2016 09-18 - gn - ser mulher - adriana de matos pedrosa 2 -10 d

5
Abril de 2016 Ser Mulher Concurso Ler & Aprender Adriana de Matos Pedrosa, n.º 2 – 10.º D Escola Básica e Secundária de Anadia

Upload: graca-matos

Post on 16-Feb-2017

61 views

Category:

Education


1 download

TRANSCRIPT

Abril de 2016

Ser Mulher

Concurso Ler & Aprender

Adriana de Matos Pedrosa, n.º 2 – 10.º D

Escola Básica e Secundária de Anadia

2

Ser Mulher

- É muita giro!

- E rico.

- Está a terminar Civil.

E a conversa continuava à mistura com risinhos coquetes e, simultaneamente, inocentes entre mim e

as minhas colegas, enquanto comentávamos os rapazes que passavam.

Aquele, porém, ficou-me na memória por… nem sei bem o quê, talvez por um simples olhar que nos

envolveu e que me deixou arrepiada.

Os meus pensamentos andaram febris durante os dias que se seguiram, sem eu saber muito bem o

que haveria de fazer.

Evidentemente que, conhecendo-me quase como eu própria, os meus amigos aperceberam-se da

minha agitação interna e não me deixaram descansar enquanto não revelei o meu segredo.

Não havia nada a fazer. A minha paixoneta por aquele Adónis haveria de passar. Eu nem o conhecia!

Porém, não passava…

Tudo aconteceu, por um mero acaso, quando decidi ir estudar para a Biblioteca Geral da Universidade.

Nessas ocasiões, gostava de o fazer sozinha e, portanto, era assim que me encontrava. Quando me sentei

naquele lugar austero, escolhi uma das secretárias duplas completamente desocupada, pois gosto de estar

sozinha. Não demorou muito a que o lugar vazio ficasse ocupado. O que esperava eu?

Naquele lugar em que o silêncio impera, senti um papel intrometer-se entre mim e o livro que

consultava. A nota nele impressa não tinha a ver com a matéria. Dizia: “- Queres sair hoje à noite?”

A minha vontade foi pegar nos meus livros e mudar-me de lugar. Contudo, quando iniciei os meus

intentos apercebi-me de que o autor da missiva era o meu belo Adónis. O meu rosto deve ter ficado

carmesim, pois senti o calor subir e a invadir todo o meu corpo, paralisando-me os movimentos. O seu sorriso

cativante embriagou os meus já fracos sentidos e pressenti a minha cabeça a desobedecer à razão e a acenar

um sim, louco de emoções.

O estudo desconcentrado voava para o armário do meu quarto e vagava pelas roupas elegendo o

vestuário perfeito.

A noite mágica e deslumbrante, não podia ter corrido melhor. O restaurante, embora já meu

conhecido, pareceu-me bem diferente. Mais romântico e acolhedor do que todas as outras vezes em que ali

me deslocara em companhia de amigos ou familiares.

A conversa apesar de vulgar, foi sensacional. Cada frase dita por um era imediatamente completada

pelo outro. Rimos, trocámos ideias e ideais. Enfim, fomo-nos conhecendo.

Ao longo de um ano vivi o sonho de qualquer mulher. Ou a ilusão de muitas mulheres. Pois os sinais

estavam lá, mas eu fiz-me cega e segui a minha louca aventura enveredando por um caminho quase sem

retorno.

Saíamos, divertíamo-nos. Achava divertido sempre que ele se irritava por eu dar atenção a um

qualquer outro colega meu. Sentia os seus olhos postos em mim sempre que era a última a chegar a um

encontro. Aborrecia-se com as minhas desculpas, mesmo daquela vez em que eu tinha demorado mais a

fazer uma frequência.

3

- São ciúmes! - dizia eu, num misto de prazer e de gozo, que o deixava com o olhar vítreo que, na

altura, até me dava uma certa satisfação.

Às vezes pegava-me no braço e apertava-me de tal modo que chegava quase a assustar-me. Mas, eu

desvalorizava e seguia em frente, certa de que lhe passaria a frustração, como eu também lhe chamava.

O pedido de casamento foi idílico. Andávamos há cerca de ano e meio quando tudo aconteceu.

Os dois já tínhamos acabado entretanto a faculdade e o trabalho, que na altura se encontrava com

relativa facilidade, era uma realidade que tínhamos à nossa espera, pelo que ambos estávamos já a exercer

as nossas profissões.

Aos fins de semana encontrávamo-nos para passear, andar de bicicleta e, à noite, normalmente íamos

até ao cinema, ou à discoteca para uma dança, ou até a um bar, sempre com os amigos.

O domingo vislumbrava-se soalheiro e eu levantara-me cedo para caminhar à beira-mar. Algo que

gostava de fazer aos domingos, quando o tempo assim o permitia. No final da minha caminhada o meu lugar

de destino era, invariavelmente, a esplanada do Bar da Praia, onde o João, ou a Vera, preparavam, assim

que me viam, a minha torrada e a meia de leite. Era esta a minha rotina domingueira!

Nesse dia entrei na esplanada e não vi nem a Vera, nem o João, nem o meu tão desejado pequeno

almoço. Intrigada, tentei debruçar-me no balcão e espreitar a cozinha a ver se via ou ouvia algum som.

O som do velho piano solta-se no silêncio daquela manhã e escuto logo de seguida a voz do meu

namorado que entoa um canto desconhecido, porém que capta a minha atenção não pelas rimas bem feitas,

pois ele nunca soube rimar, mas pelo que elas continham: um pedido de casamento. A Vera, pequenina com

os seus dedos esguios termina a melodiosa canção e eu que só tive ouvidos para a voz desafinada do meu

amor, grito bem alto um - SIM!

O dia do casamento poderia ter sido outro dia feliz. Hoje, não posso dizer que o foi.

Estava nervosa. Qual a noiva que assim não está no dia do seu casamento?

Decerto que nenhuma. Ao longo da cerimónia propriamente dita, o nervosismo foi-se dissipando. A

boda decorreu numa quinta de luxo. Não faltou nada. O baile, a alegria a felicidade que deveriam reinar

foram assombradas por algo que me deixou perturbada e me fez vacilar.

A noiva é o centro das atenções e, como tal, pretendida por todos. A primeira dança é, como não

poderia deixar de ser, aberta pelos noivos e, no meu casamento não foi exceção. A dança seguinte foi com

os respetivos pais. Eu com o meu e ele com a sua mãe. Claro, que a minha vontade era dançar sempre com

ele. Todavia, a minha qualidade de noiva e de figura central, dizia-me que eu tinha de dançar com quem o

solicitasse. Um grande amigo pediu-me para dançar e eu não poderia recusar. Era o meu melhor amigo.

Sempre nos demos bem. Ele foi sempre o meu confidente, eramos como irmãos.

Quando nos viu dançar, o meu noivo olhou-me com um olhar como eu nunca tinha visto. Foi a primeira

vez que me ameaçou com o olhar. Depois, quando me encontrei a sós com ele, numa dança que poderia ser

fenomenal ameaçou-me. Foram só palavras. Palavras que me deixaram sem reação, mas morta de vergonha

apesar de apenas eu as ter ouvido.

- Nunca mais voltas a dançar com ele. Nem com ele nem com ninguém. Agora és uma mulher casada,

percebeste?!

Dos meus olhos brotaram grossas lágrimas que deixei que rolassem sem destino. Como me senti

naquele momento! O que é que se passava? O que estávamos a fazer de mal? O que havia de errado em

dançar? E que autoridade era dada a um homem só porque era casado comigo? Haveríamos de conversar

mais tarde.

4

O mais tarde chegou nessa noite e fez-se cedo! Cedo comecei a ver que não conhecia o homem com

quem casara.

Quando somente pretendia compreender o que se passara consegui uma bofetada de resposta.

Na raiva e dor que sentia refugiei-me na casa de banho do hotel e fechei a porta. Consegui uma

violação que me rasgou por dentro e por fora e me deixou o coração a sagrar, pois o misto de embriagante

ilusão, que vivera até aí, desabou e eu fui-me deixando envolver numa teia sem retorno.

O dia seguinte foi fascinante. Mil perdões e um lindíssimo ramo de flores fizeram renascer em mim a

esperança de que afinal tudo não passara de uns copitos a mais que ele teria bebido durante a boda. Tudo

iria ser ultrapassado e ficaria bem. Desculpa encontrada, dia após dia, noite após noite. Sova após sova.

Flores após flores. Já não sei se as desculpas eram para mim se para ele.

O medo e a culpa instalados. As pinturas que passei a usar e que detestava, mas que eram necessárias

para encobrir a outra pintura que ele ia traçando pelo meu corpo, humilhando-me cada vez mais e eu

consentindo. A dor que no silêncio das paredes da minha casa gritava por ajuda, mas que teimava em ficar

calada.

Não conseguia lutar.

Afastei-me dos amigos, da família, despedi-me do emprego por vergonha e isolei-me em casa. Estava

completamente dependente daquele ser macabro e ruim que me destruiu.

Nunca nada estava bem. A comida tinha sempre defeitos. Ora tinha sal a mais, ou a menos. “Para que

fizeste carne se eu queria peixe?” Mesmo quando eu o tinha questionado de manhã sobre o assunto, tinha

de saber que ele tinha mudado de ideias. Tudo era motivo para gritos, murros, pontapés e levar com tudo

o que tivesse à mão.

O dia mais feliz da minha vida transformou-se assim, no meu maior pesadelo e eu deixei!

Durante muitos anos culpei o meu melhor amigo por tudo o que acontecera, pois considerava que ele

deveria saber que ao convidar-me para dançar estava a cavar a minha ruína.

Foi num dia parecido com aquele distante e soalheiro dia, que a viragem aconteceu. A manhã mal

tinha nascido. Ele, como sempre, levantara-se para ir trabalhar. Eu estava a preparar-lhe o pequeno almoço,

como todos os dias fazia desde que nos casamos. Fazia nesse dia quatro anos que ele me tinha pedido em

casamento.

Lembrava-me? Não porque desejasse festejar. Mas, porque desejava nunca ter aceitado e apagar da

minha vida esse tempo.

Distrai-me uns escassos segundos com este meu deambular pelo passado, mas foi o suficiente para

ele chegar à cozinha e se aperceber de que a chávena do café ainda se encontrava debaixo da máquina. A

minha cabeça voou de encontro ao armário e eu senti as estrelas do céu a brilharem, quando bati no chão,

as biqueiras das botas faziam os meus ossos já frágeis encolher-se para dentro do meu martirizado e frágil

corpo e eu vi-me abandonada ali por aquele homem em quem eu havia depositado há muito tempo tanta

esperança e amor.

Senti as minhas forças a abandonarem-me e deixei-me ir. A minha vida passou-me toda pela mente e

senti que não podia lutar mais. Ele vencera! O meu espírito abandonava rapidamente o meu corpo e eu

estava a deixar. - Não! – gritei.

Tinha de sair dali. Eu queria sair dali. Levantei-me a custo e sai.

O Sol feriu-me os olhos magoados, mas fez-me bem. Caminhei sem fim, sem rumo, pois destino eu já

nem tinha, estava definitivamente perdida. Olhei em redor e reconheci a minha praia, subi as curtas escadas

5

que me levaram ao Bar da Praia e quando cheguei, a meio da manhã e não cedo como acontecia há muito

tempo, esperava por mim a minha torrada e a meia de leite. Parecia que a minha rotina não fora

abruptamente interrompida! Os dois rostos sorriam para mim, como todas as manhãs e, como sempre,

disseram em uníssono um sonoro – Bom dia, Rita!

Eu respondo-lhes e, pela primeira vez oiço alegria na minha voz. Enquanto tomo o meu pequeno

almoço sei, finalmente, que o motivo da minha vida desgraçada é apenas aquele a quem chamo marido e,

naquele que considero o dia mais feliz da minha vida, decidi não voltar para casa e deixar de ter medo,

apesar de todo o pavor que possa sentir e peço ajuda àqueles dois amigos.

Nesse dia renasci. O Motivo? Esse está preso, pois enfrentou a justiça e foi possível fazê-la!

Ninguém merece ser tratada como eu fui e há que ter coragem para enfrentar os nossos medos e

receios.

Estive refugiada numa casa de acolhimento para ele não me encontrar. Tentou perseguir-me, mas eu

fui mais forte e lutei pelos meus direitos. Lutei por mim!

Felizmente não cheguei ao ponto de muitas outras mulheres, cujos corpos jazem tristemente e que

não conseguiram chegar, como eu, a um porto seguro!…

Vivi um pesadelo, mas sei que é possível ser feliz!