2015jun15 - lei maria da penha e imunidades dos crimes patrimoniais

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LMP E IMUNIDADES

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  • REFLEXOS DA LEI MARIA DA PENHA NAS IMUNIDADES DOS

    CRIMES PATRIMONIAIS

    Eduardo Luiz Santos Cabette

    Em seu Ttulo II o Cdigo Penal Brasileiro trata dos Crimes Contra o

    Patrimnio, apresentando os dispositivos respectivos divididos em

    oito captulos. No derradeiro desses captulos estabelece o Cdigo

    Penal as Disposies Gerais dos crimes contra o patrimnio. Ali,

    respectivamente nos artigos 181 e 182, prev as chamadas

    imunidades absolutas e relativas, especificamente referentes aos

    casos de crimes patrimoniais perpetrados entre cnjuges e pessoas

    ligadas por parentesco.

    No caso dos cnjuges na constncia da sociedade conjugal e dos

    ascendentes e descendentes a imunidade absoluta, j que em caso

    de cometimento de crimes patrimoniais entre eles o autor ficar

    isento de pena. De outra banda, nos casos de cnjuges em fase de

    separao judicial, irmos e tios ou sobrinhos que coabitam, a

    imunidade relativa, pois que somente determina a lei que a ao

    penal passe a depender de representao do lesado.

    No obstante, essas imunidades no so aplicveis de forma

    indiscriminada a todos os tipos penais patrimoniais ou em quaisquer

    circunstncias. O artigo 183, I a III, CP, estabelece claros limites,

    vedando o alcance das imunidades:

    a) aos crimes patrimoniais praticados mediante violncia ou grave

    ameaa (v. G. Roubo, extorso etc.);

    b) ao estranho que participa do crime;

    c) aos casos de crimes patrimoniais praticados, com ou sem violncia

    ou grave ameaa, contra maiores de 60 (sessenta) anos. [1]

    Sabe-se que a Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha,

    veio a regular os casos de violncia domstica e familiar contra a

    mulher. Tal diploma teve o esmero de conceituar a violncia

    domstica e familiar, dividindo-a expressamente em cinco espcies:

    violncia fsica, violncia psicolgica, violncia sexual, violncia

    patrimonial e violncia moral (artigo 7, I a V, da Lei 11.340/06).

  • Em face disso, j se aventa na doutrina a hiptese de que as

    imunidades entre cnjuges e parentes no teriam mais aplicabilidade

    quando se tratasse de violncia patrimonial contra a mulher, nos

    termos da Lei Maria da Penha (artigo 5., I a III c/c artigo 7., IV, da

    Lei 11.340/06).

    Este o entendimento de Maria Berenice Dias ao asseverar:

    A partir da vigncia da Lei Maria da Penha, o varo que subtrair

    objetos da sua mulher pratica violncia patrimonial (art. 7., IV).

    Diante da nova definio de violncia domstica, que compreende a

    violncia patrimonial, quando a vtima mulher e mantm com o

    autor da infrao vnculo de natureza familiar, no se aplicam as

    imunidades absoluta ou relativa dos arts. 181 e 182 do Cdigo Penal.

    No mais chancelando o furto nas relaes afetivas, cabe o processo

    e a condenao, sujeitando-se o ru ao agravamento da pena (CP,

    art. 61, II, f). [2]

    Certamente esse pensamento pode ter como sustentao trs pilares:

    a) O disposto no artigo 7., IV, da Lei Maria da Penha seria esvaziado

    de tal forma pelas imunidades dos artigos 181 e 182, CP, que no

    passaria de letra morta, pois sempre que o parente ou cnjuge

    perpetrasse subtraes contra a mulher no contexto domstico ou

    familiar, faria jus a alguma imunidade legal. Assim sendo, a nica

    interpretao capaz de conferir efetividade proteo da mulher

    contra a violncia domstica e familiar de carter patrimonial, seria

    aquela que admite a derrogao dos artigos 181 e 182, CP, pela Lei

    11.340/06.

    b) Em estreita aproximao com o argumento anterior, restaria

    fundamentada a revogao parcial (derrogao) tcita dos artigos

    181 e 182, CP, pela novel Lei Maria da Penha, de acordo com o

    disposto no artigo 2., 1., da Lei de Introduo ao Cdigo Civil.

    Ora, na esteira do raciocnio desenvolvido a Lei 11.340/06 (lei

    posterior) seria incompatvel com os dispositivos do Cdigo Penal

    em destaque. Isso a partir da concluso de que a subsistncia dos

    artigos 181 e 182, CP, ensejaria o completo esvaziamento do

    contedo do artigo 7., IV, da Lei Maria da Penha, conforme

    anteriormente demonstrado.

  • c) Um derradeiro fundamento ainda poderia ser acenado como

    reforo aos anteriores. Trata-se da alterao promovida no seio das

    imunidades em estudo pelo Estatuto do Idoso, o qual, em seu artigo

    95, vedou expressamente a aplicabilidade dos benefcios se a vtima

    for maior de 60 anos (vide artigo 183, III, CP). Se a lei protetiva dos

    idosos assim operou, conclui-se que a lei protetiva das mulheres teria

    a mesma inspirao e conseqncias. [3]

    Ocorre que, embora a argumentao acima expendida possa

    aparentar certa coerncia lgica, , na verdade, prenhe de equvocos.

    Iniciando pelo ltimo argumento, tem-se que este realmente o mais

    frgil, pois no se pode extrair a mens legis de um diploma legal

    atravs de outro. bem verdade que a chamada interpretao

    sistemtica bastante profcua e proporciona uma completude e

    coerncia do ordenamento jurdico. Tambm inegvel que a Lei

    11.340/06 (art. 13) faz expressa referncia s disposies do

    Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei 8069/90) e do Estatuto do

    Idoso (Lei 10.741/03) como complementares legislao protetiva

    da mulher. No obstante, o fato do Estatuto do Idoso afastar as

    imunidades expressamente no pode ser transplantado a frceps

    para o bojo da Lei Maria da Penha. Ocorre que se o legislador

    realmente a isso visasse, bastaria haver procedido previso

    expressa, como fez no outro diploma.

    Por outro lado, a impresso de que as imunidades do Cdigo Penal

    esvaziariam o contedo do artigo 7., IV, da Lei 11.340/06 no passa

    de miragem. Na verdade, a violncia patrimonial contra a mulher

    poderia ser objeto de represso penal regular em muitos casos em

    que as imunidades no tm atuao. Seno vejamos:

    1) Em todo caso de vtima idosa, ainda que se tratem de crimes

    perpetrados sem violncia ou grave ameaa (artigo 183, III, CP);

    2) Em todos os casos de crimes patrimoniais praticados por meio de

    violncia real ou grave ameaa (v. G. Roubo, extorso etc.) (artigo

    183, I, CP);

    3) Mesmo nos casos de crimes praticados sem violncia ou grave

    ameaa contra vtima no idosa, desde que se refiram s imunidades

    relativas do artigo 182, CP, considerando que a vtima manifeste seu

    interesse na persecuo criminal do autor da infrao.

  • Desse modo, cai por terra tambm o argumento da suposta

    revogao tcita parcial (derrogao) nos termos do artigo 2., 1.,

    da Lei de Introduo ao Cdigo Civil. A Lei 11.340/06 jamais

    derrogou expressamente as disposies do Cdigo Penal sob

    comento. Tambm ntido que no tratou inteiramente da matria ali

    regulada. Ademais, em face do amplo espao deixado para a efetiva

    atuao do disposto no artigo 7., IV, da Lei Maria da Penha,

    conforme antes demonstrado, resta claro que inexiste

    incompatibilidade com os artigos 181 e 182, CP, podendo referidos

    mandamentos legais conviverem harmonicamente sem qualquer

    prejuzo considervel.

    Em arremate, afigura-se oportuna a transcrio da lio de Eduardo

    Espnola e Eduardo Espnola Filho acerca da revogao tcita por

    incompatibilidade de leis no tempo:

    Os comentadores acentuam que, inquestionavelmente, se trata de

    uma incompatibilidade formal, absoluta, de uma impossibilidade de

    aplicar, contemporaneamente, a uma determinada relao jurdica, a

    lei antiga e a nova. Pondera Fiore que, quando a lei nova ,

    diretamente, contrria ao prprio esprito da antiga, deve entender-

    se que a ab rogao se estende a todas as disposies dessa, sem

    qualquer distino. No caso contrrio, cumpre examinar,

    cuidadosamente, quais as disposies da lei antiga, que se mostram

    absolutamente incompatveis com a nova; o que, apenas, se deve

    admitir quando a fora obrigatria s possvel, reduzindo a nada as

    disposies relativas da lei antiga: posteriores leges ad priores

    pertinenti nisi contrariae sint. Quando seja duvidosa a

    incompatibilidade, ser o caso de interpretar as duas leis, de modo

    que se faa desaparecer a antinomia, no sendo admissvel uma ab

    rogao por presuno. [4]

    Migrando para outro questionamento passvel de surgimento com o

    advento da Lei Maria da Penha, deve-se indagar se o disposto no

    artigo 181, I, CP, abrangente de casos de unies homoafetivas.

    sabido que os cnjuges podem ser beneficiados pela imunidade ali

    expressamente prevista. O que se indaga agora se, com o

    surgimento da Lei 11.340/06, a qual, em seus artigos 2. E 5.,

    Pargrafo nico, empresta evidente proteo s unies homoafetivas

    femininas, estariam as unies homoafetivas em geral abarcadas pela

  • imunidade legal do artigo 181, I, CP, por analogia in bonam

    partem.

    No novidade o reconhecimento por parcela da doutrina da

    equiparao em relao unio estvel heterossexual, por fora dos

    dispositivos constitucionais a ampliarem sobremaneira o conceito de

    entidade familiar (artigo 226, 3., CF). Alis, tal equiparao

    tende a ser legislada, j que o projeto de reforma do Cdigo Penal

    (1999) inclui na imunidade de forma expressa os casos de

    companheirismo e unio estvel. [5]

    Retomando a questo especfica das unies homoafetivas, entende

    Maria Berenice Dias que a Lei 11.340/06 as reconheceu

    expressamente como famlia, ao determinar a incidncia de seus

    dispositivos protetivos mulher, independentemente da orientao

    sexual (arts. 2. E 5., Pargrafo nico). [6]

    inegvel que razo assiste autora, pois para fins de violncia

    domstica e familiar contra a mulher h clara equiparao das

    unies homoafetivas femininas a outras entidades familiares.

    Mas, persiste a dvida quanto aos efeitos desse reconhecimento da

    Lei Maria da Penha em relao ao restante do ordenamento jurdico.

    Estaria a Lei 11.340/06 chancelando para todos os fins a unio

    homoafetiva como entidade familiar?

    Se a resposta for positiva com referncia a esta ou talvez a alguma

    lei vindoura que o faa de forma mais explcita, parece-nos que

    aqueles unidos por laos homoafetivos que convivam em unio

    estvel devem ser beneficiados pela imunidade do artigo 181, I, CP,

    por analogia favorvel. [7]

    Entretanto, seja por falta de respaldo constitucional, diversamente do

    que ocorre no caso das unies estveis heterossexuais, seja porque a

    Lei Maria da Penha no explcita quanto a seus efeitos alm do

    mbito da violncia domstica ou familiar contra a mulher, parece

    que o espectro de sua influncia deve ser restringido s

    circunstncias especiais a que se refere.

    Portanto, a nosso ver, a partir da Lei Maria da Penha, por fora de

    seus artigos 2. E 5., Pargrafo nico, a unio estvel homoafetiva

    feminina pode ser equiparada a entidade familiar, de maneira que

    abrangida pela imunidade prevista no artigo 181, I, CP. No entanto, a

  • unio estvel homoafetiva masculina no abrangida pela Lei

    11.340/06, de forma que no h sustentao para reconhecer sua

    equiparao a entidade familiar em qualquer diploma legal vigente e,

    assim sendo, no pode ser abarcada pela imunidade acima citada.

    Essa interpretao pode ensejar a objeo de que violaria o Princpio

    Constitucional da Igualdade, objeo esta, alis, j oposta por parte

    da doutrina Lei 11.340/06 como um todo[8] de forma

    absolutamente equivocada, pois que na verdade a Lei Maria da

    Penha constitucional porque serve igualdade de fato e como fator

    de cumprimento dos termos da Carta Magna. [9] No somente

    mulher como tambm s crianas, adolescentes e idosos justificvel

    a reserva de um tratamento protetivo e especial, de modo a ensejar

    uma igualdade efetiva por meio da conhecida frmula de tratar

    igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Quem sabe um

    dia, por meio de aes afirmativas como as preconizadas na Lei

    11.340/06, as mulheres brasileiras superem realmente os anos e

    anos de submisso, violncia, preconceito e excluso a que foram

    historicamente submetidas e, s ento, se poder pensar em suprimir

    tratamentos diferenciados e protetivos hoje ainda necessrios. Nesse

    dia certamente as mulheres ficaro satisfeitas e orgulhosas de

    poderem abrir mo de protees especiais de que no mais sero

    carecedoras.

    Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polcia,

    Mestre em Direito Social, Ps graduado com especializao

    em Direito Penal e Criminologia e Professor na graduao e

    ps graduao da Unisal nas matrias de Direito Penal,

    Processo Penal e Legislao Penal e Processual Penal Especial.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justia. So Paulo:

    RT, 2007.

    ESPNOLA, Eduardo, ESPNOLA FILHO, Eduardo. A Lei de Introduo

    ao Cdigo Civil Brasileiro. Volume 1. 3. Ed. Rio de Janeiro:

    Renovar, 1999.

    PIERANGELI, Jos Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro

    Parte Especial. So Paulo: RT, 2005.

  • JESUS, Damsio Evangelista de. Direito Penal. 2. Volume. 27. Ed.

    So Paulo: Saraiva, 2005.

    GRECO, Rogrio. Curso de Direito Penal. Volume III. 2. Ed. Niteri:

    Impetus, 2006.

    TELES, Ney Moura. Direito Penal. Volume II. So Paulo: Atlas, 2004.

    BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Volume 3. 3.

    Ed. So Paulo: Saraiva, 2006.

    NUCCI, Guilherme de Souza. Cdigo Penal Comentado. 3. Ed. So

    Paulo: RT, 2003.

    PRADO, Luiz Regis. Comentrios ao Cdigo Penal. 2. Ed. So Paulo:

    RT, 2003.

    MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito

    Penal. 25. Ed. So Paulo: Atlas, 2007.

    SOUZA, Joo Paulo de Aguiar Sampaio, FONSECA, Tiago Abud da. A

    aplicao da Lei 9099 nos casos de violncia domstica contra a

    mulher. Boletim IBCCrim. N. 168, nov., 2006, p. 4 5.

    SANTIN, Valter Foleto. Igualdade constitucional na violncia

    domstica. Disponvel em www.ibccrim.org.br, acesso em

    18.05.2007.

    [1] Dispositivo acrescentado pela Lei 10.741/03 (Estatuto do Idoso).

    [2] A Lei Maria da Penha na Justia. So Paulo: RT, 2007, p. 88 89.

    [3] Op. Cit., p. 52.

    [4] A Lei de Introduo ao Cdigo Civil Brasileiro. Volume 1. 3. Ed.

    Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 63 64.

    [5] PIERANGELI, Jos Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro

    Parte Especial. So Paulo: RT, 2005, p. 628. Ver ainda, no mesmo

    sentido, reconhecendo a imunidade para as unies estveis: JESUS,

    Damsio Evangelista de. Direito Penal. 2. Volume. 27. Ed. So

    Paulo: Saraiva, 2005, p. 515. GRECO, Rogrio. Curso de Direito

  • Penal. Volume III. 2. Ed. Niteri: Impetus, 2006, p. 400 401.

    TELES, Ney Moura. Direito Penal. Volume II. So Paulo: Atlas, 2004,

    p. 510. Em contrrio, afastando a imunidade nos casos de unio

    estvel: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal.

    Volume 3. 3. Ed. So Paulo: Saraiva, 2006, p. 418. NUCCI,

    Guilherme de Souza. Cdigo Penal Comentado. 3. Ed. So Paulo:

    RT, 2003, p. 603. PRADO, Luiz Regis. Comentrios ao Cdigo Penal.

    2. Ed. So Paulo: RT, 2003, p. 782. MIRABETE, Julio Fabbrini,

    FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. 25. Ed. So Paulo:

    Atlas, 2007, p. 354.

    [6] Op. Cit., p. 44.

    [7] Note-se que essas equiparaes para a imunidade do artigo 181,

    I, CP, so foco de controvrsia doutrinria, conforme demonstrado na

    nota anterior (n. 5). Ocorre que nos filiamos possibilidade de

    equiparao para a unio estvel heterossexual, de modo que,

    coerentemente, assumimos o mesmo critrio para as unies

    homoafetivas que venham a ser chanceladas pela legislao

    brasileira.

    [8] Neste sentido: SOUZA, Joo Paulo de Aguiar Sampaio, FONSECA,

    Tiago Abud da. A aplicao da Lei 9099/95 nos casos de violncia

    domstica contra a mulher. Boletim IBCCrim. N. 168, nov., 2006, p.

    4 5. SANTIN, Valter Foleto. Igualdade constitucional na violncia

    domstica. Disponvel em www.ibccrim.org.br, acesso em

    18.05.2007.

    [9] DIAS, Maria Berenice. Op. Cit., p. 56.