ideológico que directa o indirectamente influyó en los nuevos

servicios legales latino-americanos, algunas veces a través de vias invisibles

inconscientes. [...]. El pensamento crítico acerca de los problemas cotidianos há

ganado reconecimiento entre los acadêmicos y se han hecho intentos de combinar e

harmonizar estas ideas com uno pensamento crítico más abstracto.413

Luiz Otávio Ribas, referindo-se a momento histórico posterior, relata:

A princípio, as teorias do direito alternativo e do pluralismo jurídico ficaram restritas

ao ambiente das discussões acadêmicas e com profissionais do direito; inclusive, a

difusão das ideias para a população era uma das principais preocupações do MDA

[Movimento do Direito Alternativo] no auge da década de 1990, quando seus

encontros anuais reuniam centenas de professores, estudantes, profissionais do

direito e militantes de todo Brasil. Como alguns reconhecem, o direito insurgente

proposto pelo IAJUP [Instituto de Apoio Jurídico Popular] era o que tinha maior

inserção nos movimentos populares, assim como o direito achado na rua. Por isso, a

produção teórica dos profissionais do direito e professores envolvidos nas atividades,

principalmente nas publicações e formações, do IAJUP foi amplamente difundida

entre os advogados populares e lideranças de movimentos populares na década de

1990 no Brasil.414

O “Movimento Alternativo do Direito”; Roberto Lyra Filho e o “Direito Achado na

Rua” e José Geraldo de Sousa Junior e a “Série O Direito Achado na Rua”; Miguel

Pressburger, o Instituto Apoio Jurídico Popular-AJUP e o Direito Insurgente; teóricos da

Assessoria Jurídica Popular como Celso Campilongo, Eliane Junqueira e Jacques Alfonsin,

411

LUZ, Vladimir de Carvalho. Assessoria Jurídica Popular no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p.

125; 126. 412

ROJAS, Fernando. Comparación entre los tendencias de los servicios legales em Norteamérica, Europa e

América Latina. Primeira Parte. EL OTRO DERECHO, Nº 1. Agosto de 1988, ILSA, Bogotá D.C., Colombia,

p. 8. 413

ROJAS, Fernando. Comparación entre los tendencias de los servicios legales em Norteamérica, Europa e

América Latina. Segunda Parte. EL OTRO DERECHO, Número 2. Enero de 1989, ILSA, Bogotá D.C.,

Colombia, p. 15;16. 414

RIBAS, Luiz Otávio. Direito Insurgente e Pluralismo Jurídico: assessoria jurídica de movimentos populares

em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-2000). Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Federal de

Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2009, p. 45; 46.

Page 170: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

169

dentre outros, aparecem como importantes referências teóricas na gênese e formulação dos

fundamentos da Assessoria Jurídica Popular Universitária e Advocatícia no Brasil. O

Movimento Alternativo do Direito

Tratou-se, em verdade, de um movimento inicialmente desencadeado por alguns

magistrados gaúchos, que se reuniam desde 1987 para discutir sugestões para a

Assembleia Constituinte, sendo formado, depois, por intelectuais e advogados

militantes insatisfeitos com uma cultura jurídica dominante extremamente formalista

e positivista.415

Amilton Bueno de Carvalho, em seu livro Direito Alternativo na Jurisprudência,

propõe:

[...] que o “movimento do Direito alternativo”, em seu sentido abrangente

compreende as seguintes frentes de luta: 1. Uso Alternativo do Direito: trata-se da

utilização, via interpretação diferenciada, ‘das contradições, ambiguidades, e lacunas

do Direito Legislado numa ótica democratizante’. 2. Positivismo de Combate: uso e

reconhecimento do Direito positivo como arma de combate, é a luta para efetivação

concreta dos direitos que já estão nos textos jurídicos, mas não vem sendo aplicados.

3. Direito Alternativo em Sentido Estrito: é o “direito paralelo, emergente,

insurgente, achado na rua, não oficial que coexiste com aquele emergente do Estado.

É um direito vivo, atuante, que está em permanente formação/transformação”.416

Roberto Lyra Filho aparece como um dos principais representantes do “Direito

Achado na Rua”. José Geraldo de Sousa Junior diz que

[...] o projeto geral subjacente ao compromisso crítico na formulação de Roberto

Lyra Filho contém a proposta de um direito novo, elaborado na dimensão dialética

de alargamento do campo de compreensão do fenômeno jurídico, para além dos

restritos limites de sua captação positiva, até alcançar a realidade dos ordenamentos

plurais conflitantes, derivados dos movimentos das classes e grupos sociais em seu

aparecer histórico e na afirmação cultural, subcultural e contracultural de seus

repectivos projetos de organização política.417

Sendo que “a principal vertente [do Direito Achado na Rua] encontra-se ainda na

Universidade de Brasília [UNB], com o Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos

(NEP), levado adiante por José Geraldo de Sousa Junior, com projetos de extensão de

abrangência nacional na década de 1990”418

. Esse grupo da UNB foi responsável por

publicações no campo do pensamento jurídico crítico e pelo Curso de Extensão Continuada

denominado “O Direito Achado na Rua” (1987), que, em sua 4ª edição, passou a ser chamado

de “Introdução Crítica ao Direito” (1993). 415

LUZ, Vladimir de Carvalho. Assessoria Jurídica Popular no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p.

120. 416

CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e Direito Alternativo. São Paulo: Acadêmica, 1992, p. 11-15. 417

SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de (org.). Introdução Crítica ao Direito. Série o Direito Achado na Rua. 4.

ed, Brasília: Universidade de Brasília, 1993, p. 6. 418

RIBAS, Luiz Otávio. Direito Insurgente e Pluralismo Jurídico: assessoria jurídica de movimentos

populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-2000). Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade

Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2009, p. 43. Para ver reportagem veiculada pelo Globo

Universidade em 28 de maio de 2011 sobre “O Direito Achado na Rua”, ir em:<

http://redeglobo.globo.com/videos/globouniversidade/v/direito-achado-na-rua/1520688/>.

Page 171: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

170

Pressburger, advogado popular, foi coordenador do Instituto Apoio Jurídico Popular

(IAJUP) (que existiu entre 1985 e 2002) e assessor jurídico da Comissão Pastoral da Terra do

Rio de Janeiro e nacional. Faleceu em 13 de julho de 2008419

. Em muitos de seus textos,

Pressburger ressalta a formação histórica do Brasil e o modo como o Direito Moderno no País

não espelha as demandas, práticas e lutas das classes subalternas. Assim, defende o direito

nascidos dessas práticas e lutas sociais, o direito insurgente420

.

Na América Latina, o Instituto Latinoamericano de Servicios Legales Alternativos

(ILSA)421

, de Bogotá, Colômbia e no campo da Sociologia Jurídica Critica, o autor português

Boaventura de Sousa Santos constituem importantes referencias epistemológicos e práticos no

campo da Assessoria Jurídica Popular Universitária e Advocatícia. O ILSA:

Cuenta con una amplia experiencia de trabajo socio-jurídico en el campo de la

investigación y de la acción política, promoviendo especialmente una visión crítica

del derecho que se ha expresado de diversas formas: va desde la defensa del uso

alternativo del derecho por los servicios legales populares; pasando por el

reconocimiento del pluralismo jurídico; hasta la crítica al formalismo legal y la

incorporación de los debates contemporáneos sobre la realización de los derechos,

las transformaciones constitucionales y la perspectiva de género en torno al

derecho.422

419

RIBAS, Luiz Otávio. Direito Insurgente e Pluralismo Jurídico: assessoria jurídica de movimentos

populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-2000). Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade

Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2009, p. 86. 420

Para aprofundar-se, ver em PRESSBURGER. Miguel e outros. Direito Insurgente: o direito dos oprimidos.

Coleção “Seminários” n°14. Rio de Janeiro: Apoio Jurídico Popular, 1990. Luiz Otávio Ribas narra que: “[...] o

direito insurgente é defendido pelo advogado popular Miguel Pressburger, mas foi compartilhado por todos os

integrantes do IAJUP, assim como outros grupos de advocacia popular, como a AATR. Miguel Pressburger

propõe que, para além do positivismo de combate, ou o embate judicial com os instrumentos jurídicos oficiais, há

um “caldo de cultura” proveniente dos conflitos sociais, revelado nas estratégias dos sujeitos coletivos

organizados”. (RIBAS, RIBAS, Luiz Otávio. Direito Insurgente e Pluralismo Jurídico: assessoria jurídica de

movimentos populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-2000). Dissertação (Mestrado em Direito).

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2009, p. 43). 421

Hoje autodenominado de Instituto Latino Americano para uma Sociedade e um Direito Alternativo (ver em:

<http://ilsa.org.co:81/>; acesso em 10 mai. 2011). Em artigo, Rojas refere-se ao ILSA pelo nome “Associação

Interamericana de Serviços Legais” (ROJAS, Fernando. Comparación entre los tendencias de los servicios

legales em Norteamérica, Europa e América Latina. Primeira Parte. EL OTRO DERECHO, Nº 1. Agosto de

1988, ILSA, Bogotá D.C., Colombia, p. 11). A leitura sobre a (breve) história do ILSA, me permite aferir que a

mudança dos significados dados à sigla (ILSA) não turva sua missão de “[pretender] promover un entendimiento

crítico del derecho como expresión de la compleja dinámica de las luchas sociales y populares en América

Latina. La institución promueve una comprensión compleja de la teoría y la práctica de los derechos humanos,

con especial énfasis en los derechos económicos, sociales, culturales y ambientales, desde un enfoque de

integralidad. ILSA ha venido construyendo nociones alternativas del derecho que permitan generar procesos de

exigibilidad jurídicos y sociales con el objetivo de contribuir al fortalecimiento de las organizaciones y los

movimientos sociales en sus luchas por el reconocimiento y la realización de sus derechos”. (Informação

disponível em <http://ilsa.org.co:81/node/40>; acesso em 10 mai. 2011). No entanto, essa aferição é inicial, haja

vista o meu não acesso a informações mais amplas acerca do histórico do ILSA no decurso da presente pesquisa.

Para ver um breve relato da história do ILSA, ir em: <http://ilsa.org.co:81/sites/ilsa.org.co/files/Historia.pdf>;

acesso em 10 mai. 2011. 422

Informações disponíveis em: <http://ilsa.org.co:81/node/1>; acesso em: 01 Jun 2010. Luiz Otávio Ribas

descreve que: “esta entidade sempre atuou como uma rede de profissionais do direito em todo continente; além

dessa relação regional, mantém uma interlocução frequente com ambientes universitários dos Estados Unidos da

América e da Europa. Em virtude disso, maneja conceitos ligados ao movimento de Acesso à Justiça e Direitos

Humanos [...]. No Brasil, existe um intercâmbio forte com o ILSA, principalmente por parte dos professores

Page 172: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

171

Em 1970, Boaventura de Sousa Santos realizou uma pesquisa empírica sobre o

pluralismo jurídico presente na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, Brasil, como parte de

um programa de doutoramento em Sociologia do Direito da Universidade de Yale, Estados

Unidos; a favela, à época, foi por ele apelidada de “Pasárgada”423

. Segundo Luiz Otavio

Ribas:

[Miguel Pressburger] critica a pesquisa de Boaventura de Sousa Santos realizada em

favelas do Rio de Janeiro na década de 1970, em primeiro lugar, porque “a tese

acadêmica não foi produzida no Brasil, apesar da pesquisa ter-se realizado aqui,

merecendo reparos por não expressar nenhuma realidade concreta, e sim um mixing

de duas ou três favelas com realidades distintas”; segundo, porque, além dos estudos

sobre as relações jurídicas alternativas em grupos camponeses e favelados, deveriam

ser lembrados trabalhos enfocando essas relações em remanescentes povos

indígenas. Contudo, reconhece a importância deste estudo para a advocacia popular,

por ter colocado em confronto a produção jurídica estatal e a não estatal, seja fora do

Estado, seja paralela ao Estado ou mesmo contra o Estado, o que acabou por abrir

novos horizontes no “próprio (re)pensar o direito, ou seja, desafiando a estratificação

da ciência do direito”.424

Wolkmer expressa que, no panorama do pensamento jurídico crítico,

Ainda que não se possa apontar a consagração de um núcleo ou movimento crítico

do Direito em Portugal, [Boaventura de Sousa Santos] [...] em suas últimas obras [...]

tem examinado temas de natureza crítico-interdisciplinar [sobre diversas abordagens,

como] o uso contra-hegemônico do Direito [...].425

Não há homogeneidade de pensamento entre os vários teóricos do pensamento

jurídico crítico. Assim também é importante considerar que “mesmo os advogados populares

divergem em relação ao conteúdo de sua atividade, principalmente no tocante à ética, à

educação popular e ao conceito de direito. [...] Além disso, cada uma das teorias representa

uma forma diferente de se relacionar com o direito”.426

universitários, mas também por muitos profissionais do direito”. (RIBAS, Luiz Otávio. Direito Insurgente e

Pluralismo Jurídico: assessoria jurídica de movimentos populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-

2000). Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC, 2009, p. 38). 423

Ver um relato da pesquisa no capítulo 4 (El derecho de los oprimidos: la construcción y la reproducción de la

legalidaden Pasárgada) e no capítulo 4, segunda parte (Frente-al-espejo: Relaciones entre las percepciones a las

que llamamos identidade: haciendo investigación em las favelas de Río de Janeiro), presentes em SOUSA,

Boaventura de Sousa. AÑÓN, Carlos Lema (Trad.). Sociología Jurídica Crítica: para un nuevo sentido común

en el derecho. Bogotá: ILSA, 2009, p. 131-251. 424

RIBAS, Luiz Otávio. Direito Insurgente e Pluralismo Jurídico: assessoria jurídica de movimentos

populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-2000). Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade

Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2009, p. 45; o autor cita falas de Pressburger presentes em sua

obra: PRESSBURGER, Miguel. Direito, a alternativa. Em: ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – RJ.

Perspecivas sociológicas do direito: 10 anos de pesquisa. Rio de Janeiro: Thex/OAB-RJ/Universidade Estácio

de Sá, 1995, p. 27-31. 425

WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008,

p. 60, 66. 426

RIBAS, Luiz Otávio. Direito Insurgente e Pluralismo Jurídico: assessoria jurídica de movimentos

populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-2000). Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade

Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2009, p. 123. Destaco que a observação de Ribas em relação às

várias percepções dos advogados foi também por mim observada no decorrer das minhas experiências

acadêmicas e profissionais em AJP, no entanto, quanto ao(às) advogados(as) envolvidos(as) na presente pesquisa

Page 173: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

172

No campo do Direito, em meio a essa pluralidade, Luis Alberto Warat assinala

algumas características comuns, ao declarar diversas aproximações entre essas correntes,

dentre as quais destaco:

a) mostrar os mecanismos discursivos a partir dos quais a cultura jurídica converte-

se em conjunto feitichizado de discursos;

b) denunciar como as funções políticas e ideológicas das concepções normativistas

do Direito e do Estado encontram-se apoiadas na falaciosa separação do Direito e da

Política e na utópica ideia da primazia da lei como garantia dos indivíduos;

c) rever as bases epistemológicas que comandam a produção tradicional da ciência

do Direito, demonstrando como as crenças teóricas dos juristas em torno da

problemática da verdade e da objetividade cumprem uma função de legitimação

epistêmica, através da qual pretende-se desvirtuar os conflitos sociais, apresentando-

os como relações individuais harmonizáveis pelo Direito.427

Em meio às tão diversas tessituras, na trança dos bilros, surgem conceitos possíveis

como respostas à pergunta “afinal, o que significamos como assessoria jurídica popular?”.

Rojas, sobre as (im)possibilidade de se condensar em um conceito a significância dos novos

serviços legais, explicita:

[...] “nuevo” es una expressión que se queda corta, em realidade no refleja más que

la heterogeneidade del fenómeno. Indudablemente es difídil encontrar el común

denominador político de los nuevos servicios legales más allá de la preocupación

corriente por justicia y democracia. Las ambiguidades y discrepâncias aparecen tan

pronto como se intenta definir colectivamente el concepto de nueva democracia. Se

exponen propuestas divergentes cuando se trata de especificar las estratégias para

alcanzar la meta del nuevo orden. Aunando tradiciones políticas que provienen de

diferentes corrientes del pensamento, los nuevos servicios legales son toda vía uma

diáspora de diversas influencias, um fenómeno social significativo em cuanto busca

y lucha por estabelecer su própria identidad.428

As pesquisas realizadas pelo ILSA, por Eliane Junqueira e Celso Campilongo429

citadas em passagens anteriores contextualizam e explicitam raízes históricas e conceituais em

percebi confluências em relação aos sentidos atribuídos à educação popular e à ética em seu trabalho (ainda que

esta última não tenha sido abordada diretamente nesta pesquisa). Percebi diversidade de visões, não dissonantes

necessariamente, no que tange aos vários significados atribuídos ao Direito, conforme demonstrei no capítulo 4. 427

WARAT, Luis Alberto. A Produção Crítica do Saber Jurídico. In: PLASTINO, Carlos A. (org). Crítica do

Direito e do Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1984, p.21-22. 428

ROJAS, Fernando. Comparación entre los tendencias de los servicios legales em Norteamérica, Europa e

América Latina. Primeira Parte. EL OTRO DERECHO, Nº 1. Agosto de 1988, ILSA, Bogotá D.C., Colombia,

p. 15. 429

A autora e o autor citados não realizam mais pesquisas sobre Assessoria Jurídica Popular. Campilongo, em

seu último livro (CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e Diferenciação Social. São Paulo: Saraiva, 2011),

aponta a necessidade de uma releitura teórica da Assessoria Jurídica Popular, tecendo breves considerações e

inferências, não constituindo respostas a essa releitura que ele mesmo incita. Contemporaneamente, cito como

referências teóricas sobre o tema: Jacques Alfonsin e outros jovens pesquisadores(as) como Assis da Costa

Oliveira, Christianny Diógenes, Flávia Carlet, Leandro Franklin Gorsdorf, Luiz Otávio Ribas, Vladimir Luz,

Ricardo Prestes Pazello, dentre outros, provenientes de Projetos de Extensão em Assessoria Jurídica Popular e/ou

da Advocacia Popular.

Page 174: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

173

que se densificam as diversas experiências em AJP, contudo novas realidades na

contemporaneidade incitam outros estudos acerca da Assessoria Jurídica Popular430

.

No esforço teórico de definir a Assessoria Jurídica Popular, Maia aponta os seguintes

pressupostos da AJP: “a) a compreensão de que o Direito é um instrumento de transformação

social; b) a noção ampla que o movimento tem sobre o direito de acesso à Justiça; c) a defesa

da existência de um Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo431

; e, d) a Educação

Popular como abordagem pedagógica para educação jurídica emancipatória”432

.

Luiz Otávio Ribas define a advocacia popular como “experiências de advogados

populares, de estudantes, de professores e outros militantes dos direitos humanos, na busca do

acesso à justiça”433

, explicitando-a no sentido de ser uma:

[...] prática jurídica insurgente desenvolvida por advogados na representação judicial

de grupos e movimentos populares. Não se limita à assistência jurídica tradicional,

mas trabalha com a assessoria jurídica popular, voltada para um trabalho comunitário

430

Entre essas novas realidades, no Direito, podemos citar a atual cultura constitucionalista no Brasil, a

Constituição Federal de 1988, considerada como o centro do ordenamento jurídico brasileiro, as novas relações

com o Poder Judiciário advindas da judicialização de determinadas causas e da nova hermenêutica

constitucional, a busca pela concretização dos direitos fundamentais, os novos modos de atuação da Defensoria

Pública e do Ministério Público junto a pessoas em condições de vulnerabilidade e causas jurídicas de direitos

difusos e coletivos (sobre esse último ver as 100 Regras de Brasília sobre o Acesso a Justiça de Pessoas em

Condições de Vulnerabilidade, especialmente as páginas 5 e 6 – conceito de pessoas em situação de

vulnerabilidade – disponível em: <http://blogdovladimir.files.wordpress.com/2010/07/100-regras-de-

brasilia.pdf>; acesso em 23 mai. 2011); no diálogo entre o Direito e outros ramos do conhecimento, emergem

outras questões ainda a serem compreendidas também pela Assessoria Jurídica Popular, dentre as quais cito

como exemplos: as novas relações capitalistas no campo, o agronegócio, os megaempreendimentos (turísticos,

por exemplo), a globalização econômica do capital financeiro e a nova face dos conflitos socioambientais; as

novas percepções acerca da Identidade, Diferença, Interculturalidade, Territorialidades. Atentando-se para outros

aspectos, Campilongo, em seu texto “Assessoria Jurídica Popular: falsa promessa?”, analisa novas realidades no

Direito, na Política e na Economia que interagem com AJP instigando a “reconstrução teórica das assessorias

jurídicas populares”. (CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e Diferenciação Social. São Paulo: Saraiva,

2011, p. 64). No referido texto o autor dirige suas análises para aspectos mais ligados a estudos sobre os Direitos

de Desestabilização, a Análise Econômica do Direito e a Teoria dos Sistemas. Conferir em: CAMPILONGO,

Celso Fernandes. Assessoria Jurídica Popular: falsa promessa? In: CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e

Diferenciação Social. São Paulo: Saraiva, 2011, p.54-64. Quanto a possíveis estudos e pesquisas sobre a

Assessoria Jurídica Popular, Luz instiga que se realize a “problematização mais profunda acerca das interações

criativas entre os demandantes, a legitimidade, o direito posto e a prática dos serviços legais utilizados”. (LUZ,

Vladimir. Assessoria Jurídica Popular no Brasil: Paradigmas, Formação Histórica e Perspectivas. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 11). 431

Tal como propõe Antônio Carlos Wolkmer, segundo o qual “à cultura legal-estatal, contrapõe-se um modelo

de pluralismo concebido a partir de outro modo de conceber a realidade e uma outra ética pelo refluxo político e

jurídicos de novos sujeitos [novos movimentos sociais] – os coletivos; pelas novas necessidades – os direitos

construídos pelo processo histórico; e pela reordenação da Sociedade Civil – o deslocamento normativo do

centro para a periferia, do Estado para a Sociedade, da lei para os acordos, arranjos e negociações. É a dinâmica

interativa de um espaço público aberto, democrático e compartilhado; [...] por fim, o reconhecimento de outro

paradigma cultural de validade para o Direito, será representado por nova espécie de pluralismo, designado como

pluralismo jurídico comunitário-participativo”. (WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico:

Fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3. ed. São Paulo: Alfa Ômega, 2001, p. 219; 360-361). 432

MAIA, Christianny Diógenes. Assessoria Jurídica Popular: teoria e prática emancipatória. Dissertação

(Mestrado em Direito). Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, 2006, p. 58. 433

RIBAS, Luiz Otávio. Direito Insurgente e Pluralismo Jurídico: assessoria jurídica de movimentos

populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-2000). Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade

Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2009, p. 55.

Page 175: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

174

e lutas coletivas por direitos, vinculada a expressões como serviços jurídicos

inovadores, alternativos, insurgentes etc. 434

Sobre uma definição de Assessoria Jurídica Popular, Ribas descreve:

A assessoria jurídica popular, amplamente concebida, consiste no trabalho

desenvolvido por advogados populares, estudantes, educadores, militantes dos

direitos humanos em geral, entre outros; de assistência, orientação jurídica e/ou

educação popular com movimentos sociais; com o objetivo de viabilizar um diálogo

sobre os principais problemas enfrentados pelo povo para a realização de direitos

fundamentais para uma vida com dignidade; seja por meio dos mecanismos oficiais,

institucionais, jurídicos, extrajurídicos, políticos e da conscientização. É uma prática

jurídica insurgente desenvolvida principalmente no Brasil, nas décadas de 1960 até

hoje, por advogados, estudantes e militantes de direitos humanos, voltada para a

realização de ações para o acesso à justiça, num trabalho que mescla assistência

jurídica e atividades de educação popular em direitos humanos, organização

comunitária e participação popular, com grupos e movimentos populares. 435

Refletindo sobre uma experiência em Assessoria Jurídica Popular, a do Escritório de

Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA), Marcio Alan

Moreira e Gabriela Zaupa Veloso discorrem:

O EFTA compreende a Assessoria Jurídica Popular (AJP) como um trabalho que

busca a emancipação social através da intervenção judicial e da educação popular.

Ele a enxerga, pois, como um conjunto de práticas e princípios destinados ao povo –

povo aqui é entendido como a parcela da população oprimida pela relação de

dominação classista, patriarcal, racista, homofóbica e geracional de nossa sociedade.

[...]. [A AJP] tem o papel de pressionar o campo jurídico; reconstruir o espaço do

Direito enquanto espaço político – lugar de cidadania – e buscar uma

profissionalização prático-teórica de libertação da opressão e de satisfação de

necessidades existenciais.436

Luz diz que, na definição de Assessoria Jurídica Popular, “a ideia chave parece estar

visível no fato de que a advocacia militante sempre esteve intimamente ligada à necessidade

434

Em 2009 o autor desenvolveu uma pesquisa em cuja “metodologia pretendeu-se investigar o fenômeno do

pluralismo jurídico na prática da advocacia popular dos grupos de referência em defesas políticas no Judiciário

de grupos e movimentos sociais, especialmente de ocupações urbanas e rurais. Para isso analisou-se vasta

documentação de petições e processos judiciais do arquivo profissional dos advogados, procurando averiguar a

fundamentação jurídica utilizada em questões políticas radicais; também escritos dos próprios advogados, como

livros, artigos científicos e de opinião, para perceber a fundamentação teórica de seus discursos. Ainda foram

feitas entrevistas com grupos envolvidos nos casos judiciais, especialmente os movimentos sociais, operadores

do Judiciário e advogados, com o objetivo de perceber o conteúdo transformador da prática na formação de um

pluralismo jurídico popular e insurgente”. (RIBAS, Luiz Otávio. Direito Insurgente e Pluralismo Jurídico:

assessoria jurídica de movimentos populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-2000). Dissertação

(Mestrado em Direito). Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2009, 2009, p. 15). 435

RIBAS, Luiz Otavio Ribas. O que é assessoria jurídica popular? Texto publicado em

<http://assessoriajuridicapopular.blogspot.com/p/o-que-e-assessoria-juridica-popular.html>; acesso em: 03 Jun

2010. 436

MOREIRA, Márcio Alan Menezes; VELOSO, Gabriela de Araújo Zaupa. Advocacia Popular: percursos

teóricos e práticos na defesa de direitos humanos. In: MOREIRA JÚNIOR, José Ilton Lima; FERREIRA, Maria

de Lourdes Vieira; GOMES, Patrícia de Oliveira (Orgs.). Práxis em Assessoria Jurídica Popular e Direitos

Humanos no Ceará: Experiências do Escritório Frei Tito de Alencar. Fortaleza: INESP, 2010, p. 45; 50. Outro

relato sobre a experiência do EFTA em AJP pode ser encontrado em: MAIA, Christianny Diógenes. Assessoria

Jurídica Popular: teoria e prática emancipatória. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Federal do

Ceará (UFC), Fortaleza, 2006, p. 102-107.

Page 176: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

175

de um contato real e efetivo com [os assessorados] [...] na tentativa de perceber, sentir e captar

sua linguagem própria”. Pressburger, no início da década de 1990, relatou o encontro entre os

movimentos sociais e a assessoria jurídica, dizendo:

Deste encontro vem surgindo a construção de uma nova concepção de assessoria

jurídica, e a fecundidade desse processo está no aprendizado recíproco entre os

advogados dedicados aos movimentos populares e os próprios movimentos ao se

apoiarem em suas assessorias jurídicas.437

Leandro Franklin Gorsdorf fala que:

A importância da assessoria jurídica desponta com a formação de uma geração de

juristas (advogados, professores, promotores, juízes) que passam a ser relevantes

para a discussão do acesso aos direitos no âmbito dos movimentos sociais. Permite-

se a construção de uma ideia de direitos humanos de forma dialética, em razão do

diálogo de dois mundos, dos movimentos sociais e do assessor jurídico.438

Compreendo que, na busca pela compreensão da Assessoria Jurídica Popular, como

uma práxis consolidada, importa, pois, seguir caminhando não no intuito de determinar uma

definição como modelo ou única experiência possível em Assessoria Jurídica Popular, mas

como uma busca por pistas investigativas que possibilitem iluminar com mais uma cor o rico

prisma de experiências possíveis em AJP e, nesse caminho investigativo, contribuir com a

concretização da inter-relação dos Direitos e Movimentos. Com “coragem”439

, é preciso

“conhecer para libertar”440

.

Nos próximos itens deste capítulo buscar-se-á investigar a relação entre assessores e

movimentos assessorados, as suas concepções sobre a Assessoria Jurídica Popular e as

estratégias de atuação traçadas na AJP. A renda que teço faz-se no desenho traçado também

com suporte na perspectiva dos(as) advogados(as) populares pesquisados(as) e dos

movimentos por ele(as) assessorados. A busca pelo conhecimento realiza-se, pois, no encontro

entre saberes diversos.

437

PRESSBURGER, Miguel. A Construção do Estado de Direito e as Assessorias Jurídicas Populares. In:

CAMPILONGO, Celso; PRESSBURGER, Miguel. Discutindo a Assessoria Popular. Coleção “Seminários” n

15. Rio de Janeiro: Instituto Apoio Jurídico Popular, 1991, p. 37. 438

GORSDORF, Leandro Franklin. Conceito e sentido da assessoria jurídica popular em direitos humanos. In:

FRIGO, Darci e outros (Orgs.). Justiça e Direitos Humanos: experiências de assessoria jurídica popular –

Curitiba, PR. Curitiba: Terra de Direitos, 2010, p. 10. 439

Exortação usada em diversas oportunidades, em textos e falas de Jacques Alfonsin. “‘Vamos lá. Coragem’.

Assim, quase com um grito, o professor e mestre Jacques Alfonsin encerrou sua fala [...]” (disponível em:

<http://www.cedefes.org.br/afro_print.php?id=3051>; acesso em 11 mai. 2011). 440

Segundo as lições de Paulo Freire.

Page 177: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

176

6.2 “Vamos caminhando, aquí se respira lucha”441

: a Assessoria Jurídica Popular na

perspectiva de movimentos populares

Em uma das incursões a Curral Velho, era noite e alguns/mas moradores(as) foram

chegando. Havia dito que a visita, sem a companhia do advogado, tinha a pretensão (entre

outras) de escutá-los(as) sobre o trabalho de assessoria jurídica popular ali realizada442

. A roda

se formou no Encante do Mangue443

e o diálogo se iniciou. Em meio às palavras ditas e

percebidas, um pescador falou a sua definição de advogado popular:

[...] tem advogado aí gente, que ele começou do nada viu? Mas de tanto ele não

respeitar o trabalho viu, ele não respeita ném a função que ele exerce [...]. E tem

mais uma outra coisa, ele resolve tudo lá, nem vem na casa da pessoa conhecer o

problema da pessoa, tá entendendo? Ném vem. Só diz assim: Tal dia, traz isso, traz

documento tal, aí a pessoa vai e leva. Óia tal dia venha pra cá, traz documento tal e

nem vem na casa da pessoa ver a situação de perto entendeu? Eu não vou comparar,

eu não tô aqui dizendo, não é porque eu tô na frente de vocês [...], não é por causa

disso não, e né porque o [Luiz Gama] tá aqui com a gente não, é muito pelo

contrário, é porque eu tô vendo que o trabalho [dele] tem muita diferença do que

vem acontecendo por aí, porque é a pessoa que visita, a pessoa que vê a situação,

muito embora, ele cobre pelo trabalho dele, mas se ele cobrar é, é uma cobrança

digna, tá entendendo? [...] no caso [...] dele e de outros que tá no... né? Eu acho que

vale a pena, ele entende, ele sabe, ele quer saber, num é... é isso que eu tô dizendo,

ele não quer simplesmente ver o sucesso dele na rede, ele quer compartilhar e ver de

perto a situação, pra ele chegar na rede e fortalecer o trabalho dele, ele tem que ser

conhecedor de perto, tá entendendo? Pronto, é por isso que eu digo que é muito

diferente, e como é diferente. A diferença entre, é entre este trabalho aí com essa

outra parte, meu Deus, tem muita diferença. [...] é mesmo viu.

Nas falas comunicadas em Curral Velho, nesse e em outros dias, alguns aspectos

parecem marcar as impressões de moradores(as) acerca da singularidade da assessoria jurídica

praticada por Luiz Gama: a) a proximidade, as visitas por ele realizadas, o diálogo com a

441

Trecho da música Latinoamérica, Calle 13. 442

Nessa oportunidade, a roda de conversa foi realizada com a presença de Luciana Nogueira Nóbrega (vide nota

48). 443

“Para resistir à expansão da carcinicultura em seus territórios, a comunidade [de Curral Velho] decidiu

construir em uma das áreas de interesse de empresários para instalação de viveiros de camarão, o Centro de

Educação Ambiental e Turismo Ecológico: Encante do Mangue – um espaço comunitário de reuniões e

mobilizações entre os moradores locais. Segundo senhor Raimundo, membro da diretoria da Associação de

Marisqueiras e Pescadores de Curral Velho, sem o Centro, a comunidade não resistiria com a mesma força à

cobiça dos empresários: “Se a gente não tivesse construído este Centro aqui, hoje aqui seria um viveiro de

camarão, e talvez nem as casas que continuam aqui existissem mais””. (Informação disponível em

<http://www.terramar.org.br/oktiva.net/1320/nota/159910>; acesso em 10 jun. 2011). Construído no meio do

salgado, como uma (re)afirmação do território de Curral Velho pertencente àquela comunidade e como símbolo

de luta pela defesa dos manguezais da Praia de Arpoeiras, o Centro de Educação Ambiental, Encante do Mangue,

serve também como local de hospedagem para visitantes e de encontro e reuniões da comunidade. Para conhecer

o local e um pouco de sua história, ver reportagem veiculada no Jornal Bom Dia Ceará em 14 abr. 2009,

disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=n2hkTqn6Hkw>; acesso em 23 mai. 2011.

Page 178: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

177

comunidade em situações informais e cotidianas444

, a busca pela apreensão da realidade

vivenciada por Curral Velho e por compreender as histórias e as relações vivenciadas no lugar

com base nos sentidos dados pelos(as) próprios(as) moradores; b) a confiança no importar-se

com a comunidade (por parte do advogado), a certeza de que Luiz Gama busca contribuir com

o grupo, a negação de que o advogado estaria ali apenas como meio de auferir ganhos (seja o

puro reconhecimento pelo trabalho ou em busca de recursos materiais).

Sobre a existência de uma rede de advogados(as) populares, demonstram, em alguns

momentos, ter disso a ciência, ainda que não tenham, em nenhuma fala, analisado a atuação da

rede ou se referido a RENAP-CE445

.

A importância da assessoria jurídica é expressa em falas como:

Um advogado, desses que trabalham aqui com a gente, tem sido uma peça

fundamental no nosso trabalho. [...] O povo tem se empenhado de corpo e alma

nessa história446

, ele sempre tá em alerta e onde tem as audiências, sabemos que o

[Luiz Gama] está do nosso lado. Só ele e três/ quatro advogados particulares447

.

Então eu acho que o papel do advogado é fundamental sim, mas quando se empenha

em trabalhar em cima das causas.

Ao serem inquiridos sobre qual o papel do(a) advogado(a), comparações são feitas

em suas falas entre um(a) advogado(a) em quem confiam e outro(a) a que o grupo opõe

resistência:

[...] o advogado que defende as causas do povo, a gente pode confiar no trabalho

dele, mas existe advogado pra trabalhar com esses políticos que comem nosso

dinheiro todo, mete no bolso, na cueca, desvia nosso dinheiro [...]. Existe o que

trabalha pelo direito e o que trabalha pelo dinheiro. Eu não entendo né, mas tá dentro

do que eu sei.

Existe o advogado pra ajudar a sociedade e outro para atrapalhar. É o tipo da coisa,

se trabalhassem só em cima do direito, tudo bem, mas uma parte infelizmente busca

outro caminho.

[Pesquisadora] Quando vocês imaginam um advogado vocês imaginam o quê?

[Moradora] Eu tenho essa imaginação na minha cabeça que sempre o advogado,

sempre ele quer comer... [...] porque quando ele quer entrar num caso ele sempre ele

444

No Encante do Mangue, caminhando pelo mangue, andando de barcos pelas gamboas, (re)conhecendo a

comunidade, indo a lugares demarcados como importantes para o grupo (como a casa de praia onde realizam

suas festas e descanso), visitando moradores(as)... 445

Observei que algumas lideranças indígenas mantêm contato com a RENAP-CE como rede. O movimento que

mais demonstrou (em entrevistas e em observações realizadas) apropriar-se das possibilidades jurídico-políticas

da RENAP-CE foi o MST. “[...] os advogados do MST, principalmente aqueles que fazem parte da RENAP, eles

têm uma militância na luta” (fala de um integrante do MST no Ceará em entrevista realizada nesta pesquisa).

Creio que a causa disso reside no fato de que a RENAP Nacional nasceu de uma articulação de advogados

voltados a conflitos de terra ligados ao MST e a Comissão Pastoral da Terra Nacional. Aqui no Ceará o primeiro

articulador da RENAP foi um advogado do MST. 446

A “história” em que se empenham são as ações de resistência e defesa da comunidade de Curral Velho em

relação ao território onde vivem e o ecossistema manguezal que o integra. 447

Referindo-se a outros(as) advogados(as) da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares no Ceará,

que tiveram contato com Curral Velho por meio de Luiz Gama.

Page 179: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

178

não sai perdendo né? Sempre quem sai perdendo somos nós, eu tenho essa

imaginação na minha cabeça dessa jeito. Eles são sempre os comelão.

[Pesquisadora] E o advogado popular também é um desses advogados, ou ele é

diferente?

[Pescador] Eu acho que ele seria diferente, até porque ele tá é no meio da gente,

sabendo da nossa situação, é diferente de um outro que tem alguma coisa né? E ele

sabe que a gente não tem nada e ele faz questão de querer ajudar, dificilmente

quando se fala de advogado popular, ele vai querer é tirar a ultima camisa que a

gente tem, porque a maioria dos advogados, eles são assim, eles são muito

interesseiros, então eu acho que, se eu sou um advogado, e eu me sinto que eu devo

defender vocês, uma comunidade que não tem renda mensal, num tem tanta coisa,

então eu vou querer ajudar... Então eu acho assim que pra mim eu me sinto no meio

dum povo que faz de conta que são meus, que são meus parentes, e eu quero ajudar,

então eu acho que é isso, mas que a maioria deles é assim, mas se ele se sente um

advogado popular, ele não faz isso, ele não é tão agressivo por essa parte, de querer,

de ser como a minina disse, ser tão comelão né, ele quer ajudar, então eu é o que eu

entendo né?

O imaginário do(a) advogado(a) como um “negociante de causas” transparece nessas

falas. Ainda que os(as) assessorados(as) reconheçam a “cobrança digna” pela atuação

advocatícia, exprimem que a relação de ganhos com as causas não está em primeiro plano na

atuação de Luiz Gama e que este não é “comilão”.

Outros aspectos, contudo, mais ligados à vivencia deles junto a Luiz Gama, aparecem

nas diferenciações expressas: a) a percepção de que o trabalho do advogado popular liga-se às

“causas do povo”, “pra ajudar a sociedade”, um “trabalho pelo direito”, interconectado com

outras questões além da atuação local em Curral Velho; b) o estabelecimento do vínculo de

confiança entre a comunidade e Luiz Gama também por causa desse tipo de trabalho

anteriormente citado, e não só pela compreensão do advogado sobre a realidade vivenciada

pela comunidade e proximidade com os(as) assessorados(as) expressos em outras falas; c) a

identificação (“me sinto no meio dum povo que faz de conta que são meus, que são meus

parentes”), a indignação (“sinto, que devo defender vocês”) e a vontade do advogado de

ajudar são citadas como causas de aproximação deste com a comunidade de Curral Velho, em

um exercício de compreensão do trabalho do advogado por parte de um pescador de Curral

Velho, esforçando-se para perceber a subjetividade de Luiz Gama como assessor jurídico

popular.

Ao serem indagados sobre o que sentem falta no trabalho de Luiz Gama, muitos(as)

responderam: “conviver mais”, “estar mais dentro da nossa realidade”, “conhecer Curral

Velho mais de perto”. A assessoria jurídica popular em Curral Velho faz-se de modo não

sistemático. O assessor costuma ir à comunidade para realizar atividades específicas (ida a

Page 180: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

179

audiências judiciais ou audiências públicas, por exemplo) ou em momentos em que os

conflitos são acirrados por variadas causas448

.

A ausência sentida de um trabalho mais contínuo expressa também o reconhecimento

da importância da atuação de Luiz Gama para Curral Velho; tanto em fortalecer o trabalho já

iniciado, ao dizerem que “os processo andariam mais rápido”, como em potenciais atuações

do advogado em “diversos projetos”, como dito genericamente pela comunidade ao ser

questionada sobre o porquê da necessidade de maior presença do advogado.

Luiz Gama constituiu um vínculo de assessoria jurídica com a Associação de

Pescadores e Marisqueiras de Curral Velho, e, ao aportar na comunidade, o advogado deparou

uma sólida organização comunitária.

Nessa confluência, ainda que reconheçam a atuação de Luiz Gama no fortalecimento

de suas ações, em nenhum momento ligaram as lutas reivindicativas e de resistências

realizadas pela comunidade à presença de um advogado. Os(As) moradores(as)

pesquisados(as) demonstram acreditar que a organização deles(as) é a principal força motriz

na defesa do território e do manguezal. Sobre isso, na letra de uma canção entoada por um

pescador, escuto:

Vamos contar um pouco de nossa história, que iniciou em 99./Vamos contar um

pouco de nossa história que iniciou em 99./ A nossa luta se iniciou assim, com a

carcinicultura trazendo o que há de ruim./ O nosso povo que queriam expulsar

resolveu entrar na luta pr’essa área preservar./ No Curral o povo se mobilizou com

facão, machado e foice o povo se preparou./ Cortaram arame, estaca e tocaro fogo,

empresário dizia esse povo estão louco/ E foi assim que conseguimos barrar a tal

carcinicultura aqui em nosso lugar./ E foi assim que conseguimos evitar que

cortassem todo o mangue aqui do nosso lugar.

As entrevistas449

realizadas com integrantes da Coordenação Estadual do Movimento

dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Ceará e com lideranças indígenas do Movimento dos

Povos Indígenas no Ceará fizeram-me perceber elementos confluentes às falas de

moradores(as) de Curral Velho ligados(as) à associação (local) de marisqueiras e pescadores,

bem como outros elementos apontados. A entrevista realizada com a liderança de um Povo

Indígena assessorado por Luiz Gama apresentou falas bastante confluentes com as de outras

lideranças indígenas entrevistadas.

Expresso que como o trabalho de advocacia popular é algo já antigo e consolidado

junto ao MST e a alguns Povos Indígenas no Ceará a relação estabelecida entre (os)

advogados(as) desses movimentos e assessorados traz elementos não observados em Curral

448

O advogado trabalha em Curral Velho pelo que o próprio define como “militância”, não se vincula a projetos

que possibilitem um trabalho mais sistemático. 449

Com roteiro semiestruturado.

Page 181: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

180

Velho. Na fala de uma das coordenadoras “[...] o MST, desde a primeira ocupação que nós

fizemos no Ceará, mas também no Brasil, nós temos a participação de advogados”; o CDPDH

existe há mais de 25 anos.

Quanto às percepções semelhantes entre os movimentos, o conhecimento da

realidade e a proximidade emergem novamente em diversas falas: “os nossos advogados têm a

consciência da reforma agrária”; “o advogado que tem uma compreensão de uma militância,

de um movimento social, ele tem uma outra visão, ele tem uma outra atuação, e contribui

muito mais”; “é diferente ser um advogado que estuda, acompanha o movimento” 450

.

Bem como tais percepções emergem em diversas falas de lideranças de Povos

Indígenas:

Geralmente o advogado não se aproxima do nosso povo, o advogado popular no

nosso caso, são de fato aqueles que vêm, que chega lá na nossa comunidade e de

alguma forma colaboram.

[...] a Tuíra é mais próxima, vira aquela pessoa que qualquer problema a gente tá

ligando para ela, e, da maneira que for possível, ela faz a defesa. [...] a Tuíra é a

pessoa que está bem mais próxima do povo.

Em questão de conhecer a demanda do povo, tanto juridicamente quanto demanda de

território, de sustentabilidade, a Tuíra conhece muito mais do que os outros. Convive

mais, é mais próxima.

As diferenças é justamente o conhecimento do povo, da cultura, o que conhece tem

todo o argumento, quem não conhece não tem nada de história, não conhece a

realidade. [Cita o Luiz Gama, que] todo final de semana, depois todo mês, ele veio,

conviveu, dormiu, aprendeu a história, você não queira imaginar o que ele aprendeu

com a gente! [frisa bem essa última frase].

O não aferimento de ganhos materiais como principal motivador da atuação

profissional é também explicitado em falas de ambos os movimentos:

O advogado que faz a escolha de ser o advogado popular ele faz uma opção de

classe, política, de projeto de vida, que ele não vai ganhar muito dinheiro, que não

vai ser rico, ele vai viver bem, mas não vai ganhar muito dinheiro porque as

organizações dos trabalhadores não são organizações ricas, ele vai viver uma certa

austeridade.451

[o advogado popular é diferente] de um advogado que tem interesse exclusivamente

econômico, de crescer pela profissão, defendendo empresários ou presidiários que

tem oportunidade de pagar muito bem, que não tem nada ver com vínculos da

comunidade, que tem os seus direitos rotineiramente violados.452

Assim como em Curral Velho, emerge o sentimento de que o/a advogado/a popular

importa-se, indigna-se com a realidade em que se inserem os movimentos: “são advogados

militantes, da luta, e que têm compromisso”; “[há o] compromisso com os trabalhadores, com

450

Falas de integrantes da Coordenação Estadual do MST no Ceará. 451

Fala de integrante da Coordenação do MST no Ceará. 452

Fala de liderança indígena.

Page 182: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

181

suas causas, com suas lutas por justiça, sua defesa”453

; “é uma pessoa que tem uma ideologia,

uma cabeça, um pensamento e uma missão próprias para [...] defender determinados

segmentos da sociedade454

”.

Discorrendo sobre o que caracteriza um advogado popular, uma liderança indígena

diz que “ele carimba sua atuação jurídica com determinadas identidades que ele mesmo

constrói, a partir do público que ele pretende atuar, que é diferente”. Do mesmo modo que o

apontado em Curral Velho, percebe-se que o “importar-se com o movimento” liga-se a um

“importar-se com a sociedade”, “com determinados segmentos”; opções e compreensões

políticas, as quais, aos olhos desses movimentos, se hibridizam claramente com a atuação

jurídica.

Um advogado que atua com movimentos sociais tem que ser identificado com

Movimento Social. Se ele não tiver um espírito militante, ele não sai do canto. Ele

passa até uns dias, mas não aguenta. Por que tem que ter um espírito militante, um

espírito de mudança social, um espírito de classe, de defesa dos direitos dos

trabalhadores, de luta contra as injustiças, de insurgência contra o direito, o direito

que tá aí, do sistema.455

Outras falas desses movimentos remetem à própria ideia de Direito, desde o ensino

jurídico à prática profissional, na qual se fundamenta a ação desses/as advogados:

Essa diferença está na compreensão de fato, de uma visão de direito que não seria

uma visão elitista, porque dentro do direito todos nós sabemos que se pode procurar

a melhor forma possível, eu enquanto estudante de direito, eu entendo que para a

gente estar atuando nessas áreas jurídicas, a gente tem vários caminhos que podem

ser percorridos, e são questões de opção, inclusive.456

A Faculdade de Direito do Ceará ela não prepara o advogado pra ser advogado

popular, prepara pra ser advogado [...] patrimonialista, advogado de divórcio, essas

coisas secundárias, do cotidiano, advogado do setor imobiliário, que ô setorzinho pra

crescer, a especulação imobiliária. Então não tá preparando os advogados pra

defender o povo, então essa é a grande crítica que a gente faz ao curso de direito da

UFC, se não fosse o NAJUC, o CAJU o SAJU e todo o movimento estudantil que

faz surgir lideranças, pessoas comprometidas, o que salva um pouquinho é esse

movimento aí, desses grupos.457

A fala de um(a) morador(a) de Curral Velho, “estar do nosso lado pra defender

nossas causas”, é dita de outro modo por integrantes do MST:

Olha como nós melhoramos no Ceará. Antigamente não tinha direito a nada, fazia o

que queria com os trabalhadores, agora não, vai mexer com um sem terra pra tu ver a

confusão. Então isso aí que é bonito de ver, então é muito importante o papel do

advogado no movimento.

453

Fala de integrante da Coordenação do MST no Ceará. 454

Fala de liderança indígena. 455

Fala de integrante da Coordenação do MST no Ceará. 456

Fala de liderança indígena. 457

Fala de integrante da Coordenação do MST no Ceará.

Page 183: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

182

O estabelecimento de um vínculo de confiança entre o MST e seus assessores

jurídicos passa também pelas seguintes diferenciações expressas pelo MST, agregadas à

preocupação demonstrada pelo movimento de contar com um assessor jurídico que

compreenda os conflitos, as tensões sociais e econômicas existentes na sociedade, e opte pela

construção de interesses voltados ao reconhecimento, defesa, proteção e promoção de Direitos

Humanos458

:

Nós não confiamos em advogados que tem uma formação tradicional de direita.

Esses aí não vão defender, podem em alguma circunstância defender, mas eles vão

estar do outro lado. [...] Não tem a mesma responsabilidade, o mesmo compromisso

de um advogado popular.

Há diferenças. Tem a ver com sua concepção, convicção ideológica. Eu mesma não

vou chegar a um escritório de advocacia e bater à porta querendo contratar o serviço

do advogado para me defender na ocupação. E se esse advogado for o fazendeiro,

como vai me auxiliar?

A autonomia política percebida em Curral Velho na força de sua organização

comunitária desvinculada da atuação do advogado confere outra dimensão na relação jurídico-

política estabelecida entre os assessores jurídicos e o MST-CE ou o Movimento dos Povos

Indígenas no Ceará.

Integrantes do MST apontam que “os advogados discutem sim a pauta política,

porque eles têm que estar por dentro da estratégia política inclusive pra pensar na estratégia

jurídica”, contudo, não há necessariamente uma elaboração conjunta dessa pauta, “quem

define são os trabalhadores”, “eles [os(as) advogados(as)] podem trazer reflexão, mas decisão

não podem”. Por fim, dizem que “há uma troca, principalmente no campo jurídico, muito

importante; agora na questão da pauta política, porque uma não se separa da outra, há também

de [o(a) advogado(a)] qualificar, mas não de decidir”.

Porém, as estratégias jurídicas, se “discute [com os(as) advogados(as)] palmo a

palmo”, “inclusive nós às vezes questiona: “não, isso aí não vai ajudar não”; mesmo não

entendendo do arcabouço jurídico, a gente entende da questão geral; então nós vamos discutir

cada caso [...]”. Como justificativa, os integrantes do MST entrevistados elaboram os

pensamentos seguintes:

Acho que isso tem que ficar bem claro pra não dar problema. Que quem define [a

pauta política] são os trabalhadores, a luta que vão fazer. Então não é o advogado

458

Compreendo o conceito de Diretos Humanos inspirada em Joaquín Herrera Flores, para quem: “[...] o

conteúdo básico dos direitos humanos não é o direito a ter direitos (círculo fechado que não cumpriu com seus

objetivos desde que se “declarou” há quase seis décadas). Para nós, o conteúdo básico dos direitos humanos será

o conjunto de lutas pela dignidade, cujos resultados, se é que temos o poder necessário para isso, deverão ser

garantidos por normas jurídicas, por políticas públicas e por uma economia aberta às exigências da dignidade”.

(FLORES, Joaquín Herrera. GARCIA, Carlos Roberto Diogo (Tradução). A (Re)Invenção dos Direitos

Humanos. Florianópolis: Boiteux, 2009, p. 39).

Page 184: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

183

que manda nos trabalhadores, quem manda na organização são os trabalhadores que

participam dela.

Agora, no que compete à orientação [jurídica], eles fazem isso direto com a gente.

Não da pra você desassociar a pauta do campo jurídico da questão política. Porque

ela tá estritamente ligada. Por que nós ocupamos? Por que você ocupou a terra?

Então tem toda uma questão política. Então você vê o despejo, tem toda uma

situação, uma questão política por trás disso. Então os nossos advogados têm que

estar conjunturados da política, do que o movimento tá pensando, do ponto da

reforma agrária popular, do que o movimento tá discutindo.

Uma coisa é você falar do que escuta falar. Outra coisa é você falar do que conhece e

convive. Isso facilita para os advogados também. Uma coisa é me defenderem por

aquilo que digo que sou. Outra coisa é o advogado me defender pelo que disse e

principalmente pelo que ele conhece de mim. [...] são advogados muito afiados no

ponto de vista de fazer a defesa. Porque defendem uma coisa que estão conhecendo,

sentindo o que é. Então é uma defesa mais coerente e firme, eu acho. É mais uma

defesa cultivada do que uma defesa paga. Os advogados hoje no MST fazem parte

do processo político da organização do próprio movimento.

As falas apontam que nas dinâmicas da relação entre os assessores jurídicos e o MST

ocorre o seguinte: a) a compreensão de que o(a) advogado(a) assessora o movimento, mas

com este não se confunde; b) as decisões políticas são tomadas pelos integrantes dos

movimentos; c) a pauta de discussões políticas, em momentos determinados por integrantes do

movimento, é partilhada com os(as) advogados(as), em processos de diálogos e reflexões

conjuntas, a fim de: c.1) permitir a aprendizagem por parte do(a) advogado(a) acerca da

conjuntura política em questão, pela pré-compreensão por parte do próprio movimento de que

há uma indissociabilidade entre os campos jurídico e político, c.2) possibilitar que o(a)

advogado(a) leve reflexões para os integrantes do movimento sobre a questão em pauta,

consideradas essas (reflexões), pelo movimento, como importantes no processo de tomada de

decisão, inserindo o(a) advogado(a) nos processos políticos de organização do movimento; d)

as reflexões trazidas pelo(a) advogado(a) não são, necessariamente, decisivas, pois “quem

decide é o movimento”; e) as estratégias de atuação jurídica são decididas em conjunto, entre

os integrantes do movimento e o(a) advogado(a), e os integrantes do movimento são sempre

orientados juridicamente por esses(a).

Os integrantes do MST, contudo, destacam que a decisão conjunta das estratégias

jurídicas não acontece com intervenção ou não respeito ao trabalho do(a) advogado(a). Ao

serem inquiridos com a seguinte pergunta “vocês [advogado(a) e movimento] constroem

juntos a estratégia jurídicas?”, as respostas fluem no seguinte sentido:

Quando o caso é complicado, com certeza. Não que a gente interfira para que façam

determinada coisa, até porque a gente vai ao consenso com os advogados. Até

tivemos casos de advogados não concordarem muito, mas eram bem emblemáticos.

Page 185: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

184

[...]. Em outros casos de processos muito complicados também tínhamos de fazer

discussões e tomar decisões. Mas nunca foi conflitante.

Como já transparece na última fala (acima), os integrantes do MST apontam que

essas elaborações não são sempre consensuais, nelas emergindo dissensos entre as orientações

dadas pelo(a) advogado(a) e as demandas do movimento:

Em muitas questões nós divergimos muito, porque embora sejam advogados

populares, mas como eles são formados nesses direitos penais, direito jurídico aí,

eles têm a sua opinião mais baseado também no legal. Tem determinado momento

que nós temos o confronto de ideias […]. Muito dessa questão legal é muito

complicado, porque a lei ela não favorece, em parte não no geral, ela não é feita pra

favorecer a classe trabalhadora, por isso que em alguns momentos a gente tem alguns

embates.

Dinâmicas inerentes à relação jurídico-política similar aparecem nas falas de

lideranças de Povos Indígenas. Tal observação toma como pontos de análise diálogos

realizados com lideranças indígenas entrevistadas:

[Pesquisadora] Na hora de decidir o que escrever num processo prum juiz julgar ou

de decidir o que vai ser numa capacitação, vcs fazem isso junto com a [Tuíra] ou a

[Tuíra] decide sozinha?

[Liderança indígena] Não, faz junto com a [Tuíra].

[Pesquisadora] E na hora de [uma decisão política] vocês conversam com a [Tuíra]

antes ou só depois?

[Liderança indígena] Não, é só com nóis. É uma decisão nossa.

[Pesquisadora] E as estratégias jurídicas, vamos supor, a [Tuíra] discute o que ela vai

escrever junto com vocês?

[Liderança indígena] Por exemplo, quando foi a questão de reintegração de posse,

ela veio na comunidade e a gente autorizou ela fazer a defesa, essa discussão do que

ela vai escrever não.

[Pesquisadora] E quando vocês vão pensar na pauta política de vocês, ou vão pensar

em uma retomada, o melhor momento para uma retomada, algo do tipo, vocês

discutem de alguma forma com a [Tuíra]?

[Liderança indígena] Não!

[Pesquisadora] Vocês só informam depois?

[Liderança indígena] Só informamos depois!

[Pesquisadora] Então ela não tem nenhuma influência sobre a pauta política do

movimento?

[Liderança indígena] A decisão é toda nossa. [Quanto às estratégias jurídicas] O

CDPDH tem várias capacitações na área jurídica, a gente identifica os elementos que

tem que focar mais, uma estratégia, isso a gente já fez várias vezes [...]. Quando a

gente vai fazer uma retomada, a gente não avisa a ninguém [...]. Senão, não dá certo!

Por exemplo, vamos fazer uma retomada e alguém diz, vamos chamar o advogado, a

gente diz: não faça isso e não é legal! Não adianta, a gente tem que fazer mesmo

assim... E depois nos viramos para nos defendermos.

[Pesquisadora] As decisões políticas são de vocês?

[Liderança indígena] É, por que a interferência jurídica ela não pode interferir de fato

no político. Do ponto de vista das comunidades indígenas, uma decisão política ela é

soberana, por que é uma perspectiva de efetivação do que a comunidade entende

como sendo direito da comunidade. Como o meio jurídico não viabilizou o acesso, a

efetividade daquele direito, então há a decisão política de acessar outros meios. A

retomada é uma forma alternativa de se garantir o acesso permanente daquela terra

indígena, que o poder jurídico deveria ter viabilizado e não viabilizou ainda. A gente

não consulta muito não, é uma decisão, um planejamento interno, não tem

Page 186: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

185

interferência externa, de parceiros [...]. Agora quando entra na terra indígena [na

retomada] e tem a iminência de algum conflito, de reintegração de posse, aí sim a

gente tenta organizar uma aliança com os parceiros [...].

[Pesquisadora] E na hora de fazer uma petição, por exemplo, vocês influem no

jurídico?

[Liderança indígena] Influi, porque quem tem o domínio da realidade lá, do local,

são as comunidades. Todas as informações necessárias para compor a petição quem

tem que fornecer é a comunidade. A gente passa as informações, ela redige a minuta

de uma petição, manda pra gente analisar, vê se é aquilo mesmo, se tá faltando

alguma coisa, sugere, adequa, muda o texto, é uma petição que ela sai lá com uma

visão nossa também. [...] A gente não coloca nas mãos dela, “faça isso aqui assim e

assim”, a gente gosta de participar junto também. E pode acontecer o contrário

também. Quando a gente não tem a presença direta de um assessor jurídico a

comunidade pede uma orientação, quando vai entrar direto no Ministério Público,

né? Que não necessariamente tem que ser com a petição de uma entidade que

apresenta ou a própria FUNAI, a comunidade também tem autonomia pra fazer um

documento que vá pro Ministério Público, por exemplo. Aí geralmente solicita

algumas orientações, vê se é aquilo mesmo e tal.

Os diálogos transcritos revelam a autonomia das decisões políticas, “do ponto de

vista das comunidades indígenas, uma decisão política ela é soberana”; as discussões ocorrem

dentro da comunidade, sem consulta feita a “parceiros externos”, como Tuíra. As lideranças

indígenas trazem a percepção de que o jurídico não deve interferir no político, e tal

compreensão parece ligar-se não somente à autonomia dos Povos, e sim também à ideia de um

direito insurgente, pois, se “o jurídico não viabilizar o direito da comunidade”, a retomada e

outras ações políticas apresentam-se como alternativas para garantir o direito à terra e ao

território, ou, nas palavras de outra liderança, “não é legal” (pelo Direito Estatal), mas “a

gente tem que fazer assim mesmo”.

Após a decisão política, os parceiros, entre os quais Tuíra, são acionados em casos de

conflitos ou outros, sendo essa necessidade de participação analisada e decidida pelo

movimento indígena. Tal procedimento, entretanto, não instaura uma relação de

representação, puramente técnico-processual, com a advogada popular que os acompanha,

pois, no momento da atuação jurídica, há um trabalho conjunto entre advogada e movimento.

Pressupondo que quem conhece a realidade (e esta é vista como algo amplo, em que o político

se apresenta como uma das dimensões humanas) é a própria comunidade, há uma elaboração

partilhada, seja das estratégias jurídicas (como apontado por uma das lideranças), ou mesmo

de documentos redigidos conjuntamente (como indicado por outra).

Todos(as) os(as) advogados(as) pesquisados(as) atuam integrados à rede de proteção,

promoção e garantia de direitos, operando junto a organismos estatais de justiça (como

Defensoria Pública Estadual e da União e Ministério Público Estadual e Federal, conforme o

caso). Uma peculiaridade, porém, emerge das falas das lideranças indígenas. Conforme

determina a Constituição Federal, a atuação judicial junto a Povos Indígenas é atribuição do

Page 187: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

186

Ministério Público Federal459

, ao tempo em que norma constitucional compreende a

autonomia dos Povos Indígenas “para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e

interesses”460

.

Ao serem perguntadas sobre quem cuida das questões jurídicas, as lideranças

apontaram ora Tuíra, ora apenas o Ministério Público Federal, além da Defensoria Pública da

União, em alguns casos. Não apresentam, quando inquiridas, nenhum prerrequisito para

acionarem uma ou outro. Algumas falas, no entanto, fornecem pistas para compreendermos os

momentos em que requisitam Tuíra nas ações judiciais:

A Defensoria Pública da União, recentemente nós temos buscado por ela mais para a

questão do direito previdenciário, porque as questões fundiárias, discriminação pela

condição étnica, perseguições, muitas vezes a criminalização de lideranças, ou então

uma liderança ali que está recebendo ameaça de morte, tudo isso é absorvido pelo

Ministério Público Federal, a gente encaminha para a Funai, e a Funai encaminha

para o MPF. O CDPDH é quem vem assessorando juridicamente as comunidades,

orientando em mais casos coletivos, alguns casos individuais que nós consideramos

de repercussão também, e muitas vezes fazendo petições sobre casos que a gente

considera devido a uma repercussão maior, e a gente encaminha tudo isso para o

Ministério Público. [...] Eles agem assessorando as comunidades indígenas e

encaminhando essas demandas para o Ministério Público.

[Pesquisadora] Quem cuida das questões jurídicas do teu povo?

[Liderança Indígena] Dos processo da terra é a [Tuíra], né. Nós chama ela pras

reunião. E a própria FUNAI, né.

[Pesquisadora] E o que tu acha que ela facilita a vida de vocês nessa questão da

terra?

(Liderança Indígena) Na parte da terra é porque ela vai nos canto pra busca

informações prá nós.

[Pesquisadora] E tu acha que ela entende vocês? Tu acha que ela entende o que

vocês querem?

[Liderança Indígena] Eu noto né, num é eu é a comunidade [toda a comunidade acha

que sim].

[Pesquisadora] E quem é que cuida da demanda jurídica do seu povo?

[Liderança Indígena] Não há um grupo que vai responsável por isso, vai mesmo na

pressão, quem está a frente nos conselhos e quem tem mais um entendimento, vai

fazer nossa discussão.

[Pesquisadora] Mas e externamente quem é que cuida? A Defensoria, o Ministério

Público, o CDPDH?

[Liderança Indígena] Aqui nós temos uma salada, quem deveria ser responsável

legalmente seria a FUNAI, e ser comunicada de todos os fatos e ela interpelar isso, e

ela fazer essa ação, é visto que a terra não é nossa, é terra da união, quem é

responsável pela união, a autarquia responsável é a FUNAI, então todos os processos

tem que passar por ela, ela é réu e ela que defende, mas nem sempre a gente

consegue isso por conta da lentidão com que os processos passam por lá, a gente já

perdeu várias ações por conta disso. Em 97 o CDPDH começa a fazer essa discussão

com os povos da região metropolitana [de Fortaleza]. Nesse processo de retomada

459

Constituição Federal de 1988.

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas 460

Constituição Federal de 1988.

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de

seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

Page 188: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

187

que nós tivemos, quando vinha alguma represália, a gente acionava o CDPDH.

Houve uma reintegração de posse de uma retomada que nós fizemos aqui em que a

Tuíra [que na época era estagiária de Direito no CDPDH] ela foi avisada né, que o

posseiro denunciou o cacique como o invasor, foi muita gente, mas só o cacique é

afetado, ele vira o réu. E aí na época, o advogado do CDPDH veio a defender o

[cacique], o [advogado] saiu e ficou para a [Tuíra], [...] aí ela fez a defesa do

[cacique], nós não perdemos, nós ganhamos [...]. O ministério público também, ele

advoga também para gente. [...] [A Tuíra] convive mais, é mais próxima, sempre tem

uma maneira mais particular de conseguir atender as demandas, mas não cai naquela

questão de: “Vai presa um pessoa, liga pra [Tuíra]!”. A gente já sabe que isso aí ela

não vai defender! Isso é questão particular.

[Pesquisadora] Mas em termos de conhecer a realidade de vocês? Você diria que a

[Tuíra] conhece melhor?

[Liderança Indígena] Melhor do que o próprio procurador da FUNAI, do que o

próprio procurador da república.

Com base na análise dessas falas, compreendo que a atuação de Tuíra ocorre nos

casos seguintes: a) questões ligadas ao direito à terra e ao território; b) assessoria jurídica em

sentido amplo, não necessariamente em sua face judicial, em demandas coletivas ou

individuais de repercussão coletiva. Nos discursos transparecem também a percepção do

amplo conhecimento da advogada acerca da realidade onde se insere cada Povo e a defesa das

demandas nascidas nesses Povos por essa apropriação da realidade. A atuação dá-se em

articulação com o Ministério Público e, a depender da matéria em questão, com a Fundação

Nacional do Índio-FUNAI461

.

Nas entrevistas de lideranças indígenas e integrantes da Coordenação Estadual do

MST aparece a prática de formações e capacitações dentre as atividades desenvolvidas

pelos(as) advogados(as) junto aos movimentos assessorados:

[...] o projeto do CDPDH tem algumas capacitações e a gente tem várias

capacitações na área jurídica, a gente identifica os elementos que tem que focar mais,

uma estratégia [...]. Aí a gente já passou por várias capacitações, eu, por exemplo,

faço denúncia pela internet, eu entro no site da procuradoria e faço lá a denúncia,

direto, e aí já cai na mão do procurador, que era a denúncia dos incêndios que

estavam acontecendo, eu passei um e-mail, aí o procurador já enviou um pessoal

para investigar.462

461

“Numa clara mudança de paradigmas, a Constituição foi expressa no artigo 232 ao prever o ingresso dos

índios, suas comunidades e organizações em juízo, sendo partes legítimas para defenderem seus direitos e

interesses. Revogou a necessária assistência do órgão de proteção ao índio [FUNAI] e do Ministério Público, que

deverá, tão só, intervir em todos os atos do processo como fiscal da lei. Reconheceu a possibilidade do índio ser

parte legítima no processo, concretizando o direito de todos de recorrer ao Poder Judiciário na defesa de seus

direitos e interesses, sem qualquer restrição ou interpretação equivocada que poderia ser feita da assistência que

lhe é devida pelo Estado. [...] A FUNAI continua legitimada a prestar a assistência jurídica aos índios e suas

comunidades, através de sua Procuradoria-Geral, defendendo interesses e direitos individuais ou coletivos. [...]

Diante da ampla atribuição da Procuradoria Federal Especializada da FUNAI e da carência de recursos humanos

e materiais é necessário estabelecer prioridades em sua atuação”. (Parecer n 04/PGF/PG/FUNAI/07, emitido

pela Procuradoria Federal Especializada – FUNAI sobre os “Limites de Atuação da Procuradoria da

FUNAI”, assinado por Luiz Fernando Villares e Silva, à época Procurador-Geral da FUNAI, em 2007, p. 8; 28.

Disponível em: <www.funai.gov.br/procuradoria/docs/ArtigoPosseIndigena.pdf>; acesso em 25 mai. 2011). 462

Fala de liderança indígena.

Page 189: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

188

Na fala de integrantes do MST, as atividades de educação em direitos aparecem de

modo mais recorrente:

[...] tem esse trabalho de orientação né, de educação de direitos, desde os direitos

básicos, aos direitos humanos, os direitos à terra, os direitos por que nós lutamos. O

advogado do movimento, ele também tem esse papel formador.

[...] esse é um pouco o papel dos advogados, o papel jurídico, mas também o papel

político quando faz essa educação em direitos humanos.

[...] os nossos advogados têm esse papel também de fazer o trabalho de formação, de

esclarecimentos, de preparação da militância. Por exemplo, diante de uma prisão, o

que você tem que fazer?

Então os advogados também fazem a educação popular. É uma das ações dos

advogados que participam do movimento, fazer essas ações educativas, até nos

acampamentos a gente convoca, nos cursos de formação dos militantes. Toda vida

no Ceará nós tem um curso de formação de militantes que é o Prolongado463

, que

toda vez a gente faz uma semana que é de estudo dessa questão do direito. Baseado

nos princípios da educação popular, eles fazem um processo interessante entre teoria

e prática. Eles fazem oficinas, dramatização, estimulam de várias formas para que a

militância apreenda esse processo jurídico na prática. Eles fazem tudo isso nos

assentamentos, acampamentos. É bem interessante.

[...] os advogados fazem um trabalho popular nos acampamentos, nas lideranças.

Como receber uma reintegração de posse, como garantir seus direitos no dia-a-dia.

Então os nossos advogados fazem muito essa educação popular. A gente tem uma

avaliação que é muito bom e por onde eles passaram, dentro dessa questão da

educação, da formação popular nos nossos acampamentos, isso daí surtiu muito

efeito.

A educação em direitos, as “capacitações na área jurídica” são reconhecidas como

elementos importantes em lutas reivindicativas e de resistências constituídas pelos

movimentos na busca pela concretização de seus direitos.

A observação participante de atividades realizadas junto aos movimentos,

acompanhando os(as) advogados(as), permitiu-me perceber que nos Povos Indígenas as

capacitações se dão com frequência, organizadas não só pelo CDPDH com a constante

participação de Tuíra, bem como por outras organizações (governamentais, não-

governamentais, universidades etc).

E, ainda que não tenha podido estar presente no curso prolongado do ano de 2010

onde Flor de Liz esteve, bem como não tenha percebido a frequência com que os(as)

463

“Os cursos Prolongados são eventos de formação política e escolarização básica para a juventude, criados em

todo o Brasil a partir da década de 90. A proposta concentra-se em fortalecer o movimento em nível regional,

através da formação massiva da juventude proveniente de assentamentos, acampamentos e contextos urbanos,

que preferencialmente estejam fora da escola. Para isso, concretiza uma rotina intensiva de atividades sócio-

políticas que

colocam o jovem em posição de permanente atitude perante o seu grupo”. (VERAS, Clédia Inês Matos. O Curso

Prolongado do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra no Ceará e o Processo de Formação Política da

Juventude. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, 2007,

p. 76).

Page 190: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

189

advogados(as) atuam em capacitações e formações, as falas de integrantes do MST parecem

elaborar a compreensão de que o advogado popular também é um educador em direitos, e que

não realizariam dita educação apenas no curso prolongado, e sim também nas orientações

dadas nos acampamentos, nos assentamentos, junto às lideranças.

A fala de uma integrante do MST explicita a preocupação em se constituir cursos

mais sistemáticos de educação em direitos, e as dificuldades em torno disso:

Tinha um período aqui que foi muito bom. Nós juntávamos estudantes de direito

com advogados e íamos para acampamentos dar cursos. Hoje os advogados vão

muito aos acampamentos discutir, trabalhar sobre uma questão. Mas deveria ser mais

trabalhado sobre isso. Temos pouco tempo. Principalmente no Ceará, precisaríamos

de um coordenador mais político também junto aos advogados para pensar a

estratégia da capacitação com os agricultores. Falta articulação com os cursos de

direito.

A atuação judicial (citada pelo moradores de Curral Velho, lideranças indígenas e

integrantes do MST) e as atividades de educação em direitos e de capacitações na área jurídica

(apontadas pelas lideranças indígenas e integrantes do MST) aparecem como as principais

desenvolvidas pelos(as) advogados(as) populares. Outras atividades ligadas a

encaminhamentos na seara administrativa também são enunciadas pelas lideranças indígenas e

integrantes do MST (como atuação junto a FUNAI ou ao Instituto Nacional de Colonização e

Reforma Agrária-INCRA, por exemplo).

A participação em campanhas e a prestação de “solidariedade jurídica” a outros

movimentos que não contam com assessoria jurídica também são apontadas por integrantes do

MST:

[...] temos que atuar no campo com a sociedade, com as Universidades, com os

grupos de direitos humanos. Então tem estratégias assim, campanhas [...] que o

movimento faz, elas extrapolam a esfera jurídica, eles vão para a esfera política, e os

advogados são sujeitos dessa história, então nas várias campanhas de solidariedade,

nas várias ações. No Estado nós temos sido solidários com várias ações, seja no caso

do Zé Maria464

que nós tamo acompanhando lá na questão do agronegócio [...], então

vários casos o movimento tem esse acompanhamento, de solidariedade jurídica.

Um das lideranças indígenas entrevistada estuda Direito. Na fala de integrantes do

MST surge o Programa Nacional de Educação em Reforma Agrária-PRONERA:

464

Em 21 de Abril de 2010 Zé Maria do Tomé, líder comunitário de São Tomé, pequeno distrito de Limoeiro do

Norte, município localizado no Baixo Jaguaribe, estado do Ceará foi assassinado com 19 tiros. Zé Maria alertava

para o problema da aplicação de agrotóxicos por via aérea, contaminando a água que é distribuída à sua

comunidade, assim como as casas próximas às plantações. “A morte de Zé Maria [...] acirrou os debates acerca

do tema e da gravidade da situação, mobilizando a comunidade, Igreja e suas pastorais sociais, sindicatos,

ambientalistas e movimentos sociais, como o MST que recentemente lançou a Campanha Nacional contra o Uso

de Agrotóxicos e Pela Vida. Criou-se, assim, o Movimento 21, fazendo referência a data do assassinato de Zé

Maria. O movimento reivindica a criação da Lei Federal Zé Maria do Tomé, coibindo a pulverização aérea de

agrotóxicos”. (Informações disponíveis em <http://www.espacobanal.com.br/2011/04/um-ano-da-morte-de-ze-

maria-do-tome.html>; acesso em 25 mai. 2011).

Page 191: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

190

Você sabe que a educação no nosso país ela é um divisor de classe. A terra e a

educação é dois latifúndios, que sempre demarcou a classe. Por isso que essa briga

contra as cotas, pobre e negro não pode entrar na Universidade, isso é uma coisa que

a gente não aceita. Enquanto o PRONERA, que é o Programa Nacional de Educação

em Reforma Agrária que está sendo criminalizado pelo TCU, por que isso? Porque

pobre e o negro não pode entra na Universidade. E nós, pobre e negro, tamo dizendo

“a gente vai entrar”, fazendo a nossa luta legítima. Atualmente há cursos para

exercer a advocacia, mesmo sabendo que nunca vai ser suficiente esse número de

cursos que tem. [...]. Vai dando a oportunidade a filhos de assentados participarem

desses cursos, fazerem parte desses coletivos de médicos, agrônomos, advogados e

tudo mais que vai surgindo no movimento.

No Encontro Nacional da RENAP em Goiás (2010) tive a oportunidade de conhecer

e dialogar com alguns estudantes da turma especial de Direito da Universidade Federal de

Goiás465

. Os diálogos com eles(as) fizeram-me refletir sobre como se dará a relação entre

esses(as) e os movimentos, caso venham a se tornar assessores jurídicos466

. Imersos na

realidade, integrantes dos movimentos, sujeitos na conquista política das demandas

reivindicativas e de resistência, a investigação dessas relações de advocacia popular pode

fornecer novas pistas na compreensão da diversidade de experiências na práxis da Assessoria

Jurídica Popular467

.

Na trança dos bilros, sigo nos diálogos realizados com os(as) advogados(as)

populares pesquisados(as).

465

Sobre a turma especial de Direito da Universidade Federal de Goiás, ver em: MORAIS, Hugo Belarmino de.

Entre a Educação do Campo e a Educação Jurídica: a Turma Especial de Direito da UFG. XV Congresso

Nacional do CONPEDI, 2006, Manaus. In: Anais do XV Congresso Nacional do CONPEDI – Manaus,

Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux, 2006; e MORAIS, Hugo Belarmino de. A dialética entre

Educação Jurídica e Educação do Campo: a experiência da Turma “Evandro Lins e Silva” da UFG

derrubando as cercas do saber jurídico. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas - área de concentração em

Direitos Humanos). Universidade Federal da Paraíba-UFPB, 2011. 466

Outros(as) advogados(as), advindos de movimentos populares, já vem atuando junto a esses. Cito: Joênia

Batista de Carvalho, do povo Wapichana, de Roraima, ouvida no Supremo Tribunal Federal em 2008, no

julgamento da petição (PET nº 3388) que discutiu a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol; e

Juvelino Strozake, advogado do MST, Doutor em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Hélio Monzilar Filho, na época estudante de Direito da

UNICEN (Mato Grosso) escreveu um artigo no qual assim se expressa: “O texto pretende demonstrar as

dificuldades de acesso às instituições de ensino médio e superior enfrentadas pela grande maioria dos estudantes

indígenas que têm intuito de continuar seus estudos e ingressar nas Universidades; propõe-se fazer uma reflexão

atual do problema às autoridades competentes que discutem com mais propriedade a questão, enfrentada pelos

estudantes indígenas, tendo como base minha própria experiência uma vez que sinto falta de um orientador com

quem possa interagir. Orientador acadêmico que esteja apto a discutir meu desempenho e que compreenda as

relações existentes entre as esferas indígenas e não indígena, abordando de forma sensível a prática-jurídica da

relação cultural dos indígenas estudantes de direito” (MONZILAR FILHO, Hélio. Estudantes Indígenas do Curso

de Direito do Mato Grosso: limites e possibilidades para a formação. Trabalho Apresentado no “Seminário

Formação Jurídica e Povos Indígenas Desafios para uma educação superior”, 2007, Belém. Disponível em:

<http://www.ufpa.br/juridico/documentos/ESTUDANTES_INDIGENAS_DO_CURSO_DE_DIREITO_NO_M

ATO_GROSSO_LIMITES_E_POSSIBILIDADE_PARA_A_FORMACAO-HELIO_FILHO.pdf>; acesso em:

25 mai. 2011). 467

Reflito sobre como seria rico o relato de um(a) advogado(a) popular que assessorasse juridicamente o

movimento do qual é oriundo sobre suas percepções acerca de (im)possíveis relações entre Direito(s) e

Movimento(s).

Page 192: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

191

6.3 “Vamos caminando, yo canto porque se escucha”468

: a Assessoria Jurídica Popular na

perspectiva de advogados populares

A assessoria jurídica popular traduz-se em diversas práticas. Não tem “um modelo,

uma fórmula”, “existem experiências”. Assim concebem os(as) advogado(as) individualmente

entrevistados(as), e, em outra fala comum, dizem que “tem um corte mínimo que faz com que

seja parecido com AJP”, “há princípios norteadores da conduta”. Um dos advogados, sobre o

assunto, destaca que não seria interessante haver um só modelo de assessoria jurídica popular,

“senão a gente vai reproduzir o que estamos combatendo do modelo único desrespeitando

realidades, comunidades e modos de vida diferentes”.

As diversas práticas nascem da concretude das assessorias constituídas junto a

determinados grupos:

[...] você atuar, por exemplo, com o movimento indígena, é diferente de você atuar

com o MST que é diferente de você atuar com o MCP469

ou o Fórum de Zona

Costeira470

. São sujeitos diferentes. Quando a gente quer fazer uma assessoria que na

verdade é um diálogo com esses assessorados, não é simplesmente eu chegar lá e ser

instrumentalizado ou instrumentalizar; se é um diálogo tem troca. Se existem

sujeitos diferenciados, as trocas também são.

[...] é uma advocacia que tenta levar em consideração os saberes dos movimentos, e

não só levar em consideração, como também trocar esses conhecimentos, meio que

aprender junto, construir junto em cima daquela demanda especifica.471

Discorrendo sobre as características intrínsecas a AJP, os(as) advogados(as)

distinguem o seguinte: a) a busca pela compreensão da realidade, “do entendimento da

vivência do modo de vida dos assessorados”; b) “identidade com a causa” do movimento por

parte do assessor jurídico popular; c) construção de um diálogo com os assessorados; d)

“horizontalidade da relação entre assessor e assessorado”; e) a “relação da assessoria com o

assessorado” como um “processo pedagógico”; f)“a importância da articulação, [da]

participação [dos assessorados] nos processos como essencial para conseguir o direito”; g)

468

Trecho da música Latinoamérica, Calle 13. 469

Movimento dos Conselhos Populares no Ceará. Para mais informações, vide em:

<http://conselhospopulares.org.br/>; acesso em 26 mai. 2011. 470

“[...] o [Fórum em Defesa da Zona Costeira Cearense] FDZCC é um movimento de entidades, grupos e

pessoas que realizam mobilização social na Zona Costeira do Ceará. Sua trajetória descende do antigo “Fórum do

Litoral, Cidadania, Desenvolvimento, e Meio ambiente” que, nos anos 1990, denunciava os impactos

socioambientais da construção do Complexo Portuário do Pecém, no litoral oeste do Ceará. A partir dos anos

2000, passa a se chamar FDZCC e continua a monitorar as políticas públicas, tendo como foco as iniciativas do

Programa de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste (Prodetur/NE)”. (Informação disponível em:

<http://www.portaldomar.org.br/portal-do-mar/101 >; acesso em 30 mai. 2011). 471

Falas de advogados(as) entrevistados(as) nesta pesquisa.

Page 193: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

192

ideia de que “o Direito [Estatal] pode ser usado como um importante instrumento de disputa”;

h) pensar no Executivo e no Legislativo como outros espaços de concretização de direitos,

além do Judiciário472

; i) atuação por meio de estratégias jurídico-políticas, sendo essa

característica expressa na fala dos(as) advogados(as) da seguinte maneira:

[...] a estratégia jurídica tem que estar bem relacionada com a estratégia política, não

numa relação de subordinação, o movimento traça uma estratégia política e você

submete a estratégia política daquilo ali. Por exemplo, o movimento tirou uma

estratégia de ocupar um imóvel e a gente acha que juridicamente aquilo vai ser

completamente inviável para a finalidade e que pode ter uma repercussão política por

causa da limitação jurídica, que vai ser pior para a luta, o assessor jurídico tem que

apresentar. [...] o assessor jurídico não pode assumir acriticamente a pauta do

movimento. [...] você traça e estratégia política com a jurídica, mas não submetendo

a jurídica à política e nem o contrário, porque pode acontecer também do movimento

social num primeiro momento reproduz[ir] a lógica repressora da assessoria jurídica,

é o advogado do MST, mas é um advogado, a palavra do advogado tem peso não

porque ele vem do movimento, mas porque ele é advogado, aí entra naquele

problema [...] daqueles princípios de buscar uma relação horizontal,

desmistificadora, que tem a ver inclusive com os aspectos da linguagem, da

vestimenta e dos rituais do direito. [...] o que marca a nossa atuação [...] é você traçar

essas duas estratégias relacionadas, sendo que [...] o que é mais relevante é a política,

[e] em determinados momentos pode ser o jurídico.

Expressam também como característica da Assessoria Jurídica Popular:

[a] compreensão do papel do direito, [...] que é muito semelhante entre nós, de não se

prender simplesmente ao que está positivado, de reconhecer outros direitos que vem

a partir das demandas e das lutas sociais, e usar isso de alguma forma defensável

[...]. Eu como advogada reconheço uma ocupação, embora se acha que é ilegal em

último caso.

Ao serem convidados a refletir sobre uma definição de Assessoria Jurídica Popular,

as resposta, em geral, descrevem a práxis. Duas falas, no entanto, apresentam amplas

definições que contêm dois aspectos nucleares: a) a busca da emancipação e da superação de

várias formas de opressão; b) disputa por um papel transformador do Direito:

É a busca dessa emancipação que ainda não entendemos bem o que é que significa é

ou como é que se faz. Acho que a constatação de que essa realidade que tenta ser

imposta e única é pobre, oprime muito as pessoas em muitas realidades. Dentro do

aspecto em que a gente trabalha, é formado e tudo o mais, a gente tenta contribuir.

É um movimento dentro do direito que visa disputar o direito a partir de uma

concepção de sociedade. Que compreende o direito, tanto em seu papel opressor

dentro da sociedade, tanto no papel transformador que ele possa ter.

Por sua vez, ao serem questionados sobre o que concebem como emancipação as

respostas são igualmente diversas, expressando pensamentos comuns, quais sejam: a)

emancipação como autonomia, possibilidade de “viver de acordo com [a] [...] realidade

472

“Essa coisa de usar mais ou menos o Judiciário acho que vai muito do perfil de cada um desse histórico, mas

pelo menos esse reconhecimento das políticas públicas, de estar também preocupado com a formação de políticas

como instrumento de realização de direitos, que não está só no Judiciário, então de estar pensando também no

Executivo, no Legislativo” (Fala de um(a) advogado(a) entrevistado(a) na pesquisa).

Page 194: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

193

coletiva”; b) emancipação como superação do modo de (re)produção humana capitalista e da

divisão da sociedade em classes; c) emancipação como afirmação de modos de vida não

capitalistas, em que não haja “exploração de uma pessoa sobre outra pessoa”; d) emancipação

como superação das opressões existentes hoje na sociedade (sexuais, de gênero, geracionais,

econômicas, provenientes da relação de dominação da Natureza e exploração do meio

ambiente natural, étnicas, raciais etc); e) emancipação como um processo sempre a tecer-se.

As falas seguintes abordam esses aspectos diversos presentes nos diálogos realizados com

os(as) advogados(as):

[...] as grandes obras, por exemplo, é uma visão imposta pela imprensa que é

dominada por pequenos grupos empresariais. É uma questão imposta por esse ser

abstrato que é o mercado, que deve haver essas grandes obras das mesmas empresas

que vão ganhar as licitações. As mesmas oligarquias vão ganhar nas

desapropriações. Mas aí tem o discurso do ‘vou gerar emprego, isso e aquilo’. Em

todas as comunidades que não tem poder de decisão sobre essa realidade, vão

aceitar. Porque eles vivem de acordo com o que outros decidem, embora pareça que

haja unanimidade. Emancipação é a gente poder dialogar e viver de acordo com

nossa realidade coletiva. [Emancipar-se] desse modelo posto.

A emancipação pela qual lutamos é da sociedade que a gente vive hoje, a capitalista,

de classes, que não é só a sociedade capitalista que tem classes, a classe é anterior à

sociedade capitalista. Penso na emancipação como libertação humana, não no âmbito

individual ou coletivo. Consigo pensar muito nas amarras que existem hoje com

relação à questão de gênero, que reflete na sexualidade, na forma como as pessoas se

relacionam; às lutas de classes tão fundamentais, que refletem e condicionam todas

as outras, não só... Ah! Quer dizer que se a sociedade é socialista não tem mais

machismo? É claro que tem. A forma como a gente lida com o meio ambiente e o

direito defende essa visão antropocêntrica, considerada avançada no direito

ambiental. Não acredito nessa dominação do homem sobre a natureza, acho que a

relação não é essa. É assim, essa emancipação nas diversas dimensões da

humanidade, entre classes, entre homens e mulheres, entre adultos e crianças, velhos

e adultos, de forma geral. Um pouco o fim das opressões, seria isso. O fim das

opressões que temos hoje não representa o fim das contradições e de outras questões,

talvez outros tipos de opressão surjam dentro da humanidade. Se a gente não chegar

até esse estado de barbárie e não criar outras coisas.

Então eu vejo a emancipação como um ato consciente do povo de negar a forma de

reproduzir a vida que hoje é o capitalismo e afirmar uma outra forma de reproduzir a

vida, que é a não exploração de uma pessoa sobre outra pessoa. [...] A prática da

assessoria jurídica popular é muito desafiadora, cansativa, ela em si já é muito

exaustivo, a gente se cansa mesmo, fisicamente, a gente se cansa muito, mas como

sujeito que penso como te falei, na necessidade de se superar, eu acho que a gente

busca isso, a gente se organiza e se se prepara para isso, para construir um processo

emancipatório.

Não distinguem a Assessoria Jurídica Popular da Advocacia Popular. Concebem a

advocacia popular como uma atuação profissional, advocatícia, da assessoria jurídica popular.

A fala de um advogado expressa essa percepção enunciada pelos(as) demais advogados(as)

entrevistados(as). Conta-me ele:

Na oficina[...], Seu [fulano] pergunta assim: “o que é que significa advogado?”, ele

perguntou! Se não estou enganado é dar a voz não é? Quando ele me perguntou isso

Page 195: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

194

na hora eu fiquei surpreso com a pergunta né! Era um momento muito intenso,

estavam todos cansados, já era noite, e começou pela manhã, tão cansados, foi muito

bonito sabe, todos cansados, mas estava muito empolgante, aí estavam discutindo

sobre questões criminais, e dando exemplo de pessoas, um rapaz que havia sido

torturado numa viatura, estava lá na oficina, teve gente que tinha sido ameaçada, sido

presa, aí eu senti que ele estava emocionado com o momento de debate e tal! Ter

dois advogados contribuindo com o debate, ter estudantes de direito que é uma coisa

muito distante, então eu falei, joguei para o pessoal: “Gente, o que é advogar?

Advogar é dar a voz”, eu não neguei, eu não desconstruí o que é advocacia

tradicional e nos afirmei depois, eu disse: “Olha, é um pouco do que a gente faz, o

nosso trabalho aqui nada mais é do que junto com o movimento, em determinado

momento, dar a voz de vocês, só que usando nosso trabalho, usando a nossa

atuação”, eu acho que advocacia popular ela é uma advocacia, [...] aí vejo a

advocacia popular, eu vejo muito como prática, mas falar sobre isso é também um

momento de reflexão teórica que é importante para romper com a atuação do próprio

direito que é limitado, o processual é muito limitado, mas se a gente consegue na

nossa atuação colocar isso, eu vejo aí a advocacia popular, a assessoria jurídica

popular. Assessor jurídico popular tem essa relação interna com o movimento,

decide sobre o trabalho, mas discute esse trabalho com o movimento.

Dizem que os princípios da Assessoria Jurídica Popular473

podem ser praticados por

diversas profissões jurídicas. Analisam, principalmente, a potencial atuação em AJP na

Defensoria Pública. Um dos advogados expõe: “eu conheço defensores públicos que tem uma

atuação que tem essas referências [...]. Essa relação de proximidade, de identidade, de

conhecimento, de compreensão da pauta política [...]”.

Outro advogado diz que professores(as) universitários, membros do Ministério

Público e mesmo da magistratura podem atuar nos princípios da AJP, “pela causa que estão

pegando, contra maré, de certa forma contribuem pra mostrar esses direitos invisibilizados;

não é que eles se identifiquem [como assessores jurídicos populares]”. Ao ser inquirido sobre

um exemplo de quem faz advocacia popular no Ceará, o mesmo advogado, sorrindo,

respondeu:

O Dragão do Mar, Chico da Matilde474

. Ele não era advogado, mas fazia lutas por

direitos. Estava positivado que não podia ter tráfico, ele foi lá, organizou o povo, era

um discurso único que tinha, pôs todos numa jangada pra libertar os escravos.

Outra advogada discorre:

Eu acho que a gente não deve aceitar tanta ampliação do campo que trabalha com

direitos humanos, com comunidades, eu acho que tem um corte mínimo que faz com

que seja parecido com AJP, e aí dentro disso você vai ter muitas diferenças práticas.

473

Os quais são vistos pelos(as) advogados(as) como as características acima enumeradas. 474

“Francisco José do Nascimento, Dragão do Mar ou Chico da Matilde, foi o líder dos jangadeiros nas lutas

abolicionistas. Ele nasceu no dia 15 de abril de 1839, há 160 anos, em Canoa Quebrada, Aracati [Ceará]. O

revolucionário mulato de Canoa Quebrada, em 1874 foi nomeado prático da Capitania dos Portos convivendo

com o drama do tráfico negreiro, se envolve na luta pelo abolicionismo, e uma de suas principais atitudes foi o

fechamento do Porto de Fortaleza, assim impedindo o embarque de escravos para outras províncias. Em vigília,

localizava alguma embarcação que entrasse no Porto do Mucuripe e conduzia sua jangada até ela para comunicar

o rompimento do tráfego negreiro no Estado. A história registrou seu brado literário”. (Informação disponível

em: <http://www.canoabrasil.com/dragao-do-mar.html>; acesso em 26 mai. 2011).

Page 196: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

195

E, quanto à prática de princípios ligados a Assessoria Jurídica Popular por diversas

profissões jurídicas, a mesma advogada reflete:

Eu me lembro de uma discussão que teve na aula de direito de família. A professora

estava falando que hoje em dia as varas de família que são mais modernas contavam

com o apoio de psicólogos, de assistentes sociais, porque o juiz não sabia falar. Aí eu

questionei, e a professora respondeu que o juiz não tinha essa formação, a formação

dele não permite. E a minha crítica era, claro que o juiz não vai ter uma formação de

psicólogo e nem é pra ter porque não é pra saber de tudo, e a psicóloga ou a

assistente social vão fazer um outro tipo de trabalho, que é diferente do trabalho do

juiz. Mas por que que o juiz tem que ser aquela pessoa que não consegue falar com,

entendeu? Que não consegue alcançar a realidade [...]?

Um advogado pondera que as muitas práticas de Assessoria Jurídica Popular ligam-se

a concepções diversas de Direito. Diz que “tem desde experiências mais simples, Balcões de

Direito, que as pessoas se preocupam em romper a relação cliente e advogado” e que “essa

pluralidade de experiências é da própria característica da disputa no direito, desde as

concepções mais maduras, digamos os assessores do MST [...] (não colocando em uma

escala) [...] e uma prática mais tradicional de atendimento, essa dinâmica faz parte da disputa

do Direito”.

Ao descreverem como veem a participação deles(as), como advogados(as) populares,

junto aos movimentos, falam sobre as limitações de suas contribuições como assessores

jurídicos, não se colocam em primeiro plano ou em uma perspectiva heroica, de “salvadores

do povo”, mas se percebem como necessários, capazes de contribuir através da AJP:

[Advogada] [...] é porque o pessoal idealiza tanto isso, eu não me sinto essas coisas

toda não, tu entende?

[Pesquisadora] Não, tu acha que idealiza como?

[Advogada] [...] é que [...] Eu acho que não sou para salvar ninguém, acho que

assessoria jurídica... Não sei, não sei nem qual a palavra certa que eu use, nos

princípios, mais tipo assim a assessoria que a gente presta, não vai salvar, não vai

influenciar no movimento como um todo, num vai né [...].

[Advogado] Nós somos tão poucos. E poucos também nessa área do direito, que é

bem elitista. Então, minha contribuição não é a definitiva nem a que vai fazer muita

diferença, mas também é necessária. Sou mais um no sentido positivo.

Os(As) Advogados(as), ainda, percebem que a Assessoria Jurídica, por si, não

concretiza direitos. Assim, a organização e a atuação dos movimentos são vistas como as

forças principais que proporcionam as conquistas de suas próprias demandas:

[...] é a ideia de você não ser o sujeito, mais você ser minimamente um instrumento

para concretizar alguma luta, ou pelo menos ajudar em alcançar um objetivo, por

exemplo, o objetivo é a demarcação de terra, mas existem 50 processos de

reintegração de posse questionando pedaços daquela terra, então eu vou atuar ali

para garantir que aquela posse seja mantida, o movimento vai correr por fora para

conseguir a demarcação [...]. Por exemplo, a demarcação quem faz é a FUNAI, então

é um processo administrativo, então a gente pode apoiar o movimento na

administração? Pode, apoiando o que? Apoiando manifestações [...], isso tudo vem

da assessoria jurídica num é, ou não, a gente pode dar um apoio participando com a

Page 197: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

196

FUNAI daqui, participando com a FUNAI de Brasília, pensando como vai ficar a

demarcação, quais são os empecilhos, como vamos pensar os processos no meio

disso tudo, mas não é uma coisa que é o principal, porque se o movimento não ficar

falando com a FUNAI, com a rédea bem curtinha, o negocio não sai, não depende da

gente, a gente apoia.

Explicitam diferenciações entre a AJP e outras práxis jurídicas, outros modos de

atuação profissional no Direito:

Geralmente os advogados com carreira mais elitista que chegam nessas comunidades

onde a comunicação não tem um ponto de identidade/toque, vão dar uma de

iluminados.

[...] o advogado particular é mais restrito, é mais jurídico-técnico simplesmente,

“Qual o seu problema? O remédio é esse.” Sabe... E a nossa diferença é que a gente

tenta minimamente conhecer as pessoas, conhecer a história, conhecer o que eles

esperam daquilo, pensar estrategicamente, ver aquela demanda em uma pauta bem

mais ampla, acho que essa é a diferença.

Até o que a gente lutou e conquistou como movimento social, um ordenamento

jurídico que fala de princípios belíssimos para atuarmos segundo esses, acho que a

advocacia popular está procurando ter essas vias. As instituições é que não estão; a

advocacia padrão é que não está.

No meu caso, tenho essa característica muito forte: estou a serviço da organização.

Assim, não estou lá pra defender uma causa jurídica. Estou ali pra defender

interesses que, muitas vezes, nem vão ter respaldo na lei. Usar instrumentos jurídicos

que não são a finalidade, mas são meios e estratégias utilizadas pra conquista de

direitos maiores. Acho que a diferença é essa.

Como a gente lida com conflitos sociais, isso é... Uma diferença... Na nossa atuação,

em determinado momento, e aí depende dessa relação com o movimento, a gente vai

fortalecer o conflito, no sentido de ver o conflito como um processo de mobilização

social, de garantia de direitos, então é o que a gente sempre bate quando vai debater

a questão da ocupação versus invasão e toda uma jurisprudência que tem em torno

disso aí e tal.

Como principais diferenças entre a Assessoria Jurídica Popular e outras práxis no

Direito, indicam a busca pela apreensão da realidade inerente aos assessorados, o

reconhecimento e a valorização do saber dos assessorados, e a conquista conjunta com esses

de estratégias jurídico-políticas presentes na AJP. A fala de uma advogada é bastante

representativa nesse ponto:

[...] a gente tá com essa história da petição, e hoje quando eu tava vindo pra cá eu

tava ate pensando, meu deus a gente tá escrevendo uma petição sobre os [...], tudo

bem que a gente já tem muito contato com eles, de viver lá e de conversar muito,

mais a gente tá construindo o histórico nesse momento, e porque que a gente não vai

lá na dona [liderança indígena antiga] para pegar o histórico com ela, eu tava me

perguntando assim, as vezes a gente quer fazer tão diferente mais na correria acaba,

num é... Aí eu vou propor isso hoje, assim da gente se organizar para ir conversar

com [...], que são lideranças que pegaram todo esse começo da luta. [É] importante

colocar o histórico vindo deles, quem sou eu na luta dos [...]? Eu não era nem

nascida no começo, não vivi, não sei das dificuldades, aí eu acho que parte muito

disso, da horizontalidade na relação, mais respeitando limites deles, e também essa

questão da valorização do saber, no caso tradicional, ou não, no saber histórico,

Page 198: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

197

cultural, deles... acho que é uma das principais diferenças [entre a AJP e outras

práticas].

Algumas questões revelam-me, de modo mais subjetivo, os sentidos e significados

atribuídos à Assessoria Jurídica Popular por esses(as) advogados(as). Arguidos sobre o que

lhes faz sentir como advogados(as) populares, o que lhes move a atuar na Assessoria Jurídica

Popular, situações na assessoria jurídica que os(as) marcaram, músicas, místicas e rituais que

os fazem lembrar de suas atuações junto aos movimentos, respondem:

[O que me faz sentir como advogado popular é] essa sensibilidade. Essa busca. [...]

Posso simplesmente entrar no meu trabalho concreto, ver somente como uma

petição, um recurso e tudo o mais, [...] mas para aquilo eu procurei dialogar com a

comunidade, entender a vivência dela. É a busca dessa construção diferenciada que

faz. O que me move a estar é que tem os momentos de satisfação, de se estar feliz

por conseguir ajudar e tem a questão da identidade. Você termina sendo atraído,

participa das discussões, entende que é o mais parecido com o que deseja de

mundo.475

Assim eu não vou dizer o toré no geral, [...] mas tem algumas musicas que são

mais... Ai tem uma, [...] “quem deu esse nó”476

[...]. Eu acho muito assim forte o

significado [...]. Aí sempre que tem assim alguma retomada, ou algum momento

extremo de reivindicação, “quem deu esse nó” vai lá a fundo, como no dia que os

Tapeba fizeram uma manifestação lá na Justiça Federal. Imagine aquela praça da

Justiça Federal, cheia de índios dançando toré... 477

Como advogada, existe esse papel de contribuir de alguma forma na emancipação.

Não só usando o Direito Estatal, mas toda essa concepção de sociedade, que também

é outro direito. Eu acho que o direito não acaba em uma sociedade não-capitalista.

Existem formas de regulação completamente diferentes do que existe hoje. Tipo

assim, esse papel de educação também, de convencimento por essa outra sociedade,

porque o povo é machista, violento, competitivo. Propor isso tudo como pessoa,

como advogado e militante, trazendo isso um pouco pra nossa prática, todas as

relações. Acho importante manter essa coerência, sabendo que é difícil, mas que é

importante tentar manter para todos os níveis de relação que a gente possa ter.478

Teve um momento muito importante [...], que foi marcante. Que foi um grande

conflito de terra no Município de [...], era um acampamento numa área improdutiva,

[...] e se arrastava o conflito por muito tempo. E aí a gente criou uma relação, a gente

fez vários momentos de formação em direito humanos com os acampados, levamos

os estudantes da época da REAJU pra fazer a formação, então teve um caráter forte

formativo, que faz parte da assessoria jurídica popular... Por que que foi marcante

pra mim? Primeiro pela dimensão do conflito [...]. A fazenda, era uma fazenda do

agronegócio, era uma antiga fruticultura [...]. Se aproximou da vistoria, começou a

ter uma pressão sobre os acampados, pros acampados saírem, pressão dos

proprietários e de trabalhadores do fazendeiro. Nessa fazenda teve ameaças, teve

contaminação da água que o pessoal bebia, o pessoal bebia água nos poços, foram

contaminados, jogavam restos de animais... É... era uma situação bem complicada.

475

Fala de Luiz Gama. 476

“Quem deu esse nó não pode dá/ Quem deu esse nó não pode dá/ Esse nó tá dado eu desato já/ Esse nó tá dado

eu desato já/ Ô desenrola essa corrente deixa os índios trabalhar/ Ô desenrola essa corrente deixa os índios

trabalhar”. A música, de acordo com Tuíra, é cantada hoje por causa de uma decisão judicial considerada pelo

Movimento dos Povos Indígenas no Ceará como exemplo de decisão contrária ao direito à terra e ao território

desses Povos Indígenas. Para ver o Povo Tapeba entoando a canção na expressão do Toré, ir em:

<http://www.youtube.com/watch?v=GbwIiAdqh7M&feature=related>; acesso em 30 mai. 2011. 477

Fala de Tuíra. 478

Fala de Flor de Liz.

Page 199: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

198

O pessoal andava vários quilômetros pra pegar água em outro assentamento. Que era

um assentamento em que o MST tinha um trabalho. Criou uma solidariedade entre

os dois grupos. Além do trabalho do movimento. [...] Em uma dessas reuniões

prévias foi quando recebi a notícia que eu tinha passado na OAB. Eu tava no

acampamento [...], foi muito emocionante, eu tava na reunião com os acampados, aí

dei a notícia que eu tinha passado na OAB, que eu ia poder advogar agora, foi bem

marcante... A fazenda não foi desapropriada, eu voltei lá na fazenda depois, é um

grande empreendimento do agronegócio, e foi uma experiência que a gente colocou

pro INCRA como uma derrota pra reforma agrária no Ceará.479

Ao descrever suas atividades, a atuação técnico-processual judicial agrega-se a

articulações e encaminhamentos no âmbito administrativo junto a órgãos públicos, Defensoria

Pública, Ministério Público; aos momentos para conhecer a realidade e demandas dos

assessorados e para realizar a construção conjunta de estratégias jurídico-políticas. Esses

momentos podem se dar em reuniões, assembleias, manifestações, audiências públicas,

encontros, visitas em caso de necessidade etc. Tuíra diz que tenta estar presente também em

“eventos diversos, festas e viagens conjuntas”, explicando:

A gente vai para conhecer os problemas, para ver qual é a dinâmica do movimento,

observar as dificuldades que eles estão falando, pra ver junto com eles o que [se]

pode fazer para ajudá-los, eu participei de muitas reuniões, e das reuniões de

conselho de associações, na ideia de saber o que aquela comunidade, aldeia

específica, pedaço do povo está pensando, cada um tem sua reunião, e ai cada aldeia

dessa convida a gente, e nos vamos participar também, saber o que aquele povo tem

como problema.

A relação estabelecida entre os Povos Indígenas assessorados e Tuíra parece ser de

proximidade e confiança, respondendo à pergunta sobre quando eles a procuravam, se era

apenas nos momentos de maior urgência, ela diz: “aqui o movimento procura em qualquer

momento, [...] uma festa, uma reunião na comunidade a gente sempre vai!”.

A educação popular emerge em meio aos diálogos realizados com os(as) advogados.

Percebo que a expressão “educação popular” é utilizada para nomear a compreensão, por parte

dos(as) advogados(as), de que é necessário possibilitar a aprendizagem do que existe como

direito posto em normas jurídicas estatais e o sistema estatal de defesa, reconhecimento,

proteção e promoção desses direitos, refletindo, problematizando sobre esses e buscando

elaborar conhecimentos e estratégias jurídico-políticas conjuntamente (assessores e

assessorados). Bem como os(as) advogados(as) concebem que há saberes no campo do Direito

que pulsam nos movimentos assessorados, e que, portanto, a educação é dialógica.

A educação é praticada ou em momentos pré-planejados e previamente organizados,

como cursos, encontros, formações, capacitações; ou incorporados no cotidiano do trabalho

desses assessores.

479

Fala de Carlos Alencar.

Page 200: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

199

Como exemplo, cito a elaboração de uma cartilha em que um advogado, juntamente

com assessorados, elegeu como metodologia a realização de momentos de educação em

direitos a fim de colher elementos para fazer a cartilha, tanto a fim de identificar as demandas

que precisam ser tratadas na cartilha, como para explicitar as falas e a realidade vivenciada

pelos assessorados na cartilha. O advogado relata que

A ideia da cartilha é a defesa de situações de [conflitos socioambientais]... Eu disse,

olha, vamos aproveitar e fazer uma formação. [...] quem é que não sabe o que é uma

situação de despejo, uma forma de mediar com oficial de justiça, os itens

fundamentais para o despejo, [...] o povo [...], eles veem o conflito de outro aspecto,

aí resolvemos fazer a formação e a formação vai servir de elementos para a gente

construir a cartilha.

Os(As) advogados(as) reconhecem, no entanto, que o ritmo de trabalho, a constante

urgência das demandas, e a falta de um planejamento mais voltado à educação popular

ocasionam menos momentos do que acreditam ser necessários e importantes para que a troca

entre eles(as) e os movimentos assessorados sejam equânimes. Os assessores jurídicos

acreditam que aprendem mais com os movimentos do que o contrário: “a gente vai perceber

muito mais coisas novas que podemos aproveitar deles do que o contrário”480

.

Uma advogada, problematizando a prática da Educação Popular na AJP, diz que:

[...] se bem que até essa coisa da relação horizontal também passa por um fetiche

porque às vezes o pessoal que ir para a comunidade e quer só discutir [...]. Depois

vão compreender que não é bem assim. Eles acham tanto que na educação popular

você não pode impor nada que nenhum conhecimento vale mais que o outro que eles

querem ir para a comunidade para discutir. Mas a comunidade não quer discutir, eles

querem saber o que é que é. Em que aquele conhecimento que ele não tem, técnico,

pode ajudar na realidade deles. E aí o que serve, você ficar ouvindo abstratamente as

pessoas falarem da comunidade, ou você estar instrumentalizando todo aquele seu

conhecimento para uma luta?

A mesma advogada, sobre a possibilidade de organização de uma comunidade desde

a perspectiva do Direito, assim assevera:

Se eu chegar numa comunidade, pelo menos faço isso, não vou dizer que elas têm de

lutar por terem algum direito. Elas já estão em um processo de luta, não vou

organizar ninguém, isso já antecede. Vou questioná-las de que elas estão lutando por

terem necessidades, por terem alguma intenção de viver melhor e aquilo que querem

está no ordenamento jurídico de tal forma. Esse discurso político sobre direitos

humanos é mais pra reforçar, já que estão dentro dessa lógica também, que se sintam

melhores. Não como isso sendo fundamento. Não é papel nosso organizar as pessoas

em torno dos direitos, pois elas têm alguma compreensão, e é isso o que vai motivá-

las a fazerem suas estratégias de luta.

Dentre os(as) advogados(as) pesquisados(as), Tuíra parece ser a que mais tem

oportunidades de realizar momentos planejados e metodologicamente organizados de

educação popular com os Povos Indígenas. Acredito que a causa disso relaciona-se com o fato

480

Reporto-me a fala de um(a) advogado(a) entrevistado(a).

Page 201: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

200

de que o local em que ela trabalha possui projetos voltados a esse objetivo. Esses momentos

são, inclusive, consensualizados e planejados com os Povos Indígenas assessorados. Ela nos

conta que:

O CDPDH trabalha muito com formação, mais com formação do que com

assistência técnica. [...] nós temos formação em direito, e a gente senta com eles para

ver as demandas, então nós estamos organizando agora uma cartilha... [...] nesse

ultimo planejamento que a gente teve nós já perguntamos, “e aí, quem vocês querem

que venha falar?”.

Mesmo no desenvolvimento de temas em que há mais dificuldades em se vislumbrar

a prática de uma educação dialógica, noto o esforço de Tuíra para proporcionar espaços onde

haja construção conjunta de conhecimentos e respeito por saberes e vivências dos

assessorados:

[Tuíra] [...] no nosso dia-a-dia a gente procura fazer aqui formações mais voltadas

para educação popular, nem sempre a gente consegue num é... Por vários motivos

[...].

[Pesquisadora] Porque?

[Tuíra] Porque tem muitos temas. [Por exemplo,] gestão financeira que eles querem

aprender, prestação de contas, é muito difícil fazer, assim eu não consigo até mesmo

porque eu não sei, eu não sei trabalhar com isso, aí a gente procura uma pessoa para

falar, e a gente tenta ali dar um norte na oficina, mas nem sempre é possível, porque

como é que você vai fazer uma metodologia para tornar lúdico, assim né... Para ver o

que eles sabem, para depois, tá entendendo? Explicar uma planilha, disso e daquilo

outro, tem temas que a gente não consegue. [Nesse caso], é meio que palestra, outros

não, tipo, a gente procura construir junto, nós fizemos uma oficina sobre direito

indígena com adolescentes, foi muito bacana, assim [...] eles dizendo o que eles

achavam, e a gente construindo os conceitos em cima da vivência deles mesmo, foi

muito rico. Até mesmo os temas a gente procura sempre dialogar com eles, o

próximo tema já foi eleito, é a questão previdenciária. Aí é outro tema que a gente

vai ter que “queimar as pestanas”. Acho que dá até para fazer sabe... Mas, a gente

tem que ver aí bem direitinho uma metodologia. [...] Eles tem muitos problemas com

o INSS.

Consoante já informado por integrantes do MST em entrevistas realizadas, há

atividades de formação, entre esses, o curso prolongado, em que os(as) advogados(as)

participam como educadores(as). Sobre a participação no curso prolongado no ano de 2010, a

advogada do MST relata:

[...] a gente trabalhou primeiro a questão da criminalização. Perguntei o que eles

achavam que era a criminalização, eles disseram “é que colocam a gente à margem

do Estado”, e é exatamente isso. “eles acham que ocupar é igual a invadir”. [...] Fui

trabalhar a questão do processo de ocupação e desapropriação pra mostrar que a

criminalização se expressava nas leis do Estado, aí coloquei alguns crimes. E aí você

discute muitas coisas, como é a reintegração de posse, quem é o juiz, o delegado, o

defensor público, o ministério público. Como é que funcionava o processo de

desapropriação, as fases e as dificuldades. De tarde discutimos como fazer uma

petição, eu discuti com eles, eles foram pros grupos e escreveram, tipo como se faz

um ofício [...].

Page 202: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

201

A prática da Educação Popular, por meio de cursos ou momentos pré-planejados, é

identificada como uma ausência no trabalho de Luiz Gama, por falta de oportunidade e

inserção em algum projeto que lhe permita atuar como educador popular nesse viés. Luiz

Gama, entretanto, compreende que pratica a educação popular como elaboração dialógica no

cotidiano do seu trabalho. Em suas palavras:

[A educação popular] Tem como se fazer no dia a dia, só que se precisa de mais

tempo para fazer. E, para isso, também são necessárias condições materiais. O que o

institucionalizado permite é ter tempo para fazer um trabalho sério, senão fica algo

pontual, perdido.

A mesma percepção, de que a educação popular pode ser incorporada à atuação

profissional do advogado popular na práxis da AJP, é também expressada pelos(as) outros(as)

assessores jurídicos. Em suas palavras:

Acho que quando você entende a estratégia jurídica dentro de uma dimensão maior

de direitos e de lutas acho que isso já é educação popular. Não importa se eu vou

chegar lá e dar uma palestra, ou se eu vou chegar lá e dar uma oficina. O povo já está

construindo. [...] eu acho que muitas vezes não é um momento específico. Por

exemplo, só o fato de eu estar lá, num assentamento, explicando pro pessoal o que é

a reintegração de posse, explicar os efeitos jurídicos disso, [...] que isso pode ser

perdido e a gente ter uma decisão lá junta, como é que vai ser, eu acho que é uma

prática de educação popular.

Os(As) advogados(as), como expressei há pouco, concebem que “a relação da

assessoria com o assessorado” é um “processo pedagógico”, e que isso “caracteriza a

advocacia popular”:

Então tem esse duplo caráter, e que é intrínseco, né? E um pra quem se propõe a ser

um educador popular também, pra além de um advogado popular, ter momento

também de educação popular. Toda vez que eu vou em um acampamento, ou vou em

uma comunidade que está em luta, eu faço um momento de formação. Todo

momento que a gente vai, tem um momento de encontro, vamos reunir as pessoas,

vamos nos encontrar, vamos contar história da luta, e a gente fala um pouquinho

também. Tanto do problema jurídico ou da demanda que a gente acompanha, mas

ajuda também em algum debate... [conta determinado conflito em que está presente].

“Tá aqui o advogado”. É uma determinada forma de proteção, as vezes até

simbólica, aí a gente aproveitou pra falar de um debate do Direito, função social da

propriedade, da importância da luta, a gente deu aquela animada na luta... Colocar

isso como prática cotidiana no trabalho. Eu não fui explicar o processo, “gente, a

reintegração de posse foi concedida”, eu fui muito pra além disso, colocar isso no

cotidiano... Tenho dúvida se [a educação popular] é pontual. Porque você vai criando

uma relação com o movimento. Eu fui na [...], falar do processo... [...] e aí eu usei

uma expressão lá, “a pessoa pode ter a propriedade, mas a posse é nossa”, “a posse é

a vida, é o trabalho”, eu me encontrei depois com uma liderança do movimento, e ele

foi me falar “cara, teve uma audiência pública, e apareceu lá o proprietário da

fazenda, e ele disse, olha vocês vão ter que sair, vamos negociar a saída de vocês, e

eu disse, olha você pode até ser proprietário, mas a posse é nossa” [risos]. Se a gente

consegue construir uma prática. Aí é que tá. [...] Aí, por outro lado, pra terminar essa

questão, dependendo você pode melhor organizar um processo de formação, fazer

um curso. [...] o ideal é a gente criar uma organização que possam ir melhor

aproveitando essas oportunidades de estudo, de formação.

Page 203: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

202

Outros meios de formulação comum de estratégias jurídico-políticas são

proporcionados na assessoria jurídica popular realizada pelo(as) advogados(as). A feitura

conjunta de peças judiciais aparece na fala de Tuíra481

. No caso de Luiz Gama, este remete a

diálogos com a comunidade de Curral Velho acerca dos possíveis caminhos a se seguir,

decidindo em conjunto com os assessorados:

É muito nessa linha de buscar a partir da realidade dessas comunidades, como elas

entendem um enfrentamento em relação a essas demandas jurídicas para poderem

escolher dentro da margem do que se tem qual seria a melhor estratégia, o que teria

mais ou menos ônus. E elas também tomarem conhecimento de certas informações

do Direito, saber se isso é importante para a realidade delas, se modifica alguma

coisa esse conhecimento para a realidade delas, se elas podem usar ou ressignificar.

[...] Na verdade é um diálogo [...].

Sobre a relação entre eles(as), como advogados(as), e os movimentos assessorados,

relatam a importância da constituição de um vínculo de confiança, que nasce da proximidade,

da convivência, do conhecimento da realidade dos povos. Acham que “se você é um advogado

que chega demonstrando saber muito sobre jurídico, mais sem demonstrar nenhuma relação

estabelecida, geralmente eles não confiam”, pois:

[...] o que eu acho que o movimento procura é uma pessoa que não seja totalmente

distante, ou seja, se você procura conhecer, participar da dinâmica, vivenciar o

movimento indígena por dentro mesmo, estabelecer uma relação de confiança, acho

que é mais fácil, agora lógico que tem que ter o conhecimento, lógico que sempre

que houver um fogo tem que apagar, tem que evitar reintegração, e isso tudo vai

consolidando essa relação de confiança, mas vai mais da proximidade com a

demanda e tudo, com os problemas, do que com o próprio conhecimento.482

Ao discorrer sobre a relação com os assessorados, os(as) advogados(as) também

demonstram reconhecer a autonomia política dos movimentos (“eu acho importante o

movimento caminhar com as próprias pernas, porque a gente tá como apoio”), e que lhes cabe

o respeito às decisões tomadas pelos assessorados (“[tem] a questão de autonomia, do assessor

não interferir na dinâmica”). Um advogado identifica três tipos de relações possíveis entre

assessor jurídico e assessorados:

Com os advogados identificados com a advocacia popular, pode ter basicamente três

situações, desde reproduzir uma relação tradicional, “é o nosso advogado”, [...] “ele

tem nós não temos, se ele falou tá falado”. Ele pode reproduzir isso. Pode ter uma

481

“[...] sempre que tem alguma necessidade de se fazer uma peça, dependendo da urgência, a gente consegue

saber antes, quando a gente já sabe por publicação e a gente consegue se antecipar, a gente sempre vai lá para

tentar construir alguma coisa, mesmo que minimamente, em conjunto. A peça, vamos supor numa reintegração, a

gente vai e lista os principais argumentos, nos reunimos com a comunidade e dizermos: os principais argumentos

deles são “esses” e ”esses”. Então escutamos o que as pessoas falam e retorna para cá para tentar fazer isso em

cima da peça. Sempre que dá né! Não vou dizer que toda vida dá tempo! Um prazo de 10 dias que a semana tá

louca e a gente não vai ter tempo de ir lá! Mas mesmo que a gente não vá, a gente tenta pelo menos ligar e

conversar com alguém! Até porque são muitos conflitos, enfim. Houve uma peça que a gente entrou com uma

indenização. Essa peça foi totalmente construída com eles, até porque foi inicial, então nós tivemos tempo, eu

ainda era estagiária [no CDPDH], mas foi muito bacana”. (Fala de Tuíra em entrevista desta pesquisa). 482

Fala de um(a) advogado(a) entrevistado(a).

Page 204: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

203

relação, que é a que eu acho a mais interessante, que é de debater a estratégia jurídica

com a estratégia política, ter uma relação de respeito, diferenciar as particularidades,

diferenciar as identidades, as culturas. Mais pelo debate das estratégias jurídicas e

políticas da maneira mais aberta possível. Respeitando as duas posições de um lado e

de outro. E pode ter uma posição, que eu acho que teria um certo desvio, teria um

certo erro, um desvio, e você confundir a sua atuação como advogado que é

necessário [com a militância no movimento] [...]. E, eu acho que eu acho que a gente

tem que tentar buscar uma mediação, que eu acho que seria esse debate claro das

estratégias jurídicas e políticas.

Flor de Liz informa que as dinâmicas presentes no MST-CE a conduzem dialogar não

só com a Coordenação Estadual do movimento, mas também a constituir estratégias com base

em decisões de acampamentos e assentamentos ligados ao MST, respeitando a autonomia

política das comunidades envolvidas:

[...] as decisões que a direção têm junto com o acampamento são do acampamento.

Claro que a direção tem uma decisão, que vai discutir junto com eles, mas a decisão

é das comunidades. O movimento tem uma proposta, mas ele coloca pra comunidade

o que a comunidade quer. Coloca o problema e a gente discute, e a partir disso se

toma uma decisão. Já passei por várias experiências dessas.

Na ida à uma ocupação do MST com Flor de Liz, observei que ela e o integrante da

coordenação do MST na região dialogaram com os militantes do movimento que lá estavam

acampados, informando-os sobre o procedimento judicial, respondendo as dúvidas destes

sobre Direito Estatal (aplicado à situação em tela), e ouvindo-os acerca de diversas questões

referentes à ocupação. Foram discutidas, também, estratégias jurídico-políticas com a

coparticipação do coordenador, dos militantes e da advogada.

Sobre essa autonomia na avaliação de Tuíra, o Movimento dos Povos Indígenas no

Ceará está caminhando, também, para uma desnecessidade de assessoria jurídica popular junto

a alguns Povos483

. O fato de que o Ministério Público Federal do Ceará (MPF-CE) cumpre

bem seu papel, que há relação já consolidada entre esses Povos determinados e o MPF-CE,

bem como com a FUNAI, além de várias lideranças indígenas que detêm um conhecimento

acerca do Direito dos Povos Indígenas reconhecidos pelo Estado e das vias administrativas e

judiciais necessárias à consecução destes484

. Tuíra observa também que há (em âmbito

483

“[...] o movimento jurídico é muito autônomo, graças a deus, na verdade a gente tá caminhando para não

necessitar mais de assessoria jurídica, tá caminhando para não precisar mais” (Fala de Tuíra em entrevista

concedida a presente pesquisa). 484

“[...] os Tapeba já estão na luta a 30 anos, lógico que tem gente que esta começando agora , mais uma boa

parte já tá assim, plenamente conhecedora dos direitos, acho que assim do povo Tapeba umas 50 lideranças dá

uma aula aqui de qualquer capacitação do direito, até de construção... Não, várias pessoas do movimento

indígena em geral, eu aprendo mais do que qualquer outra coisa, muitas vezes uma lei especifica eles sabem

primeiro, porque eles vivem lá em Brasília, e assim que sai bem quentinho já... É comum, é por isso que eu acho

assim, que tá chegando num ponto, que o que precisarem eles já tem uma articulação com o Ministério Público

[...]”. (Fala de Tuíra em entrevista concedida à pesquisa).

Page 205: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

204

nacional e estadual) indígenas graduando-se em Direito, e a tendência é que esses realizem a

assessoria jurídica junto aos Povos Indígenas.

Lamenta, no entanto, que não esteja tendo oportunidades de atuar mais diretamente

junto a Povos Indígenas que lutam pelo reconhecimento485

e a demarcação de suas terras há

menos tempo. Tuíra pensa que há necessidade de se atuar por meio da Assessoria Jurídica

Popular junto a essas sociedades indígenas, bem como de maior articulação junto ao

movimento dos Povos Indígenas no Ceará. Assevera que:

[...] assim, eu já te falei que a gente tá chegando num esgotamento da assessoria

jurídica com alguns Povos, num foi? Mas, hoje em dia [há uma realidade diferente

em] outros Povos, as pessoas não tem o conhecimento básico do que tem e do que

não tem direito e muitas vezes a pressão exercida pelos fazendeiros, pelos poderosos

da região, é considerada como uma verdade, e fica por isso mesmo. Ou até tem o

sentimento de injustiça, mas as pessoas se sentem enfraquecidas e sozinhas, isoladas

em alguns casos. [Fala de Povos que, por estarem iniciando agora, ainda precisam de

assessoria jurídica] [...] tem outro Povo chegando no movimento [...], [...] lá a

situação é bem complicada. [...] lá precisa muito de uma assessoria jurídica, de

preferência uma próxima mesmo, de um apoio, porque eles estão cercados por

canaviais, são grandes fazendeiros de cana, lá na região é muito presente, não é só

flor que tem em São Benedito486

, também tem muita cana de açúcar, e [...] tá

havendo uma expansão muito grande dessa indústria de cana de açúcar, e tá de um

jeito que eles estão expulsando, derrubando as cercas, e entrando nos quintais, então

as pessoas não têm direito a plantar nem nos quintais, é muito violento. [...] para

onde você olha é cheio de cana, e as pessoas não tem espaço para plantar o que eles

estavam acostumados que era a subsistência mesmo. É horrível! É triste, só vê cana,

até o cemitério [deles] é cercado de cana. [...] [essas etnias indígenas] que vivem essa

realidade e que tá num processo inicial de luta, eles merecem uma atenção especial

não só de uma assessoria jurídica, mas também do próprio movimento.

Tuíra apresenta uma estratégia de atuação. Informa que a ONG em que atua tem

atividades de intercâmbio de sociedades indígenas, onde as etnias conhecem a realidade umas

das outras e que pretendem “priorizar esses povos que estão nesse processo inicial”:

Aí vai ser muito bacana, por que aí proporciona para esses povos daqui

[assessorados pela ONG] uma releitura, de conhecer o processo, e para eles que vão

receber então... [...] a gente tenta assim, pontualmente, tentar contribuir, mais é mais

proporcionando a articulação. Porque o movimento realmente é muito autônomo, o

pessoal vai viajar e vai para essas comunidades, e conversa com as lideranças e faz

reuniões [...].

Os(As) quatro advogados(as) pesquisados(as) relatam que há o cuidado para que não

haja a confusão entre o advogado e o movimento, ou seja, entre o advogado como assessor

jurídico do movimento e a participação dele no movimento. A advogada e o advogado do

MST expressam que:

[...] tem que ficar muito claro o papel do assessor do movimento, não somente do

advogado. Dos professores, se forem assessores, dos assistentes sociais, dos

engenheiros agrônomos, porque o povo fica muito empolgado com aquele

485

Como uma etnia indígena. 486

Município do Estado do Ceará, Brasil.

Page 206: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

205

movimento, mas tem que ter claro quem são os sujeitos e os seus papéis. E existe

muito essa preocupação de o assessor não virar o movimento, porque ele não é. Eu

sou advogada, não sou a sem terra, nunca fui, não sei o que é ser, não vou dizer o

que o sem terra tem que fazer, no sentido de que não é meu papel, aquela realidade

não é minha. [...] Os assessores têm um papel fundamental pra luta, mas têm que

entender o seu papel de assessoria, as estratégias elas se criam nas organizações

populares.

Eu me considero no movimento sem terra! E o movimento me considera deles, só

que uma coisa que eu repito para o movimento, “Eu sou advogado do MST”, eu não

sou sem terra, são aspectos culturais, são aspectos de vida, de história, não sou sem

terra, eu não sou dirigente. Eu sou advogado do movimento, eu tenho uma história e

tal.... [...] eu sou um advogado, de fora, que quer compreender e atuar na estratégia

política daquele movimento, ou daquela comunidade, ou daquela organização, então

eu vejo bem essa separação [...].

Consoante avalia outro advogado, a confusão entre o papel do assessor jurídico e sua

possível atuação de militância no movimento por ele assessorado alcança outra via, a de

invisibilizar a Assessoria Jurídica Popular como algo de onde emergem “discussões próprias”.

Hoje compreende que há uma mudança: “quando se cria o espaço da assessoria jurídica se

discute o seu papel junto ao movimento, [...] ela já deixou de ser objeto e vira de alguma

forma sujeito, porque está discutindo a sua atuação; é confuso e meio contraditório mesmo,

porque ao mesmo tempo em que ela é um sujeito nesse sentido, só existe, só tem sentido com

os movimentos”.

Sobre os tipos de demandas em que atuam, reúnem causas coletivas ou de

repercussão coletivas e, em determinados casos, há a especificidade da matéria com que

trabalham:

[...] [no CDPDH] sempre vi como prioridade a questão da terra, mas os outros

advogados que passaram por aqui pegavam de tudo, então quando eu cheguei aqui

tinha processo criminal, e ai gente fez um levantamento dos processos da terra

realmente que existia, que a gente tava deixando de pegar porque tava pegando os

individuais. [...] foi mais de um ano, e aí a minha principal dificuldade foi os

conflitos com as lideranças [...] porque eu não peguei uma separação ou alguma

coisa assim. Eu sou muito chata, eu digo mesmo, sou sincera, assim... Foi sendo

tranquilo, está sendo tranquilo, hoje em dia está bem mais [...].

Outros(as) advogados(as) também relatam semelhantes situações desta fala, dizendo

que foram constituindo com os movimentos o tipo de causas e atividades em que atuariam,

com diálogos e com base nas experiências vivenciadas com os movimentos, mas também

desde o que compreendem (como assessores jurídicos) como sendo inerente à práxis da AJP.

Questionados sobre como ocorreu a educação deles(as) como assessores jurídicos

populares, respondem que o movimento estudantil, a atuação em projetos universitários de

Extensão em Assessoria Jurídica Popular, estágios em entidades que prestam AJP

constituíram valiosos espaços de formação. A fala de uma advogada expressa a sua percepção

Page 207: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

206

de que hoje a formação dos assessores jurídicos populares acontece também, nos movimentos

assessorados.

Tuíra, que já atuava como estagiária no CDPDH, conta que a convivência

profissional com um antropólogo que trabalhava nessa organização na época constituiu

importante aprendizagem para, dentre outros, estabelecer uma relação com os Povos Indígenas

assessorados:

E naquela época a gente tinha um antropólogo, hoje em dia a gente não tem mais, e

eu era a sombra do antropólogo, porque é muito interessante. [...] eu acho que assim

eu devo a ele toda a forma de me relacionar, essa questão étnica assim... Do que eu

posso fazer e do quer eu não posso, das coisas do movimento, dos rituais, eu devo

tudo a ele, assim de como conviver. Que é uma relação pessoal que você acaba tendo

com a pessoa mais sem ultrapassar fronteiras, que eu percebo muito isso, as pessoas

às vezes se aproximam muito e levam muito para uma esfera pessoal, e eu devo

muito isso ao [antropólogo], ave Maria... Essa questão do toré eu não esqueço, ele

“oh! você não pode entrar no toré sem ser convidada, você não pode ir para roda

pequena, você não pode chegar na bebida sagrada chegar lá e tomar, tem que ser

uma liderança que tem que te dar” […].

Dentre as dificuldades enfrentadas na advocacia popular, os(as) advogados(as),

unanimemente, apontam o Poder Judiciário:

[pesquisadora] Quais os principais nós que você tem que desatar no seu cotidiano de

advogada popular?

Acho que é o conservadorismo do judiciário, o poder do latifundiário, são os

principais, o resto a gente desata, esses são os mais difíceis, esses são os nós cegos!

[...] a [nome de uma pessoa] sempre coloca a necessidade de nós fazermos uma

parceria com a Justiça Federal, para fazer formações mesmo, para falar de direito

indígena, para explicar tudo isso para esse povo, mas nunca deu certo, eu acho que é

uma boa ideia dela, porque a gente vê muito juiz fazendo juízo de valor, dizendo que

não é índio porque está com celular.

Porque o judiciário é um sistema muito hermético, fechado.

Luiz Gama pondera sobre a importância de atuarem (os(as) advogados(as) populares)

em articulação com outras organizações e o Sistema Estatal de Justiça. Não apenas

encaminhando demandas, mas também constituindo parcerias (seminários conjuntos, por

exemplo487

), articulando-se em determinados espaços (como na Ordem dos Advogados do

487

“Na próxima quarta-feira, dia 25 de maio, a Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares do Ceará

(RENAP), o Grupo Teorias Criticas da UFC, o Fórum em Defesa da Zona Costeira do Ceará, os Povos

Indígenas, e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) convidam todos a participarem da oficina:

O Ceará e seus fazeres tradicionais. A atividade integra a programação da 3ª edição do evento “Mundos do

Trabalho - Justiça, Direitos e Cidadania” realizado pelo Tribunal Regional do Trabalho do Ceará (TRT) entre os

dias 24 a 28 de maio na Praça do Ferreira”. (Informação disponível em

<http://www.portaldomar.org.br/blog/portaldomar-blog/categoria/noticias/oficina-o-ceara-e-seus-fazeres-

tradicionais-no-mundo-do-trabalho>; acesso em 25 mai. 2011). “A saúde do trabalhador será o tema de debates

nos dias 2 e 3 de maio entre estudantes de direito, advogados trabalhistas, servidores e defensores públicos,

procuradores e juízes. O assunto será debatido no seminário “Saúde do Trabalhador”, promovido pelo Tribunal

Regional do Trabalho do Ceará (TRT/CE), a Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap) e

outros cinco órgãos públicos”. (Informação disponível em: <http://www.portaldomar.org.br/blog/portaldomar-

Page 208: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

207

Brasil Secção Ceará - OAB-CE), e no estabelecimento de relações democráticas com órgãos

de acesso à Justiça (como a Defensoria Pública). Em minhas observações percebi que os(as)

advogados(as) atuam junto ao Poder Judiciário, e casam essa atuação a articulações com

órgãos ligados ao Sistema de Justiça (Defensoria Pública e Ministério Público, em âmbitos

estadual e federal). Essas atuações/articulações, contudo, não ocorrem apenas para

encaminhamentos judiciais, mas também para a elaboração conjunta de atividades diversas, tal

qual enuncia Luiz Gama.

Os(As) quatro advogados(as) pesquisados(as) definem a Rede Nacional de

Advogados e Advogadas Populares (na qual se inserem) como:

[...] a RENAP é um mote para nos organizarmos. Acabam por surgir bandeiras

internas na advocacia para tornar algumas práticas mais progressistas, mais fáceis

para o movimento. É um espaço para essas pessoas tentarem criar esse debate e,

também, acho que a identidade são as causas. A maioria dos advogados particulares

pode por sensibilidade e solidariedade trabalharem numa causa ou outra. A RENAP

funciona como uma organização que sistematicamente se volta a essas causas, então

é diferente.

[...] são advogados populares de várias áreas, que atuam com vários movimentos e

que utilizam esse espaço para fortalecer essas atuações, e pra trocar mesmo

experiências e tentar se posicionar sobre alguns temas, tentando interferir nessa

lógica do Direito.

A Assessoria Jurídica Popular é vista como uma via de acesso à justiça por teóricos e

assessores jurídicos. À pergunta sobre se a atuação desses(as) advogados(as) proporciona o

acesso à justiça para os assessorados, no entanto, faz emergir reflexões, representativas nas

falas seguintes:

Proporcionam mais campos de luta por acesso a justiça. Não é que eu vá entrar com

uma ação e essa ação vai permanentemente conceder o acesso a justiça. Mas se essa

ação for dialogada, construída estrategicamente junto aos movimentos. [...] A

estratégia judiciária, às vezes cria um espaço pra se chegar a esse acesso à justiça.

Pode ser ate com a não vitória da ação judicial, mas é algo que segurou que deu

fôlego, que deu animo. A depender do grau de organização da comunidade e do

movimento e da experiência das pessoas, às vezes só o advogado estar lá, já dá um

animo. [...] Talvez a estratégia não seja nada jurídica, ou judicial, seja uma ação

direta deles, mas é importante, teve o animo de saber que pra passar pra uma outra

esfera da briga, nós também temos os nossos pra brigar.

[Pesquisadora] E o que tu acha que faz com que essa comunidade tenha acesso à

justiça?

Às vezes o Judiciário tá vinculado ao direito posto, e o direito de justiça da

comunidade pode ser algo que não está no direito posto. Digamos assim, essa

constituição mais aberta pros direitos humanos, nos permite fazer pros movimentos

uma interpretação mais ampla, que faça caber inclusive os direitos que não estão lá

expressados, inicialmente postos. Pra quem for mais conservador, não vai estar. O

Judiciário, ou o jurista que faz essa leitura vai achar que os direitos não estão postos.

Então eles têm um entendimento de justiça que pode ir para além do ordenamento

jurídico, em uma interpretação mais conservadora e pra nós, que é a nossa luta lá, a

blog/categoria/noticias/comecam-inscricoes-para-o-seminario-sobre-saude-do-trabalhador>; acesso em 25 mai.

2011).

Page 209: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

208

gente tenta dizer que está dentro, que é a nossa luta lá, no âmbito institucional

também pra reforçar. Então quando a gente fala que acesso ao judiciário não é

necessariamente acesso á justiça porque essas conquistas podem ter sido alcançadas

sem ter se chegado necessariamente ao judiciário, uma conquista de fato. Que não

precisou de decisão judicial, precisou mais de uma força política.

Eu acho que às vezes nem é bom ter esse acesso. Por que a que justiça que a gente

quer ter acesso? A essa justiça burguesa? Não, muitas vezes a ação é para minimizar.

Mas eu acho que sim, porque é muito diferente você falar com um acampamento que

está isolado, que você parte do princípio de que tudo pode acontecer porque são

pobres e pronto, e ter um advogado. Que questione o processo, acompanhe, que use

o Código Civil, e dá uma auto-estima danada. No sentido de eles se sentirem tendo

esse acesso à justiça, de se sentirem cidadãos, embora não sejam de um conceito

marxista, não são cidadãos. De se sentir como uma pessoa que tem direitos, acho que

é importante isso daí.

O acesso à justiça, significado pelos assessores jurídicos populares como acesso ao

Judiciário é questionado como via de concretização de direitos demandados pelos movimentos

assessorados; seja porque o Judiciário pode interpretar aquela demanda de modo mais

conservador (sem atentar para outras interpretações possíveis); ou porque a luta em âmbito

político foi mais propícia à conquista do que almeja o movimento; ou, ainda, porque o

Judiciário aparece mais como meio de, possivelmente, minimizar o impacto de violações e

violências contra os assessorados do que como concretizador de suas demandas. Os(As)

advogados(as) concebem, no entanto, a ideia de que o acesso ao judiciário pode servir de

estímulo à luta realizada por esses movimentos no campo jurídico-político.

Em um dos diálogos informais realizados com uma das advogadas, estávamos

acompanhadas de outra advogada popular não envolvida nesta pesquisa. Perguntei a ela se

acreditava que sua atuação proporcionava acesso à justiça ao movimento assessorado. Antes

de responder, a advogada que nos acompanhava disse que isso era muito delicado, pois

poderia provocar a institucionalização da luta, ou seja, o movimento passar a pleitear suas

demandas apenas por via judicial. A advogada partícipe desta pesquisa ponderou e disse que

sempre percorria todos os caminhos possíveis em busca da consecução das demandas dos

assessorados, inclusive por via judicial.

Os(as) outros(as) advogados(as) envolvidos(as) nesta pesquisa também relataram a

importância de provocar o Poder Judiciário na busca por mais um mecanismo que possa

fortalecer a luta jurídico-política dos movimentos assessorados pela conquista de seus direitos,

ainda que em meio às dificuldades anteriormente apontadas no que tange ao Poder Judiciário.

Como exemplos, cito as atuações de Luiz Gama junto a Curral Velho e Lapa.

O advogado que acompanha a comunidade de Curral Velho atua como assistente de

acusação em uma ação impetrada pelo Ministério Público Estadual contra carcinicultores e

Page 210: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

209

seguranças armados que teriam usado de violências (físicas, prática de ameaças e disparos de

armas de fogo) contra um grupo de moradores que partiram desarmados, em defesa do

território que ocupam e do mangue. Luiz Gama também atua em uma ação fundiária na defesa

da terra de um dos moradores, cuja ação é vista como simbólica pela comunidade,

fortalecendo a luta desta488

; e vem buscando, junto a Defensoria Pública do Estado, constituir

uma Ação Civil Pública cujo pedido principal, dentre outros, envolve reparação de danos

causados por fazendas de carcinicultura aos(às) moradores(as) de Curral Velho.

Quanto a comunidade da Lapa o advogado, em conjunto com a Defensoria Púbica da

União, procura estratégias jurídico-políticas que buscam o ressarcimento de prejuízos

causados à comunidade pela construção da barragem; e a garantia de que os(as) moradores(as)

serão reassentados próximos ao local e em condições similares às que vivem hoje; além de vir,

o advogado, em conjunto com universidades e outros advogados populares, trabalhando na

defesa do patrimônio histórico, arqueológico e cultural da comunidade que habita na Lapa.

Além de outras atuações no campo jurídico-político do advogado que se articulam junto à

organização dessas comunidades.

Findo aqui o relato das falas, história e canções entoadas no decurso desta pesquisa.

Ouvi-las, observar, dialogar, caminhar, sentir, deixar-me afetar por, e experienciar junto

aos(às) advogados(as) envolvidos(as) na pesquisa e aos movimentos populares por eles(as)

assessorados; tudo isto me conduziu a refletir sobre a práxis da Assessoria Jurídica Popular; a

qual se encontra intimamente relacionada às resistências e reivindicações de movimentos

assessorados; e, nesse contexto, constitui-se como práxis jurídica.

A vasta riqueza de experiências advindas da práxis da Assessoria Jurídica Popular

instiga, por fim, os últimos fios a tecer a renda os quais se movem na parte conclusiva deste

trabalho.

488

“Acompanhei Luiz Gama a uma das audiências no caso. Impressionou-me a resolução do morador em não

vender a terra, mesmo vivendo sérias complicações financeiras. Este mesmo morador foi o principal atingido

pela violência impetrada contra o grupo anteriormente citado, se encontra hoje gravemente enfermo e morando

na casa de parentes, pois sua casa também foi uma das mais atingidas pela salinização causada pelos criatórios de

camarão que se localizam ao redor de Curral Velho. Ainda em relação à audiência, no diário escrevi: “é nítida a

diferença entre a postura de Luiz Gama e o advogado que acompanhava as outras partes [pressionadas pelo juiz e

pelo advogado do dono da empresa para vender as terras], enquanto este tenta apenas viabilizar o acordo

(pagamento do valor em dinheiro), aquele questiona se quem vendeu tinha a posse, ou se a posse não é daquelas

pessoas [pressionadas à vender], e, ao ser questionado sobre o fato do [morador] não querer vender, ainda que

passasse tanta dificuldade, Luiz Gama diz que aquela terra para o [morador] tem um significado diferente, e que

se deve respeitar sua decisão de não vender”. (Anotações feitas no diário em 29 ago. 2010).

Page 211: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

210

CONCLUSÃO

No segundo capítulo desta dissertação descrevi os caminhos percorridos, desde

outros espaços acadêmicos e profissionais aos tempos de mestranda, os quais foram

apresentando o objeto que, em traços constituídos no decorrer das caminhadas, foi-se

desenhando como a práxis da assessoria jurídica popular junto a movimentos populares

organizados em torno da luta pela terra e pelo território em meio rural no Ceará.

A fim de melhor compreendê-la, indago, preliminarmente, a respeito da relação entre

Direito e movimentos populares. Para compreender os meandros em que atuam os(as)

advogados(as) populares iniciei, no capítulo terceiro, por ouvir falas, histórias e canções de

movimentos populares a fim de perceber significados de Direito(s) constituídas nessas

populações organizadas em torno do direito à terra e ao território, os quais constituem

demandas reivindicativas que dialogam com os assessores jurídicos populares.

As significâncias atribuídas a Direito(s) nesses diversos movimentos confluem em o

quê protege e promove satisfação de necessidades, que contempla coletividades, encontrando

legitimidade na defesa de demandas populares; e, quando isto não se concretiza, o direito à

lutar, resistir, transformar, mudar, teimar emerge no seio desses movimentos.

Esses movimentos populares, em suas reivindicações, requerem aplicações e

interpretações contra-hegemônicas do Direito Estatal; emergem direitos insurgentes;

ressignificam direitos e resistem em torno de direitos, necessidades e interesses anteriormente

constituídos e reconhecidos nesses grupos, levando ao reconhecimento de novos direitos

estatais ou do pluralismo jurídico.

As falas dos movimentos entrevistados apontam que estes percebem o Direito Estatal

Moderno com base em diversos matizes. Estes identificam o Direito ora como o Direito

Estatal, ora como um conceito mais amplo do que o Direito posto pelo Estado. O papel

rasgado pela comunidade de Curral Velho; a fala de uma integrante do MST de que a teimosia

também constitui direitos; as falas de lideranças indígenas referindo-se ao direito que têm às

porções do território retomadas; todas essas coisas nos fazem pensar que há um sentir nesses

movimentos de que o Direito não se resume ao posto pelo Estado. Desse modo, o Direito

Estatal é visto como um instrumento, uma estratégia na busca pela conquista de suas

reivindicações; bem como é percebido como um óbice a essas conquistas.

Por vezes pleiteiam que as interpretações de direitos estatais sejam confluentes com

os significados que atribuem a Direito(s) ou agem impelidos pelo que compreendem como

Page 212: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

211

Direito(s), ainda que isto possa se contrapor ao Direito Estatal. Outras vezes lutam pela

permanência de determinadas normatizações estatais; e, em outros momentos, adquirem força

instituinte de novos direitos diante do Estado.

Quanto aos(às) advogados(as), suas falas assentes no capítulo 3 acerca de suas

percepções sobre as lutas pela terra e pelo território, apontam que estes(as) remetem os

significados produzidos nos movimentos assessorados, precipuamente, a possibilidades de

interpretações do Texto Constitucional de 1988. E reafirmam isto em diversos momentos da

presente pesquisa. Refletem, no entanto, sobre o “direito de ficar”; falam em regras endógenas

presentes em Povos Indígenas e assentamentos. Dizem que o que pretendem os movimentos

por vezes não se encontra na interpretação hegemônica em que ocorre a normatização estatal,

ora situando essas pretensões no campo político, ora como direitos. Os(as) advogados(as),

contudo, expõem que não veem condições política e jurídica para tensionar por novos

significados de Direito(s).

As análises que percebem essas populações organizadas em movimentos populares

como fonte criadora de Direito(s) não são aplicadas na doutrina e jurisprudência hegemônicas

no campo do Direito Estatal Moderno. As razões a isso atinentes é que isso confronta uma das

bases dessa cultura jurídica: a compreensão de que o Direito somente encontra legitimidade de

produção se posto pelo Estado Soberano, nas perspectivas de teorias do Direito ligadas ao

monismo jurídico.

A luta pela concretização de direitos territoriais ocorre em meio a cicatrizes que

inviabilizam o modo de vida dessas coletividades. Dever-se-ia, pois, assegurar os direitos

territoriais antes de situações de conflitos pela permanência na ou conquista da terra, ainda

que saibamos que a vida raramente imita o “dever-ser” jurídico e que é em meio aos conflitos

que essas coletividades se insurgem pela concretização de seus direitos territoriais pela

necessidade de lutar por sua concretização.

E, em relação aos significados de direito à terra, este encontra outros óbices radicados

em questões diversas, como conflitos socioambientais, disputas por sentidos de

desenvolvimento, dentre outras. A lógica da propriedade, no entanto, se constitui em ponto

nevrálgico na contraposição à concretização do direito à terra e ao território, conforme

demonstrei nos capítulos três e quatro por meio das falas de assessorados e assessores, e no

capítulo cinco em que realizei reflexões sobre a elaboração do direito de propriedade no

Brasil.

Page 213: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

212

Essas diversas populações enfrentam problemas ínsitos à sua realidade, contudo, a

nova configuração das formas de produção e exploração em meio rural no Brasil revela que há

questões comuns a confrontar. Estão em curso no Brasil disputas por sentidos de

desenvolvimento e embates por terras e fontes naturais.

Neste quadro, conflitos em torno do direito à terra e ao território ocorrem em meio

aos espaços urbanos e rurais no Brasil, por contrapor-se esse direito à concentração de títulos

de propriedade em pequenos grupos sociais, os quais geralmente utilizam a terra em uma

perspectiva produtivista e mercadológica. Cito como exemplos as empresas de agronegócio,

empreendimentos imobiliários e turísticos excludentes à maioria da população, vazios urbanos

e rurais a serviço da especulação, espaços utilizados na construção de obras

desenvolvimentistas, dentre outras possibilidades.

A estrutura fundiária brasileira informa não apenas a forte concentração de terras em

pouquíssimas mãos, mas também aponta o grande número de pessoas sem-terra e outras que

vivem processos de conflitos pelo reconhecimento de ocupações territoriais tradicionais, ou

pela demarcação de seus territórios.

As diferentes relações com a terra e o território produzem não só conflitos da disputa

por espaços e sentidos de desenvolvimento, bem como revelam a lógica latifundiária e

produtivista capitalista. A terra, vista como propriedade exclusivista, que fundamenta e

viabiliza relações capitalistas de produção, fortalece um pequeno grupo de proprietários (pela

lei estatal), empobrece diversas populações, inviabiliza o acesso à terra a milhares de

trabalhadores(as) rurais sem-terra, e expulsa de seus territórios populações tradicionais e

povos indígenas.

É preciso reconhecer que a racionalidade e a lógica da propriedade privada não é a

lente a ser utilizada na compreensão dos significados dados por essas população ao direito à

terra e ao território. Importa também perceber que as diversas populações indígenas e não

indígenas, as quais estabelecem múltiplas relações com o território, possuem também modos

de ocupação territorial e de distribuição da terra que se diferenciam entre si, utilizando-se

também, por vezes, de apropriações individuais, familiares e coletivas.

Em sendo o Direito Estatal e suas normas frutos de várias forças sociais,

determinadas normatizações e decisões judiciais, ou, em outras vezes, a ausência de decisões e

normas fortalece a racionalidade jurídica a qual interpreta o direito à terra e ao território no

sentido do direito de propriedade em seu viés exclusivista, privatista, produtivista, dogmático.

Page 214: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

213

Isto inviabiliza interpretações outras que atentem para os significados de direito à terra e ao

território produzidos em culturas não hegemônicas e em lutas sociais.

Tal realidade leva à problematização da cultura jurídica hegemônica, como campo

possível de concretização dessas demandas, e nos incita à busca e elaboração de outras

culturas jurídicas que possam constituir campo mais fértil à concretização de Direitos

Humanos, como o Direito à Terra e ao Território, em sua perspectiva intercultural e crítica.

No capítulo 6, realizadas as reflexões sobre os significados dos movimentos

populares em torno do direito à terra e ao território e as visões dos(as) advogados acerca

desses direitos, bem como tendo dissertado sobre os modos como a lógica da propriedade

privada da terra e de determinadas interpretações hegemônicas do direito de propriedade

obstaculizam a concretização do direito à terra e ao território significados pelos movimentos

populares, passei a descrever e analisar a Assessoria Jurídica Popular aos olhos de teóricos no

tema e de assessorados e assessores.

A práxis da Assessoria Jurídica Popular se expressa em diversas experiências,

constituídas em conjunto com os movimentos assessorados. Há profunda riqueza e

complexidade nessa práxis, a qual parte das realidades em que estão inseridos esses

movimentos, estabelece uma relação dialógica com os assessorados, utiliza-se da educação

popular como partilha de saberes entre advogados(as) e movimentos, compreende os limites

do Direito Estatal e tenta ao máximo buscar interpretações que possam se conectar ao que

demandam os movimentos, atua no campo jurídico-político, estabelece estratégias jurídico-

políticas em conjunto com os movimentos populares, respeita a autonomia política desses

movimentos.

Nessa práxis, esses(as) advogados(as) buscam conhecer a realidade das populações

assessoradas, convivendo e dialogando. Percebem dialogicamente suas reivindicações e

buscam assessorá-los em suas lutas não com base no que está hegemonicamente posto no

ordenamento, e sim do que demandam os movimentos. Daí a percepção, por parte dos(as)

advogados(as), de que o Direito (visto aqui como o estatal) é instrumental, estratégico às lutas

dos assessorados, e é demandado em momentos e modos de fortalecer as lutas desses

movimentos populares.

Ademais, os assessores jurídicos buscam essa concretização em articulação com

espaços estatais e não estatais, incluindo-se nisto academia, redes, fóruns, dentre outros. As

demandas e estratégias jurídico-políticas são produzidas e ressignificadas na dinâmica do

Page 215: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

214

cotidiano das lutas pela terra e pelo território, em conjunto assessores-assessorados, com base

na concretude das assessorias constituídas junto aos movimentos populares.

E, em havendo partilha de saberes, os significados atribuídos ao direito à terra e ao

território por esses movimentos são ressignificados por estes com animo nos diálogos com os

assessores, ainda que, tanto assessorados como assessores, apontem que as decisões políticas

cabem aos movimentos; ou seja, decidir ocupar uma terra, retomar porção do território,

derrubar uma cerca em defesa do território, ocupar uma barragem, movimentar-se em torno de

significados atribuídos ao direito à terra e ao território são decisões tomadas no seio desses

movimentos, precipuamente.

A cultura jurídica hegemônica que constitui o Direito Estatal Moderno, no entanto, e

onde se movimentam também assessores e assessorados, cria diversos mecanismos para

inviabilizar interpretações que se confrontem com as pilastras que fundamentam essa cultura,

como a propriedade privada da terra.

Nosso Moderno Direito Estatal foi constituído desconhecendo estrategicamente

outros significados de Direito(s) expressos por sociedades indígenas, africanos escravizados,

quilombolas, brancos pobres, mestiços... Há de se ter, pois, o cuidado para não olhar

novamente com uma atitude colonial para essas populações e passar a encaixar relações,

expressões e experiências ínsitas a essas em nossos pré-conceitos de Direito.

A cultura jurídica hegemônica constitui-se hoje, também, por meio da argumentação,

do convencimento, e isso se interliga à questão do poder, quem tem mais poder de

convencimento considerando as intersecções entre o Direito e a Política(?). Não se parte de

outras realidades (invisibilizadas), de outras vozes (silenciadas), de outros modos de tecer

diálogos (obstaculizados). Nesse âmbito, uma das falas de Luiz Gama traz as seguintes

reflexões: “enquanto os advogados falarem por esses movimentos, estes serão sempre

parcialmente compreendidos, pois os advogados não vivenciam a realidade”.

É importante atentar para o fato de que os direitos postos não representam o fim da

história, fazem parte de um processo histórico. Bem como é preciso refletir sobre uma

característica do sistema sob o qual vivemos mantenedor da ordem social, no qual, por vezes,

absorve a contracultura, ressignificando-a, e transmutando-a em parte da cultura hegemônica

para a pacificação social, quando, muitas vezes, não há pacificação possível nos moldes da

cultura jurídica instituída. O conflito é motor necessário de transformações sociais.

A participação democrática pela via do Direito posto pelo Estado é algo

relativamente novo na história brasileira, adquiriu mais força com as mobilizações em torno

Page 216: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

215

da Constituinte de 1988. Na Constituição, encontram-se normatizações positivadas sob a

pressão de movimentos sociais. Em meio às contradições do ordenamento jurídico estatal, há

diversos dispositivos que servem de esteio a interpretações que reconhecem, promovem,

protegem e garantem os direitos dessas diversas populações.

O Direito Estatal por meio da Constituição Federal de 1988 (CF/1988), ao instituir a

função social da propriedade, o direito à cultura, o direito à vida e os direitos fundamentais a

ela relacionados, o direito a um meio ambiente saudável e sustentável e ao garantir direitos

territoriais de Povos Indígenas e quilombolas; por meio da Convenção 169 da Organização

Internacional do Trabalho, de 1989, adotada pelo Decreto 5.051/2004 (sobre Povos Indígenas

e Tribais); da Lei n° 9.985/2000 (que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de

Conservação – SNUC); e do Decreto n° 6.040/2007 (que Institui a Política Nacional de

Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais), dentre outros

dispositivos, constitui-se como importante arcabouço jurídico na concretização do direito de

acesso à terra e ao território.

Após vinte anos da promulgação da Constituição Federal, descortinam-se, no entanto,

outros elementos que fundamentam a contínua diferença abissal entre as normatizações

estatais e a vida. Considerando-se que mesmo a doutrina hegemônica proclama que vivemos

uma era constitucionalista e que os princípios erigidos na Constituição são centrais e sua força

normativa irradia-se por todo o ordenamento jurídico nacional. Há, entretanto, outra

característica do constitucionalismo brasileiro a ser considerada, a interpretação do Direito é

dada por quem possui competência constitucional para tal.

Há um centralismo jurídico tão intenso que o que o Estado declara como não

normatizado é tomado como ilegal, é criminalizado, e isto é visto como fantasma que paira e

que assusta quem pleiteia um direito diante do Estado.

Nesse âmbito, seguir defendendo apenas a ideia de que não concretização de direitos

ligados a essas populações organizadas é por causa da inefetividade do Direito e

incompetência do Estado, toma a consequência como a causa. Se o Direito não ganha

efetividade em determinadas circunstâncias, e o Estado garante alguns direitos e se omite ou

viola explicitamente outros, é porque há razões disso fundantes, quais sejam, causas que

devem ser analisadas com o objetivo de se buscar transformá-las.

A lógica hegemônica inviabilizadora de interpretações que possibilitam uma conexão

entre esses significados de direito à terra e ao território e o disposto na Constituição Federal de

1988 conflui com a lógica, igualmente hegemônica, que desconhece a existência desses

Page 217: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

216

outros significados de Direito(s) e que delega ao Estado Soberano o uno poder de emanar

normas jurídicas e ditar o sistema em que estas serão aplicadas e interpretadas.

Há dimensões - políticas, econômicas, sociais, culturais - que influem na formação de

um sistema jurídico estatal híbrido ao sistema do capital, colonial, racista, patriarcal e

antropocêntrico, o qual busca mais dirimir conflitos, a pacificação social e a manutenção de

uma ordem na defesa de interesses de determinados grupos sociais e econômicos, mais ligados

ao capital internacional, do que à sociedade brasileira pluriétnica e multicultural.

O Direito Moderno Estatal é operado, assim, não como campo fértil à concretização

de suas normas instituídas, quiçá quando se destina às realidades contra-hegemônicas, e sim

como um campo de lutas quixotescas, as quais provocam fissuras que logo se recompõem no

sistema. Dentro do atual campo jurídico, as fontes de Direito estão subordinadas aos poderes

estatais. Quando muito, a doutrina hegemônica reconhece as fontes não estatais, mas estas,

para serem consideradas como válidas e também legítimas, devem se subordinar às

normatizações do Estado. É preciso, pois, pensar/visibilizar/emergir outros significados

possíveis de Direito(s), e outras culturas jurídicas.

Difícil é compreender como se fazer novas culturas jurídicas mais conectadas às

experiências, reivindicações, resistências e lutas de movimentos populares. Porque é árduo

despir-se de uma racionalidade aprendida desde o curso jurídico. A perspectiva do jurista

volta-se muitas vezes na busca de um campo normativo, “institucionalizado”. É difícil

desenvolver uma racionalidade e sentidos aptos a perceber e dialogar com outros modos de

sociabilidades. E, primordialmente, porque isso não é formulação de uma só pessoa, ou de um

só grupo, ou de uma só população, ou de um só movimento, ou de uma só práxis. É algo a ser

constituído em processos que envolvam a todos.

Concebo, pois, que o que significamos como Direito é algo em disputa, em que a

significância hegemônica (Direito Moderno Estatal) dá-se por meio de contradições e

conflitos. O ordenamento jurídico estatal, por sua vez, se apresenta como um emaranhado de

normas jurídicas positivadas originadas em diversos grupos de interesse. Mesmo nessa

significância (de Direito) hegemonicamente posta, há também contradições e conflitos por

sentidos de interpretação e por instituição de normas estatais, por exemplo.

Essas dimensões estão hibridizadas: as disputas ocorrentes no campo do Direito

hegemônico conectam-se às disputas pelo que significamos como Direito(s). Daí a

importância de se atentar não apenas para as possibilidades que há no Direito Estatal de

instrumentalização para transformação social, mas também de se refletir sobre os

Page 218: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

217

significados de Direito(s) silenciados, a fim de, atentamente, ouvi-los falar, cantar e contar

suas histórias.

Desse modo, perceber a relações desses movimentos com o Direito apenas tomando

como referência o Estado transmuta-se em um pensamento colonial na medida em que

ignoram relações e significâncias enraizadas em vivências e experiências econômicas, sociais,

políticas e culturais no seio dessas populações organizadas. Como descolonizar sem conhecer

as várias realidades que pulsam no continente para além de uma lógica etnocentrada?

Povos do Mangue, Povos Indígenas, e outros tantos, dialogam com o Direito

Moderno Estatal e com o discurso dos Direitos Humanos da ordem internacional, provocando-

lhes releituras e ressignificações com suporte em realidades por essas populações vivenciadas,

bem como constituem em suas relações expressões que podem ser percebidas como relações

de direito, e significados atribuídos a Direito(s). Em populações sem terra organizadas, a

identidade coletiva constituída nos processos da ocupação, de acampamento(s) e do

assentamento, estabelece significados a normas do Direito Moderno Estatal, coletiviza e

fortalece percepções comuns de sentidos de justiça, equidade e significados de Direito(s).

À guisa de reflexão, compreendo que populações momentaneamente não organizadas

em movimentos populares produzem interpretações e sentidos de Direito(s), justiça e equidade

diversas; ainda que, muitas vezes, seja em disputas e conflitos que as populações passem a

organizar-se, havendo afirmações de outros direitos e interpretações com base em significados

constituídos nessas populações.

Há necessidade de refletirmos sobre novas culturas jurídicas que reconheçam e

estabeleçam em conjunto com essas tantas realidades, a fim de se proporcionar o diálogo

intercultural na busca pela ressignificação da cultura jurídica contemporânea hegemônica. Os

Direitos são fruto de elaborações históricas, sociais e políticas presentes em diversas culturas,

tempos históricos e sociabilidades humanas, passíveis de ressignificações interculturais.

Percebo que existe uma cultura jurídica estatal que deve ser compreendida e partícipe do

diálogo, bem como problematizada em seus limites, contradições e historicidade.

Os diversos significados dados ao direito à terra e ao território, ligados às lutas de

assessorados, movimentam os assessores jurídicos populares, os quais buscam uma atuação

jurídico-política cujo objetivo primordial é a busca de estratégias aptas a fortalecer a luta pela

concretização de direitos significados nos movimentos.

Para conhecer esses significados, partem não de normatizações, mas do que denotam

essas populações. Concebem que não se pode pretender falar pelo outro, pois toda visão sobre

Page 219: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

218

outrem parte de uma perspectiva de alguém com a própria historicidade e pré-conceitos. Falar

com em vez de falar sobre, buscar ouvir e conhecer a realidade dessas populações a partir

delas pode ser uma chave essencial na busca da compreensão dos direitos territoriais. É

preciso, pois, (re)conhecer e respeitar os modos de existência e territorializações, e buscar

proporcionar condições para outras populações se territorializarem.

No decurso da pesquisa, no entanto, os(as) advogados(as) ajudaram-me a perceber

que temos que ter cuidado para não homogeneizar essas diversas populações ao

reconhecermos a existência de seus direitos territoriais. O Direito, com seu cunho generalista,

busca sempre constituir normas gerais que possam subsumir a realidade. Esta, contudo, é

sempre mais rica do que qualquer pré-compreensão e normatização específica. Assim, tal

reconhecimento deve trazer consigo interpretações que compreendam que, do mesmo modo

que são diversas as populações, suas historicidades, identidades, culturas; são também

distintas suas relações econômicas, sociais, políticas e naturais com o espaço e múltiplos são

os significados dados ao território por essas populações.

A proximidade, a convivência, a elaboração conjunta de estratégias e demandas

jurídico-políticas, a alteridade desenvolvida pelos assessores, bem como a busca pela

compreensão acerca das lutas e modos de existência dessas populações possibilitam aos(às)

advogados(as) tanto a maior sensibilidade aos significados tecidos nas lutas, como uma visão

crítica acerca daquilo que impede a conquista do que objetivam os movimentos. A práxis da

Assessoria Jurídica Popular acumula experiências e se fortalece no decurso do tempo no que

tange à relação com os movimentos assessorados.

Em tal contexto, ocorrem os desafios para a AJP, como desnaturar e desconstituir

uma cultura jurídica que estrategicamente silencia e ignora outras culturas; movimentar o

Direito, como campo vivo, pulsante, tecido junto à Política e à Cultura, em processos

históricos, o que constitui uma árdua, porém necessária elaboração conjunta, entre

movimentos e juristas populares, de significados de Direito(s), na práxis; buscar constituir

caminhos de formulação de novas culturas jurídicas mais propícias à concretização do direito

à terra e ao território tecido nessas populações organizadas em movimentos populares.

O aporte generalista e igualitarista (no sentido de que a mesma norma deve servir a

todos e todas) é uma das racionalidades jurídicas hoje constituídas que provocam a

perspectiva privatista sobre essas populações. Reconhecer o Brasil como um país pluriétnico e

multicultural, onde há vários sentidos gestados em torno do Direito e de direitos, nos incita à

elaboração de culturas jurídicas que privilegiem essa pluralidade.

Page 220: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

219

Em verdade, destaco, esse desafio se apresenta à academia, ao campo da Assessoria

Jurídica Popular, aos movimentos sociais...; contudo, o campo da AJP é potencialmente fértil

na contribuição a essa elaboração; por permear entre o Direito e Sistema Estatal de Justiça e as

reivindicações nascidas no seio de movimentos assessorados e pelas experiências constituídas

em torno da práxis da AJP entre assessores e assessorados.

Todos nós, juristas imersos na cultura jurídica hegemônica e por ela educados, ainda

estamos presos à lógica do Direito que chegou de caravelas. São diferenciais, além da relação

estabelecida com os assessorados, da Assessoria Jurídica Popular, a sensibilidade e

compreensão dos(as) advogados(as) populares dos diversos significados de direito à terra e ao

território tecidos pelos movimentos e os fatores jurídico-político que obstaculizam sua

concretização.

As interpretações estão em curso. Ainda há muito o que se compreender em

processos hermenêuticos que busquem interpretar a CF/88 à luz dessas outras culturas e em

diálogo com essas... Porque o mais legítimo seria um constitucionalismo intercultural, desde a

formação da Assembleia Constituinte, até a oportunidade real de participação popular dos

diversos segmentos. Ousaria bem mais em dizer que o que me parece ainda mais legítimo é

um debate público sobre qual cultura jurídica poderia se apresentar como a potencialmente

mais fértil a essa diversidade: o constitucionalismo é a melhor via? Só saberemos por meio do

diálogo. Do contrário, seguiremos tentando buscar adaptações e interpretações normativas

sempre com base numa cultura jurídica constituída à revelia dessas populações.

Por fim, é importante perceber que, ainda havendo diversidade nos significados

dados ao direito à terra e ao território, é em rede, na união e solidariedade entre esses diversos

movimentos, que se pode potencializar a conquista de equidade no acesso e distribuição

territorial. Pensarmos, nesse contexto, em redes de assessores jurídico populares,

pesquisadores e movimentos populares que pudessem provocar um encontro de saberes na

consecução de Direitos Humanos Interculturais e Críticos talvez pudesse potencializar ainda

mais, pois, ao contrário do que a cultura jurídica hegemônica em que fomos educados teima

em nos ensinar, a realidade é sempre mais rica e fértil do que nos conta o Moderno e Estatal

Direito.

Page 221: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

220

REFERÊNCIAS

ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo (Orgs.). Assessoria Jurídica Popular: Leituras

Fundamentais e Novos Debates. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009.

ALEGRE, Sylvia Porto. De ignorados a reconhecidos: a “virada” dos povos indígenas no

Ceará. In: PINHEIRO, Joceny (Org.). Ceará terra da luz, terra dos índios: história,

presença, perspectiva. Fortaleza: Ministério Público Federal, 2002.

Page 222: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

221

ALFONSIN, Jacques Távora. O Acesso à Terra como Conteúdo de Direitos Humanos

Fundamentais à Alimentação e à Moradia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003.

_________________________. Do Pobre Direito dos Pobres à Assessoria Jurídica Popular.

In: ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo (Orgs.). Assessoria Jurídica Popular: Leituras

Fundamentais e Novos Debates. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009.

ARAÚJO, Ana Valéria et all. Povos Indígenas e a Lei dos “Brancos”: o direito à diferença.

Brasília: Ministério da Educação/LACED/Museu Nacional, 2006.

ARAÚJO, Telga de. A propriedade e sua função social. In: LARANJEIRA, Raymundo (Org.).

Direito Agrário Brasileiro. São Paulo: LTR, 1999.

ASSARÉ, Patativa do. Cante lá, que eu canto cá. Disponível em:

<http://www.blocosonline.com.br/literatura/poesia/p01/p010389.htm>; acesso em 18 jun.

2011.

BALDEZ, Miguel Lanzellotti. Anotações sobre Direito Insurgente. In: Captura Críptica:

direito, política, atualidade. Revista Discente do Curso de Pós-Graduação em Direito da

Universidade Federal de Santa Catarina. n 3, Vol. 1, jul./dez. 2010. Florianópolis:

Universidade Federal de Santa Catarina, 2010.

BARRETO FILHO, Invenção ou renascimento? Gênese de uma sociedade indígena

contemporânea no Nordeste. In: OLIVEIRA, João Pacheco de (Org.). A viagem da volta:

etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. 2. ed. Rio de Janeiro: Contra

Capa/LACED, 2004.

BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da

Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005.

BRASIL. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. II Plano Nacional de

Reforma Agrária: Paz, Produção e Qualidade de Vida no Meio Rural, 2003, p. 11.

Disponível em: <http://sistemas.mda.gov.br/arquivos/PNRA_2004.pdf>; acesso em 08 jul.

2010.

BRAZ, Isabelle. O Relatório Provincial de 1863: um documento, muitas leituras. Trabalho

apresentado no XXV Simpósio Nacional de História, Simpósio Temático 36: Os Índios na

História, 2009, Fortaleza. Disponível em:

<http://www.ifch.unicamp.br/ihb/Trabalhos/ST36Isabelle.pdf >; acesso em 16 jun. 2011.

_____________. Direitos Humanos e Observatório dos Direitos Indígenas. In: BRAZ,

Isabelle; MARANHÃO, Mas (Orgs.). Direitos Humanos e a Questão Indígena no Ceará.

Fortaleza: Imprensa Universitária, 2009.

CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e Direito Alternativo. São Paulo: Acadêmica,

1992.

CAMPILONGO, Celso Fernandes. Assistência Jurídica e Realidade Social: apontamentos

para uma tipologia dos serviços legais. In: CAMPILONGO, Celso; PRESSBURGER, Miguel.

Page 223: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

222

Discutindo a Assessoria Popular. Coleção “Seminários” n 15. Rio de Janeiro: Instituto

Apoio Jurídico Popular, 1991.

_____________________________. Assistência Jurídica e Advocacia Popular: serviços

legais em São Bernardo do Campo. In: ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo (Orgs.).

Assessoria Jurídica Popular: Leituras Fundamentais e Novos Debates. Porto Alegre:

EDIPUCRS, 2009.

______________________________. Direito e Diferenciação Social. São Paulo: Saraiva,

2011.

CARVALHO, Alba Maria Pinho de. O exercício do ofício da pesquisa e desafio da construção

metodológica. In: BAPTISTA, Maria Manuel (Edição). Cultura: metodologias e

investigações. Lisboa: Ver O Verso, 2009.

CASTRO, Gigi (Org.). Manguezais x Carcinicultura: lições aprendidas. Fortaleza: Fórum

em Defesa da Zona Costeira do Ceará, 2009.

COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade.

Revista do Conselho de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, ano I,

dezembro de 1997.

__________________________. A Política Agrária no Brasil. Publicado em 28 ago. 2008.

Disponível em <http://www.limitedaterra.org.br/noticiasDetalhe.php?id=65>; acesso em 12

jun. 2011.

CONSELHO EDITORIAL. Apresentação à Coleção. In: Diversidade do Campesinato:

expressões e categorias. Vol. 2. Estratégias de Reprodução Social. GODOI, Emilia Pietrafesa

de; MENEZES, Marilda Aparecida de; MARIN, Rosa Acevedo (Orgs.). São Paulo: UNESP;

Brasília: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009.

CONSELHO NACIONAL DA RESERVA DA BIOSFERA DA MATA ATLÂNTICA.

SNUC Sistema Nacional de Unidades de conservação: texto da Lei 9.985 de 18 de julho de

2000 e vetos da presidência da República ao PL aprovado pelo Congresso Nacional.

Cadernos, n 18. 2. ed. São Paulo: Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata

Atlântica, 2000.

CUNHA, Manuela Carneiro. O futuro da questão indígena. Estudos Avançados, 1994.

Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/ea/v8n20/v8n20a16.pdf>; acesso em 17 jun. 2011.

DAMASCENO, Maria Nobre; THERRIEN, Jacques. Introdução. In: DAMASCENO, Maria

Nobre; THERRIEN, Jacques (Orgs.). Artesãos de um outro ofício: múltiplos saberes e

práticas no cotidiano escolar. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secretaria de Cultura e

Desporto do Governo do Estado do Ceará, 2000.

DIEGUES, Antonio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: Hucitec,

1996.

Page 224: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

223

_______________________. Etnoconservação da Natureza: enfoques alternativos. In:

DIEGUES, Antonio Carlos (Org.). Etnoconservação: novos rumos para a proteção da

natureza nos trópicos. São Paulo: HUCITEC; NUPAUB-USP, 2000.

DIEGUES, Antonio Carlos; ARRUDA, Rinaldo. Saberes Tradicionais e Biodiversidade no

Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente; São Paulo: USP, 2000.

DUPRAT, Deborah. Palestra proferida no Seminário “20 anos da Constituição Federal –

Desafios para garantir a aplicabilidade do direito humano à terra e ao território”. Na

Câmara dos Deputados, Brasília, 26 nov. 2008, p. 3-5. Compilação realizada pelo

Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação da Câmara dos Deputados. Disponível em

<http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-

permanentes/clp/notas-taquigraficas/2008/direito-humano-a-terra-e-ao-territorio>; acesso em

22 jun. 2011.

ESCOSTEGUY FILHO, João Carlos. Tráfico de escravos e direção Saquarema no Senado

do Império do Brasil. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal

Fluminense (UFF), Rio de Janeiro, 2010.

FALCÃO, Ismael Marinho. Direito Agrário Brasileiro. Bauru: EDIPRO, 1995.

FALCÃO, Joaquin. A Manera de Introduccion Democratizacion y Servicios Legales em

America Latina. In: Los Abogados y la Democracia em America Latina. Primeira edición:

ILSA – Instituto de Servicios Legales Alternativos, Quito, Ecuador, 1986.

FAVRET-SAADA, Jeanne. SIQUEIRA, Paula (Trad). “Ser afetado”. Cadernos de Campo

n13. Revista dos Alunos de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP, 2005.

FLORES, Joaquín Herrera. GARCIA, Carlos Roberto Diogo (Tradução). A (Re)Invenção dos

Direitos Humanos. Florianópolis: Boiteux, 2009.

GASSEN, Valcir. A Natureza Histórica da Instituição do Direito de Propriedade. In:

WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte:

Del Rey, 2010.

GODOI, Emilia Pietrafesa de; MENEZES, Marilda Aparecida de; MARIN, Rosa Acevedo

(Orgs.). Diversidade do Campesinato: expressões e categorias. Vol. II. Estratégias de

Reprodução Social. São Paulo: Editora UNESP; Brasília-DF: Núcleo de Estudos Agrários e

Desenvolvimento Rural, 2009.

GOLDMAN, Marcio. Jeanne Favret-Saada, os afetos, a etnografia. Cadernos de Campo

n13. Revista dos Alunos de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP, 2005.

GOMES, Orlando. Direitos Reais. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

GORGEN, Frei Sergio. Análise do Censo Agropecuário de 2006, algumas informações

importantes. Revista Ecodebate: Cidadania & Meio Ambiente. 9 jan. 2010.

Page 225: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

224

GORSDORF, Leandro Franklin. Assessoria Jurídica Popular e a construção de um novo

senso comum emancipatório. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Federal do

Paraná (UFPR), Curitiba, 2004.

___________________________. Conceito e sentido da assessoria jurídica popular em

direitos humanos. In: FRIGO, Darci e outros (Orgs.). Justiça e Direitos Humanos:

experiências de assessoria jurídica popular – Curitiba, PR. Curitiba: Terra de Direitos, 2010.

GRÜNEWALD, Rodrigo de Azeredo. Etnodesenvolvimento indígena no Nordeste (e Leste):

aspectos gerais e específicos. In: ATHIAS, Renato. Revista AntHropológicas. Ano 7,

volume 14, Universidade Federal de Pernambuco: 2003.

HOLANDA, Cecília. Em entrevista concedida a An Coppens. Publicada no Jornal Diário

do Nordeste, em 5 ago. 2007. Informação disponível em

<http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=458392>; acesso em 11 jun. 2011.

JOCA, Priscylla; NÓBREGA, Luciana. O Olhar de Advogados(as) Populares: o direito a terra

e a pluralidade de movimentos sociais. In: WACHOWICZ, Marcos; MATIAS, João Luis

Nogueira (Org.). Direito de propriedade e meio ambiente: novos desafios para século XXI.

Florianópolis: Fundação Boiteux, 2010.

________________________________. “Não mangue de mim, não mangue, sou mangue vou

lhe mostrar": um estudo sobre os impactos socioambientais da carcinicultura na comunidade

de Curral Velho - Acaraú/Ceará. II Encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia, 2010,

Belém. In: Sociedade Brasileira de Sociologia da Região Norte (Org.). Amazônia: mudanças

sociais e perspectivas para o século XXI. Belém: Universidade Federal do Pará, 2010.

________________________________. O Direito a Terra, ao Território e ao Meio Ambiente

do Povo do Mangue. In: WACHOWICZ, Marcos; MATIAS, João Luis Nogueira (Org.).

Propriedade e Meio Ambiente: em busca de sua convergência. Florianópolis: Boiteux, 2010.

_________________________________. Populações Tradicionais, Território e Meio

Ambiente: um estudo sobre a carcinicultura e a comunidade de Curral Velho - Acaraú/Ceará.

XIX Encontro Nacional do CONPEDI, 2010, Fortaleza. In: Anais do XIX Encontro Nacional

do CONPEDI – Fortaleza. Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux, 2010.

JUNQUEIRA, Eliane. Los Abogados Populares: em busca de una identidad. In: EL OTRO

DERECHO, número 26-27. Abril de 2002. ILSA, Bogotá D.C., Colombia.

LEONARDO, Patrícia Xavier. MARMO, Ana Carolina. Adolpho Gordo e Bertha Lutz: A

Luta pelo Voto Feminino. Publicado na página virtual do Centro de Memória Arquivos

Históricos da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas. Disponível em:

<http://www.centrodememoria.unicamp.br/arqhist/content/uploads/arquivos/pdf/votofem.pdf>

; acesso em 7 Mai 2011.

LUCINDA, Elisa. A Fúria da Beleza. In: LUCINDA, Elisa; ALVES, Rubem. A Poesia do

Encontro. Campina: Papirus 7 Mares, 2008.

LUZ, Vladimir. Assessoria Jurídica Popular no Brasil: Paradigmas, Formação Histórica e

Perspectivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

Page 226: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

225

MAIA, Christianny Diógenes. Assessoria Jurídica Popular: teoria e prática emancipatória.

Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, 2006.

MARANHÃO, Max. Povos e Comunidades Tradicionais no Ceará. In: PALILOT, Estêvão

Martins (Org.). Na mata do sabiá: contribuições sobre a presença indígena no Ceará.

Fortaleza: Secult/ Museu do Ceará/IMOPEC, 2009.

MATIAS, João Luis Nogueira; ROCHA, Afonso de Paula Pinheiro. Repensando o direito de

propriedade. XV Congresso Nacional do CONPEDI, 2006, Manaus. In: Anais do XV

Congresso Nacional do CONPEDI – Manaus, Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux,

2006.

MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formação do Estado Imperial. 5. ed.

São Paulo: HUCITEC, 2004.

MEDEIROS, Cleyber Nascimento. Análise da Estrutura Fundiária da Região Nordeste e

do Estado do Ceará durante o período 1970-2006. Instituto de Pesquisa e Estratégia

Econômica do Ceará, 2010. Disponível em

<http://www2.ipece.ce.gov.br/encontro/2010/trabalhos/Analise_da_estrutura_fundiaria.pdf>;

acesso em 12 jun. 2011.

MENDES, Gilmar Ferreira. O direito de propriedade na Constituição de 1988. In: MENDES,

Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de

Direito Constitucional. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.

MILLS, C. Wright; DUTRA, Walstensir (trad.). A Imaginação Sociológica. Rio de Janeiro:

Zahar, 1982.

MONZILAR FILHO, Hélio. Estudantes Indígenas do Curso de Direito do Mato Grosso:

limites e possibilidades para a formação. Trabalho Apresentado no “Seminário Formação

Jurídica e Povos Indígenas Desafios para uma educação superior”, 2007, Belém. Disponível

em:

<http://www.ufpa.br/juridico/documentos/ESTUDANTES_INDIGENAS_DO_CURSO_DE_

DIREITO_NO_MATO_GROSSO_LIMITES_E_POSSIBILIDADE_PARA_A_FORMACAO

-HELIO_FILHO.pdf>; acesso em: 25 mai. 2011.

MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Os desafios da Luta pela

Reforma Agrária Popular e do MST no Atual Contexto. Caderno de Debates n 1. Outubro

2009.

MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Por que defender a

concessão de uso. 2010. Disponível em

<http://www.mst.org.br/jornal/302/realidadebrasileira>; acesso em 18 jun. 2011.

MOREIRA, Márcio Alan Menezes; VELOSO, Gabriela de Araújo Zaupa. Advocacia Popular:

percursos teóricos e práticos na defesa de direitos humanos. In: MOREIRA JÚNIOR, José

Ilton Lima; FERREIRA, Maria de Lourdes Vieira; GOMES, Patrícia de Oliveira (Orgs.).

Práxis em Assessoria Jurídica Popular e Direitos Humanos no Ceará: Experiências do

Escritório Frei Tito de Alencar. Fortaleza: INESP, 2010.

Page 227: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

226

MOTA, Márcia. Dicionário da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

NASCIMENTO, Marco Tromboni de S. Toré Kiriri: O sagrado e o étnico na reorganização

coletiva de um povo. In: GRÜNEWALD, Rodrigo de Azeredo (Org.). Toré: regime

encantado dos índios do Nordeste. Recife: Fundaj, Editora Massangana, 2005.

NÓBREGA, Luciana; JOCA, Priscylla. Povo Indígena Anacé e o Complexo Industrial e

Portuário do Pecém: tessituras socioambientais de um “Admirável Mundo Novo”. In:

WACHOVICZ, Marcos; MATIAS, João Luis Nogueira (Org.). A Efetivação do Direito de

Propriedade para o Desenvolvimento Sustentável: relatos e proposições. Florianópolis:

Boiteux, 2010.

OCTAVIANO DO VALLE, Carlos Guilherme. Torém/Toré: tradições e invenção no quadro

de multiplicidade étnica do Ceará contemporâneo. In: GRÜNEWALD, Rodrigo de Azeredo

(Org). Toré: Regime encantado do índio do Nordeste. Recife: Fundaj, Editora Massangana,

2005.

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de; STEDILE, João Pedro. A Natureza do Agronegócio no

Brasil. Via Campesina, 2005.

______________________________. Material utilizado em palestra proferida no Seminário

“Direitos Sociais - Avanços e Perspectivas", Brasília, 17 de junho de 2010. Disponível em

<http://www.direitosociais.org.br/_arquivos/2010/344__questaoagrariaparte2.pdf>; acesso em

08 jul. 2010.

OLIVEIRA, João Pacheco de. Três teses equivocadas sobre o indigenismo: em especial sobre

os índios do Nordeste. In: ESPÍRITO SANTO, Marco Antônio do (Org.). Política

Indigenista: Leste e Nordeste Brasileiro. Brasília: FUNAI/DEDOC, 2000.

________________________. Os Caxixó do Capão do Zezinho: uma comunidade indígena

distante da imagem da primitividade do índio genérico. In: SANTOS, Ana Flávia Moreira;

OLIVEIRA, João Pacheco de. Reconhecimento étnico em exame: dois estudos sobre os

Caxixó. Rio de Janeiro: Contracapa, 2003.

________________________. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial,

territorialização e fluxos territoriais. In: OLIVEIRA, João Pacheco de (Org.). A viagem da

volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. 2. ed. Rio de Janeiro:

Contra Capa/LACED, 2004.

___________________________. Prefácio. In: OLIVEIRA, João Pacheco de. Prefácio. In:

GRÜNEWALD, Rodrigo de Azeredo (Org). Toré: Regime encantado do índio do Nordeste.

Recife: Fundaj, Editora Massangana, 2005.

PALACIO, Germán. Los abogados y la democracia en América Latina. EL OTRO

DERECHO, Nº 1. Agosto de 1988, ILSA, Bogotá D.C., Colombia.

PAULA, Roberto de. Direito Agrário Constitucional: a propriedade privada da terra à luz da

Constituição Federal e da justiça. São Leopoldo: Oikos, 2007.

Page 228: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

227

PAZELLO, Ricardo Prestes. A Produção da Vida e o Poder Dual do Pluralismo Jurídico

Insurgente: ensaio para uma teoria de libertação dos movimentos populares no choro-canção

latino-americano. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Santa

Catarina (UFSC), Florianópolis, 2010.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. 3.

ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.

PINHEIRO, Joceny. Ceará terra da luz, terra dos índios: história, presença, perspectivas.

Fortaleza: Ministério Público Federal/ FUNAI/IPHAN, 2002.

PLATAFORMA DHESCA (Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais

Culturais e Ambientais) et alii. Carta Informativa da Sociedade Civil Brasileira ao

Relator Especial das Nações Unidas para o Direito Humano à Alimentação Adequada.

Disponível em <http://terradedireitos.org.br/wp-content/uploads/2010/03/Informational-

Letter-Brazilian-Civil-Society-to-the-UN-Special-Rapporteur-on-the-Right-to-Food-1.pdf>;

acesso em 08 jul. 2011.

PRESSBURGER. Miguel e outros. Direito Insurgente: o direito dos oprimidos. Coleção

“Seminários” n°14. Rio de Janeiro: Apoio Jurídico Popular, 1990.

PRESSBURGER, Miguel. A Construção do Estado de Direito e as Assessorias Jurídicas

Populares. In: CAMPILONGO, Celso; PRESSBURGER, Miguel. Discutindo a Assessoria

Popular. Coleção “Seminários” n 15. Rio de Janeiro: Instituto Apoio Jurídico Popular, 1991.

_____________________. Direito, a alternativa. Em: ORDEM DOS ADVOGADOS DO

BRASIL – RJ. Perspecivas sociológicas do direito: 10 anos de pesquisa. Rio de Janeiro:

Thex/OAB-RJ/Universidade Estácio de Sá, 1995.

RAMOS, Vanessa. Latifúndio impôs índice de produtividade à Constituição, mas rejeita

aplicação. Notícia publicada em 8 dez. 2010. Disponível em:

<http://www.limitedaterra.org.br/noticiasDetalhe.php?id=336>; acesso em 13 jun. 2011.

ROJAS, Fernando. Comparación entre los tendencias de los servicios legales em

Norteamérica, Europa e América Latina. Primeira Parte. EL OTRO DERECHO, Nº 1.

Agosto de 1988, ILSA, Bogotá D.C., Colombia.

________________. Comparación entre los tendencias de los servicios legales em

Norteamérica, Europa e América Latina. Segunda Parte. EL OTRO DERECHO, Número 2.

Enero de 1989, ILSA, Bogotá D.C., Colombia.

RIBAS, Luiz Otávio. Direito Insurgente e Pluralismo Jurídico: assessoria jurídica de

movimentos populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-2000). Dissertação

(Mestrado em Direito). Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2009.

___________________. O que é assessoria jurídica popular? Texto publicado em

<http://assessoriajuridicapopular.blogspot.com/p/o-que-e-assessoria-juridica-popular.html>;

acesso em: 03 Jun 2010.

Page 229: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

228

___________________. UDR e TFP: A Força bruta que enterrou a reforma agrária na

Constituinte de 1987. Revista Digital Em Debate. Laboratório de Sociologia do Trabalho da

Universidade Federal de Santa Catarina. 2011. Disponível em

<http://www.incubadora.ufsc.br/index.php/emdebate/article/view/539/644 >; acesso em 22

jun. 2011.

RIGOTO, Raquel. Em entrevista concedida a Manuela Azenha, agencia Vi o Mundo. 22

fev. 2011. Disponível em <http://port.pravda.ru/busines/08-03-2011/31359-

rigotto_agronegocio-0/ >; acesso em 18 jun. 2011.

SABA, Roberto. O Libelo do Povo: um incêndio em terras saquaremas. Revista Em Tempo

de História, n 14, 2009. Disponível em Disponível em

<http://www.red.unb.br/index.php/emtempos/article/view/2726>; acesso em 12 jun. 2011.

SAFATLE, Vladimir. A democracia para além do Estado de Direito? O desafio de pensar a

democracia em tudo aquilo que se encontra à margem do estado de direito. Dossiê: A

Democracia e seus Impasses. Cult. São Paulo: n° 137, jul 2009.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política.

São Paulo: Cortez, 2006.

____________________________. AÑÓN, Carlos Lema (Trad.). Sociología Jurídica

Crítica: para um nuevo sentido común em el derecho. Madrid: Trotta, 2009.

SANTOS, Boaventura de Sousa; NUNES, João Arriscado. Introdução: para ampliar o cânone

do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa.

Reconhecer para Libertar: Os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2003.

SANTOS, Maria do Livramento. Rastros na lama do manguezal. Curral Velho, Ceará, 06

nov. 2005.

SAUER, Sérgio. Palestra proferida no Seminário “20 anos da Constituição Federal –

Desafios para garantir a aplicabilidade do direito humano à terra e ao território”. Na

Câmara dos Deputados, Brasília, 26 nov. 2008. Compilação realizada pelo Departamento de

Taquigrafia, Revisão e Redação da Câmara dos Deputados. Disponível em

<http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-

permanentes/clp/notas-taquigraficas/2008/direito-humano-a-terra-e-ao-territorio>; acesso em

22 jun. 2011.

______________. Terra e Modernidade: a reinvenção do campo brasileiro. São Paulo:

Expressão Popular, 2010.

SAUER, Sérgui (Relator); FLORÊNCIO, Jackeline (Assessoria). Relatoria do Direito

Humano à Terra, Território e Alimentação. Relatório da Missão Petrolina e Região do Rio São

Francisco (PE). Violações de Direitos Humanos de Comunidades Quilombolas e

Ribeirinhas, Povos Indígenas e famílias assentadas de reforma agrária às margens do rio

São Francisco. Plataforma de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e

Ambientais. Brasília (DF); Recife (PE): dezembro de 2010.

Page 230: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

229

SCHERER-WARREN, Ilse. O caráter dos novos movimentos sociais. In: Uma Revolução no

Cotidiano? Os novos movimentos sociais na América Latina. São Paulo: Brasiliense, 1987.

_______________________. Redes de Movimentos Sociais. 2. ed. São Paulo: Edições

Loyola, 1996.

_______________________. Redes para a (re)territorialização de espaços de conflito: os

casos do MST e MTST no Brasil. 2009. Disponível em:

<http://www.npms.ufsc.br/lpublic/SWarren.pdf>; acesso em 18 jun. 2011.

SILVA, Ligia Osorio. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de 1850. 2. ed.

Campinas: UNICAMP, 2008.

SILVA, Sonia Rebouças da; SILVA, Lucia Maria Ramos; KHAN, Ahmad Saeed.

Fruticultura e Regionalização da Produção Agrícola no Ceará. Disponível em

<http://www.sober.org.br/palestra/12/12O521.pdf >; acesso em 18 jun. 2011.

SOTOMAYOR, Katiuscia; MACEDO, Gustavo Rodrigues. Governo foge do debate sobre a

construção da Usina de Belo Monte. Publicado em 4 dez. 2009. Disponível em:

<http://blogapib.blogspot.com/search?q=tu%C3%ADra>; acesso em 27 abr. 2010.

SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de (org.). Introdução Crítica ao Direito. Série o Direito

Achado na Rua. 4. ed, Brasília: Universidade de Brasília, 1993.

SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A Função Social da Terra. Porto Alegre:

Sergio Antonio Fabris, 2003.

_____________________________________. O Renascer dos Povos Indígenas para o

Direito. 6. reimp. Curitiba: Juruá, 2009.

STAUT JR., Sérgio Said. Cuidados metodológicos no estudo da história do direito de

propriedade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, n. 42,

2005.

STÉDILE, J. P. (Org). Questão Agrária no Brasil. São Paulo: Atual, 1997, apud

STEFANIAK, Jeaneth Nunes. Propriedade e Função Social: perspectivas do ordenamento

jurídico e do MST. Ponta Grossa: UEPG, 2003.

STÉDILE, João Pedro. Introdução. In: STÉDILE, João Pedro. A Questão Agrária no Brasil.

Vol. I. O Debate Tradicional – 1500-1960. São Paulo: Expressão Popular, 2005.

STEDILE, João Pedro (Org.). A Questão Agrária no Brasil. Vol. II. O debate na esquerda:

1960-1980. São Paulo: Expressão Popular, 2005.

UNESCO; ISA. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas:

perguntas e respostas. Brasília: 2008. Disponível em

<http://unesdoc.unesco.org/images/0016/001627/162708POR.pdf>; acesso em 03 jul. 2011.

VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. CARDOSO, Luiz Fernando (Trad.). Filosofia da Práxis. 3. ed.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

Page 231: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

230

VERAS, Clédia Inês Matos. O Curso Prolongado do Movimento dos Trabalhadores Sem

Terra no Ceará e o Processo de Formação Política da Juventude. Dissertação (Mestrado

em Educação) - Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, 2007.

WAGNER, Alfredo. Agroestratégias e Desterritorialização: Direitos Territoriais e Étnicos

na mira dos estrategistas dos agronegócios. Disponível em:

<http://www.tribunalpopular.org/?q=node/392>, publicado em 27 mai. 2011; acesso em 8 jul.

2011.

WARAT, Luis Alberto. A Produção Crítica do Saber Jurídico. In: PLASTINO, Carlos A.

(org). Crítica do Direito e do Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito. Vol. I. Interpretação da lei: temas para

uma reformulação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994.

WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no

Direito. São Paulo: Alfa Omega, 2001.

_________________________. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 6. ed. São

Paulo: Saraiva, 2008.

_________________________. As Necessidades Humanas como Fonte Permanente de

Direitos Insurgentes. In: PIRES JUNIOR, Paulo Abrão; TORELLY, Marcelo Dalmás (Orgs.).

Assessoria Jurídica Popular: leituras fundamentais e novos debates. Porto Alegre:

EDIPUCRS, 2009.

_________________________. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

ZANELLA, Andréia Vieira; BALBINOT, Gabriela; PEREIRA, Renata Susan. A renda que

enreda: Analisando o processo de constituir-se rendeira. Disponível em

<http://www.scielo.br/pdf/es/v21n71/a11v2171.pdf>; acesso em 21 abr. de 2011.

ZARANZA, Janaina Sampaio; GASPAR, Larissa Maria Fernandes; MACIEL, Maria do

Socorro Camelo. Políticas Públicas de Enfrentamento da Violência contra a Mulher: a

experiência de Fortaleza. In: ALVES, Maria Elaene Rodrigues; VIANA, Raquel (Orgs.).

Políticas para as mulheres em Fortaleza: desafios para a igualdade. São Paulo: Fundação

Friedrich Ebert, 2008.

Page 232: UFCrepositorio.ufc.br/.../12599/1/2011_dis_mpmjmartins.pdf · 2015. 6. 5. · Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno

231