2012 marco antonio m da cruz

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE MESTRADO MARCO ANTÔNIO MARTINS DA CRUZ USOS E APROPRIAÇÕES SOCIAIS DO ESPAÇO PÚBLICO NAS PRAÇAS DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO São Luís 2011

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2012 Marco Antonio M Da Cruz

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHO

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

    CURSO DE MESTRADO

    MARCO ANTNIO MARTINS DA CRUZ

    USOS E APROPRIAES SOCIAIS DO ESPAO PBLICO

    NAS PRAAS DE SO LUS DO MARANHO

    So Lus

    2011

  • MARCO ANTNIO MARTINS DA CRUZ

    USOS E APROPRIAES SOCIAIS DO ESPAO PBLICO

    NAS PRAAS DE SO LUS DO MARANHO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Cincias Sociais da Universidade Federal do

    Maranho, para a obteno do Ttulo de Mestre em

    Cincias Sociais.

    Orientador: Prof. Dr. Paulo Fernandes Keller

    .

    So Lus

    2011

  • CRUZ, Marco Antnio Martins da.

    Usos e apropriaes sociais do espao pblico nas praas de So Lus do

    Maranho/Marco Antnio Martins da Cruz. So Lus, 2011

    140f.

    Impresso por computador (fotocpia).

    Orientador: Prof. Dr. Paulo Fernandes Keller.

    Dissertao (Mestrado) Universidade Federal do Maranho, Programa

    de Ps-Graduao em Cincias Sociais, 2011.

    1. 1. Praas pblicas So LusMA Interao social 2. Espao pblico

    Uso I. Ttulo

    CDU 316.4.063.3:711.61 (812.1)

  • MARCO ANTNIO MARTINS DA CRUZ

    USOS E APROPRIAES SOCIAIS DO ESPAO PBLICO NAS PRAAS DE SO

    LUS DO MARANHO

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao

    em Cincias Sociais da Universidade Federal do

    Maranho, para a obteno do Ttulo de Mestre em

    Cincias Sociais.

    Aprovada em: ____/____/____

    BANCA EXAMINADORA

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Paulo Fernandes Keller (Orientador)

    Doutor em Cincias Humanas (Sociologia)

    Universidade Federal do Maranho

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Carlos Frederico Lago Burnett

    Doutor em Arquitetura e Urbanismo

    Universidade Estadual do Maranho

    ______________________________________________

    Prof. Dr. Jos Odval Alcntara Jr

    Doutor em Cincias Sociais

    Universidade Federal do Maranho

  • A Maria Lcia, sempre companheira, pelo

    firme apoio e compreenso, sobretudo nos

    momentos de afastamento de seu convvio.

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus, pela enigmtica ddiva da vida.

    Aos meus pais in memoriam Gilberto Martins da Cruz e Dria do Carmo Mendes

    Guimares da Cruz, pelo eterno carinho, base na criao e perseverana no ensino da

    responsabilidade para com os afazeres dirios.

    minha esposa Maria Lcia Soares da Cruz, pelo seguro apoio e compreenso

    nos momentos de afastamento para a redao deste estudo.

    Aos meus filhos Allan Kssio Beckman Soares da Cruz, Ricardo Bruno Beckman

    Soares da Cruz, Deborah Duane Beckman Soares da Cruz e Jean Renan Beckman Soares da

    Cruz, pela colaborao na pesquisa com a tabulao dos resultados.

    Aos meus irmos Paulo Marcelo Martins da Cruz, Antnio Carlos Martins da Cruz

    e Mrcia Valria Martins da Cruz, pela torcida.

    instituio de fomento Fundao de Amparo Pesquisa e ao Desenvolvimento

    Cientfico e Tecnolgico do Maranho (FAPEMA), pelo incentivo com a concesso de apoio

    financeiro, na forma de Auxilio Taxa de Bancada, como forma de apoiar a execuo desse

    projeto de mestrado.

    Ao meu orientador, Professor Doutor Paulo Fernandes Keller, pela pronta ateno

    e orientao segura no percurso de pesquisa.

    Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da UFMA,

    em especial a Igor Gastal Grill, Marcelo Domingos Sampaio Carneiro, Elizabeth Maria

    Beserra Coelho, Eliana Tavares dos Reis, Mundicarmo Maria Rocha Ferretti, Sergio

    Figueiredo Ferretti, que lecionaram as disciplinas cursadas, contribuindo em parte para a

    elaborao desta dissertao.

    A Mary Lourdes Gonzaga Costa, secretria do PPGCS, pela permanente ateno.

    A Rosana Santos Pinheiro, auxiliar da Secretaria do PPGCS, pelo bom

    atendimento.A Soraya Cristina Barbosa Carvalho, secretria da Revista Ps-Cincias Sociais,

    pela garantia na comunicao das informaes do Programa.

    A todos os amigos e colegas de turma do Mestrado pelos momentos de

    convivncia nesses dois anos de muitas aprendizagens.

    A todos, muito obrigado.

  • O espao no uma dimenso vazia ao longo

    da qual agrupamentos sociais vo sendo

    estruturados, mas deve ser considerado em

    funo do seu envolvimento na constituio de

    sistemas de interao.

    (Anthony Giddens)

  • RESUMO

    Usos e apropriaes sociais do espao pblico nas praas de So Lus do Maranho compe-se

    de um estudo sobre as prticas sociais de usos atribudos pelos citadinos ao espao social

    pblico contemporneo da cidade. Compara-se o transcurso das condies sociais de usos,

    apropriaes e interaes nas praas pblicas e o processo de construo de sociabilidades no

    cotidiano por indivduos e grupos, enquanto habitantes de diferentes territrios, regies e

    bairros da cidade. So discutidos em uma perspectiva interacionista os conceitos de espao e

    lugar onde indivduos e grupos estabelecem aes, relaes e interaes sociais. Descreve-se o

    processo histrico de transformaes urbanas de So Lus, com seus reflexos nas mudanas e

    permanncias na estrutura da cidade e configuraes sociais nas praas. Estudam-se as

    articulaes individuais e coletivas na composio do espao social. Observa-se como a

    proximidade e o distanciamento possibilitam a construo de fronteiras sociosimblicas entre

    indivduos e grupos. Para compreender os usos, as apropriaes e as interaes sociais no

    espao pblico so estudados os casos de trs praas da cidade: Praa Gonalves Dias, Praa

    da Ressurreio e Praa do Conjunto dos Ips. Por meio de observao direta e entrevistas so

    identificados e examinados os procedimentos interacionais que permitem a indivduos e

    grupos estabelecer arranjos sociais direcionados aos usos e apropriaes sociais do espao

    pblico nas praas. Evidenciam-se, assim, as dinmicas sociais dos rituais decorrentes das

    sociabilidades cotidianas, que caracterizam modalidades e estratgias de convvio na cidade.

    Palavras-chave: Uso. Apropriao. Espao. Pblico. Praa. Interao.

  • ABSTRACT

    Uses and social appropriation of public space in the squares of So Lus do Maranho is

    composed of a study on the social practices of uses attributed by city dwellers to the

    contemporary social space of the city. It compares the course of the social uses, appropriations

    and interactions in public places and the construction of sociability in everyday life by

    individuals and groups, as inhabitants of different territories, regions and neighborhoods. The

    concepts of space and place where individuals and groups establish actions, relationships and

    social interactions are discussed in an interactionist perspective. It is described the historical

    process of urban transformation of So Lus, with its reflections on the changes and

    continuities in the structure of the city and social settings in the squares. It is studied the

    collective and individual joints in the composition of social space. It notes how the proximity

    and distance allow the construction of socio symbolic boundaries between individuals and

    groups. In order to understand the uses, appropriations and social interactions in public space

    are studied the cases of three squares of the city: Gonalves Dias Square, Ressurreio Square,

    and Conjunto dos Ips Square. Through direct observation and interviews are identified and

    examined the interactional procedures that allow individuals and groups establish social

    arrangements directed to the social uses and appropriations of public space in squares. Became

    evident, therefore, the social dynamics of everyday rituals derived from sociability, featuring

    arrangements and strategies of living in the city.

    Keywords: Use. Appropriation. Space. Public. Square. Interaction.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1 Mapa de So Lus com a localizao das praas pesquisadas ............................. 94

    Figura 2 Mapa do Centro de So Lus com a localizao da Praa Gonalves Dias ......... 95

    Figura 3 Vista parcial da Praa Gonalves Dias................................................................. 98

    Figura 4 Fotografia de satlite da Praa Gonalves Dias ................................................... 99

    Figura 5 Cenrios dos usos e apropriaes na Praa Gonalves Dias ................................ 105

    Figura 6 Mapa com a localizao Praa da Ressurreio ................................................... 109

    Figura 7 Fotografia de satlite da Praa da Ressurreio ................................................... 110

    Figura 8 Vista parcial da Praa da Ressurreio ................................................................ 112

    Figura 9 Cenrios dos usos e apropriaes na Praa da Ressurreio................................ 115

    Figura 10 Mapa com a localizao da Praa do Conjunto dos Ips ................................... 117

    Figura 11 Fotografia de satlite da Praa do Conjunto dos Ips ........................................ 119

    Figura 12 Vista parcial da Praa do Conjunto dos Ips ...................................................... 121

    Figura 13 Cenrios dos usos e apropriaes na Praa do Conjunto dos Ips ..................... 124

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Evoluo Demogrfica de So Lus (1612 1820) ............................................... 65

    Tabela 2 Evoluo Demogrfica de So Lus (1872 2010) ............................................... 69

    Tabela 3 Evoluo Demogrfica de So Lus e Maranho (1991 2010) ........................... 70

    Tabela 4 Populao Residente em So Lus (2010) ............................................................. 71

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ....................................................................................................... 12

    2 REVISO DE LITERATURA .............................................................................. 22

    2.1 Espao e lugar: atores e relaes sociais ................................................................. 22

    2.2 Espao social pblico: condies objetivas para as interaes................................ 37

    2.3 As praas enquanto espao pblico: conceituao e configuraes ...................... 49

    3 HISTRICO DO DESENVOLVIMENTO URBANO DE SO LUS .............. 55

    3.1 Histrico das transformaes urbanas de So Lus ............................................. 55

    3.2 Mudanas e permanncias na composio urbana e os usos das praas: do

    tradicional ao supermoderno ................................................................................................... 72

    4 USOS E APROPRIAES SOCIAIS DO ESPAO PBLICO NAS PRAAS

    DE SO LUS ........................................................................................................................ 79

    4.1 Usos e apropriaes sociais do espao pblico: introduo .................................. 79

    4.2 Usos e apropriaes sociais do espao pblico: o caso das praas de So Lus .... 90

    4.2.1 Introduo ao estudo de caso..................................................................................... 90

    4.2.2 A Praa Gonalves Dias ............................................................................................ 95

    4.2.3 A Praa da Ressurreio ............................................................................................ 107

    4.2.4 A Praa do Conjunto dos Ips ................................................................................... 117

    5 CONCLUSO ......................................................................................................... 126

    REFERNCIAS ........................................................................................................ 137

    ANEXO ..................................................................................................................... 141

  • 12

    1 INTRODUO

    Neste estudo so analisados os usos, as apropriaes e as interaes sociais

    estabelecidas e mantidas no espao pblico de praas localizadas na cidade de So LusMA.

    Estas so compreendidas como lugares pblicos de interao social, para refletir sobre como

    construdo e cultivado o processo de sociabilidades, as mltiplas formas em que transcorre a

    ordem da interao e como so exercitadas e sustentadas na cidade as relaes intersubjetivas

    nas diversas dimenses sociais: cultural e simblica, econmica e poltica. So pensados de

    modo articulado os conceitos fundamentais de espao pblico e privado, praa, atores sociais,

    interao, sociabilidade, relao social, identidades, proximidade, distanciamento,

    individualidade, coletividade, usos e apropriaes sociais. Reflete-se, portanto, sobre os atores

    sociais copresentes1 e suas prticas interacionais, no contexto scio-histrico contemporneo,

    no qual prevalecem novas dinmicas que requalificam os espaos pblicos urbanos.

    O objeto de investigao refere-se aos usos, s apropriaes e s interaes sociais

    nos lugares constitudos em espaos pblicos especficos da cidade de So Lus do Maranho,

    a saber: Praa Gonalves Dias, Praa da Ressurreio e Praa do Conjunto dos Ips. Justifica-

    se a escolha das trs praas pela possibilidade de admitir uma anlise que comportasse

    identificar e confrontar prticas interacionais em bairros e contextos sociais diversificados.

    Discutir usos, apropriaes e interaes sociais no espao pblico remeter s

    dinmicas sociais bsicas, concebendo a cidade como espao de convivncia e as praas

    pblicas como lugares onde ocorrem ritos sociais de interao. Como pontua Goffman (2011),

    objetiva-se evidenciar a ordem comportamental encontrada nas praas de So Lus, quando as

    pessoas entram na presena imediata de outras. Considera-se teoricamente o espao dos

    ajuntamentos sociais, no contexto do que Goffman (2011) chama de sociologia das ocasies,

    observando as aes das pessoas em atividades interacionais temporrias. Afirma Goffman

    (2011, p. 9) que, nessas aes entre atores, esto envolvidos um breve perodo de tempo, uma

    extenso limitada no espao, e os eventos so restritos queles que devem ser completados

    depois de iniciados. H um emaranhado complexo com as propriedades rituais das pessoas e

    com as formas egocntricas da territorialidade.

    1 Copresentes, neste contexto, refere-se copresena que, para Goffman (2009, p. 11), pode ser entendida como

    o perodo em que o indivduo est na presena imediata dos outros. Ainda segundo este autor, a copresena deixa as pessoas singularmente acessveis, disponveis e sujeitas umas s outras (GOFFMAN, 2010, p. 33).

  • 13

    Assim, o que se visa pensar sobre os citadinos, indivduos e grupos que vivem o

    cotidiano contemporneo da cidade de So Lus. Como diz Frgoli Jr (2007, p. 48), interessa

    estudar os processos que efetivamente emerge[m] de um encontro pblico, [...] Tendo em

    vista, portanto, que o citadino circula por mundos diferentes, contguos porm distintos.

    parte dessa realidade citadina que se investigou.

    Na introduo a este estudo oportuno considerar o que levou o pesquisador a

    indagar, querer estudar e refletir sobre os usos e apropriaes sociais de praas, entre tantos

    provveis fenmenos passveis de investigao no universo social. O interesse pelo estudo das

    interaes e sociabilidades nas praas foi despertado no curso de Graduao em Cincias

    Sociais (1983-1986) e aprofundado em uma Especializao em Sociologia Urbana (1994),

    concludos na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. No exerccio da docncia, desde

    1991, deve-se mencionar a continuidade dos estudos relacionados temtica da cidade.

    As praas pblicas esto localizadas em determinados espaos fsicos e sociais,

    nos quais so estabelecidas interaes entre indivduos e grupos que ali se encontram; lugares

    esses que se fazem presentes tambm no imaginrio social coletivo, nas ideias e nas

    representaes de mundo das pessoas. Foi no espao pblico em que se fundaram

    historicamente as noes de poltica e cidadania. No se pode conceber o espao urbano sem

    incluir igualmente esses locais por onde se deslocam e nos quais interagem ou convivem as

    pessoas que habitam determinada regio. So ambientes propcios convivncia, onde se

    desenvolve a construo de interaes e envolvimentos na cidade.

    A vida urbana pressupe encontros, confrontos das diferenas, conhecimentos e

    reconhecimentos recprocos dos modos de viver, dos padres que coexistem na cidade

    (LEFEBVRE, 2009, p. 22). Seja qual for o tamanho da cidade, seus habitantes percebem as

    praas como lugares peculiares, nos quais ocorrem encontros, interaes, sociabilidades,

    jogos, manifestaes culturais, feiras, trocas mercantis e no mercantis. Fatos ocorridos em

    espaos como esses so eventualmente rememorados e relatados em reminiscncias pelas

    geraes mais velhas, recordando episdios vividos na frequncia s praas em outros tempos.

    Entendem-se as praas como ambientes de interaes heterogneas. Conforme sua

    localizao possvel identificar em seu entorno residncias, edifcios pblicos, igrejas,

    vendedores estabelecidos ou ambulantes e outras atividades como mendicncia e prostituio.

  • 14

    Configuraes estas que permitem compor e renovar cotidianamente as modalidades de usos,

    apropriaes e interaes sociais no espao pblico.

    As praas, em uma concepo tradicional, costumam ser pensadas como ncleos

    irradiadores a partir dos quais a urbe se desenvolve. Essa ideia, contudo, pode ser questionada

    na vida social contempornea, quando a praa deixa de ter o sentido poltico que tivera no

    passado. pertinente perguntar, ento, se outros espaos tm ocupado o lugar social reservado

    outrora praa pblica. A propsito, representam as praas de alimentao nos shopping

    centers novos espaos de interao social e de sociabilidades na atual sociedade capitalista.

    Assim sendo, visa a pesquisa, por meio de um percurso investigativo a praas da

    cidade, compreender o espao pblico considerando suas destinaes, a concorrncia relativa

    s suas apropriaes sociais, seja pelos moradores da vizinhana, pelos que ali permanecem

    algumas horas dos dias, pelos que circundam aquele espao, pelos que por l transitam e pelo

    Estado, o qual deveria, em tese, zelar por esse locus privilegiado de interaes e

    sociabilidades.

    A questo de pesquisa se coloca a partir de quais costumes e sob quais condies

    estruturais e interacionais os citadinos estabelecem, mantm e tornam possveis os usos e

    apropriaes sociais em praas (pblicas) na cidade de So Lus-MA no transcurso das

    situaes sociais. Inicialmente, foram verificadas no cotidiano as diferentes maneiras pelas

    quais indivduos e grupos conduzem espcies e padres de usos nesses espaos urbanos. Do

    mesmo modo, constataram-se interaes sociais marcadas por diversos tipos de trocas, sejam

    gratuitas, onerosas ou ainda marcadas por intercmbios simblicos de variados bens.

    Investiga-se, portanto, como os atores em suas interaes so condicionados pelo

    contexto social da copresena nas praas de So Lus. O que os atores sociais costumam fazer

    para organizar e estabelecer espaos que so usados e apropriados nas praas? Quais so os

    padres de conduta caractersticos das formas de revezamento para uso? Ocorrem conflitos

    interativos motivados por cdigos de condutas, tradies, regras e normas divergentes entre os

    frequentadores desses espaos? So estabelecidos consensos para a distribuio e seletividade

    desses usos sociais? Quais os recursos2 que indivduos e grupos lanam mo nas interaes

    2 Recursos empregados pelos agentes visam manter um senso coerente dos eventos centrais das trocas

    (HERITAGE, 1999, p. 341). So construtos do senso comum com os quais os agentes interpretam e organizam

  • 15

    para cultivar as relaes e sustentar as situaes sociais? Como so articuladas no processo de

    interao as condies sociais para o uso e a apropriao de determinados territrios? Podem

    ser verificadas diferenas ao serem confrontados os usos sociais em bairros diversos? Quais

    so e como transcorrem os usos, as apropriaes e as interaes sociais no processo de

    construo de sociabilidades no cotidiano por indivduos e grupos, enquanto habitantes de

    uma regio da cidade? Como ocorrem as interaes entre indivduos conhecidos que

    conservam relaes de proximidade com estranhos?

    A dissertao pretende contribuir com as discusses e debates sobre as formas de

    interaes estabelecidas no espao urbano, oferecendo meios para a elaborao de um

    diagnstico acerca das sociabilidades nesse ambiente. A investigao a respeito das relaes

    entre os diversos atores que circulam, transitam, ocupam, usam e vivem esses lugares deve

    proporcionar subsdios para reflexo a respeito das interaes entre indivduos, grupos e

    instituies nas praas da cidade de So Lus contempornea.

    A pesquisa tem seu objeto associado Antropologia e Sociologia Urbana. As

    produes tericas do urbanismo, disciplina conexa, merecem igualmente destaque. Os

    referenciais tericos que orientam a metodologia deste estudo esto baseados, sobretudo, em

    autores como Max Weber, Georg Simmel, Norbert Elias, Erving Goffman, Anthony Giddens,

    Harold Garfinkel, Gilberto Freyre, Roberto DaMatta, Jos Alcntara Jr., entre outros.

    Discutem eles as interaes e sociabilidades em determinados espaos sociais.

    Weber (2009) formulou conceitos adequados ao tema da pesquisa, como ao

    social e relao social, a qual pode ser comunitria ou associativa. Diferenciou ainda uso e

    costume, que permitem pensar os usos sociais das praas. O conceito e categorias da cidade

    (WEBER, 1987) possibilitam tambm relevantes aportes tericos para analisar as praas no

    contexto urbano.

    Do mesmo modo, pensa-se a noo de sociabilidade. Para Simmel, este conceito

    expressa a aproximao com outras pessoas (SIMMEL, 2006). A ausncia de sociabilidade

    pode ser desenvolvida em razo de atitudes opostas aproximao, causando dificuldade de

    dilogo e convivncia. Com isso, podem ser analisados os grupos e redes sociais de interaes

    que se formam no cotidiano. Para caracterizar os espaos de sociabilidade utilizam-se tambm

    suas situaes de ao, envolvem a contextualidade das aes comuns, a observao de convenes normativas e

    o uso da linguagem (HERITAGE, 1999).

  • 16

    as concepes de Elias. Considera este autor as redes de interdependncia que os indivduos

    estabelecem nas configuraes que lhes so prprias (ELIAS, 1994). O conceito de

    configurao aplicado anlise das formas de interao que tornam efetivos os usos sociais

    das praas.

    Esto, ainda, includas na pesquisa as concepes tericas de Goffman. Trata ele

    da representao, que seria a totalidade da atividade de determinado indivduo, em dada

    ocasio, realizada com o objetivo de influenciar de certa maneira um dos participantes

    (GOFFMAN, 2009). Alude este autor a diferentes estratgias e tcnicas de atuao, analisando

    a dinmica social como se acontecesse em palcos as praas , com os atores desempenhando

    papis de diferentes personagens.

    Da mesma forma, Giddens (2005b) considera a vida social a partir da interao

    que ocorre entre indivduo e sociedade. Na condio de agente de suas aes, o indivduo usa

    sua conscincia discursiva e prtica. Com base no conceito de conscincia prtica so

    estabelecidas relaes com os atores sociais, que seriam no apenas aqueles que praticam a

    ao, mas os que possuem a capacidade para realizar determinada ao que deve produzir um

    efeito. A teoria da estruturao de Giddens (2003) permite tambm a anlise de encontros

    sociais localizados segundo tempo, espao e regionalizao.

    Outra perspectiva nesta pesquisa a da etnometodologia de Harold Garfinkel. O

    ponto de vista da etnometodologia apresentado por Uwe Flick. De acordo ele,

    [...] a interao produzida de uma maneira bem ordenada, sendo que o contexto

    constitui a estrutura da interao que , ao mesmo tempo, produzida na interao e

    por meio dela. As decises acerca do que seja relevante para os membros da

    interao social apenas podem ser tomadas por meio de uma anlise da interao, e

    no pressupostas a priori. O foco no o significado subjetivo para os participantes

    de uma interao ou de seus contedos, mas a forma como essa interao

    organizada. O tema de pesquisa passa a ser o estudo das rotinas da vida cotidiana, em

    vez dos eventos extraordinrios conscientemente percebidos e revestidos de

    significado. (FLICK, 2009, p.71).

    A etnometodologia estuda o raciocnio prtico, considerando os fundamentos

    lgicos da ao nos contextos em que so usados. Neste sentido, pontua Heritage (1999, p.

    382) que cada ao social um comentrio reconhecvel sobre o cenrio de atividade no qual

    ela ocorre e uma interveno nesse mesmo cenrio. Os estudos de Garfinkel esto voltados

  • 17

    para fenmenos empricos da atividade social e de organizao das condutas sociais, o que

    admite pensar as diversificadas interaes no contexto do espao social das praas pblicas.

    Ao buscar formulaes conceituais que ampliem a capacidade de estudo,

    compreenso e crtica, serviram ainda como referncias as orientaes tericas de Alex

    (2008), Gomes (2010) e Harvey (2007), que permitem discutir as formas de uso, apropriao e

    populao usuria das praas pblicas na cidade contempornea.

    A metodologia adotada para realizao da dissertao orientou-se pela perspectiva

    do interacionismo e da etnometodologia. Entre as tcnicas empregadas nesta pesquisa

    qualitativa esto estudos bibliogrficos, estudo de caso, observao direta e entrevista

    estruturada. A primeira etapa, que se desenvolveu simultaneamente investigao de campo,

    foi marcada pelos estudos bibliogrficos. A literatura com que se subsidia a anlise buscou

    esboar o conhecimento das produes tericas de vrios autores nas reas da antropologia, da

    sociologia e das cincias sociais em geral acerca da questo do fenmeno das interaes e

    sociabilidades relacionadas com o uso e a apropriao do espao pblico das praas.

    Para o estudo propriamente das rotinas da vida cotidiana nas praas, o pesquisador

    iniciou como frequentador em observao direta. Enquanto usurio das praas foi possvel

    anotar em Dirio de Campo os ritmos conferidos pelos citadinos a esses espaos, permitindo

    reunir informaes sobre a identificao de usurios individuais e coletivos, ocasionais e

    frequentes.

    Foram, tambm, delimitados horrios nas manhs, tardes e noites nos quais se

    manteve o critrio de rodzio para examinar como ocorrem determinadas formas de

    apropriao dos espaos. O incio da manh ou o fim da tarde so momentos de maior

    frequncia praa. A fluncia praa nos dias teis diferente em relao quela verificada

    nos fins de semana. Nestas ocasies, a copresena maior e encontra-se na praa um nmero

    mais expressivo de pessoas.

    Para efetivar a observao sistemtica direta esses espaos foram frequentados,

    com presena verificada em seriao ao longo dos dias da semana, em um perodo que

    abrange do dia 5 (cinco) de junho a 26 (vinte e seis) de agosto de 2011. Nesta fase coletou-se

    material fotogrfico por meio de fotos tiradas nas praas, cujo acervo est exposto em parte

    para ilustrar com imagens o que se pde compilar. A observao foi associada s entrevistas

    realizadas com frequentadores e transeuntes desses espaos. As entrevistas foram do tipo

  • 18

    estruturado, contendo uma relao invarivel e padronizada de perguntas em forma de

    questionrio, cujo modelo de formulrio est anexo ao final deste volume. Foram dirigidas,

    aproximadamente, a uma centena de entrevistados, classificados, conforme as observaes

    prvias, em categorias para atender s finalidades da pesquisa em: skatistas, jovens, casais,

    estudantes uniformizados, estudantes universitrios, religiosos, vizinhos, servidores pblicos

    que trabalham no entorno das praas, turistas, vendedores ambulantes, flanelas guardadores de

    veculos e passantes.

    Com a aplicao das entrevistas buscavam-se informaes sobre os citadinos

    usurios das praas, seus perfis socioeconmicos, hbitos e percepes a respeito do espao e

    como so estabelecidos os limites que tornam possvel a presena simultnea ou copresena

    para os usos e apropriaes desses espaos sociais. Foi utilizada a anlise de padres e

    interdependncia de comportamentos ao observar e entrevistar os diversos atores investigados,

    visando apreender similitudes e diferenas nas interaes e sociabilidades. Os resultados da

    tabulao das entrevistas so apresentados a partir da exposio do que se apurou no estudo de

    caso das praas.

    As praas pesquisadas no estudo de caso esto localizadas em trs regies

    diferentes da cidade de So LusMA. A Praa da Ressurreio e a Praa do Conjunto dos

    Ips so praas de bairros, com as sociabilidades prprias aos que habitam aquelas zonas

    residenciais. A Praa Gonalves Dias est situada em um espao central, tradicional e

    histrico da cidade e tem sido retratada como carto-postal. Apesar de fazerem parte de um

    conjunto de praas na mesma cidade, h ritmos e comportamentos diferenciados de usos e

    apropriaes conforme os dias e horrios da semana e a interveno de diferentes e

    diversificados atores.

    O processo de seleo dos trs casos estudados visou, antes de tudo, constituir um

    conjunto representativo do universo das praas da cidade, contemplando bairros tradicionais

    com ocupao anterior primeira metade do sculo XX e regies incorporadas recentemente

    estrutura urbana da cidade. A primeira selecionada foi a Praa Gonalves Dias. Em razo de

    sua posio central, os frequentadores e usurios procedem de vrios bairros da cidade e nela

    pode ser percebido um amplo conjunto de interaes sociais. Para a escolha foi observada a

    presena reiterada da representao dessa Praa em propagandas alusivas cidade. Essa

    imagem veiculada exerce atrao a muitos que ao espao acedem. No foram consideradas,

  • 19

    nos limites deste estudo, relevncias comerciais e polticas do passado, as quais certamente

    permitiriam escolher outros lugares, como o Largo do Carmo ou demais reas do Centro, que

    outrora foram proeminentes na vida social de So Lus.

    No bastava, para compor uma amostra significativa, conforme os propsitos da

    pesquisa, considerar apenas uma praa. Precisava-se incluir outra mais para fins de

    comparaes e confrontos. Por isso, como segunda destacada est a Praa da Ressurreio, por

    representar uma regio da cidade de ocupao contempornea, com populao composta

    majoritariamente por membros da classe trabalhadora. Localizada ao sudoeste da cidade tem,

    instalados em seu territrio, grandes grupos econmicos como Vale, Alumar e Eletronorte.

    Essa praa foi construda na dcada de 1970, quando a habitao do bairro era ainda recente.

    Fazia parte de um conjunto de espaos urbanos destinados ao exerccio de lazeres naquela

    regio. Nos anos 1990, quando o governo do Estado do Maranho implantou a poltica dos

    Vivas foi urbanizada e dotada do atual traado arquitetnico, que, em sua remodelagem,

    atendeu propsitos muito diferentes dos existentes ao tempo da inaugurao da Praa

    Gonalves Dias. Por sua localizao, as interaes e os usos sociais conferidos pelos

    frequentadores so mais restritos aos moradores do Anjo da Guarda e adjacncias.

    Uma terceira praa foi adicionada para compor uma mostra mais expressiva.

    Representa um termo mediano entre as outras duas; no a praa do carto-postal, como o a

    Gonalves Dias, nem to pouco de grandes dimenses como a Praa da Ressurreio. A

    Praa do Conjunto dos Ips, situada no Recanto dos Vinhais, est em um bairro habitado por

    uma populao de classe mdia e foi construda na dcada de 1980. Como decorrncia de sua

    localizao, com frequentadores que provm de mais de uma comunidade o ncleo do

    Conjunto dos Ips e as reas prximas de posse irregular os usos e apropriaes sociais

    dessa praa apresentam interaes diferenciadas ao se comparar com as demais listadas.

    A estrutura da dissertao conta com uma INTRODUO, na qual se delimitou o

    tema do trabalho, com indicao de questo de pesquisa. Apontam-se autores e conceitos que

    so operacionalizados ao longo do texto, bem como explicitada a metodologia utilizada.

    No captulo intitulado REVISO DE LITERATURA so caracterizados os

    espaos nos quais transcorrem as interaes. Inicialmente, estudam-se os conceitos fundantes

    de espao e lugar nos quais indivduos e grupos estabelecem aes, relaes, usos e interaes

    sociais, costumes, lutas e redes de interdependncia. So examinados termos como

  • 20

    ajuntamento, situao e ocasio social, interao focada e desfocada, fachada e pedao. Em

    seguida, analisou-se o espao enquanto pblico e privado e como se articulam as condies

    objetivas para as interaes. Delimitou-se, igualmente, a noo de praa pblica, enquanto

    lugar diferenciado no conjunto da cidade e equipamento urbano ou local onde ocorrem as

    interaes entre indivduos e grupos.

    Em HISTRICO DO DESENVOLVIMENTO URBANO DE SO LUS so

    examinadas, em perspectiva histrica, as transformaes urbanas e os movimentos

    populacionais de migrao que afetaram a composio socioespacial da cidade com reflexos

    nas condies de uso e apropriao de suas praas. Com a apreciao dessas mudanas e

    permanncias na composio da populao residente na cidade, percebidas de um ponto de

    vista diacrnico, intentou-se evidenciar a criao das condies sociais para os usos das praas

    a partir do processo de urbanizao de So Lus. Com o tempo, a estrutura da cidade e de seus

    edifcios passou do precrio e artesanal s edificaes aformoseadas com pretenses em

    observar estilos de construo caracteristicamente europeus. Esta transio reflete um

    processo incessante de transformaes incorporadas composio edificada e vida citadina.

    No captulo USOS E APROPRIAES SOCIAIS DO ESPAO PBLICO NAS

    PRAAS DE SO LUS so situadas territorialmente as relaes sociais, que perpassam

    determinados espaos. So analisadas as noes de proximidade e distanciamento que podem

    ser verificadas nas interaes sociais que ocorrem nas praas. Implicada nesta discusso est a

    reflexo sobre o individual e o coletivo. As noes de reconhecimento e estranhamento so

    ainda pensadas ao se indagar como o local e o estranho so habitualmente vividos, percebidos

    e concebidos nas praas. Nesse momento, cogitam-se as circunstncias em que a situao

    social mantida por indivduos e grupos por meio de controles mtuos de aparncias,

    linguagem corporal e atividades.

    Por fim, considera-se o caso das praas, onde so examinados os usos, as

    apropriaes e as interaes sociais no espao pblico. a etapa de anlise dos dados colhidos

    na pesquisa de campo luz da bibliografia selecionada e dos conceitos operacionalizados no

    estudo. So identificados e examinados os procedimentos interacionais que permitem aos

    atores estabelecer arranjos sociais direcionados aos usos e apropriaes sociais do espao

    pblico nas praas de So Lus do Maranho. Nesse percurso investigativo, so evidenciadas

  • 21

    as dinmicas sociais dos rituais citadinos decorrentes das sociabilidades cotidianas, que

    tornam possveis produzir e reconhecer modalidades e estratgias de convvio na cidade.

  • 22

    2 REVISO DE LITERATURA

    2.1 Espao e lugar: atores e relaes sociais

    estudando o espao de uma sociedade que se pode lanar luz sobre questes to importantes como o seu

    sistema ritual e o modo pelo qual ela faz sua dinmica.

    (Roberto DaMatta)

    Ao analisar o espao em que os atores estabelecem relaes sociais, pertinente

    tratar preliminarmente do conceito e categorias da cidade, no sentido que Weber quis imprimir

    ao tema. Esse o lugar mais amplo no qual ocorrem as relaes sociais. Entende Weber

    (1987) que a cidade um local de mercado. A cidade pode ser industrial, de consumidores e

    mercantil, mas destaca esse autor que as cidades representam, quase sempre, tipos mistos e

    que, portanto, no podem ser classificadas em cada caso seno tendo-se em conta seus

    componentes predominantes (WEBER, 1987, p. 73).

    Mas o conceito de cidade no deve estar restrito ao contedo econmico. Precisa

    ser encaixado em conceitos polticos. Nas palavras de Weber (1987, p. 76), a cidade tem que

    se apresentar como uma associao autnoma em algum nvel, como um aglomerado com

    instituies polticas e administrativas especiais. O conceito de cidade est implicado, ento,

    a cidadania e comunidade urbana (WEBER, 1987). Essa orientao essencial para situar

    relaes sociais estabelecidas por atores nas praas da cidade.

    em determinado espao e lugar que indivduos e grupos transitam e estabelecem

    vivncias diariamente. Nas praas pblicas transcorrem aes, interaes e relaes sociais,

    que caracterizam a ordem legtima. Ao situar a atuao dos atores no espao pretende-se

    instrumentalizar a pesquisa com referenciais tericos que possibilitem a anlise, a discusso, a

    reflexo e a compreenso acerca das situaes sociais de usos e apropriaes das praas

    pblicas, entendidas como formas de ao. Pois, como destaca Alcntara Jr.(2011, p. 141),

    compreenso a possibilidade de se fazer entender a si mesmo e ao outro tambm; nesse

    caso, os atores que interagem nas praas.

    Fundamental, portanto, o conceito de ao social, formulado por Max Weber. Na

    perspectiva deste autor, a ao refere-se a um comportamento humano no qual o agente o

  • 23

    relacione a um sentido subjetivo. O aspecto social define a ao no sentido visado pelo agente

    (WEBER, 2009). Esclarece Weber (2009) que a ao social pode ser racional, visando aos fins

    (determinada pelas expectativas no comportamento dos outros); racional, referente aos valores

    (orientada pela crena consciente em um valor); afetiva (norteada por afetos, emoes) e

    tradicional (pautada em um costume arraigado).

    Desta forma, os atores sociais conduzem os usos sociais de acordo com padres

    sociais em diferenciados contextos. Na Praa Gonalves Dias, que tem frequentadores de

    procedncia mais diversificada, as aes podem ser classificadas de acordo com a tipologia

    voltada a aes afetivas e racionais. grande o nmero de ajuntamentos3 cuja ida

    compartilhada praa explicada por orientaes emocionais e afetivas. Segundo Weber

    (2009, p. 15), age de maneira afetiva quem satisfaz sua necessidade atual de [...] gozo, de

    entrega, de felicidade contemplativa ou de descarga de afetos. No entorno da praa no h

    muitas residncias, que se encontram situadas um pouco mais distantes, o que, certamente, no

    constitui obstculo aos moradores. possvel visualizar continuamente indivduos

    acompanhados casais, esportistas, amigos, estudantes, turistas contemplando as belezas do

    lugar.

    Ao se comparar com a Praa da Ressurreio, percebe-se, desde logo, uma

    presena maior de comrcio de bares, regulares e irregulares em sua organizao e

    constituio fsica. Mostra-se nesta regio uma participao com maior destaque para aes

    racionais voltadas para fins econmicos. H muitos locais para lanches e socializaes e flui

    uma clientela direcionada a esses servios. Dentre as praas observadas a que concentra o

    mais intenso comrcio de servios de bares e restaurantes.

    Em depoimentos colhidos nas entrevistas, os atores sociais que frequentam a Praa

    lembram a atrao exercida pelos eventos extraordinrios organizados ao longo do ano, como

    as festas juninas. Deve-se tambm mencionar o fato de que o nome que identificava a praa,

    aps sua reurbanizao nos anos 1990, era Viva Anjo da Guarda, a qual foi renomeada pela

    comunidade e rebatizada como Praa da Ressurreio, pois montado em sua rea anualmente

    o espetculo religioso da Paixo de Cristo. Na Praa encenado o momento da ressurreio e

    3 O termo ajuntamento utilizado para fazer referncia a qualquer conjunto de dois ou mais indivduos, cujos

    membros incluem todos e apenas aqueles que esto na presena imediata uns dos outros num dado momento (GOFFMAN, 2010, p. 28).

  • 24

    da subida aos cus. Isso pode sugerir motivos referentes a crena religiosa; um momento

    extraordinrio do ano que conferiu ao espao uma destinao que foi assinalada pelos usurios

    frequentadores.

    Na Praa do Conjunto dos Ips os motivos para acessar o local so de ordem

    racional, voltados a fins econmicos, tais como idas ao supermercado ou ao quiosque de

    lanche que ficam em frente Praa; ou ainda orientados a partir de valores comunitrios que

    refletem as aes da associao de moradores. destacada a presena dos residentes, o que

    demonstra apropriaes que se desenvolvem por indivduos e grupos que mantm uma

    constante de aes afetivas e racionais determinadas por valores de vizinhana. Deve-se

    observar inicialmente tambm que esta Praa no possui designao oficial; foi nomeada na

    pesquisa como Praa do Conjunto dos Ips para fins de identificao.

    Esclarece Max Weber (2009, p. 16) que

    [...] s muito raramente a ao, e particularmente a ao social, orienta-se

    exclusivamente de uma ou de outra destas maneiras. E, naturalmente, esses modos de

    orientao de modo algum representam uma classificao completa de todos os tipos

    de orientao possveis, seno tipos conceitualmente puros, criados para fins

    sociolgicos, dos quais a ao real se aproxima mais ou menos ou dos quais ainda mais frequentemente ela se compe. Somente os resultados podem provar sua utilidade para nossos fins.

    A par da ao social, desenvolve-se a relao social. Conforme ainda a concepo

    de Weber, a relao social refere-se ao contedo de sentido do comportamento partilhado

    pelos agentes que se orientam por ele. Essa relao social pode ser comunitria ou associativa,

    aberta para fora ou fechada para fora, quanto ao comportamento e participao de

    determinadas pessoas (WEBER, 2009). Segundo este autor, a relao social deve ser

    entendida como

    [...] o comportamento reciprocamente referido quanto a seu contedo de sentido por

    uma pluralidade de agentes e que se orienta por essa referncia. A relao social

    consiste, portanto, completa e exclusivamente na probabilidade de que se aja

    socialmente numa forma indicvel (pelo sentido). (WEBER, 2009, p. 16).

    No significa que, no caso emprico, os participantes da ao reciprocamente

    referida ponham o mesmo sentido na relao social [...] que exista, portanto, reciprocidade

  • 25

    neste sentido da palavra (WEBER, 2009, p. 16). Os sentidos nos lados da relao podem

    referir-se a atividades diferentes. Nesta hiptese, mesmo em relao objetivamente

    unilateral existe reciprocidade para Weber, pois, explica ele (WEBER, 2009, p. 17),

    o agente pressupe determinada atitude do parceiro perante a prpria pessoa [...] e orienta por

    essa expectativa sua ao, o que pode ter, e na maioria das vezes ter, consequncias para o

    curso da ao e a forma da relao.

    Neste sentido, ao indagar os usurios sobre os critrios para escolher ir queles

    espaos especficos, o contedo das respostas variado; esto includos diverso, encontro

    com outras pessoas, paquera, proximidade da residncia, lanches (comprar ou vender). Os

    frequentadores consideram as praas como bons locais para conversas ou sociabilidades, mas,

    por vezes, perigosos e inseguros, no apenas em razo de violaes propriedade, mas em

    decorrncia de brigas entre os frequentadores motivadas por disputas entre integrantes de

    certos grupos.

    Quando so observadas regularidades de fato no curso das aes com o mesmo ou

    vrios agentes, com sentido homogneo, verifica-se o que Weber chama de uso e costume.

    Diferencia Weber uso de costume. Para ele, o uso expressa regularidades na orientao da

    ao social, dentro de determinado crculo de pessoas, dada pelo exerccio efetivo; , portanto,

    norma de conduta no obrigatria. O costume representa o uso exercitado em hbito

    inveterado (WEBER, 2009). Os que no se orientam em suas aes pelos costumes que

    prevalecem em determinado espao social, agem de maneira indevida; tendem a provocar

    resistncia dos demais, e, provavelmente, prejudicam seus prprios interesses. Os momentos

    de briga parecem estar relacionados no avaliao precisa dessas convenes ou da

    equivocada noo de que possvel ignorar, desconhecer ou comportar-se de modo

    discordante a esses arranjos normativos.

    O conceito de luta formulado por Weber permite compreender esses episdios.

    Anota ele (WEBER, 2009, p. 23) que uma relao social denomina-se luta quando as aes

    se orientam pelo propsito de impor a prpria vontade contra a resistncia do ou dos

    parceiros. A luta que seria latente torna-se manifesta nas ocasies de disputa no pacfica

    pelos espaos sociais nas praas. A concorrncia pelo espao transcorre de modo continuado

    nas relaes sociais. Como ressalta Weber (2009, p. 24), toda luta ou concorrncia tpica [...]

    leva, a longo prazo, finalmente seleo daqueles que possuem em maior grau as qualidades

  • 26

    pessoais mais importantes, em mdia, para triunfar na luta; pode-se cogitar que contribui a

    eventualidade dessas disputas com a seleo daqueles que usam e se apropriam dos espaos

    das praas.

    Ao considerar o espao social, pode-se ainda apreciar a relao social como

    comunitria ou associativa. A relao social denominada comunitria quando e na medida

    em que a atitude na ao social [...] repousa no sentimento subjetivo dos participantes de

    pertencer (afetiva ou tradicionalmente) ao mesmo grupo (WEBER, 2009, p.25). associativa

    quando e na medida em que a atitude na ao social repousa num ajuste ou numa unio de

    interesses racionalmente motivados (com referncia a valores ou fins) (WEBER, 2009, p.25).

    Adverte, todavia, o autor que a maioria das relaes sociais tem em parte carter comunitrio e

    associativo (WEBER, 2009).

    Predominam relaes sociais de carter comunitrio na Praa da Ressurreio e

    associativo na Praa do Conjunto dos Ips; a proximidade e o reconhecimento entre vizinhos

    tende a ser maior. O que no significa, entretanto, que em todas as relaes nestas praas

    sobressaia o sentimento comunitrio ou associativo. Os atores que compem os ajuntamentos

    tendem ao reconhecimento de contrastes em relao a terceiros no residentes na redondeza.

    Na Praa Gonalves Dias parecem sobressair as relaes sociais associativas, haja vista a

    procedncia diversificada de seus usurios. O que no significa, todavia, que s transcorrem

    relaes desse tipo.

    As reflexes de Simmel proporcionam tambm importante subsdio para

    compreender as aes individuais e coletivas, que exercem influncia sobre a produo social

    de espaos. De acordo com a proposta de anlise de Simmel, a sociedade possui configuraes

    e agrupamentos que se confundem com a vida de cada indivduo envolvido. No se deve,

    todavia, pensar que s se pode conhecer a realidade da vida social nas praas por meio do

    conhecimento de aes individuais. Os propsitos da pesquisa podem direcionar o

    investigador para a realidade vivida pelo sujeito individual ou coletivo (SIMMEL, 2006). De

    uma perspectiva ou de outra, a existncia humana s se realiza nos indivduos, sem com isso

    reduzir a validade do conceito de sociedade. Sendo assim, ao pensar o espao e o lugar,

    levam-se em conta as noes de individual e social.

    Entende Simmel que a sociedade, cuja vida se realiza num fluxo incessante,

    significa sempre que os indivduos esto ligados uns aos outros pela influncia mtua que

  • 27

    exercem entre si e pela determinao recproca que exercem uns sobre os outros (SIMMEL,

    2006, p. 17). Em razo disso, no se deveria falar de sociedade, mas de sociao. Conforme

    Simmel (2006, p. 18), a sociedade um acontecer que tem uma funo pela qual cada um

    recebe de outrem ou comunica a outrem um destino e uma forma. Logo, sociedade o nome

    para um crculo de indivduos que esto, de uma maneira determinada, ligados uns aos outros

    por efeito das relaes mtuas, e que por isso podem ser caracterizados como uma unidade

    (SIMMEL, 2006, p. 18). Grupos e indivduos recebem e partilham impulsos recprocos.

    Quando confronta o nvel social e o nvel individual, Simmel (2006, p. 40) explica

    que as aes das sociedades teriam um propsito e uma objetividade muito mais definidos

    que os individuais. As aes dos grupos sociais seriam determinadas como que por uma lei

    natural, enquanto os indivduos se mostrariam livres. De tal modo, elucida o autor que

    [...] o indivduo pressionado, de todos os lados, por sentimentos, impulsos e

    pensamentos contraditrios, e de modo algum ele saberia decidir com segurana

    interna entre suas diversas possibilidades de comportamento que dir com certeza objetiva. Os grupos sociais, em contrapartida, mesmo que mudassem com frequncia

    suas orientaes de ao, estariam convencidos, a cada instante e sem hesitaes, de

    uma determinada orientao, progredindo assim continuamente; sobretudo saberiam

    sempre quem deveriam tomar por inimigo e quem deveriam considerar amigo. Entre

    o querer e o fazer, os meios e os fins de uma universalidade, h uma discrepncia

    menor do que entre os indivduos. (SIMMEL, 2006, p. 40).

    Ao refletir sobre as interaes nas praas, considerando o que Simmel chama de

    nvel social e nvel individual, possvel avaliar a extenso da determinao dos grupos sobre

    as aes dos indivduos. Esses espaos sociais so usados para muitos propsitos,

    frequentados por indivduos e grupos. A maior presena, contudo, est relacionada a aes que

    se desenvolvem com a participao de grupos, transcorrendo socialmente. Muitas vezes as

    negociaes para uso do espao das praas se do com base em premissas coletivas, com

    padres de comportamentos grupais interferindo nas aes individuais. Ao apreciar, por

    exemplo, a prtica de skate na Praa Gonalves Dias, deve-se notar que existem ajuntamentos

    diferentes de skatistas. Em uma primeira observao, pode-se pensar que todos os que ali esto

    com seus skates praticam esse esporte. Mas, o pertencimento a alguns desses grupos requer

    tambm a posse e a observao de determinadas regras ou cdigos, como condio essencial a

    ser observada para manter a interao. H expectativas de condutas a serem satisfeitas para

    fazer parte e integrar-se aos grupos.

  • 28

    A interao entre indivduos surge sempre a partir de determinados impulsos ou

    da busca de certas finalidades (SIMMEL, 2006, p. 59). Segundo Simmel (2006, p. 60), essas

    motivaes so fatores da sociao apenas quando transformam a mera agregao isolada dos

    indivduos em determinadas formas de estar com o outro e de ser para o outro que pertencem

    ao conceito geral de interao. Assim, sociao a forma na qual os indivduos, em razo de

    seus interesses, desenvolvem-se conjuntamente em direo a uma unidade no seio da qual

    esses interesses se realizam e formam a base da sociedade humana (SIMMEL, 2006). Quando

    indivduos estabelecem laos sociais e interaes nas praas, so constitudas sociaes,

    fundamentos da vida social.

    Especifica ainda Simmel (2006, p. 65) a importante definio de sociabilidade

    como forma ldica de sociao. Na perspectiva terica de Simmel (2006, p. 69), pela

    sociabilidade ningum pode em princpio encontrar sua satisfao custa de sentimentos

    alheios totalmente opostos aos seus. preciso cada indivduo assegurar ao outro os valores

    sociais compatveis com a sociabilidade. Deste modo, a sociabilidade decorre da satisfao de

    sentimentos similares e no antagnicos ou adversos. Os comportamentos de indivduos e

    grupos devem convergir com determinada intencionalidade correspondida, para possibilitar o

    comeo e a sustentao desse processo de trocas sociais. Os padres de prticas interativas que

    se reproduzem nas praas asseguram a continuidade das aes de sociabilidade: respostas

    oportunas, revides aceitveis, rplicas adequadas, deixas amoldadas situao implicam na

    aprovao social pelo respeito demonstrado aos demais indivduos envolvidos na interao.

    Elias tambm formulou instrumentos conceituais que permitem pensar e observar

    pessoas (ELIAS, 1994). Trabalha ele com a noo de redes de interdependncia. Afirma esse

    autor que conceitos como famlia ou escola referem-se essencialmente a grupos de seres

    humanos interdependentes, a configuraes especficas que as pessoas formam umas com as

    outras (ELIAS, 2008, p. 13). Estas teias de interdependncia ou configuraes dos mais

    diversos tipos possibilitam refletir sobre as relaes estabelecidas por indivduos e grupos no

    ambiente das praas. As redes de interdependncia podem ser percebidas nos grupos e

    ocasies de interao. Dades, como casais de namorados, grupos menores ou maiores, como

    os skatistas que frequentam a Praa Gonalves Dias, formam conjuntos de indivduos cujas

    aes esto implicadas umas s outras.

    Explica do mesmo modo Elias o conceito de configurao. Segundo ele, este seria

  • 29

    [...] o padro mutvel criado pelo conjunto dos jogadores - no s pelos seus

    intelectos, mas pelo que eles so no seu todo, a totalidade das suas aes nas relaes

    que sustentam uns com os outros. Podemos ver que esta configurao forma um

    entranado flexvel de tenses. A interdependncia dos jogadores, que uma

    condio prvia para que formem uma configurao, pode ser uma interdependncia

    de aliados ou de adversrios. (ELIAS, 2008, p. 142).

    O conceito de configurao pode ser aplicado a grupos pequenos ou grandes.

    Todavia, para Elias, as configuraes formadas pelos membros de grandes grupos como os

    habitantes da cidade, no podem ser percebidas diretamente, porque as cadeias de

    interdependncia que os ligam so maiores e mais diferenciadas (ELIAS, 2008, p. 143).

    Assim, conforme este ponto de vista, a configurao evidencia a interdependncia das pessoas,

    cujos comportamentos so enredados, formando estruturas entrelaadas (ELIAS, 2008).

    Podem ser notados esses elos de interdependncia em grupos que usam as praas. Alm de

    grupos destacados como casais e skatistas, os jovens que se apropriam dos espaos das praas

    o fazem cultivando perspectivas de reconhecimento e relacionamento com seus pares.

    De modo assertivo, confirma Elias que a procura pelos outros ocorre para a

    realizao de toda uma gama de necessidades emocionais (ELIAS, 2008, p. 148). Esses

    imperativos afetivos devem ser considerados para investigar indivduos e grupos que afluem

    s praas. Acrescenta Elias que novas formas de ligao emocional so verificadas em

    unidades sociais maiores. Diz ele que, juntamente com ligaes interpessoais, so encontradas

    ligaes unindo as pessoas a smbolos de unidades maiores, [...] a bandeiras e a conceitos

    carregados de aspectos emotivos (ELIAS, 2008, p. 150). Garante ainda Elias que a afeio

    das pessoas por estas grandes unidades sociais muitas vezes to intensa como a sua afeio

    por uma pessoa amada (ELIAS, 2008, p. 151). Essas ligaes emocionais e afetivas orientam

    envolvimentos nos grupos que so encontrados nas praas.

    Decerto, as demonstraes pblicas de afetos, constatadas nas diferentes praas,

    envolvem o decoro, que a referncia por meio da qual as relaes sociais so construdas de

    um modo e no de outro e por meio da qual ganham sentido na vida cotidiana (MARTINS,

    1999, p. 10). Refere-se o decoro a pautas de condutas que definem as formas apropriadas de

    comportamento em diferentes situaes (MARTINS, 1999). De acordo com este autor,

    o decoro mais do que um conjunto de regras ele essencialmente um conjunto de

  • 30

    procedimentos pelos quais cada um se sente responsvel no s pela sua prpria conduta, mas

    tambm pela conduta dos circunstantes que com ele contracenam (MARTINS, 1999, p. 12).

    Como observa Martins (1999, p. 14), quando o poder da vergonha e do decoro que

    regula a vida cotidiana se atenua onde no deveria atenuar-se, estamos em face de mudanas

    sociais que se expressam na perda de autoridade das regras interiorizadas e que indicam a

    perda de substncia da autoridade externa que nos coage a agir de um modo e no de outro.

    Determinados gestos, sinais, expresses ou palavras antes impregnados de sentido pejorativo

    so agora aceitos, apreciados e necessariamente includos nas conversaes. Conforme o

    contexto social, atitude, como alto volume da voz na fala, no quer dizer exasperar-se, mas

    conversar com a animao e o entusiasmo que as trocas devem ter; no significa conflito, mas

    de fato interao.

    Neste sentido, observa Giddens (2003, p. 331) que todos os atores sociais

    possuem um considervel conhecimento das condies e consequncias do que fazem em suas

    vidas cotidianas. Com a teoria da estruturao, Giddens afirma que os seres humanos so

    agentes cognoscitivos. As rotinas dos agentes pensadas, dessa forma, permitem analisar a

    reproduo de prticas institucionalizadas, como os usos nas praas.

    Na teoria da estruturao, ao analisar o que chama de conduta estratgica, Giddens

    orienta que o foco deve incidir sobre os modos como os atores sociais se apoiam nas

    propriedades estruturais para a constituio de relaes sociais (GIDDENS, 2003, p. 339). Ao

    empreender essa anlise, preciso priorizar o que ele chama de conscincias discursiva e

    prtica (GIDDENS 2003). Ape o autor (GIDDENS, 2003, p. 351) que esse conceito de

    dualidade da estrutura, fundamental para a teoria da estruturao, est subentendido nos

    sentidos ramificados que os termos condies e consequncias da ao tm. De tal modo,

    as coeres estruturais operam por meio dos motivos e razes dos agentes, estabelecendo

    condies e consequncias que afetam opes abertas a outros, e o que eles querem das opes

    que tm (GIDDENS, 2003, p. 366). As condies e condicionamentos das aes, interaes e

    relaes sociais nas praas devem ser pensados enquanto vivncias que se sucedem em espao

    pblico.

    A propsito, Giddens articula orientao importante, segundo a qual o espao no

    uma dimenso vazia ao longo da qual os agrupamentos sociais vo sendo estruturados, mas

    deve ser considerado em funo do seu envolvimento na constituio de sistemas de

  • 31

    interao (GIDDENS, 2003, p. 433). Esse direcionamento deve ser mantido ao se investigar

    as interaes que favorecem as apropriaes sociais das praas. Os conceitos de espao e lugar

    permitem, consequentemente, refletir e pensar os usos sociais pesquisados.

    H outros aportes tericos que consideram o espao e o lugar no contexto das

    interaes, aes e relaes sociais. Nesse sentido, Bourdieu, ao tratar do poder simblico,

    discorre sobre o espao social, avaliando que a sociologia se mostra como uma topologia

    social. De acordo com este autor, o mundo social pode ser representado em forma de um

    espao construdo baseado em princpios de diferenciao ou de distribuio formados pelo

    conjunto das propriedades que atuam no universo social considerado, quer dizer, apropriadas a

    conferir, ao detentor delas, fora ou poder neste universo (BOURDIEU, 2009, p. 133). O

    mundo social das praas composto pelos agentes e suas posies no campo de foras.

    Frequentadores, skatistas, vendedores ambulantes, guardadores autnomos de veculos

    (flanelinhas), autoridades ocupam posies que se alteram de acordo com as propriedades

    relacionais.

    Dessa forma, agentes e grupos so definidos pelas posies ocupadas nesse

    espao. O agente ocupa uma posio em uma regio determinada do espao. Explica, ento,

    Bourdieu (2009, p. 134) que,

    [...] na medida em que as propriedades tidas em considerao para se construir este

    espao so propriedades atuantes, ele pode ser descrito tambm como campo de

    foras, quer dizer, como um conjunto de relaes de fora objetivas impostas a todos

    os que entrem nesse campo e irredutveis s intenes dos agentes individuais ou

    mesmo s interaes diretas entre os agentes.

    Conforme este autor, as diversas espcies de poder ou de capital que ocorrem nos

    diferentes campos atuam como princpios de construo do espao social, isto , da sociedade

    (BOURDIEU, 2009). Desse modo, Bourdieu (2009) considera que a posio do agente no

    espao social definida pela posio por ele ocupada nos diferentes campos, pela distribuio

    dos poderes que neles atuam, consistindo o capital em econmico, cultural, social e simblico.

    Esta perspectiva torna possvel a construo de um modelo do campo social para pensar a

    posio do agente em todos os espaos de jogo possveis (BOURDIEU, 2009, p. 135). O

    conhecimento da posio ocupada no espao social informa as propriedades intrnsecas

    (condio) e relacionais (posio) dos agentes (BOURDIEU, 2009, p. 136).

  • 32

    Ao apropriar-se dos espaos sociais, os agentes lutam, buscando estratgias para

    alcanar seus interesses. Suas aes no so necessariamente calculadas de maneira

    consciente, resultam de improvisaes em um sentido prtico. Assim, as aes ocorrem em

    condies de incerteza e situadas no espao. Indivduos e grupos, quando visam usar

    determinados espaos nas praas, criam disputas com os recursos de que dispem para

    prevalecer sobre os demais frequentadores. Pode-se indagar o que torna controversas as

    interaes para os usos dos espaos. Rixas costumam surgir quando grupos ultrapassam os

    limites simbolicamente estabelecidos para conteno de aes. Na Praa Gonalves Dias,

    mesmo sem ter a inteno declarada, os skatistas ao circularem por toda a extenso da rea

    provocam sentimentos difusos de antagonismo e repulsa. Essas condutas podem afastar

    usurios, que se poupam da eventualidade de disputas abertas.

    O espao deve, ento, ser concebido como territrio delimitado no apenas

    geograficamente, mas, sobretudo, socialmente. Esse espao precisa ser tambm respeitado,

    com a expresso de atitudes de desateno civil, como chamou Goffman (2010, p. 172).

    Muitas vezes indivduos para impedir discusses e bate-bocas simulam no perceber nem

    identificar comportamentos indesejados ou no aprovados. Nas praas pblicas prevalece a

    presena mtua em que pessoas em pontos diferentes podem observar outras pessoas e por

    elas tambm serem observadas. Para explicar esses acontecimentos, Goffman emprega alguns

    conceitos bsicos que orientam seu programa de pesquisa. Entre estes est o ajuntamento, que

    ele utiliza para se referir a qualquer conjunto de dois ou mais indivduos cujos membros

    incluem todos e apenas aqueles que esto na presena imediata uns dos outros num dado

    momento (GOFFMAN, 2010, p. 28). Explica ele ainda que o termo situao faz referncia ao

    ambiente espacial completo em que ao o adentrar uma pessoa se torna um membro do

    ajuntamento que est presente, ou que ento se constitui. As situaes comeam quando o

    monitoramento mtuo ocorre, e prescrevem quando a penltima pessoa sai (GOFFMAN,

    2010, p. 28).

    Outro conceito fundamental ocasio social. Segundo Goffman (2010, p. 28) ela

    um acontecimento, realizao ou evento social mais amplo, limitado no espao e no tempo e

    tipicamente facilitado por equipamentos fixos. Uma ocasio social fornece o contexto social

    estruturante em que as situaes e ajuntamentos transcorrem, e um padro de conduta tende a

    ser reconhecido como apropriado (GOFFMAN, 2010). Podem ser citados como exemplos de

  • 33

    ocasies sociais uma festa social, um dia de trabalho num escritrio, um piquenique, ou uma

    noite no teatro (GOFFMAN, 2010, p. 28). Um dia ou momentos nas praas podem ser

    concebidos e explicados, ento, como ocasies sociais.

    Noo importante a de ordem pblica, que Goffman (2010, p. 34) entende

    quando pessoas esto conscientes da presena de outras, elas podem funcionar no

    meramente como instrumentos fsicos, mas tambm comunicativos. Ao interpretar o

    conceito, esclarece Joseph (2000, p. 93) que ordem pblica aquela fundada no direito de

    olhar, isto , num princpio de acessibilidade e disponibilidade das pessoas presentes. Estas

    tendem, quando se expem, a dominar as impresses que causam em outrem e a de se

    observar enquanto agem.

    Alm disso, explica Goffman que o comportamento comunicativo dos

    imediatamente presentes pode ser considerado como em interao focada e desfocada (no

    focada). A interao focada ocorre quando pessoas se juntam e cooperam abertamente para

    manter um nico foco de ateno, tipicamente se revezando na fala (GOFFMAN, 2010, p.

    35). A interao por ele nomeada como desfocada ou no focada o tipo de comunicao que

    ocorre quando se recolhe informaes sobre outra pessoa ao se olhar de relance para ela,

    ainda que apenas momentaneamente, quando ela entra e sai do campo de viso (GOFFMAN,

    2010, p. 34). Esta interao refere-se ao gerenciamento da mera copresena.

    Na anlise dos elementos rituais na interao social, Goffman considera ainda o

    termo fachada, figurao ou face-work [expresses sinnimas nas tradues em lngua

    portuguesa da obra de Goffman]. Fachada pode ser definida como o valor social positivo que

    uma pessoa efetivamente reivindica para si mesma atravs da linha que os outros pressupem

    que ela assumiu durante um contato particular (GOFFMAN, 2011, p. 13). Para Goffman

    (2011, p. 14), a fachada uma imagem do eu delineada em termos de atributos sociais

    aprovados. Igualmente, o conceito de equipe de representao ou equipe possibilita analisar

    os usos e apropriaes sociais nas praas, designando qualquer grupo de indivduos que

    cooperem na encenao de uma rotina particular (GOFFMAN, 2009, p. 78).

    Magnani (2003, p. 12) quando analisa relaes sociais utiliza o termo pedao para

    fazer meno a um tipo particular de sociabilidade e apropriao do espao urbano. Na

    interpretao deste autor, as interaes sociais esto situadas no pedao. De acordo com

    Magnani (2003, p. 115), so dois os elementos bsicos constitutivos do pedao: um

  • 34

    componente de ordem espacial, a que corresponde uma determinada rede de relaes sociais.

    Assim, espao e rede de relaes sociais so elementos essenciais na composio do pedao.

    Discute ele ainda a existncia de um ncleo e bordas em seu entorno, quando considera que

    alguns pontos de referncia delimitam seu ncleo. [...] No ncleo do pedao, enfim, esto

    localizados alguns servios bsicos locomoo, abastecimento, informao, culto,

    entretenimento que fazem dele ponto de encontro e passagem obrigatrios (MAGNANI,

    2003, p. 115). Ao estabelecer essas confrontaes a respeito do pedao, explica que,

    [...] enquanto o ncleo do pedao apresenta um contorno ntido, suas bordas so fluidas e no possuem uma delimitao territorial precisa. O termo na realidade

    designa aquele espao intermedirio entre o privado (a casa) e o pblico, onde se

    desenvolve uma sociabilidade bsica, mais ampla que a fundada nos laos familiares,

    porm mais densa, significativa e estvel que as relaes formais e individualizadas

    impostas pela sociedade. (MAGNANI, 2003, p. 116).

    Afirma, desde logo, que no basta, contudo, morar perto ou frequentar com certa

    assiduidade esses lugares: para ser do pedao preciso estar situado numa particular rede de

    relaes que combina laos de parentesco, vizinhana, procedncia (MAGNANI, 2003, p.

    115). Essa seria a zona do espao em que seus habitantes teriam mais familiaridade. Segundo

    ele,

    [...] pertencer ao pedao significa poder ser reconhecido em qualquer circunstncia; o que implica o cumprimento de determinadas regras de lealdade [...]. Pessoas de

    pedaos diferentes, ou algum em trnsito por um pedao que no o seu, so muito cautelosas: o conflito, a hostilidade esto sempre latentes, pois todo lugar fora

    do pedao aquela parte desconhecida do mapa e, portanto, do perigo. (MAGNANI, 2003, p. 116).

    Problemtico traar os limites do pedao com seus contornos claramente

    perceptveis para usos e apropriaes, quando indivduos e grupos no estabelecem ou

    preservam demarcaes fsicas evidentes para todos. O pedao caracterizado tambm por

    uma rede de relaes sociais, onde os vnculos estabelecidos so de tipo familiar ou vicinal.

    Roberto DaMatta (1997, p.32), interpretando o sentido geral de espao, considera

    que este demarcado quando algum estabelece fronteiras, separando um pedao de cho do

    outro. Mas, acrescenta ele que essa constatao no satisfaz, pois prossegue o antroplogo

  • 35

    fluminense preciso explicar de que modo as separaes so feitas e como so legitimadas

    e aceitas pela comunidade da propriedade privada (DAMATTA, 1997, p.32).

    Ao analisar as diferenas entre espao e lugar, explica Aug que o termo espao

    mais abstrato que lugar. usual fazer referncia a um acontecimento (que ocorreu), a um

    mito (lugar-dito) ou a uma histria (lugar histrico) (AUG, 2010, p. 77). Faz este autor

    aluso ao que chama de lugar antropolgico. Explica ele que o lugar antropolgico refere-se

    [...] quela construo concreta e simblica do espao que no poderia dar conta,

    somente por ela, das vicissitudes e contradies da vida social, mas qual se referem

    todos aqueles a quem ela designa um lugar, por mais humilde e modesto que seja.

    [...] o lugar antropolgico simultaneamente princpio de sentido para aqueles que o

    habitam e princpio de inteligibilidade para quem os observa. (AUG, 2010, p. 51).

    O lugar antropolgico se completa pela fala, a troca alusiva de algumas senhas,

    na conivncia e na intimidade cmplice dos locutores (AUG, 2010, p. 73). Pode

    compreender esse lugar,

    [...] por um lado, itinerrios, eixos ou caminhos que conduzem de um lugar a outro e

    foram traados pelos homens e, por outro lado, em cruzamentos e praas onde os

    homens se cruzam, se encontram e se renem, que desenharam, conferindo-lhes, s

    vezes, vastas propores para satisfazer principalmente, nos mercados, necessidades

    do intercmbio econmico, e, enfim, centros mais ou menos monumentais, sejam

    eles religiosos ou polticos, construdos por certos homens e que definem, em troca,

    um espao e fronteiras alm das quais outros homens se definem como outros, em

    relao a outros centros e outros espaos. (AUG, 2010, p. 55).

    As praas pensadas como lugares de interaes podem ser objeto de investigao

    da antropologia e da sociologia. Determinado espao social no qual se renem indivduos e

    grupos que se identificam por sentimentos de pertencimento, caracteriza um lugar

    antropolgico. Pontua Aug (2010, p. 52) que, esses lugares [antropolgicos] tm pelo menos

    trs caractersticas comuns. Eles se pretendem identitrios, relacionais e histricos. O lugar

    que no se pode associar a essas peculiaridades corresponderia ao que ele chama de no lugar.

    Esclarece, ento, Aug que

    [...] se um lugar pode se definir como identitrio, relacional e histrico, um espao

    que no se pode definir nem como identitrio, nem como relacional, nem como

    histrico definir um no lugar. A hiptese aqui defendida a de que a

    supermodernidade produtora de no lugares, isto , de espaos que no so em si

  • 36

    lugares antropolgicos e que, contrariamente modernidade baudelairiana, no

    integram os lugares antigos: estes, repertoriados, classificados e promovidos a

    lugares de memria, ocupam a um lugar circunscrito e especfico. (AUG, 2010, p. 73).

    O no lugar citado como contraponto ao conceito de lugar. Exemplifica e ilustra

    que esses no lugares seriam as vias areas, ferrovirias, rodovirias e os domiclios mveis

    considerados meios de transporte (avies, trens, nibus) [...] redes a cabo ou sem fio

    (AUG, 2010, p. 74). Esclarece ainda o autor que

    [...] por no lugar designamos duas realidades complementares, porm, distintas: espaos constitudos em relao a certos fins (transporte, trnsito, comrcio, lazer) e

    a relao que os indivduos mantm com esses espaos. Se as duas relaes se

    correspondem de maneira bastante ampla e, em todo caso, oficialmente (os

    indivduos viajam, compram, repousam), no se confundem, no entanto, pois os no

    lugares medeiam todo um conjunto de relaes consigo e com os outros que s

    dizem respeito indiretamente a seus fins: assim como os lugares antropolgicos

    criam um social orgnico, os no lugares criam tenso solitria. (AUG, 2010, p.

    87).

    Acrescenta Aug (2010) que, quem faz uso do no lugar, est com este em relao

    contratual, na qual o contrato est sempre associado identidade individual de quem o

    subscreve. Pontua ele que,

    [...] para ter acesso s salas de embarque de um aeroporto, preciso, antes, apresentar

    a passagem ao check-in (o nome do passageiro est inscrito nela); a apresentao

    simultnea, ao controle de polcia, do visto de embarque e de algum documento de

    identificao fornece a prova de que o contrato foi respeitado. [...] O passageiro s

    conquista, ento, seu anonimato aps ter fornecido a prova de sua identidade, de

    certo modo, assinado o contrato. [...] o usurio do no lugar sempre obrigado a

    provar sua inocncia. O controle a priori ou a posteriori da identidade e do contrato

    coloca o espao do consumo contemporneo sob o signo do no lugar: s se tem

    acesso a ele se inocente. (AUG, 2010, p. 94).

    Explica Aug (2010, p. 95) que, enquanto o passageiro aguarda para embarcar

    obedece ao mesmo cdigo que os outros, registra as mesmas mensagens, responde s mesmas

    solicitaes. O espao do no lugar no cria nem identidade singular nem relao, mas sim

    solido e similitude, conclui.

    Para Aug (2010, p. 98), os lugares e os espaos, os lugares e os no lugares

    misturam-se, interpenetram-se. Acrescenta ainda que no h mais anlise social que possa

  • 37

    fazer economia dos indivduos, nem anlise dos indivduos que possa ignorar por onde eles

    transitam (AUG, 2010, p. 110). O chamado no lugar um conceito com o qual se pode

    refletir sobre a presena e a permanncia no espao pblico das praas contemporneas. As

    interaes sociais nesses espaos sofrem os impactos dos novos processos tecnolgicos

    informatizados, empregados como recursos na produo e que foram estendidos para a vida

    cotidiana.

    no espao social que os agentes, de modo individual ou em grupos, estabelecem

    dinmicas de trocas. Nesse lugar, aes, interaes e relaes sociais so localizadas. Para

    manter situaes sociais que favoream os usos verificados do espao pblico, determinadas

    atitudes so acionadas pelos envolvidos. Ressalte-se que os usos e apropriaes sociais das

    praas transcorrem basicamente em espaos que se reputam como pblicos; nesta perspectiva

    devem ser investigadas as condies objetivas para as interaes sociais ali entabuladas.

    2.2 Espao social pblico: condies objetivas para as interaes

    Ao realizar o percurso deste estudo, entre as intenes est compreender como o

    espao chamado pblico usado e apropriado pelos citadinos. oportuno, portanto, delimitar

    esse conceito relevante para aprofundar a anlise. Determinar essa noo permite a

    aproximao da dimenso terica e conceitual que interessa investigao. Os referenciais

    tericos percorrem esquemas interpretativos, que buscam explicar as variveis que se

    articulam entre o espao pblico e tambm o espao privado de interaes, onde os atores se

    encontram presentes.

    Apesar de o espao social das praas ser pblico, esta noo comporta uma

    classificao dicotmica em pares opostos, pois, ao debater o pblico, a contrario sensu est o

    indicativo do conceito de privado, ainda que implicitamente. Desse modo, visando um melhor

    entendimento acerca dos usos e apropriaes sociais das praas, caracteriza-se inicialmente o

    conceito de espao pblico, sem, entretanto, perder de vista o espao privado. Considera-se,

    ento, a construo histrica das noes sociais de espao pblico e de espao privado, no

    mundo ocidental e no Brasil. Admitem esses espaos diversidades histricas de usos no que se

    refere s destinaes sociais conferidas por indivduos e grupos.

  • 38

    Em obra notria sobre o espao pblico, O jardim e a praa, Saldanha,

    jusfilsofo pernambucano, empreende uma anlise de cunho antropolgico sobre a praa.

    Focaliza Saldanha um conceito preliminar de espao; considera ele que

    [...] o organizar-se, desde as primeiras experincias grupais do ser humano, foi sempre, em parte ao menos, um problema de distinguir lugares, valorizando uns e

    abandonando ou evitando outros, e de construir espaos, demarcando pores do

    territrio e amontoando pedras com fim simblico ou utilitrio. (SALDANHA, 2005,

    p.20).

    A meno ao que aponta o autor traz ao debate a apropriao de um determinado

    espao para fins de uso. A demarcao a que se refere na citao no constitui ainda um

    domnio no sentido de propriedade. Observe-se que, ao tratar de uso e apropriao social do

    espao da praa, no se cogita do estabelecimento de uma forma de domnio senhorial

    (propriedade), mesmo porque a praa considerada um bem pblico e propriedade dos entes

    estatais. Como dispe o Cdigo Civil (BRASIL, 2002) Lei n 10.406, de 10 de janeiro de

    2002 no artigo 99, I, [so bens pblicos:] os de uso comum do povo, tais como rios, mares,

    estradas, ruas e praas.

    A propsito, leciona Pereira (2010, p. 76), aps cogitar de uma sociologia da

    propriedade, que a propriedade como expresso da senhoria sobre a coisa, excludente de

    outra senhoria sobre a mesma coisa, exclusiva: plures eamdem rem in solidum possidere non

    possunt. Entre os caracteres da propriedade est, portanto, a sua exclusividade.

    Deste modo, quando se considera, atualmente, o espao da praa no se questiona

    a existncia de uma propriedade, que pblica. Sem, assim, remeter, necessariamente, ideia

    de propriedade, considera Saldanha as demarcaes feitas no territrio para fins de distino

    de lugares. As pores assinaladas de territrio sinalizam na direo de certas apropriaes

    necessrias do espao para fins da convivncia social (SALDANHA, 2005).

    Com as demarcaes simblicas feitas nas praas, os agentes visam poder usar

    parcelas do espao para suas interaes sociais. Esses limites definidos so ajustados e

    revisados por meio de regras e padres que se repetem em determinados cenrios de negcios

    cotidianos organizados4 (GARFINKEL, 2008, p.1). Indivduos e grupos reservam certos

    locais para permanncia nas praas. Como ilustrao, os alunos dos cursos da rea da sade da

    4 Garfinkel escreve no original em ingls a expresso: settings of organized everyday affairs.

  • 39

    Universidade Federal do Maranho, cujo prdio est localizado na lateral da Praa Gonalves

    Dias, nos momentos que ficam na Praa, permanecem em frente ao edifcio da Universidade.

    Outros ajuntamentos podem estar nas proximidades, mas observam e mantm esses limites.

    Afirma Saldanha que os planos pblico e privado complementam-se. Explica ele

    (SALDANHA, 2005, p. 31) que

    [...] o viver social consiste e subsiste em vrias dimenses, e uma delas ocorre nas

    casas [...]. E como as ruas da mesma forma que as praas so j outra dimenso, a pblica, eis que o plano pblico e o privado tocam-se, completam-se,

    complementam-se.

    O espao, seja ele pblico ou privado, enquanto construo social e histrica,

    apresenta trajetrias no tempo que permitem visualizar sua caracterizao ou configurao.

    Nesse percurso de anlise diacrnica da constituio dos conceitos, pode-se inicialmente

    buscar explicao a partir do estudo dos processos de apropriao do espao social na Idade

    Antiga. Nesse sentido, Saldanha, com o objetivo de realar o espao pblico, acredita que

    neste esto situados os elementos da vida pblica. Esse local, na chamada Antiguidade

    Clssica, era a gora, a praa do mercado, o smbolo na cidade da presena do povo na

    atividade poltica. Nota ele (SALDANHA, 2005, p. 57) que

    [...] naquele espao central, situavam-se os elementos da vida pblica: cenrio,

    atores, ao. Nele estavam os debates e as faces, as queixas e as decises, e

    sobretudo a palavra como componente da dimenso pblica: ao fazer-se pblica a

    palavra, publicizava-se a condio do homem. A polis, quase literalmente, teria tido

    na gora a sua pulsao.

    Habermas contribui igualmente para o debate de ideias e estabelecimento desses

    conceitos. Em obra editada pela primeira vez em 1962, informa que as categorias do pblico e

    do privado foram legadas dos gregos, transmitidas adiante em uma verso romana. Conforme

    Habermas, a esfera pblica representa o debate livre entre iguais. De acordo com ele,

    [...] tratam-se [o pblico e o privado] de categorias de origem grega que nos foram

    transmitidas em sua verso romana. Na cidade-estado grega desenvolvida, a esfera da

    plis que comum aos cidados livres (koin) rigorosamente separada da esfera do

    oikos, que particular a cada indivduo (idia). A vida pblica, bios politikos, no ,

    no entanto, restrita a um local: o carter pblico constitui-se na conversao (lexis),

    que tambm pode assumir a forma de conselho e de tribunal, bem como a de prxis

  • 40

    comunitria (prxis), seja na guerra, seja nos jogos guerreiros. (HABERMAS, 2003,

    p. 15).

    O expoente da Escola de Frankfurt, ao confrontar o tema dos espaos de

    sociabilidades e interaes, procura explicitar a importncia social da esfera pblica. Assegura

    ele que nesta esfera que as coisas aparecem e se tornam visveis. na disputa entre pares por

    meio da conversao que os melhores cidados se destacariam e conquistariam, por

    conseguinte, a imortalidade da fama. Dessa maneira,

    [...] como nos limites do oikos a necessidade de subsistncia e a manuteno do

    exigido vida so escondidos com pudor, a plis oferece campo livre para a

    distino honorfica: ainda que os cidados transitem como iguais entre iguais

    (homoioi), cada um procura, no entanto, destacar-se (aristoiein). As virtudes, cujo

    catlogo Aristteles codifica, mantm apenas na esfera pblica: l que elas

    encontram o seu reconhecimento. (HABERMAS, 2003, p. 16).

    O prestgio social pode ser associado s interaes contemporneas nas praas de

    So Lus. Um reconhecimento pblico pode ser alcanado em decorrncia de presena e de

    interaes no espao social. Muitos intercmbios so, todavia, de carter efmero. Indivduos

    ocasionalmente interagem, mas existe a probabilidade de nunca mais se olharem outra vez. As

    praas podem ser pensadas como palcos em que indivduos e grupos mostram-se para quem

    por l estiver para v-los. Nessas exposies pblicas, os grupos podem atribuir capital

    simblico, como considera Bourdieu (2009), queles que conseguem por meio de sua conduta,

    nesse espao social de interaes, obter prestgio, reputao, fama.

    A apresentao pblica nas praas pode no proporcionar o prestgio que se supe

    a princpio, mas granjear m reputao. Indivduos e grupos que evidenciem determinado

    desempenho, mesmo em feitos que exijam habilidades raras, podem no conseguir a glria e a

    importncia social que almejam. De acordo com a configurao dos grupos como formais ou

    informais e o contexto socioespacial, esses predicados desejados tendem a variar. Na Praa

    Gonalves Dias, por exemplo, os grupos de skatistas que circulam pela praa ou o pblico de

    fiis que aflui igreja para assistir missa tm expectativas acentuadamente diferenciadas

    para conferir celebridade a alguns de seus integrantes.

    Para situar as investigaes sobre o pblico e o privado no Brasil, em Sobrados e

    mucambos, Freyre (2004) faz referncia pouca importncia atribuda no Brasil colonial aos

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    espaos pblicos. Nesse livro, o socilogo e antroplogo pernambucano inicia o captulo II

    O engenho e a praa; a casa e a rua afirmando que a praa venceu o engenho, mas aos

    poucos (FREYRE, 2004, p. 135). Com relao aos usos e costumes, os espaos da rua e da

    praa no eram francamente acessveis a todas as mulheres e mesmo a homens no tempo da

    colnia. Relara Freyre (2004, p. 145) que

    [...] nas ruas s se encontravam as escravas negras e as mulatas com quem s vezes,

    de noite, os velhotes do Recife namoravam, na ponte da Boa Vista. La Salle diz que

    tambm os homens pouco saam de casa. No Rio de Janeiro dessa poca talvez

    sassem pouco: no Recife como em So Lus do Maranho tradio que viviam

    quase a tarde inteira na rua.

    Continua Freyre a confirmar esse entendimento ao dizer que os burgueses de

    sobrado foram naquelas cidades do norte do Brasil homens de praa ou de rua como, outrora,

    os gregos, da gora, ao contrrio dos do Rio de Janeiro e da Bahia que raramente deixavam o

    interior dos sobrados (FREYRE, 2004, p. 145). O motivo para isso residia no fato de que um

    dos sinais de distino era ser menos visto possvel para no ser confundido com o povo, que a

    fidalguia abominava. Assim, reitera-se que estar ou no nas praas pode ser sinal de distino

    ou de reputao (boa ou m), conforme o momento histrico. Desse modo, a exposio

    pblica pode no acarretar necessariamente o reconhecimento social desejado por alguns

    indivduos.

    Observe-se tambm que no so sempre nitidamente demarcados os limites entre

    as esferas do pblico e do privado. Saldanha refere-se a essa dificuldade do estabelecimento

    de fronteiras entre elas. Lembra ele, ento, que historicamente

    [...] o termo latino forum, que designa algo historicamente correlato gora grega, e

    que se associa para ns ideia de um espao pblico, designou primeiro o terreno

    fechado em torno de uma casa, e somente depois passou a denominar a rea de fora

    das casas, nomeadamente a praa do mercado. (SALDANHA, 2005, p. 73).

    No perodo que abr