navallo pedrosa santos martins

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1 DIREITOS HUMANOS E SEGURANÇA PÚBLICA: ALGUMAS PREMISSAS E ABORDAGENS Jornadas Formativas de Direitos Humanos com ênfase no estudo e na pesquisa em Segurança Pública com Cidadania

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Política

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  • 1DIREITOS HUMANOS E SEGURANA PBLICA: ALGUMAS PREMISSAS E

    ABORDAGENS

    Jornadas Formativas de Direitos Humanos com nfase no estudo e na pesquisa em

    Segurana Pblica com Cidadania

  • 2Ficha Tcnica

    OrganizadoresAndr RodriguesJoo Trajano Sento-SMarco Aurlio Martins

    Coordenao AcadmicaMauricio Lissovsky

    DocentesChristina VitalJoo Trajano Sento-S

    AssistentesFernando VelascoRaphael Torres Brigeiro

    SecretriaHelena Mendona

    Projeto GrficoLudmilla Botinelly

    RevisoClarissa PennaMrcia Valria Nogueira da Rocha

    Direitos humanos e Segurana pblica: algumas premissas e abordagens /[organizao Andr Rodrigues, Joo Trajano Sento-S e Marco Aurlio Martins].Rio de Janeiro: ISER, 2011.164p. ISBN: 978-85-7619-008-0 1. Segurana pblica. 2. Direitos humanos. 3. Estudos de Polcia. I. Rodrigues, Andr. II. Sento-S, Joo Trajano. III. Martins, Marco Aurlio.

  • 3- Sumrio - APRESENTAO ............................................................................................................. 5

    MDULO I: A SEGURANA PBLICA NO CONTEXTO DAS SOCIEDADES CONTEM-PORNEAS ..................................................................................................................... 9

    CAPTULO 1 O SISTEMA DE SEGURANA PBLICA BRASILEIRO ................................ 11Joo Trajano Sento-S

    CAPTULO 2 A EMERGNCIA HISTRICA DA NOO DE ESTADO DE DIREITO ............ 23Bernardo Ferreira

    CAPTULO 3 - ESTADO DE DIREITO ............................................................................... 33Delamar Jos Volpato Dutra

    CAPTULO 4 POLCIA E DIREITOS HUMANOS ............................................................ 45Arthur Trindade M. Costa

    CAPTULO 5 - DIREITOS HUMANOS: PANORAMAS HISTRICOS, APORIAS TERICAS E PRTICAS ...................................................................................................................... 53Raphael Torres Brigeiro

    CAPTULO 6 AS DIVERSIDADES E AS SUAS DESIGUALDADES ..................................... 63

    Daniel Costa Lima

    CAPTULO 7 - MEDIAO COMUNITRIA COMO AO DE SEGURANA PBLICA ..................................................................................................................................... 73Pedro Strozenberg

    MDULO II: A SEGURANA PBLICA NA PRTICA ...................................................... 83 CAPTULO 8 FORMAO DA POLCIA MODERNA ..................................................... 85Marcos Luiz Bretas

    CAPTULO 9 DEMOCRACIA E ACESSO JUSTIA ....................................................... 95Jos Eisenberg e Ana Paula Carvalho

    CAPTULO 10 - QUALIDADE DE VIDA: SUBJETIVIDADE NAS INSTITUIES DE SEGURANA PBLICA BRASILEIRAS ................................................................................................ 105Marco Aurlio Martins

  • 4CAPTULO 11 TRAOS DA FORMAO SOCIOCULTURAL BRASILEIRA: FREYRE, HOLANDA E DAMATTA .............................................................................................. 115Isis Ribeiro Martins, Kelly Pedroza Santos e Laura Navallo

    CAPTULO 12 - ESFERA PBLICA NO BRASIL: ENTRE A SELETIVIDADE E A DEMOCRATIZA-O ........................................................................................................................... 125Fernando Perlatto

    MDULO III: SEGURANA SEM POLTICA PBLICA / POLTICA DE SEGURANA PBLI-CA............................................................................................................................... 137

    CAPTULO 13 O USO DA INFORMAO NA GESTO PBLICA DE SEGURANA E A PRODUO DE INDICADORES DE VIOLNCIA E CRIMINALIDADE NO BRASIL ............. 139Doriam Borges

    CAPTULO 14 PREVENO DA VIOLNCIA: PREMISSAS, PROCEDIMENTOS E MUDAN-AS PARADIGMTICAS ............................................................................................... 153Andr Rodrigues

  • 5- Apresentao - A reflexo sobre segurana pblica no Brasil, tanto no campo acadmico quanto no do ativismo social e das agendas estatais, ganha flego um tanto tardiamente. Apenas a partir da dcada de 1980 passamos a ter estudos sistemticos e qualificados sobre essa temtica. Isso se verifica, principalmente, no que diz respeito s articulaes entre a segurana pblica e o Estado democrtico de direito e seus corolrios: cidadania, le-galidade, imprio da lei, direitos humanos etc. No seria correto, contudo, subestimar o que tem sido desenvolvido pelos governos e pela sociedade na tentativa de superar a defasagem histrica da emergncia desse debate. Inmeras instituies governamen-tais e no governamentais, universidades e institutos de pesquisa realizam estudos e experincias que procuram fornecer abordagens e perspectivas que possam dar con-ta de uma viso sobre a segurana pblica que identifique as vocaes de seus agentes e gestores com o aprimoramento e consolidao de nossa ainda jovem democracia.

    No caberia nessa breve apresentao tentar um panorama das experincias e re-flexes acumuladas nos processos de consolidao de uma agenda democrtica para a segurana pblica no Brasil. H muito ainda para ser feito. Basta dizer que as Jornadas Formativas de Direitos Humanos com nfase no Estudo e na Pesquisa em Segurana Pblica com Cidadania so mais um esforo que se soma s tentativas de preenchi-mento dessa lacuna. Promover, mais que uma iniciativa de formao no sentido estrita-mente pedaggico, um debate amplo sobre as questes pertinentes segurana com cidadania, envolvendo centenas de formadores em quatorze estados da federao, ten-do como elemento orientador as temticas de direitos humanos, uma empreitada de grande envergadura. Esperamos que os contedos desse volume contribuam e faam jus a essa iniciativa.

    O presente livro busca operar a partir de diversas entradas possveis relativas ao carter das Jornadas e prpria natureza da discusso para a qual elas se dirigem. Em pri-meiro lugar, este livro tem um carter conteudstico. Pretende ser, nesse sentido, uma referncia para as discusses e para a preparao das aulas de nossos docentes e dos alunos-formadores quando estiverem lidando com suas turmas nas localidades em que atuam. Buscamos reunir, dessa forma, uma srie de textos que esclarecem e orientam o conjunto de contedos programticos selecionados para as Jornadas, compondo o trajeto reflexivo que nos parece pertinente para uma consolidao das possibilidades articuladoras dos temas da segurana pblica e dos direitos humanos.

    A coletnea de artigos inditos e redigidos especificamente para os propsitos do livro pretende funcionar, em segundo lugar, como um banco de ideias sobre as diversas pos-sibilidades reflexivas que a temtica central das Jornadas. Trata-se, portanto, de um material que pode ser consultado para alm dos propsitos estritos das Jornadas. Ainda que opere como um material didtico, o presente volume pode ser utilizado como referncia para outras leituras daqueles que estejam interessados em aprofundar alguns aspectos de uma discusso mais qualificada sobre segurana pblica e cidadania

  • 6que se afaste um pouco de significados e apropriaes j um tanto caricatas que figu-ram no senso comum.

    Mesmo se prestando a tais leituras possveis, a linguagem adotada na confeco dos artigos que compem o livro no se afasta de um tom acessvel. Esse material, pelas razes apontadas e em terceiro lugar, tenta operar como um manual introdutrio ao tema dos direitos humanos sob a tica das discusses sobre segurana pblica. Esse carter introdutrio busca consolidar algumas das questes que, hoje, orientam as agendas que buscam conciliar essas duas esferas da democracia que durante muito tempo foram tratadas como polos antagnicos do debate.

    A primeira parte do livro, intitulada A segurana pblica no contexto das sociedades contemporneas, busca apresentar alguns aspectos do modo pelo qual o tema da se-gurana pblica posicionado no cenrio dos fundamentos do Estado moderno. Con-tamos, para isso, com o artigo de Joo Trajano Sento-S, no captulo 1, que busca recuperar o modo pelo qual o sistema de justia criminal se estrutura no Brasil contem-porneo. No captulo 2, Bernardo Medeiros Ferreira da Silva e Delamar Jos Volpato Dutra nos oferecem distintas abordagens sobre a noo de Estado de Direito. Da pos-svel identificar quais os princpios normativos que orientam as vocaes institucionais das esferas afetas ao tema da segurana pblica, bem como suas matrizes histricas. Arthur Trindade Maranho e Raphael Torres Brigeiro so os autores dos artigos pre-sentes no captulo 3 e que articulam segurana pblica e direitos humanos. Esse pas-so reflexivo essencial para a consolidao dos demais contedos que pretendemos abordar. No captulo 4, Daniel Costa Lima estabelece uma reflexo sobre diversidades e desigualdades e Pedro Strozenberg apresenta aspectos fundamentais da prtica de mediao de conflitos. Esse captulo pretende, portanto, tratar da questo do conflito e suas implicaes no contexto das democracias.

    A segunda parte desse volume representa um salto qualitativo: das questes mais nor-mativas para as implicaes na prtica. O captulo 5 conta, nesse sentido, com um artigo de Marcos Bretas sobre a histria das polcias como instituies da modernidade. Jos Eisenberg e Ana Paula Carvalho assinam o texto do captulo 6, que trata do modo pelo qual a questo do acesso justia foi atualizada no Brasil. Pretendemos, assim, tocar em aspectos que fazem da segurana pblica uma questo que est fortemente implicada no acesso justia. Marco Aurelio Martins, nesse mesmo captulo, recupera a discusso sobre a qualidade de vida do profissional de segurana pblica. Nesse texto, busca-se argumentar que fundamental o reconhecimento de que policiais, bombeiros, guardas municipais, agentes penitencirios etc, alm de comporem os quadros de instituies que tm como vocao a proteo e a garantia de direitos, so titulares desse mesmos direitos salvaguardados. Fechando esse mdulo, temos, no captulo 7, o artigo de Isis Martins, Laura Navallo e Kelly Pedroza, que se ocupa de alguns aspectos da formao da sociabilidade brasileira de modo a identificar dilemas culturais e tericos que partici-pam de nossa maneira de significar a noo de espao pblico. Fernando Perlatto o autor de outro artigo nesse mesmo captulo, tratando do processo de consolidao da esfera pblica no Brasil. Seu texto dialoga com o anterior e costura esse ponto.

  • 7Na terceira e ltima parte, segurana pblica sem poltica/poltica de segurana pbli-ca, pretendemos oferecer uma reflexo que sirva de fechamento, ao consolidar a per-cepo de que pensar a segurana pblica de modo planejado e eficiente representa, mais que um refinamento operacional, a prpria efetivao de sua conexo com o tema dos direitos humanos e com as premissas do Estado democrtico de direito. Isso repre-sentaria, no limite, o prprio aspecto que vincula segurana pblica e cidadania. O texto de Dorian Borges, no captulo 8, busca oferecer aspectos elementares da produo de indicadores como princpio da gesto democrtica e eficiente da segurana pblica. No captulo 9, que fecha este livro, Andr Rodrigues procura identificar o modo pelo qual uma abordagem preventiva da segurana pblica requer planejamento e integrao sistmica como premissas. Esses aspectos buscam fornecer um fechamento dos con-tedos que procuramos tratar, definindo trajetos possveis para o acesso s questes que pautam a agenda contempornea da segurana pblica no Brasil.

    Atravs de uma mescla de textos de especialistas j consagrados na rea dos estudos sobre segurana pblica com pesquisadores jovens e de formaes diversificadas, alm de gestores e militantes do campo dos direitos humanos, este livro, acreditamos, ofe-rece possibilidades criativas e produtivas para o desenvolvimento das reflexes impli-cadas nos objetivos das Jornadas Formativas. O ISER se orgulha de participar dessa iniciativa e contribuir para ela.

    Os organizadores

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  • 9- Mdulo 1 -

    A SEGURANA PBLICA NO CONTEXTO DAS

    SOCIEDADES CONTEMPORNEAS

    Este mdulo pretende constituir um apanhado geral das principais questes que norteiam o debate sobre a segurana pblica no mundo contemporneo. Tal debate requer, necessariamente, uma busca pela compreenso de como o sistema de segurana pblica se estrutura e qual sua articulao com o Estado Democrtico. Cidadania, direitos humanos, conflito e universalidade das nor-mas so algumas das questes vertebrais da reflexo proposta neste mdulo.

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  • 11

    CAPTULO 1 O SISTEMA DE SEGURANA PBLICA BRASILEIRO

    Joo Trajano Sento-S 1

    O sistema de segurana pblica, ou sistema de justia criminal, o conjunto de institu-ies policiais e judicirias que velam para que as normas de conduta social formaliza-das em lei sejam respeitadas e para a aplicao, quando de sua violao, dos procedi-mentos de apurao e aplicao das sanes previstas legalmente. O sistema rene rgos subordinados aos poderes executivos estaduais, ao poder executivo federal e aos judicirios dessas duas instncias do poder pblico. Cabe a eles, segundo a na-tureza de cada um, a tarefa de dissuaso, apurao e punio da quebra das normas legais. Visto por outro ngulo, podem ser encarados como instncias que garantem os direitos legais dos cidados e que cuidam para que a violao desses mesmos direitos (direito vida, liberdade de expresso, propriedade etc.) seja objeto de punio.

    Entendido como sistema, cada rgo que o compe funciona segundo uma normativi-dade que lhe prpria e se articula com os demais segundo cdigos igualmente regula-dos por lei, de forma que as diferentes competncias se coordenem e se completem. A qualidade do funcionamento do sistema de justia criminal e sua efetividade, portanto, se d segundo o bom funcionamento de cada uma de suas partes, bem como pela adequada articulao entre elas.

    Entendido de modo estrito, o sistema de justia criminal composto por rgos poli-ciais e judicirios. Dentre os rgos policiais, cabe destacar, as polcias militares estaduais, as polcias civis estaduais, a polcia federal, a polcia rodoviria (federal), as guardas civis e os corpos de bombeiros (sendo os dois ltimos tambm inscritos no m-bito estadual). No mbito judicirio, esto os ministrios pblicos (estaduais e federal) e os tribunais de justia (estaduais e federal). Embora no necessariamente associado ao aparato do judicirio, mas tampouco vinculado ao campo policial, encontramos o sistema punitivo, vinculado e subordinado aos poderes executivos estaduais e ao poder executivo federal.

    Temos, dessa forma, um sistema que no somente agrega instituies diferenciadas, mas que esto vinculadas a esferas distintas do poder pblico. As atribuies de cada rgo ligado ao sistema de segurana pblica esto definidas pela Constituio brasilei-ra de 1988, sendo que as unidades federativas guardam uma boa dose de autonomia na estruturao das instituies sob sua jurisdio, reservado o respeito normativi-dade constitucional. A administrao da parte do sistema que costuma estar em maior evidncia nos debates sobre segurana pblica est circunscrita aos poderes estaduais. So os casos, por exemplo, das polcias civis e militares, subordinadas diretamente aos executivos estaduais. Tal subordinao visa compatibilizar o funcionamento dos rgos de manuteno da ordem s especificidades regionais, o que confere uma boa mar-

    1Cientista poltico, pesquisador do LAV-UERJ e pesquisador associado do ISER.

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    gem de autonomia s unidades da federao. Os ministrios pblicos estaduais e os tribunais de justia de primeira instncia tambm so da alada dos estados, mas, por definio, so independentes do poder executivo estadual, o que pode ser entendido como o equivalente, no campo da segurana pblica, diviso dos poderes, princpio fundamental das democracias modernas.

    A descentralizao do sistema de segurana pblica no impede que as vrias institu-ies que a compem, subordinadas a diferentes esferas do poder pblico estadual, acabem por compor uma intrincada rede de atribuies, formando um circuito cujo funcionamento , hoje, bastante ineficiente e atravessado por uma srie de problemas de compatibilidade e coordenao entre seus componentes.

    Embora a responsabilidade de parte significativa do sistema de segurana pblica seja uma atribuio do poder estadual, vrios dos principais tipos de delito mais comumente praticados hoje envolvem, de maneiras diversas, questes relativas a instituies federais, o que faz com que quaisquer estratgias de reduo da criminalidade e da criminalidade violenta, no Brasil, implique a definio de padres de cooperao entre os poderes estaduais e federal. Do mesmo modo, os graus de sofisticao e de articula-o de algumas redes do crime organizado impem um entrosamento entre os rgos responsveis das diferentes unidades federativas. Nas prximas pginas, tratar-se- de fornecer um quadro sucinto do sistema de segurana pblica no Brasil, apresentando cada uma das instituies e suas respectivas atribuies. No nosso objetivo, por ora, ser exaustivos na exposio, nem incorporar atores que podem, a despeito de no fazerem parte do sistema, atuar de forma positiva em seu bom funcionamento.

    A organizao do sistema de segurana pblica no mbito estadual implica a existncia de uma srie de nuanas em sua organizao, de acordo com as peculiaridades de cada Estado. Ainda assim, h uma certa semelhana entre cada um dos sistemas estaduais, o que permite, mesmo que de forma esquemtica, estabelecer sua estrutura geral de organizao e funcionamento.

    As polcias estaduais normalmente esto subordinadas a uma secretaria de segurana pblica, sendo atribuio do titular do executivo estadual (governador) a responsabili-dade sobre as diretrizes de seu funcionamento. razovel afirmar que as polcias esto em uma das pontas do sistema de segurana pblica. Elas so, por assim dizer, a porta de entrada dos eventos criminais e de seus personagens no interior desse circuito. Na outra ponta, esto os rgos de execuo das penas, que compem o sistema peniten-cirio, composto por casas de correo, casas de custdia, presdios e penitencirias. Ou seja, os rgos responsveis pelo cumprimento de sentenas condenatrias. Tam-bm de responsabilidade do executivo estadual, o sistema prisional , em geral, atre-lado a uma secretaria de estado especfica ou vinculado a alguma secretaria afeta a seu papel (secretaria de justia, de segurana pblica etc.). importante insistir que o modelo de organograma varia de um estado para outro. No Rio de Janeiro, por exem-plo, entre 1983 e 1995, as secretarias de justia e de segurana pblica estiveram fun-didas em uma s, cabendo a ela conduzir as polticas implementadas na rea policial e no mbito do cumprimento das decises judiciais. Atualmente (ano de 2010), o estado

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    do Rio de Janeiro dispe de uma secretaria destinada administrao do complexo prisional no Estado (a Secretaria de Administrao Penitenciria - SEAP). A existncia das secretarias mencionadas anteriormente (justia, administrao penitenciria, se-gurana pblica), bem como a definio de suas atribuies, , portanto, uma regra em que cabem vrias excees.

    Entre uma ponta e outra do sistema, a administrao das instituies sai das mos do executivo estadual e passa para o mbito do poder judicirio estadual. Dele fazem par-te o Ministrio Pblico do Estado, o Tribunal de Justia e as Varas de Execues. Cada um desses rgos cumpre um papel especfico no circuito, e sua ao independente das linhas de atuao definidas pelos governos estaduais. Quando tal independncia no observada, temos a violao de um dos pilares da moderna concepo de Estado democrtico, a saber, a independncia de poderes. Desse primeiro quadro geral do sistema, importante ressaltar exatamente a migrao de responsabilidades quanto constatao, investigao, ao julgamento e execuo penal, referentes aos eventos criminais e seus envolvidos. O circuito por que passam os eventos, e aqueles neles en-volvidos, no somente implica o trnsito por instituies diferentes, mas tambm por instncias diversas do poder pblico, ainda que todas elas estejam situadas na esfera do poder estadual. Embora tal distribuio de atribuies e competncias seja desejvel e compatvel com os consagrados princpios de diviso e equilbrio dos poderes, seu funcionamento, enquanto sistema integrado, tem acarretado no poucos problemas de ordem operacional, o que ser evidenciado ao longo da exposio mais detida do funcionamento de cada uma das instituies em pauta.

    Ao contrrio do que ocorre em outros pases, no Brasil o trabalho policial de respon-sabilidade de dois rgos distintos, cada um deles com atribuies legais bem definidas. Cabe, normalmente, Polcia Militar o policiamento ostensivo, trabalho dissuasrio e preventivo. No Rio Grande do Sul, por exemplo, esse papel cumprido pela Brigada Militar, que, a despeito da designao, desempenha as mesmas tarefas atribudas s polcias militares de outros estados. O que caracteriza seu trabalho a presena osten-siva nas ruas e a resposta a chamadas. Seus profissionais trabalham uniformizados e devem circular vinte e quatro horas com o intuito de inibir a prtica de aes criminais e intervir imediatamente quando elas ocorrem. Devem, tambm, estar prontos para atender a chamadas ou comunicados relativos ocorrncia de episdios criminais. Sin-tetizando, cabe Polcia Militar a tarefa de estar nos espaos pblicos cuidando para que a ordem social seja mantida, e agir de forma rpida e com o uso do rigor necessrio para evitar que ela seja perturbada.

    Em funo do perfil de seu trabalho, do modo esperado de sua atuao e da natureza de suas atribuies, a Polcia Militar o rgo do estado mais visvel, em contato mais direto e permanente com a populao em geral. Ela pode ser acionada em casos de ameaa ordem pblica, sejam ou no de natureza criminosa, e em situaes em que h indcios de que houve quebra da normalidade. A realizao do policiamento os-tensivo, voltado para evitar ou reagir de imediato quebra da normalidade, , sinteti-zando, a tarefa que cabe s polcias militares ou suas similares no interior do sistema de segurana pblica de todos os Estados brasileiros.

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    Do ponto de vista da Constituio Federal, as polcias militares estaduais, assim como o Corpo de Bombeiros, so definidas como fora de reserva das Foras Armadas. Tal definio legal tem uma srie de implicaes prticas. Em primeiro lugar, estabelece uma ambiguidade quanto linha de comando. Isso porque ordinariamente os coman-dos das polcias militares esto subordinados ao executivo estadual. Cabe aos governadores dos Estados a nomeao do comandante geral, a nomeao dos titulares dos demais cargos de direo e a definio da linha de atuao das PMs. Contudo, sempre que a ordem interna considerada em risco e a ao federal se faz presente, o comando da instituio deslocado, ficando sob responsabilidade do poder federal, em geral representado por um oficial superior do Exrcito. Alm disso, o vnculo entre as polcias militares e as Foras Armadas se revela tambm na estrutura organizacional interna das primeiras, ordenada de forma bastante semelhante ao que observado nas trs armas de guerra. Finalmente, a doutrina e a filosofia de treinamento das pol-cias militares tambm esto fortemente influenciadas pelos princpios que orientam as Foras Armadas. Uma das questes debatidas atualmente, quanto s polcias militares no Brasil, justamente a sua desmilitarizao, proposta que divide posies na opinio pblica, entre gestores e mesmo no interior das corporaes.

    Caso a transgresso lei ou a perturbao da ordem tenha desdobramentos investiga-tivos e/ou punitivos subsequentes, entra em ao a Polcia Civil. A Polcia Civil tambm pode funcionar como porta de entrada no sistema de segurana pblica. Alm disso, ela tambm representa um elo entre o trabalho estritamente policial e a atividade judi-ciria. Cabe a ela o registro de eventos criminosos ou perturbadores da ordem pblica, a abertura de inquritos (sempre que for o caso), a realizao de investigaes voltadas para a elucidao das circunstncias do ocorrido, a apurao de responsabilidades e, finalmente, a denncia dos responsveis ou suspeitos por aes infracionais. Em geral, os casos passam alada da Polcia Civil pelas mos da Polcia Militar. Contudo, pos-svel, e mesmo comum, que eles cheguem diretamente Polcia Civil atravs de queixo-sos vitimados por alguma espcie de infrao lei ou por seus representantes legais. So os casos, dentre outros, de vtimas de agresso, de roubos ou furtos, por exemplo.

    Cabe Polcia Civil o registro das ocorrncias, sua caracterizao segundo o Cdigo Penal, a abertura de inqurito para a apurao das circunstncias e responsabilidades, a tomada de depoimentos de testemunhas e a reunio de todos os dados necessrios para a elucidao do caso. Cabe Polcia Civil, enfim, o indiciamento do acusado, ou suspeito pela ao criminosa. Ela desempenha, portanto, o papel de polcia judiciria, tendo, dessa forma, delegao do judicirio para a realizao das investigaes que, em tese, levaro elucidao do que ocorreu. O perfil do trabalho atribudo s polcias civis extremamente especializado, ou assim deveria ser. Normalmente, uma equipe formada em uma delegacia ou distrito policial deve contar com um ou mais delegados auxiliares, um escrivo, inspetores e investigadores. No topo da hierarquia situa-se o delegado titular, responsvel pelo comando da unidade. Alm disso, porm, as polcias civis contam com uma estrutura e um corpo de especialistas da chamada polcia cient-fica que realiza percias e exames de corpo delito. So os casos dos mdicos legistas, papiloscopistas e outros profissionais que atuam em unidades relativamente autno-mas dos distritos, e cujo trabalho tcnico essencial para a caracterizao e elucidao

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    de vrios tipos de delitos. O grau de vinculao e subordinao desses profissionais de polcia tcnica em relao instituio policial civil varia segundo cada unidade federativa. Uma das propostas em curso, hoje, a consagrao de sua total autonomia, de forma a lhe garantir total independncia e idoneidade na realizao de suas ativi-dades, neutralizando, assim, eventuais influncias motivadas por interesses polticos ou corporativos em seu trabalho.

    Alm das delegacias policiais comuns, alguns Estados contam com delegacias espe-cializadas em determinadas modalidades de agresso ou transgresso da ordem. So os casos, por exemplo, das delegacias especiais de atendimento mulher, de homicdio, antissequestro, de represso ao crime organizado e de entorpecentes. Normalmente, a elucidao dos eventos criminosos tarefa da unidade policial responsvel pela cir-cunscrio onde houve o delito. Em casos envolvendo alguma das modalidades para as quais existe uma delegacia especializada, porm, a investigao pode ficar a cargo dessa unidade. A existncia de tais unidades especiais varia para cada estado brasileiro, ficando sua criao a cargo dos governos estaduais.

    Uma outra variao importante diz respeito aos procedimentos previstos para os ca-sos em que h, entre os envolvidos, seja como vtima seja como agressor, crianas ou adolescentes. Uma srie de procedimentos especiais para esses casos est formalizada em lei, pelo Estatuto da Criana e do Adolescente, promulgado em abril de 1990, aps uma ampla mobilizao da sociedade civil organizada em torno dessa questo, ainda que muitas unidades da federao estejam longe de criar mecanismos condizentes com o que est previsto no estatuto. Em alguns estados h, na Polcia Civil, uma diviso es-pecial para tratar desses casos (no Rio de Janeiro, trata-se da Diviso de Proteo Cri-ana e ao Adolescente - DPCA), para onde so enviadas tanto as notcias-crime quanto os acusados de infrao.

    Como sabido, as relaes entre as polcias civis e militares no Brasil no so nada f-ceis. H uma grande animosidade entre elas, e a perspectiva cooperativa, na realidade, d lugar a crticas e acusaes recprocas. Dada a natureza de seu trabalho, comum que a polcia militar seja a primeira a chegar a um local ou a ter contato direto com os desdobramentos de um episdio criminal. A adoo de procedimentos tcnicos bsi-cos como preservao do local da ocorrncia, coleta de informaes e levantamento de supostas testemunhas cabe a ela, nesse momento primeiro. A realizao inadequada dessas tarefas acaba, segundo policiais civis, comprometendo gravemente o trabalho de investigao a ser feito pela polcia civil. Policiais militares costumam retrucar que, quando fazem bem o seu trabalho, seus esforos so ignorados nos procedimentos subsequentes dos policiais civis.

    As animosidades entre as duas corporaes estaduais da polcia, e seus efeitos desas-trosos para o bom funcionamento do sistema, tm levado a propostas de reformas, como a unificao das polcias ou a instituio da polcia de ciclo completo (em que o trabalho policial seria repartido segundo as tipificaes, e cada polcia trataria de todas as tarefas relativas aos eventos de sua responsabilidade). Ambas as propostas, contudo, encontram forte resistncia junto s corporaes.

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    Existe ao menos uma ambivalncia sobre a natureza do trabalho das polcias civis. Em-bora seja formalmente uma polcia judiciria, o inqurito policial , simultaneamente, um procedimento administrativo, no tendo, portanto, valor judicirio. A autoridade policial pode, por exemplo, indiciar um acusado, mas no lhe cabe denunci-lo judi-cialmente. Isso porque o carter judicial do inqurito policial dado pelo Ministrio Pblico, rgo autnomo, mas constitucionalmente entendido como tendo natureza judiciria. A atividade do promotor do Ministrio Pblico depende, em larga escala, da qualidade do trabalho de investigao e de elaborao do inqurito policial. Temos, assim, um imbricamento e uma relao de dependncia entre o poder executivo es-tadual (representado aqui pela Polcia Civil) e o judicirio (representado pelo Ministrio Pblico). A resoluo do crime e a apurao de responsabilidades dependem, em larga escala, do modo de confeco do inqurito. Nele devem estar arroladas todas as infor-maes tidas como relevantes para a elucidao da verdade da ocorrncia criminal e para a atribuio de responsabilidades.

    com base nas informaes contidas no inqurito policial que a promotoria faz ou no a denncia, abrindo, assim, uma outra etapa no circuito do sistema de segurana pbli-ca. Regra geral, a Polcia Civil tem trinta dias para efetuar as investigaes necessrias, confeccionar o inqurito e envi-lo ao Ministrio Pblico. Esgotado esse prazo, a auto-ridade policial pode tanto proceder ao envio quanto requerer uma prorrogao de mais trinta dias, ao final dos quais enviar o inqurito ao Ministrio Pblico. De posse do inqurito policial, a promotoria tanto pode fazer a denncia judicial propriamente dita, enviando-a ao Tribunal de Justia, quanto pode devolv-lo Polcia Civil para maiores investigaes. Nesse ltimo caso, a Polcia Civil dispe de mais trinta dias para novas in-vestigaes e o posterior reenvio do inqurito policial. importante observar que esse movimento entre Polcia Civil e Ministrio Pblico muito comum e, em no poucos casos, o destino do inqurito o arquivamento por falta de dados consistentes. Em-bora no seja esse o lugar mais adequado para anlises substantivas, vale notar que so bastante comuns as crticas de promotores, e demais agentes do judicirio, ao trabalho de investigao policial, a quem comumente so atribudos os baixssimos ndices de resoluo de episdios criminais observados no Brasil.

    Dentre as propostas em relao ao problema mencionado anteriormente, est a trans-ferncia da prerrogativa de instruo do inqurito da Polcia Civil para o Ministrio P-blico. Os defensores dessa medida alegam que, por ela, os inquritos seriam feitos de modo mais cuidadoso e criterioso, reduzindo-se as taxas de no elucidao e de impun-idade com que convivemos hoje. Tal perspectiva est fundada no diagnstico segundo o qual as polcias civis se tornaram instituies cartoriais, distanciando-se da vocao investigativa que deveria pautar sua atuao. Aqueles que defendem a manuteno do sistema tal como funciona hoje alegam que a baixa capacidade investigativa da pol-cia se deve ao volume de demandas e ao sucateamento da instituio. Ainda nessa linha, a simples transferncia da prerrogativa de feitura do inqurito para o Ministrio Pblico no sanaria os problemas prprios a essas peas, decorrentes das limitaes investigativas da Polcia Civil. Finalmente, os crticos do atual funcionamento do Minis-trio Pblico alegam que, ele prprio, entendido como instrumento de fiscalizao do trabalho policial e do respeito, pelos rgos do Estado, aos direitos dos cidados, no

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    tem cumprido seu papel a contento. Sendo assim, nada ajudaria acrescentar-lhe uma nova atribuio. Esse um debate em aberto, em que inquietaes pragmticas se misturam a interesses corporativos.

    O arquivamento do caso, quando determinado pelo Ministrio Pblico, implica a inter-rupo da circulao do caso no circuito do sistema de segurana pblica. Ao receber e aceitar o inqurito vindo da Polcia Civil, o Ministrio Pblico desencadeia uma nova etapa, fazendo a denncia em que o acusado acusado judicialmente pelo crime co-metido. Frequentemente, todo o percurso coberto pela autoridade policial refeito no mbito do judicirio. Testemunhas so chamadas a depor, acusados so ouvidos e informaes, colhidas ao longo do inqurito policial, so analisadas. Deve-se notar que muitas alteraes podem ocorrer nesse segundo inqurito. No incomum a alterao de depoimentos de testemunhas ou de indiciados como suspeitos, sob a ale-gao de que suas declaraes polcia foram feitas sob presso ou intimidao. Ao fim do inqurito judicial, a o juiz tanto pode decidir pelo arquivamento do processo, quan-do julga no haver indcios suficientemente slidos para sustentar a acusao, quanto pode proceder sentena. O cumprimento da deciso judicial e o acompanhamento de seus trmites atribuio da Vara de Execues Penais.

    Para o cumprimento efetivo da sentena, o caso volta esfera do executivo estadual, mais precisamente ao rgo responsvel pelas execues penais e administrao peni-tenciria. O sistema penitencirio rene um complexo de instituies penais nas quais so alocados rus condenados ou espera de julgamento. Cada modalidade de in-stituio varia segundo a situao jurdica do ru e a gravidade do crime pelo qual foi denunciado e/ou condenado, o que define o grau de periculosidade do mesmo. Em tese, o sistema penitencirio deve reunir casas de deteno, presdios, penitencirias, hospitais e prises-albergue. Recentemente, o governo federal ampliou a capacidade de seu prprio sistema prisional, antes destinado ao cumprimento de sentenciados por tipos especficos de crime, auxiliando os governos estaduais na guarda de sentenciados cuja permanncia em seus respectivos estados seja considerada um risco para a ordem pblica.

    O sistema de execuo penal um captulo a parte no sistema de justia criminal brasileiro. Modernamente, ele desenhado para cumprir trs destinaes: punir, dis-suadir e ressocializar. Estudos recentes atestam que apenas a primeira dessas trs fun-es cumprida. Do mesmo modo, elas indicam que tal misso exercida de maneira discriminatria, e sua execuo com frequncia ignora as determinaes previstas em lei.

    comum a constatao de que presos j condenados cumprem suas penas em institu-ies de triagem; apenados sem acesso a servios jurdicos no so contemplados com benefcios previstos pelo Cdigo Penal; rus aguardam julgamento e cumprem parte de suas penas em unidades policiais. A situao e o funcionamento do sistema carcerrio brasileiro um bom exemplo dos rudos existentes nas conexes entre as diversas es-feras do sistema de segurana pblica brasileiro. O caos em que ele se encontra , em geral, justificado pela superlotao do sistema penitencirio, que atribuda, entre

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    outras razes, ao quase exclusivismo da penalizao, por parte da justia, pela privao de liberdade, o que fartamente contestado por magistrados. Por outro lado, a situa-o jurdica dos presos que poderiam progredir de regime depende da devida apre-ciao da justia, o que s acontece nos casos em que o apenado dispe de recursos para pagar um bom advogado. No que diz respeito ao funcionamento e segurana das instituies penais, h uma outra diviso de atribuies, que, no raramente, causa confuses. A administrao das unidades prisionais, bem como sua segurana interna, so atribuies dos guardas penitencirios. Esses profissionais so servidores estaduais ligados instncia mxima de administrao do sistema penitencirio (seja a secretaria de justia, seja a secretaria de assuntos penitencirios ou outra instncia semelhante vinculada ao executivo estadual). A segurana externa, porm, costuma ser atribuio da Polcia Militar. As relaes entre essas duas instncias, ambas responsveis pela segurana das unidades do sistema, no raro so conflituosas, o que dramatizado em casos de rebelies e outras perturbaes da ordem no interior das unidades prisionais.

    Do ponto de vista constitucional, o sistema de segurana pblica estaria apenas par-cialmente coberto pela apresentao feita at o presente momento. Essa perspectiva no estaria de todo incorreta, sobretudo se levamos em conta os trmites cumpridos por uma parcela significativa dos casos de transgresso lei, quando se tornam objeto de inqurito policial. O circuito apresentado at aqui j suscita uma srie de questes sobre integrao entre instncias diferentes do poder estadual. No entanto, mesmo antes de se inclurem no sistema de segurana pblica, as instituies ligadas ao poder federal, a complexidade do sistema aumenta sensivelmente. At o presente momento, por exemplo, no se mencionou o caso do Corpo de Bombeiros. Assim como as polcias militares, essas corporaes tambm so simultaneamente subordinadas aos execu-tivos estaduais, e definidas, constitucionalmente, como foras de reserva das Foras Armadas. Embora tenham um papel aparentemente secundrio no sistema de segu-rana pblica, seu desempenho crucial tanto em casos de desordens decorrentes de causas naturais (como enchentes, deslizamentos etc.), quanto nos casos de socorro e recolhimento de vtimas de acidentes de trnsito, mortes suspeitas ou encontros de cadver. Embora o trabalho do Corpo de Bombeiros seja basicamente o de defesa civil, seus vnculos com as Foras Armadas acabam se refletindo no treinamento de seus profissionais e na estrutura interna da instituio, em um fenmeno semelhante ao que ocorre com as polcias militares.

    A complexidade do sistema fica maior quando incorporamos seu brao federal. Vrias das modalidades de delitos que ocupam, hoje, posies no topo das prioridades das polticas de segurana envolvem redes interestaduais e internacionais. So os casos de crimes como roubo e receptao de veculos roubados, trfico de drogas, trfico de armas e roubo de cargas. Cada um desses delitos se articula a outros tantos cujos desdobramentos aparentemente diriam respeito estritamente s polcias e ao sistema judicirio estadual. A investigao de um homicdio, por exemplo, atribuio da Pol-cia Civil estadual. Contudo, suponhamos que tal crime foi consequncia de uma disputa envolvendo trfico de drogas. O controle do trfico de drogas , em larga medida, tarefa da Polcia Federal, rgo que, por definio, no est subordinado ao governo estadual. Se for levado em conta o fato de que o trfico de drogas responsvel por

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    ao menos uma parte dos altos ndices de uma srie de crimes violentos nas principais metrpoles brasileiras, fica evidenciada a articulao entre o trabalho da instituio que deve combater o trfico e aquelas responsveis pela apurao dos delitos a ele associados. Suponhamos que nesse mesmo homicdio tenha sido utilizada uma arma de uso exclusivo das Foras Armadas. Essa no uma situao incomum e suscita a en-trada de mais um ator no circuito. Cabe s trs armas de guerra a apurao dos desvios que levaram para as ruas um equipamento que s pode ser manuseado por militares.

    Impedir a prtica de contrabando, a entrada ilegal de armas estrangeiras (fenmeno tambm muito comum) e de drogas produzidas em outros pases so tarefas da Polcia Federal, qual cabe a guarda das fronteiras e a fiscalizao de portos e aeroportos. Ela funciona, ainda, em casos que ficam caracterizados como crimes contra a Unio, como polcia judiciria, cabendo-lhe a investigao e a apurao, mediante abertura de inqurito policial, desses casos. Em certo sentido, a Polcia Federal est para a Unio assim como a Polcia Civil est para a unidade federativa (o estado). As atribuies de ambas no se superpem, antes, se completam. As frequentes confuses e os mal-entendidos entre ambas as polcias decorrem da relativa ausncia de articulao de seus agentes no desempenho de suas atividades.

    Os trmites observados na Justia Federal so semelhantes queles que se do na es-fera dos Estados, passando os inquritos realizados pela Polcia Federal para o Minis-trio Pblico Federal, que procede acusao junto ao Tribunal Federal de Justia. importante lembrar que um mesmo caso pode estar sujeito a diferentes processos em ambas as esferas (federal e estadual).

    Policia Rodoviria Federal cabe o policiamento nas estradas. Nesse sentido, seu tra-balho tambm crucial para o sistema de segurana pblica, por diversas razes. Alm de velar pelo respeito s leis do trfego nas estradas, cuja transgresso responsvel por um expressivo nmero de mortes e leses, cabe Polcia Rodoviria o controle do transporte de cargas nas rodovias federais. Levando-se em conta que o transporte rodovirio responsvel por uma grande parcela do fluxo interno de mercadorias no Brasil, a reduo dos ndices de delitos, como o trfico de entorpecentes, o roubo de carga e a receptao de automveis roubados tambm diz respeito ao rgo que policia essas vias. Sendo assim, fica patenteado que o trabalho das diversas polcias estaduais e federais, a despeito das diferenas das atribuies e das linhas de subordinao, est mais articulado do que a primeira impresso pode sugerir. Tarefa semelhante da Pol-cia Rodoviria Federal, no que diz respeito s rodovias, desempenhada pela Polcia Ferroviria Federal em relao rede ferroviria federal. Seu papel, contudo, menor em funo da pouca expresso do transporte ferrovirio no Brasil.

    A complexidade do sistema de segurana pblica est diretamente relacionada s vrias ramificaes que podem ser observadas em uma srie de modalidades de transgresso s leis. O caso hipottico de homicdio doloso anteriormente mencionado apenas uma entre muitas variaes possveis que atestam a articulao de papis e competn-cias. Seria um passo importante, por exemplo, a criao de um sistema nico de infor-maes que, sem ferir a autonomia dos entes federativos e das vrias corporaes,

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    tornasse possvel a utilizao compartilhada de dados importantes para a definio de estratgias e para a cooperao operacional. Se, como ocorre no Brasil, no h tal articulao na prtica, os papis se superpem, as competncias se confundem, e o funcionamento do sistema se torna catico, com as instituies competindo entre si, sabotando-se reciprocamente, monopolizando suas prprias informaes e atribuindo umas s outras as razes de suas prprias deficincias. No necessrio dizer a quem cabe, em ltima instncia, pagar a conta dessa disfuncionalidade.

    Cabe lembrar, finalmente, que foram mencionadas aqui apenas as instituies mais abertamente comprometidas com o sistema de segurana pblica institucionalizado como tal. Seria possvel, e mesmo desejvel, incluir outros atores estatais (como as guardas municipais, os agentes de sade, por exemplo) e instncias da sociedade civil (institutos de pesquisa, ONGs, conselhos etc.). Deixemos, no entanto, essa discusso para outras ocasies.

    Referncias

    CERQUEIRA, Daniel. A quem interessa a segurana pblica no Brasil. In: ZAVERUCHA, Jorge et alli. Segurana Pblica e a ordem social. Recife: Ed. UFPE, 2007.

    LIMA, Roberto Kant de. A Polcia do Rio de Janeiro. Seus dilemas e pardoxos. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1995.

    MISSE, Michel et alli. O Inqurito policial no Brasil. Uma pesquisa emprica. Rio de Ja-neiro: FENAPEF; NECVU; Booklinks, 2010.

    PALMIERI, Gustavo. Segurana cidad e polcia na democracia. Konrad Adenauer, 2003.

    SAPORI, Lus Flvio. Segurana pblica no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007.

    SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de general. 500 dias no front da segurana pblica do Rio de Janeiro. So Paulo: Cia. das Letras, 2000.

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    No perca de vista...

    Um dos aspectos a partir do qual o tema da segurana pblica pode ser debatido diz respeito ao aparato estatal que organiza a gesto dessa dimenso da vida pblica.

    Cada operador ou gestor, a partir de sua insero diferenciada no sistema, possui uma viso parcial e muitas vezes fragmentada dos equipamentos estatais implicados na gesto da segurana pblica.

    Apesar dos aspectos formais que estruturam e regulam o sistema (legislao reguladora, montagem e estruturao do equipamento do estado, formalizao de atribuies e vocaes constitucionais de cada instncia, conceitos fundamentais que organizam a segu-rana pblica como aspecto do experimento democrtico etc.), as prticas locais e diferenciadas interferem no modo pelo qual os rgos pblicos se articulam.

    fundamental para a gesto de segurana pblica com cidada-nia que as esferas do poder pblico atuem de modo integrado e sistmico. Esse aspecto imprescindvel para que a poltica de se-gurana pblica seja operada a partir de seu princpio fundamen-tal: a sustentao de uma ordem democrtica e pacfica.

    Essa a primeira articulao da segurana pblica com o tema dos direitos humanos: a manuteno de uma ordem de direitos.

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    CAPTULO 2 A EMERGNCIA HISTRICA DA NOO DE ESTADO DE DIREITO

    Bernardo Ferreira2

    A referncia ideia de Estado de direito tornou-se hoje bastante difundida, seja no debate poltico, nos meios de comunicao de massa ou na discusso universitria. A Constituio de 1988, em seu artigo 1, parte do ttulo Dos princpios fundamentais, declara que a Repblica Federativa do Brasil, formada pela unio indissolvel dos esta-dos e municpios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrtico de direito. Imaginemos, no entanto, um grupo de jovens estudantes que tenham que fazer um trabalho escolar e sejam levados a ler, pela primeira vez, a Carta de 1988. No difcil supor que esses estudantes venham a se perguntar sobre o sentido dessa afirmao do artigo 1 do texto. provvel que eles consigam entender por que a Constituio diz que o Brasil um Estado democrtico. A essa altura das suas vidas, j estaro fa-miliarizados com os processos eleitorais peridicos do pas e talvez alguns deles j este-jam mesmo em idade para ter o direito de voto. Mas por que um Estado democrtico de direito? O significado da parte final da expresso, podemos suspeitar, no ser para eles imediatamente claro. Afinal, o que faz com que um Estado qualquer venha a ser um Estado de direito?

    Voltemos aos nossos estudantes e imaginemos agora que, buscando resolver sua dvida, eles tenham prosseguido na leitura. Sem encontrar nas muitas pginas da Constituio uma definio sobre o que Estado de direito, provvel que eles fiquem intrigados com o fato de que em inmeras oportunidades o texto constitucional, ao estabelecer alguma norma ou prescrio, acrescente as expresses na forma da lei, nos termos da lei. Nos duzentos e cinquenta artigos da Constituio de 1988, essas duas frmulas se repetem por mais de cem vezes. Para ns, a ideia de que a Constitu-io refere-se a um conjunto de leis que regem a vida pblica parece ser algo to evi-dente que essa repetio pode passar por uma simples caracterstica tcnica do texto jurdico. O que no deixa de ser verdade. Faamos, no entanto, um esforo de distan-ciamento em relao quilo que nos parece ser bvio, e coloquemo-nos na posio dos nossos estudantes imaginrios: por que repetir tantas vezes essas frmulas? Ou ainda: por que tamanha nfase na questo da lei? Talvez tenhamos a um caminho para se pensar sobre qual o papel que o direito desempenha em um Estado de direito, confer-indo a este ltimo um carter particular. Para tanto, vale a pena considerar o lugar que o direito e a lei ocuparam na formao dos Estados modernos e, mais especificamente, na consolidao das monarquias da poca moderna. Foi em oposio a esse lugar que se definiram algumas das ideias bsicas do Estado de direito.

    Nos Estados monrquicos dos sculos XVII e XVIII, normalmente designados de monar-quias absolutas, um dos principais instrumentos de fortalecimento do rei em face dos seus sditos foi a associao entre poder e direito, em funo da qual a posio de

    2Professor de Cincia Poltica da UERJ.

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    mando do governante se apresentava como uma capacidade de ditar leis. Em outros termos, o poder do monarca no era outra coisa seno sua prerrogativa de fazer leis conforme a sua vontade. Dessa forma, os defensores do fortalecimento do poder do rei procuravam afirmar que o governante era legibus solutus, ou seja, no estaria vin-culado a nenhuma lei, j que a sua vontade seria a fonte da prpria lei. Para que a concentrao de autoridade e centralizao poltica pretendidas pelo monarca se tor-nassem efetivas, ele precisava se colocar acima de uma srie de direitos conflitantes sustentados pelos diferentes grupos sociais e afirmar a sua superioridade enquanto rbitro e responsvel ltimo pelo bem pblico. A soberania reivindicada pelo rei e seus defensores residia nessa superioridade e deveria se traduzir numa capacidade de de-ciso poltica que, em tese, se elevaria acima de todas as decises concorrentes, com a fora de uma palavra final. A linguagem do direito e da lei foi uma arma fundamental na tentativa do monarca de monopolizar as fontes da ordem pblica, buscando reduzir todos os demais poderes do reino a uma emanao dos direitos soberanos da realeza ou a simples foras privadas, desprovidas de autoridade pblica.

    A realizao plena da reivindicao de soberania por parte das monarquias europeias da poca moderna significaria, portanto, uma reduo do direito lei do governante. Dito de outro modo, a ideia de que a vontade do monarca seria a fonte de todas as nor-mas, se levada s ltimas consequncias, implicaria negar a existncia de uma justia ou de um direito a que o prprio monarca estivesse submetido. A realidade das monar-quias europeias foi, no entanto, diferente dessa imagem extrema. Como tm obser-vado os historiadores, aceitar tal imagem exigiria ignorar a permanncia e a fora de concepes religiosas da justia e os direitos adquiridos que diferentes grupos sociais preservaram. Em lugar da simples imposio de uma vontade pessoal, o poder do rei estaria sujeito s exigncias de uma justia superior, e dependeria, em sua efetivao, de pactos e negociaes com diversos grupos sociais. Ainda assim, possvel dizer que a concentrao do poder nas mos do monarca e seu esforo de apropriao das fon-tes do direito por intermdio da lei estatal foram tendncias do desenvolvimento do Estado moderno, mais ou menos realizadas nas diferentes histrias nacionais. Foi con-tra essas tendncias que se definiram alguns aspectos importantes das concepes do Estado de direito. Em particular, sua tentativa de separao entre o direito e o poder. Vejamos esse ponto com mais ateno.

    Como se viu h pouco, uma caracterstica do processo de afirmao das monarquias modernas foi a tendncia a legitimar a posio do rei pelo seu monoplio das fontes do direito. De forma um pouco mais clara: segundo essa concepo, a obedincia ao governante estaria justificada pelo fato de que sua vontade seria a fonte ltima da lei. Levada ao extremo, semelhante perspectiva conduz a uma espcie de raciocnio circu-lar: o poder do governante conforme o direito porque ele est na origem do prprio direito. A ideia do Estado de direito rompe com esse tipo de raciocnio ao sustentar uma exterioridade do direito em relao ao poder do governante. Mais precisamente, rompe ao afirmar que existe um direito anterior ao governante, ao qual ele deve obe-dincia se quiser ser reconhecido como legtimo. Essa ideia no nova: nas monarquias europeias dos sculos XVII e XVIII, na medida em que se expandia o poder do rei, os grupos social e politicamente fortes buscaram afirmar a existncia de leis fundamentais

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    a que o monarca devia obedincia e que limitavam o seu poder. A novidade das con-cepes do Estado de direito reside no fato de que elas impem uma limitao jurdica ao poder baseada em uma outra ideia: a de direitos fundamentais dos indivduos. Essa nova ideia ganhou expresso nas declaraes de direitos que marcaram as revolues polticas ocorridas nas sociedades ocidentais no final do sculo XVIII: primeiramente, o Bill of Rights do Estado de Virgnia (1776), firmado durante o processo de independn-cia dos Estados Unidos, e, em seguida, a Dclaration des droits de lhomme et du ci-toyen (1789), da Revoluo Francesa. Em que consiste a novidade dessas declaraes de direitos?

    A noo de leis fundamentais e os controles jurdicos que elas impunham tinham como pressuposto as posies sociais de poder de determinados grupos. Com base nessas posies de poder, esses grupos reivindicavam direitos especficos e buscavam impor limites ao governante. Nesse sentido, esses limites so inseparveis de uma situao social concreta, no interior da qual aqueles grupos, graas a uma posio hierarquica-mente diferenciada em relao aos demais grupos, podiam reivindicar direitos. No esse o caso da ideia de direitos fundamentais dos indivduos. Esta ltima partia de uma perspectiva que pode ser definida como universal e abstrata. Expliquemos esse ponto. Os direitos dos indivduos so direitos que cada homem ou mulher possui, in-dependentemente do lugar que ocupa no interior da sociedade. Trata-se, portanto, de direitos universais, ou seja, vlidos igualmente para todos e no apenas para grupos particulares. Por outro lado, so direitos que, em razo do seu carter universal e iguali-trio, no dependem da condio concreta dos seus titulares, ou seja, se eles so ricos ou pobres, homens ou mulheres, brancos ou negros. O reconhecimento da validade desses direitos exige fazer abstrao das diferenas concretas que existem em todas as sociedades.

    Para compreender de que modo, no Estado de direito, ocorre a separao entre o poder e o direito, anteriormente mencionada, preciso ter em vista essas caractersticas das declaraes de direitos do final do sculo XVIII. As antigas leis fundamentais estavam voltadas, como se viu, para uma certa ordem social e para as posies de poder de gru-pos concretos. Sua defesa por esses mesmos grupos visava restrio e modificao dos modos de exerccio do poder do governante nos pontos em que sua atuao feria um conjunto de direitos e liberdades tradicionais e particulares. Tais restries podiam ser bastante abrangentes e diversificadas; mantinham, porm, um alcance local, expressando uma multiplicidade de direitos de grupos especficos. J as declaraes de direitos, devido sua natureza abstrata e universal, no encontram correspondncia em uma situao social especfica, mas se referem abstratamente totalidade dos in-divduos em condio de equivalncia. Dessa forma, seus efeitos em relao ao poder tm um carter igualmente total e uniformizante, favorecendo um controle amplo e geral de seu exerccio, e no apenas naqueles diferentes aspectos em que os direitos de certos grupos so afetados. Dizendo de uma forma um pouco esquemtica: a tradicio-nal defesa de direitos pelos mais variados grupos sociais podia produzir mltiplos efei-tos modificadores do poder, que, apesar de sua grande diversidade, impunham limites particulares infrao de direitos particulares; a afirmao de direitos universais dos indivduos se traduz em efeitos constitutivos do poder, que, por meio de uma ampla

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    regulao jurdica, buscam definir em termos generalizantes as condies prvias de sua atividade. As constituies surgidas a partir do final do sculo XVIII, no processo de independncia norte-americano e na Revoluo Francesa, procuram tornar efetivo, por meio de um documento escrito, esse esforo de regulao. Nelas, o direito de-ixa de ser primordialmente um meio de expresso do poder para se transformar em um instrumento de seu controle. Nesse sentido, pode-se dizer que, por meio dessas constituies, os principais temas do Estado de direito ingressam na histria das so-ciedades ocidentais. Mas, afinal, quais so esses temas? Destaquemos trs pontos: a prioridade dos direitos dos indivduos sobre o poder do Estado, a separao de poderes e o princpio da legalidade.

    Em primeiro lugar, a noo de Estado de direito implica uma afirmao da prioridade dos direitos dos indivduos em relao ao poder do Estado. Essa prioridade se traduz no estabelecimento de um conjunto de normas jurdicas que organizam as instituies estatais e controlam a sua atividade, visando preservao e garantia dos direitos e liberdades individuais contra as interferncias arbitrrias do poder. Dessa forma, os di-reitos dos indivduos demarcam um espao de liberdade privada em face da autoridade pblica, que provoca uma inverso na relao entre o Estado e seus cidados: a nfase se desloca das obrigaes dos governados em relao ao governante para os deveres da autoridade pblica em face dos cidados portadores de direitos. A separao en-tre poder e direito, resultante do reconhecimento das liberdades e direitos individuais, tem, portanto, como consequncia uma clara distino entre o pblico e o privado. O primeiro corresponde ao mbito do Estado, e o segundo, sociedade civil como um lugar em que se d a livre convivncia entre indivduos livres. Os direitos individuais constituem garantias de que os indivduos podero, em sua convivncia uns com os outros na sociedade, desfrutar dessas liberdades sem que uma autoridade superior lhes coloque impedimentos indevidos ou determine o que fazer contra a sua vontade. Na sociedade, os indivduos livres podero, por exemplo, desfrutar de seus bens e de suas propriedades, sem que algum lhes diga o que fazer com eles; professar suas crenas e opinies, sem que algum lhes negue a capacidade de escolha ou determine qual a op-o correta; ir e vir, sem que algum lhes impea ou obrigue; conservar a privacidade de domiclio e de comunicao e correspondncia, sem que algum as viole; associar-se aos demais, sem que algum lhes constranja ou recuse a oportunidade. O Estado, de acordo com essa perspectiva, tem o papel de assegurar as condies que permitam aos indivduos se beneficiar dessas liberdades com o maior grau de autonomia possvel. Assim, ao delimitar um espao de liberdade social em face da autoridade pblica, a afir-mao da prioridade dos direitos individuais coloca para o poder do Estado uma dupla exigncia: esse um espao que deve ter sua autonomia preservada contra as inter-ferncias do poder; ao mesmo tempo, esse um espao que deve ter sua autonomia preservada pela ao do poder. Expliquemos um pouco melhor: as liberdades que foram enumeradas acima podem ser violadas, a todo momento, na convivncia social. Caberia ao Estado, por intermdio das suas leis, criar uma ordem que impedisse essa violao. Por outro lado, teme-se que o prprio Estado, ao impor uma ordem, venha a ser responsvel por invadir os direitos dos indivduos, precisando ser controlado na sua ao. No Estado de direito, portanto, o direito assume uma dupla funo: suas normas buscam estabelecer uma ordem e um poder pblicos que garantam as liberdades dos

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    indivduos, e, simultaneamente, devem impedir que o exerccio desse mesmo poder viole liberdades individuais. Como conciliar essas duas tarefas?

    Como se observou acima, uma das caractersticas dos regimes constitucionais baseados nos princpios do Estado de direito estaria em um amplo esforo de organizao e regu-lamentao jurdica do exerccio do poder. Nessa perspectiva, cabe ao texto constitu-cional estabelecer as normas legais que definem previamente as condies da atividade do Estado. Esse esforo de regulamentao e organizao resulta em duas outras carac-tersticas do Estado de direito, as quais gostaramos de destacar: o tema da separao e diferenciao de poderes e o princpio da legalidade. Ambos implicam uma tentativa de enquadrar o poder do Estado no interior de uma moldura de regras que visa tornar sua atuao previsvel e, com isso, reduzir ao mximo a margem de discricionariedade dos seus agentes. Em outros termos, trata-se de fazer com que a ao destes ltimos esteja subordinada a normas obrigatrias e independentes da sua vontade.

    A ideia de separao de poderes conduz a uma diviso do poder do Estado em diferen-tes esferas de ao, que esto ligadas entre si e, simultaneamente, se limitam umas s outras. A expresso mais visvel e conhecida dessa ideia a tradicional distino entre os poderes executivo, legislativo e judicirio. De acordo com o princpio da separao de poderes, seria possvel distinguir no interior do poder do Estado diferentes funes e atribu-las a agentes especficos. Cada um dos poderes em que se divide o poder do Estado possui uma srie de atribuies particulares que delimitam o seu campo de atividade, separando-o do campo de atividade dos demais. Como essas atribuies so complementares, os poderes so diferenciados e interdependentes. Por isso, a exata delimitao das suas competncias demarca as fronteiras de cada um deles e, ao mesmo tempo, faz com que a esfera de ao de um poder represente um limite para outro. Em tese, isso pode se fazer de duas formas. Primeiramente, pela independn-cia recproca dos diferentes poderes e pela sua especializao em funes exclusivas e complementares. Nesse caso, a limitao resulta do fato de que os diferentes poderes desempenham funes especializadas, as quais, consideradas isoladamente, so insufi-cientes. Por exemplo, o poder executivo tem a funo de aplicao das leis. No entanto, essa funo, por si s, no tem efetividade, caso no exista um outro poder responsvel pela elaborao das leis, o legislativo. E vice-versa. Em segundo lugar, as funes po-dem ser distribudas entre diferentes rgos que no so independentes entre si, nem especializados. Como resultado, os responsveis pelo exerccio de uma mesma funo se limitam reciprocamente, pois um rgo pode colocar obstculos iniciativa de um outro, criando um sistema de freios e contrapesos. A ttulo de ilustrao: as atribuies legislativas podem ser responsabilidade prioritria de um determinado rgo por exemplo, o congresso , mas um outro rgo por exemplo, a presidncia pode dis-por do direto de veto e interferir no processo legislativo, se opondo a uma iniciativa de lei.

    Como se pode observar, as diferentes possibilidades de implementao do princpio da separao de poderes buscam evitar o risco do abuso de poder, decompondo-o e dispersando-o, ou seja, impedindo que o poder se concentre em um nico ponto. Por outro lado, essa disperso visa tornar mensurvel o exerccio das funes do poder

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    estatal. Por que mensurvel? A decomposio e o balanceamento do exerccio das fun-es do Estado so inseparveis da tentativa de demarcao clara do que cada agente do poder pblico pode fazer. Em outros termos: a diviso de poderes inseparvel de um esforo de instituir competncias claramente delimitadas e regidas por normas estabelecidas antecipadamente. Assim, a parcela de poder que cabe a cada um dos rgos do Estado pode ser juridicamente regulamentada, isto , estipulada pela lei. Com isso, seria possvel reconhecer as situaes em que houve extrapolao de com-petncia, ou seja, as situaes em que um agente ultrapassou os limites das suas atri-buies e foi alm do que a lei lhe autorizava. Quanto mais mensurvel for o exerccio do poder, maiores as chances de identificar as suas infraes e maior a possibilidade de controle sobre a sua atuao.

    Dessa forma, o tema da separao de poderes se encontra com uma outra ideia central do Estado de direito: o princpio da legalidade. Isso porque o esforo de regulamen-tao jurdica das competncias est associado a uma tentativa de conter no duplo sentido de englobar e limitar a atividade do Estado no interior de uma moldura legal prvia. Cabe ao agente do poder pblico, segundo essa perspectiva, desempenhar o seu papel de acordo com aquilo que o direito prescreve. A sua ao, em sntese, deve estar condicionada pela lei. As instituies do Estado de direito procuram realizar o imprio da lei, pois onde prevalecessem as normas legais no haveria lugar para o exerccio de um poder arbitrrio. Literalmente: no haveria lugar para uma ao deter-minada pelo arbtrio pessoal, pela vontade particular daquele que ocupa uma posio de poder. Dessa forma, busca-se minimizar o governo do homem sobre o homem, substituindo-o, na medida do possvel, pelo governo da lei. O princpio da legalidade torna-se, portanto, um poderoso instrumento na defesa das liberdades individuais con-tra o abuso do poder.

    A oposio entre o governo das leis e o dos homens no exclusiva do Estado de direito, e pode ser encontrada em diferentes momentos da histria do pensamento poltico desde a antiguidade. No contexto das instituies do Estado de direito, essa oposio adquire, no entanto, um significado particular. Sobretudo, quando consideramos que o objetivo fundamental dessas instituies est na defesa e na garantia dos direitos indi-viduais. So necessrias duas condies bsicas para que a lei se coloque a servio da liberdade e da autonomia do indivduo. Em primeiro lugar, a subordinao dos agentes responsveis pela legislao aos direitos fundamentais dos indivduos. A fim de que essa subordinao seja efetiva, os direitos individuais ganham reconhecimento na Con-stituio, e toda legislao que os viole pode ser condenada como inconstitucional. A Constituio vem a ser vista como a lei fundamental e, por isso, nenhuma outra lei pode estar em contradio com aquilo que o texto constitucional determina. Em segundo lugar, necessrio que o governante esteja submetido sua prpria lei, de modo que a sua posio de poder no se transforme em um instrumento para uma dominao ar-bitrria. A lei, portanto, precisa se distinguir de uma medida tomada em funo de uma situao especfica ou de um comando baseado na mera vontade pessoal. Para satis-fazer a esses requisitos, ela deveria assumir um carter abstrato, impessoal; deveria ser vlida igualmente para todos e, portanto, indiferente especificidade das situaes concretas; deveria ser predeterminada e concebida como algo duradouro e constante;

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    deveria, enfim, se apresentar como uma norma geral. A generalidade da lei seria a condio para que o prprio governante estivesse submetido a ela. Somente assim, ele agiria segundo regras universalmente vlidas, aplicveis a si mesmo, sem que medidas derivadas de circunstncias particulares pudessem reivindicar a condio de lei. Por qu? Tomemos um exemplo de uma norma geral para ilustrar a questo. Quando o Cdigo Penal brasileiro, em seu artigo 155, define o crime de furto como sub-trair, para si ou para outrem, coisa alheia mvel e probe toda ao desse gnero, essa proibio tem um carter abstrato, ou seja, no se apresenta como uma resposta particular a uma situao concreta, mas procura enquadrar previamente uma srie de casos concretos dentro de um preceito geral; impessoal, ou seja, no especifica concretamente quem est proibido de realizar esse ato de subtrao, no se dirige a um grupo particular de pessoas, isentando os demais; incorpora na sua formulao um trao igualitrio, ou seja, vale para todos, sem distino; pretende ter as qualidades da durao e da constncia, ou seja, tem uma vigncia que independente do tempo e do lugar. Como esse tipo de norma se define em termos universais sem derivar de circun-stncias concretas, sem especificar pessoas particulares, sem se prender a um espao ou tempo determinados , o prprio governante passa a estar includo nela.

    O imprio da lei pretendido pelo Estado de direito se baseia na tentativa de subme-ter o Estado a um conjunto de normas jurdicas que, pela regulao e controle prvios da sua atividade, tornem o exerccio do poder a expresso de uma ordem legal an-tecedente. Dito de outro modo, cabe ao governante agir em nome da lei ou em conformidade com a lei. A lei, nessa perspectiva, precede a sua ao e determina ante-cipadamente o que pode ser feito. A codificao jurdica da vida estatal pretende, por-tanto, substituir a imprevisibilidade do arbtrio humano pela universalidade do preceito legal. A lei, como norma abstrata e impessoal, se oporia ordem pessoal, emanada de uma vontade particular e dependente de circunstncias especficas. O princpio da legalidade concretiza, assim, a separao entre o direito e o poder, invertendo a rela-o entre o lugar do governante e a lei. Como vimos, uma tendncia da formao das monarquias da poca moderna foi a tentativa de identificar o lugar do governante com uma capacidade de ditar leis segundo a sua vontade. No Estado de direito, ocorre uma inverso: a posio do governante est submetida lei, que no depende mais da sua vontade. Isso porque, vale repetir, o legislador, em sua atividade, tem que respeitar os direitos individuais constitucionalmente reconhecidos, e porque a lei, pela sua natureza universal, se impe ao prprio governante.

    Como j foi indicado anteriormente, a ideia do primado da lei busca subordinar o exer-ccio do poder pblico a uma exigncia de previsibilidade e, de certa forma, predetermi-nar o curso da ao do Estado. Evitemos um equvoco: quando se afirma que a lei pre-determina o curso da ao estatal, isso no quer dizer que ela defina por antecipao o que deve ser feito nas diferentes circunstncias. A lei estabelece os requisitos para que

    3Nessa discusso sobre a certeza do direito, sigo de perto a anlise de Danilo Zolo, no texto Teoria e crtica do Estado de direito. In: Costa, Pietro & Zolo, Danilo (orgs.). O Estado de direito. Histria, teoria, crtica. So Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 39-41.

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    uma ao seja considerada de direito. Mais precisamente: ela estabelece, por meio de uma norma geral, aquilo que um agente est autorizado ou proibido de fazer, isto , no direito de fazer. Sendo assim, as decises e medidas particulares que os agentes do Estado tomam diante de situaes especficas esto subordinadas aos preceitos gerais da lei. Ainda que uma norma legal no prescreva qual a ao a ser realizada em cada caso, ela estipula os limites do que pode ser feito. Tal fato introduz uma dose significa-tiva de previsibilidade. Exclui, por princpio, do horizonte da vida coletiva aes que ignorem os limites da lei e, ao mesmo tempo, garante aos cidados meios para con-testar judicialmente os atos do poder que desrespeitem a ordem jurdica.

    A exigncia de previsibilidade se torna clara quando consideramos as situaes em que a liberdade individual restringida pela lei. A interveno nas liberdades individuais um resultado da prpria convivncia social e das contradies que surgem quando os indivduos so colocados lado a lado. A ao e as escolhas de um ou mais indivduos podem impor limitaes liberdade dos demais. Nesse caso, o poder pblico chama-do a regular a convivncia entre os cidados, para evitar que o desfrute irrestrito da liberdade por uns implique dano para a liberdade de outros. A ordem pblica, como se observou anteriormente, busca evitar essas violaes da liberdade e requer, portanto, alguma limitao dos direitos individuais, visando garantia dos direitos de todos. Se-ria preciso evitar, no entanto, que, em nome dessa garantia, se queira justificar uma restrio indevida da liberdade. Com isso, do ponto de vista das instituies do Estado de direito, toda e qualquer limitao da liberdade s pode ser feita com base em uma lei previamente estabelecida, jamais por intermdio de uma lei. A lei, segundo essa perspectiva, no pode ser um instrumento para invadir as liberdades individuais, mas uma norma que regula essa interveno, definindo antecipadamente as condies em que ela legtima. Compreendida nesses termos, a lei pode servir de referncia para a orientao dos indivduos na vida social, pois lhes permite prever as consequncias jurdicas de suas aes e da interao com os demais membros da sociedade.

    O princpio da legalidade , portanto, inseparvel da preocupao com a certeza do di-reito3, ou seja, com a segurana resultante da clareza e estabilidade da ordem jurdica e das garantias que ela oferece. Para tanto, preciso que as normas vigentes sejam pblicas e amplamente acessveis a todos os cidados que busquem conhec-las. Da mesma forma, no basta que o poder pblico esteja formalmente submetido aos im-perativos da lei, necessrio que o exerccio de suas funes se faa sob o signo da transparncia. A natureza pblica das leis e a transparncia no exerccio das funes do Estado implicam uma recusa categrica do segredo como modo de atuao do poder. Ambas permitiriam reduzir o grau de incerteza com que os indivduos se orientam na vida social, pois lhes assegurariam a oportunidade de conhecimento das normas a que esto submetidos e das formas da sua operacionalizao. Nessa perspectiva, so, si-multaneamente, um meio de controle da atividade do Estado e uma garantia da liber-dade individual. Alm disso, a certeza do direito exige uma formulao inequvoca das normas legais, de modo a minimizar as ambiguidades na sua interpretao. Somente assim o indivduo estar seguro quanto ao sentido da lei e, por conseguinte, quanto aos limites que ela impe sua ao e atividade do poder pblico. Por ltimo, a certeza do direito tambm seria incompatvel com uma ordem legislativa instvel e mutante. Ain-

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    da mais se essas mudanas se fizerem de maneira retroativa, introduzindo no presente uma indefinio a respeito do que permitido e do que proibido pela ordem jurdica.

    Para encerrar, voltemos aos estudantes do incio do texto. Imaginemos que, aps pes-quisar para o seu trabalho, eles tenham compreendido o papel da lei no Estado de di-reito como instrumento de regulamentao e de controle jurdico do exerccio do poder estatal. Provavelmente, a essa altura, tambm estaro mais claras para eles certas car-actersticas do texto constitucional: como, no Estado de direito, o estabelecimento de uma constituio escrita tem em vista a afirmao e a garantia dos direitos dos cidados; como aquele esforo de regulamentao legal do poder pblico procura instituir um governo limitado que esteja juridicamente impedido de violar os direitos dos cidados. bem possvel que os estudantes observem como a Constituio de 1988, aps proc-lamar, na sua abertura, que o Brasil um Estado democrtico de direito, coerente-mente passe a enumerar, no segundo ttulo, os direitos e garantias fundamentais dos cidados. Mesmo assim, eles ainda poderiam se colocar uma pergunta: e se os agentes do poder pblico no respeitarem os limites que a lei lhes impe? E se abusarem das suas competncias e invadirem os direitos dos cidados? Pior: e se os rgos respon-sveis pela legislao usarem a prpria lei para violar as liberdades individuais? A quem os indivduos podero recorrer para defender seus direitos contra a ao arbitrria dos governantes? Em primeiro lugar, para garantir a defesa das liberdades individuais, a Constituio no Estado de direito se apresenta como uma lei superior a todas as outras normas legais. Seus preceitos fundamentais so rgidos e inflexveis, no sentido de que no podem ser modificados por uma lei ou medida de qualquer poder cuja existn-cia fruto da prpria Constituio. Em outros termos, segundo essa perspectiva, nem os agentes responsveis pela legislao, nem os responsveis pela execuo e inter-pretao da lei esto no direito de alterar as garantias constitucionais fundamentais. A sua funo, como rgos institudos pela Constituio, assegurar a vigncia dos direitos constitucionalmente estabelecidos. Em segundo lugar, os agentes do poder ju-dicirio so concebidos como autnomos em relao s foras polticas em disputa e unicamente subordinados lei no desempenho do seu papel de resoluo de litgios. A independncia poltica da magistratura visa garantir a possibilidade de um controle judicial das violaes da ordem constitucional cometidas pelos prprios agentes do poder pblico. Com a autonomia do poder judicirio, procura-se colocar disposio dos cidados recursos de poder que lhes permitam contestar os atos do poder estatal que atentem contra suas liberdades.

    Referncias

    Bobbio, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 2004.

    ____. Liberalismo e democracia. So Paulo: Brasiliense, 1988.

    Costa, Pietro & Zolo, Danilo (orgs.). O Estado de direito. Histria, teoria, crtica. So Paulo: Martins Fontes, 2006.

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    Grimm, Dieter. Constitucionalismo y derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2006.

    Lefort, Claude. Essais sur le politique. Paris: Seuil, 1986.

    Matteucci, Nicola. Organizacin del poder y libertad. Historia Del constitucionalismo moderno. Madri: Trotta, 1998.

    ____. A inveno democrtica. So Paulo: Brasiliense, 1983.

    Schmitt, Carl. Thorie de la constitution. Paris: PUF, 1993.

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    CAPTULO 3 - ESTADO DE DIREITO

    Delamar Jos Volpato Dutra4

    O direito no deve jamais ser adaptado poltica, mas a poltica que deve sempre ser adaptada ao direito5.

    O conceito de Estado de direito pode ser compreendido em uma dupla acepo. Pode ser entendido sob o ponto de vista formal e sob o ponto de vista do contedo. Sob o ponto de vista formal, o Estado de direito se confunde com o prprio princpio da le-galidade. Nessa formulao, o conceito honra a segurana jurdica, tendo em vista que os destinatrios do direito podem saber como se conduzir, bem como podem saber como o Estado agir. Contudo, no se considera o contedo das normas. Sob o segundo ponto de vista, o Estado de direito conectado a determinados contedos, sejam eles morais ou de justia. A conexo do Estado de direito com contedos normativos torna-se a razo para relacion-la com a democracia, seja como seu limite, seja como sua condio de possibilidade.

    1. A legalidade como forma do Estado de direito

    Pelo princpio da legalidade, na Administrao Pblica no h liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administrao particular lcito fazer tudo que a lei no probe, na Administrao Pblica s permitido fazer o que a lei autoriza. A lei, para o par-ticular, significa pode fazer assim; para o administrador pblico, significa Deve fazer assim6. A legalidade uma forma que pode albergar tanto uma concepo de justia, quanto qualquer outra norma, mesmo que no se possa atribuir mesma o valor da justia. A forma jurdica pode impor qualquer tipo de ao. Por exemplo, um Estado pode emitir um regulamento de como praticar tortura em prisioneiros de tal forma a no deixar sequelas fsicas, e de tal forma que o torturado no v a bito. Tal regula-mento obedece ao princpio da legalidade, no obstante seu flagrante atentado aos direitos fundamentais. Nesse sentido, h uma espcie de absolutismo legislativo que atinge seu paroxismo com os Estados totalitrios, os quais, no entanto, se viam como Estados de Direito, na medida em que se exclua a arbitrariedade pblica, e o respeito lei era assegurado. 7O regime militar brasileiro, ps 1964, tambm pode ser con-siderado um exemplo de um Estado dentro da forma legal, mas no um Estado de di-reito no sentido normativo da justia, haja vista seu completo desrespeito a parmetros mnimos de dignidade humana. Portanto, a legalidade um dos elementos do Estado de direito, o que ainda no determina nenhuma restrio conteudstica ao poder, sendo um primeiro estgio do Estado de direito, necessrio, mas no suficiente.

    4Professor da UFSC e pesquisador do CNPq.5KANT, 1985, A 312.6MEIRELLES, 2000, p. 82.7CADEMARTORI, 1999, p. 26.8WEBER, 1998, p. 44.

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    Essa primeira formulao possvel porque h uma proximidade entre poder e direito, sendo este uma pura forma coercitiva despida de contedo. Ou seja, a definio de di-reito une-o intrinsecamente com o poder, com a coero, no determinando qualquer contedo. Segundo Weber, no existiu nenhum fim que ocasionalmente no haja sido perseguido pelas associaes polticas; e no houve nenhum [...] que todas essas as-sociaes tenham perseguido. S se pode definir, por isso, o carter poltico de uma associao pelo meio [...] que sem ser-lhe exclusivo certamente especfico e para a sua essncia indispensvel: a coao fsica. 8

    Nesse sentido, todo Estado um Estado de direito, de tal forma que essa expresso no passa de um pleonasmo9, como a expresso descer para baixo. Assim, como organizao poltica, o Estado uma ordem jurdica10. O poder estatal, portanto, a vigncia de uma ordem jurdica. O poder do Estado no uma instncia mstica para alm da eficcia de sua ordem jurdica. O poder do Estado funde-se com a eficcia da norma jurdica. Melhor dito, o Estado no existe independentemente da ordem ju-rdica. Nesse sentido, o Estado no passa de uma ordem coerciva de conduta humana com o que nada se afirma sobre seu valor moral ou de Justia11. Uma possvel noo de justia seria, para Kelsen, a aplicao de uma regra quando ela tem que ser aplicada, sendo a injustia o deixar de aplic-la quando deveria ser aplicada. A justia, legalmente considerada, no concerne, em concluso, ao contedo da norma, mas sua aplica-o. Justia, nesse sentido, no diz respeito a contedos, mas prpria ordem jurdica. Kelsen, por confundir Estado de direito e legalidade acaba por abdicar de um conceito normativo de Estado de direito, visto que, tal como ele o define, a legalidade uma caracterstica de qualquer Estado, mesmo dos que no se caracterizariam como Estados de direito sob o ponto de vista normativo, como os estados totalitrios.

    Kelsen chega mesmo a afirmar que tambm uma ordem coerciva relativamente cen-tralizada que tenha carter autocrtico e, em virtude da sua flexibilidade ilimitada, no oferece qualquer espcie de segurana jurdica, uma ordem jurdica, e a comunidade por ela constituda na medida em que se distinga entre ordem e comunidade uma comunidade jurdica e, como tal, um Estado12. No que concerne justia, a nica concesso que poderia ser feita, com base na experincia, que sistemas jurdi-cos igualitrios so mais duradouros.

    2. Estado democrtico e social de direito

    Como visto, em um sentido formal, o Estado de direito uma pura forma despida de contedo, de tal forma que direito e autorizao [Befugnis] para coagir so uma e a mesma coisa13. Por isso, as determinaes mais importantes do Estado de direito so aquelas que o ligam a um dado contedo normativo, seja moral, seja de justia.

    9KELSEN, 1991, p. 328.10KELSEN, 1991, p. 302. Nem toda ordem jurdica ser um Estado, por ex., as relaes jurdicas internacio-nais.11KELSEN, 1991, p. 334.12KELSEN, 1991, p. 334.13KANT, 2005, p. 232.

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    Historicamente, o Estado de direito se vinculou ao discurso sobre os direitos humanos. Os direitos humanos carregam em si determinaes normativas substantivas, como a proteo da vida, da liberdade e da propriedade. No entanto, tais determinaes care-cem de uma especificao mais precisa, o que remete ao modo como tal especificao deve ser feita. A democracia, nesse sentido, pode responder ao problema da especifi-cao ou determinao desses contedos, haja vista a indeterminao de tais direitos. Por isso, a noo de Estado de direito se vinculou estruturalmente democracia.

    A dimenso dos direitos sociais tambm acabou ligada ao Estado de direito, devido experincia da misria no mundo, misria que implicaria esvaziar de qualquer sentido de efetividade o discurso dos direitos humanos sobre a liberdade, a vida e a proprie-dade. Os direitos sociais podem ser vistos como uma reao do Estado de direito s crticas feitas por Marx aos direitos liberais. em razo disso que se sustenta uma liga-o dos conceitos de Estado de direito, democracia e direitos sociais. Sobre esse ponto voltar-se- mais adiante.

    Essa unio de direitos humanos, democracia e Estado do bem-estar social uma conju-gao tensa. Com efeito, tais determinaes podem ser conflitivas entre si. Isso ocorre porque a igualdade econmica exigida pelo Estado de bem-estar social pode significar uma forte restrio ao direito de propriedade e, por consequncia, uma diminuio da liberdade. Por seu turno, o funcionamento da democracia pode implicar desrespeito aos direitos humanos, por exemplo, desrespeitando direitos fundamentais de minorias. De uma democracia pode resultar at a escravido de uma minoria.

    Nesse sentido, os tericos podem defender posies mais substantivas com relao justia, moral, aos direitos humanos e, por consequncia, posies mais restritivas democracia majoritria; ou, por outro lado, podem defender posies menos substanti-vas e mais processuais, o que acaba por ter um efeito mais favorvel democracia ma-joritria. Dois autores so exemplares com relao a esse ponto, Dworkin e Habermas. No obstante no haja discordncias realmente profundas entre eles, suas posies tericas manifestam a tenso h pouco mencionada entre justia, direitos humanos e democracia.

    Como exemplo de uma posio mais restritiva democracia majoritria apresenta-se a defesa que Dworkin faz dos direitos individuais. Eles funcionam, na sua teoria, como uma limitao (trump) dos resultados do procedimento democrtico. Sob o ponto de vista estratgico, tais normas so alavancadas como estruturas do sistema jurdico, de tal forma que ou no podem ser modificadas por reforma constitucional, como no sistema brasileiro, ou no podem ser facilmente modificadas, como no sistema ameri-cano, que exige aprovao por dois teros dos membros de ambas as casas (senado e cmara), ou aprovao por dois teros dos legislativos dos Estados da federao, junta-mente, em ambos os casos, com a ratificao por parte de trs quartos das legislaturas dos Estados membros14. Na considerao normativa do Estado de direito sob o ponto de vista substantivo, dois

    14UNITED STATES. Constitution of the United States of America. Article V.

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    conceitos so fundamentais para Dworkin, a saber: a liberdade e a igualdade, os quais tm conexo estrita com o conceito de justia. De fato, pode-se pensar que o desres-peito s pessoas seria menos o no terem uma liberdade ou terem uma liberdade limitada e mais o tratamento desigual. Se todos so proibidos de ingerir bebida al-colica, aceitvel, mas se a alguns for permitida, sem uma razo que seja justificada, ento, a restrio se torna problemtica.

    Segundo Dworkin, o conceito de igualdade deve conduzir o discurso sobre os direitos. Para ele, os seres humanos podem ser compreendidos a partir de duas caractersti-cas bsicas: 1) serem capazes de sofrimento e frustrao; 2) serem capazes de formar concepes inteligentes de como devem viver suas vidas e de agir com base nelas. Em razo do primeiro ponto, os seres humanos devem ser tratados com considerao por seus governos e, em razo do segundo aspecto, devem ser tratados com respeito. Tratar com considerao e respeito , antes de tudo, tratar a todos com igualdade. Em consequncia, um governo que respeita a igualdade s pode limitar a liberdade sob pouqussimos tipos de justificao, a saber: a) para proteger o direito de um outro; e b) por razes polticas, sejam elas de utilidade, sejam em razo da busca de algum tipo de comunidade idealizada.

    Mill, por exemplo, contundente sobre o primeiro ponto:

    O nico fim em que a humanidade est autorizada, individual ou coletivamente, a interferir com a liberdade de ao de qualquer de seus membros, a auto-proteo. O nico fim para qual o poder pode ser corretamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, a pre-veno de dano (harm) a outros. Seu prprio bem, seja fsico ou moral, no uma razo suficiente. Ele no pode corretamente ser compelido a fazer ou deixar de fazer porque seria melhor para ele fazer isso, porque o faria mais feliz, porque, na opinio de outros, seria sbio, ou correto (...). Na parte da conduta que mera-mente concerne a si prprio, sua independncia , de direito, absoluta. Sobre si mesmo, sobre seu prprio corpo e mente, o indivduo soberano15.

    Seja como for, os tipos de justificao para limitar a liberdade so melhor operacio-nalizados por uma comunidade que se autogoverna democraticamente. Contudo, na democracia, vrios preconceitos podem encontrar guarida em determinaes jurdicas e polticas que no tratam com igual respeito e considerao a todos. Pense-se no caso do racismo e da homofobia. Desse modo, os direitos individuais seriam uma defesa pe-rante os defeitos do procedimento democrtico, que geram polticas discriminatrias. Eles protegeriam o direito fundamental ao igual respeito e considerao (equal concern and respect), proibindo decises que, j se sabe pelo aprendizado histrico, vm eivadas por preconceitos. Da se estaturem direitos de livre expresso, de livre pensa-mento, de religio, ou de escolha sexual. Porque qualquer restrio a tais liberdades, j se aprendeu, em geral justificada com base em preconceitos que os procedimentos democrticos no conseguem eliminar 16.

    15MILL, 1991, p. 14.16DWORKIN, 1977, p. 277.

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    Essa neutralizao poltica de certos mbitos da liberdade foi criticada por Schmitt. Segundo ele, os direitos liberais implicam uma despolidez daquilo que eles estatuem como direitos. Segundo ele, o liberalismo seria constitudo por uma srie de mtodos para obstaculizar e controlar este poder do Estado para a proteo da liberdade indi-vidual e da propriedade privada17. O ponto central do liberalismo a despolitizao, de tal forma que dele no se pode tirar qualquer ideia poltica, pois a negao do poltico que est contida em todo e qualquer individualismo consequente conduz sem dvida a uma prxis poltica da desconfiana frente a todos os poderes polticos18; o que h somente uma crtica liberal da poltica.

    Em contraposio s neutralizaes do libera