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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LINGUSTICA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SEMITICA E LINGUSTICA GERAL

    ALPHA CONDEIXA SIMONETTI

    Palavra dramtica: voz e tensividade

    So Paulo

    2011

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    Alpha Condeixa Simonetti

    Palavra dramtica: voz e tensividade

    Dissertao apresentada ao Departamentode Lingustica da Faculdade de Filosofia,Letras e Cincias Humanas da Universidadede So Paulo para a obteno do ttulo deMestre em Lingustica.

    rea de concentrao: Semitica eLingustica Geral.

    Orientador: Prof. Dr. Luiz Augusto deMoraes Tatit

    So Paulo

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    Folha de aprovao

    Nome: Alpha Condeixa Simonetti

    Ttulo: Palavra dramtica: voz e tensividade

    Dissertao apresentada ao Departamentode Lingustica da Faculdade de Filosofia,Letras e Cincias Humanas da Universidadede So Paulo para a obteno do ttulo deMestre em Lingustica.

    rea de concentrao: Semitica e

    Lingustica Geral.

    Aprovado em: __________________

    Banca examinadora

    Prof. Dr. Luiz Augusto de Moraes Tatit (Orientador)

    Instituio: DL / USP

    Assinatura:______________________

    Prof.(a) Dr.(a) ________________________________________________________

    Instituio:_________________________ Assinatura:________________________

    Prof.(a) Dr.(a) ________________________________________________________

    Instituio:_________________________ Assinatura:________________________

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    Agradecimentos

    Ao professor Luiz Tatit, pela confiana e pela orientao neste trabalho.

    Aos professores Iv Carlos Lopes e Waldir Beividas, pela contribuio para meu

    crescimento intelectual e cientfico.

    Ao Grupo de Estudos Semiticos da USP, Paula de Souza e ao Maurcio Cardoso,

    pelo saber compartilhado.

    minha famlia e aos meus amigos sempre presentes nos dilogos que fortaleceram

    meu interesse pela investigao.

    CAPES, pela bolsa concedida para realizao desta pesquisa.

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    Resumo

    O presente estudo procura descrever os usos da voz nas encenaes teatrais, colocando

    em relevo suas especificidades enquanto objeto sonoro, bem como as marcas deixadas

    na esfera acstica pela instncia do sujeito da enunciao. Como metodologia de

    anlise, contemplamos o arcabouo terico da semitica de filiao estrutural e

    francesa, de modo que buscamos uma primeira aproximao entre os processos de

    significao mobilizados pela voz do ator teatral e o modelo tensivo desenvolvido

    atualmente. Para chegar parte emprica de nosso estudo, refletimos sobre as bases

    fundamentais da teoria, revisitando o debate sobre as definies de teatralidadecontempornea e, assim, sobre as possibilidades de anlise da gestualidade vocal

    produzida no momento de atuao. Para a descrio de um corpus, selecionamos

    determinadas cenas a partir de duas elaboraes cnicas diferentes, ambas concebidas

    por Antunes Filho, sobre uma mesma obra trgica, Medeia de Eurpides. Comparamos

    os usos da voz em relao s construes das personagens e aos seus posicionamentos

    nas situaes dramticas, observando desse modo as qualificaes modais e passionais

    sugeridas pelas encenaes.

    PALAVRAS-CHAVE: semitica, teatro, entoao, ator, encenao.

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    Abstract

    This study tries to describe the uses of voice in theatrical performances, emphasizing

    their specificities as a sound-based object, as well as the imprints left in the acoustic

    field because of the urgency of the subject of enunciation. As an analysis

    methodology, we considered the theoretical framework of structural and French-based

    semiotics, in order to seek a closer relationship between the processes of meaning

    mobilized by the theatrical actors voice and the currently-developed tensive model.

    To reach the empirical part of our study, we considered the foundations of the theory,

    revisiting the debate on the definitions of contemporary theatricality, and therefore, onthe possibilities of analysis of the vocal gestures produced at the time of the

    performance. For the description of a corpus, we selected certain scenes from two

    different scenic constructions, both devised by Antunes Filho, on the same tragic

    work, Medea by Euripides. We compared the uses of voice concerning the

    construction of the characters and their positioning in dramatic situations, thereby

    observing the modal and passionate qualifications suggested by the acting.

    KEYWORDS: semiotics, theater, entonation, actor, staging.

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    Sumrio

    Agradecimentos.......................................................................................................iii

    Resumo ...................................................................................................................iv

    Abstract....................................................................................................................v

    Sumrio...................................................................................................................vi

    Prembulo ................................................................................................................8

    1. Teatro e linguagem..........................................................................................11

    1.1 A semitica teatral e as teorias do teatro.......................................................14

    1.2 Primeiros desdobramentos do signo e as definies de teatralidade ......... ..... 17

    1.3 A teatralidade na desconstruo .......... .......... .......... ............. .......... .......... .... 21

    1.4. A autonomia formal do sistema... .......... .......... ............. .......... .......... ........... 26

    2. A voz e o mtodo................................................................................................ 29

    2.1 Das impresses sonoras s unidades lingusticas ........... .......... .......... ........... 31

    2.2 Das categorias impressionistas .......... .......... .......... ............. ........... ............ ... 34

    2.3 As sonoridades como um conjunto significante ........... .......... .......... ............ . 37

    2.4 Brevirio da tenso.......................................................................................39

    3. Apresentao do corpus de anlise...................................................................... 43

    3.1 Da primeira anlise (apresentao da personagem)... .......... .......... ............ .... 47

    3.2 Da segunda anlise (o embate com Jaso) ............ ........... ........... .......... ........ 48

    3.3 Da terceira anlise (a dissimulao)..............................................................51

    3.4 Da quarta anlise (os coros)......... .......... ........... ............. .......... .......... ........... 52

    3.5 Relato do mito..............................................................................................53

    4. Medeia a duas vozes........................................................................................... 55

    4.1 Precedentes de uma comparao ..................................................................56

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    4. 2 Medeia (M1), primeiro excerto: sobre a tenso e a dvida...........................58

    4.2.1 Segundo excerto: uma hiprbole sonora ou o exagero ambguo. ........ ........ 59

    4.3 Medeia 2 (M2), primeiro excerto: sobre os regimes de acentuao. ......... ..... 61

    4.3.1 Do ritmo variao implcita de seus valores ........... .......... .......... ............ . 624.3.2 Segundo excerto: prolepse sonora, antecipao e velocidade ......... .......... .. 64

    4.4 Uma personagem a duas vozes .......... .......... .......... ............. ........... ............ ... 66

    4.4.1 Estilos tensivos..........................................................................................68

    4.4.2 Gerenciamento da concomitncia entre andamento e ritmo........................72

    5. Relaes entre ao e motivao...... .......... .......... ............. .......... .......... ............. . 78

    5.1 No embate, invectiva e arrependimento........................................................82

    5.2 Observaes sobre a ira ou a clera..............................................................87

    5.3 A dissimulao.............................................................................................90

    6. A voz do coro..................................................................................................... 97

    6.1 O papel do coro e o movimento catrtico.............. .......... ............. .......... ....... 97

    6.2 O contexto de seleo do corpus.................. .......... ............. .......... ........... ... 100

    6.3 Os coros em Medeia e suas intervenes na tragdia ......... ........... .......... .... 101

    6.4 Anlise dos coros....................................................................................... 103

    6.4.1 A Splica ................................................................................................ 104

    6.4.2 Da primeira encenao (M1) .......... .......... .......... ............. ........... ............. 106

    6.4.3 Da segunda encenao (M2)........ ........... ........... ........... ........... ............ .... 108

    6.5 As diferentes splicas...... .......... .......... ............. .......... .......... .............. ........ 110

    Consideraes finais............................................................................................. 114

    Referncias bibliogrficas............. .......... ............. .......... ........... ............. ........... .... 119

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    Prembulo

    Para alcanar a descrio e a traduo dos sentidos gerados pela voz do ator nas

    encenaes teatrais, fazemos apelo ao modelo tensivo desenvolvido na teoria

    semitica atual de linha francesa.

    Neste prembulo, traamos os termos gerais desta dissertao, tendo em vista

    que o primeiro captulo lana diretamente os questionamentos fundamentais em nosso

    estudo, sem introduzir de maneira cannica os procedimentos utilizados durante as

    anlises. Assim, as definies preliminares compreendidas na apresentao do modelo

    aplicado seguem ao lado das reflexes tericas e analticas.

    A pesquisa apresenta-se dividida em dois segmentos. Um deles problematiza a

    teoria teatral na observao dos processos de significao no teatro, enquanto o outro

    est ancorado nas anlises das encenaes propriamente ditas. Na parte inicial, o

    primeiro captulo procura esclarecer as bases que regem nossas escolhas

    metodolgicas, a partir do debate entre a semitica e a teoria teatral influenciada pelos

    ideais da desconstruo que, por sua vez, no legitima o domnio da linguagem no que

    tange ao trabalho de atuao. No segundo captulo, a metodologia esboada ao situaro desenvolvimento do modelo tensivo, destacando seu papel em nossa apreciao em

    relao a outros estudos que contemplam o sujeito falante como, por exemplo, a

    fonoestilstica.

    Nas anlises propriamente ditas, os primeiros exames concentram-se nas

    elaboraes da personagem central em duas encenaes diferentes de um mesmo texto

    trgico, Medeia de Eurpides, dirigidas por Antunes Filho e protagonizadas por Juliana

    Galdino. As diversas configuraes da protagonista so contempladas a partir de trs

    cenas em cada encenao, a saber, a apresentao da personagem, o embate com Jaso

    e, por fim, a dissimulao de Medeia. Com isso, a estabilidade na caracterizao das

    personagens encenadas vislumbrada primeiramente, para depois sua mobilizao na

    situao ser observada. Ainda nessa parte analtica, a ltima investigao passa

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    participao dos coros nas cenas da splica. Os excertos analisados so encontrados

    nos stios da internet (http://vimeo.com/27693293 / e http://vimeo.com/29893306 ),

    sendo acessados por intermdio de uma senha (medeiaCPT12), conforme assinalamos

    na apresentao de nosso corpus.

    Direcionando o olhar semitico e sua metalinguagem descritiva para os aspectos

    sensveis dos procedimentos vocais utilizados no teatro, a voz vem a ser objeto de uma

    semitica cujo plano da expresso composto de sonoridades. De maneira geral, os

    usos da voz so avaliados a partir da percepo auditiva que, por sua vez, incide nas

    resultantes fonticas e acsticas, manifestadas em nvel suprassegmental. Ao perceber

    as unidades prosdicas como manifestaes dos parmetros acsticos (intensidade,

    durao e altura), surge a possibilidade de considerar uma organizao dessas

    unidades em sequncias sonoras, tornando-se necessrio observar a pertinncia dessas

    configuraes e a gerao de seus prprios contedos.

    H ento dois tpicos recorrentes que acompanham as anlises. O primeiro diz

    respeito pertinncia das segmentaes para a constituio das identidades dessas

    manifestaes textuais, pois no se trata aqui das supostas irregularidades de uma

    massa sonora sem forma. Pelo contrrio, inmeras formas podem ser encontradas na

    confluncia do trabalho analtico. Cabe a ns identificar as regularidades e

    permanncias concernentes ao discurso das personagens encenadas e conseguir

    represent-las na descrio. O segundo diz respeito autonomia do objeto sonoro.Quais seriam seus contedos genunos? Quais seriam os que no surgem na

    manifestao lingustica da fala? E, por fim, como gramaticaliz-los?

    Diante de cada encenao de Medeia, a descrio atenta para suas unidades

    constituintes e para os critrios descritivos necessrios para traar essas definies. Os

    primeiros estudos das modulaes vocais nas encenaes de Medeia pretendem

    explicitar a maneira pela qual ocorre a mobilizao das categorias previstas pelo

    modelo tensivo no exame desses textos. A partir dessa primeira aproximao, as

    apreciaes subsequentes devem propiciar um olhar sobre a reverberao das

    entoaes nas partes das encenaes, tais como a ao e a motivao.

    http://vimeo.com/27693293/http://vimeo.com/29893306http://vimeo.com/29893306http://vimeo.com/27693293/
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    Assim, os usos da voz nas construes das personagens so comentados no

    mbito especfico em que se dispem, notando sua participao nos engendramentos

    das cenas. Considerando que a linha da entoao apresentada por meio de sua

    densidade tensiva, possvel delinear as cargas patmicas e as qualificaes modais

    que posicionam a personagem no drama.

    Na convergncia entre duas teorias, uma sobre o gnero teatral e outra sobre os

    processos de significao, as possveis equivalncias no uso das terminologias foram

    deixadas margem para que as anlises dos discursos prosseguissem. Desse modo, as

    noes teatrais de personagem e de ator permanecem nesta dissertao, tendo em vista

    que o objeto vocal problematiza em alguma medida a relao entre essas instncias.

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    1. Teatro e linguagem

    O incio do sculo XX inaugura os primeiros movimentos de renovao do

    teatro europeu, marcados seja pelo que chamamos naturalismo de Constantin

    Stanislavski e Antoine Vitez, seja pelo caso polmico de Antonin Artaud. Esse perodo

    caracteriza-se na procura por novos modos de atuao ou, at mesmo, por registros de

    interpretao de maneira geral. Nessa busca pela originalidade da expresso, a

    reflexo sobre a relao entre a escrita e a fala encenada um dos eixos contemplados

    por encenadores e atores. A flexibilidade da dramaturgia escrita, suas inmeras

    possibilidades de leitura e de elaborao de discursos, supre o contnuo interesse pelaarte dos palcos. Tal busca permanece atual, na medida em que diversos caminhos para

    os usos da palavra continuam sendo explorados, particularmente no que tange

    relao entre o texto e a cena.

    Nosso trabalho visa pr em relevo a palavra dramtica em sua especificidade

    que se manifesta em formas prprias de expresso oral. Notamos que, ao se

    aprofundar e se radicalizar a autonomia da encenao teatral em relao obra

    dramatrgica, a noo de texto alargada e abrem-se novas possibilidades para a

    anlise terica. Assumimos, portanto, que a encenao abarca, cada vez mais, uma

    multiplicidade de formas discursivas sobre diferentes planos de expresso.

    Privilegiaremos o estudo da voz e de suas textualizaes, ou seja, aquilo que concerne

    dimenso dramatrgica da sua matria sonora e, assim, da palavra posta em ao.

    De maneira semelhante, no momento atual, as questes sobre os modos de

    atuao surgem pondo em xeque os nveis de representao e no-representao dos

    atores. Dentro da sala de espetculo, possvel encontrar o ator supostamente

    despojado da personagem. Ranieri Gonzalez, por exemplo, comenta com o pblico astatuagens que o transformam em uma histria em quadrinhos1. Posiciona-se na boca

    1 Espetculo Vida, da Cia Brasileira, dirigida por Mrcio Abreu, estreou em 19 de maro de 2010, noteatro Jos Maria dos Santos, Curitiba.

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    de cena e, ao se aproximar da audincia, d intensidade aos elementos de seu prprio

    cotidiano, seu corpo, sua pele e, no limite, tudo aquilo que o coloca como um sujeito

    especfico. Quando h esse propsito de incidir sobre a personalidade do ator, a

    exposio no proscnio procedimento usual. Outros mecanismos de atuao

    poderiam ser aventados e sua teorizao sistematizaria, inevitavelmente, o que aclamado como assistemtico. De nossa parte, acreditamos que as maneiras de

    proceder do ator so indcios formais de uma dada construo cnica e que poderiam

    ser sistematizados.

    Em procedimentos como esse esboado acima, a iluso cnica no mais

    construda em segredo. Pois, com a exposio dos artifcios do meio expressivo, o

    espectador convocado ao questionamento: o ator, observado na boca de cena,

    representa algo, ou, ao contrrio, apresenta a si prprio? A tpica recorrente no pode

    ser mais explcita: a no separao entre a vida e a obra, qual seja, a arte do ator em

    representar a si mesmo ou uma personagem. Diante desse debate e do ensejo de

    avaliar esses papis assumidos na atuao, procura-se compreender o teatro de nosso

    prprio tempo e, com isso, o teatro contemporneo, apresentado durante o tempo

    vivido do espetculo.

    Certo vis analtico2 comenta a relao entre o artista e sua prpria atuao,

    identificando os limites da iluso cnica como uma misteriosa confluncia de fluxos

    energticos que no tm nada a dizer, sendo simplesmente no-discursivos

    3

    . Ao seapoiar na parcialidade de um teatro definido ora como representao ora como

    2 No incio da dcada de1980, observava-se na teoria francesa uma ntida e no raro agressiva divisoentre os tericos semiticos, que tentavam analisar os cdigos teatrais e sua transmisso, e os ps-estruturalistas que, como Fral, ocupavam-se dos fluxos no discursivos de energia e dos deslocamentosde libido, trabalhando nas direes sugeridas por Lyotard, Deleuze e Guatarri. (...) as abordagensdivergentes dos tericos da semitica e da fenomenologia refletem, em larga medida, essa tenso entreteatro como comunicao e teatro como local de fluxos de energia. (CARLSON, 1997: 496)3 La relation de lartiste sa propre performance nest plus celle de lacteur son rle. Leperformeur(...) Il est plutt source de production de dplacement. Devenu le lieu de passage de flux nergtiques(gestuels, vocaux, libidinaux...). (...) Preuve encore une fois quune performance ne veut rien dire,

    quelle ne vise aucun sens prcis et unique, mais quelle cherche plutt rvler des lieux de passage,des rythmes (...) (FRAL, 1985: 130-131) A relao do artista com sua prpria performance no mais aquela do ator com seu papel. Operformer (...). fonte de produo de deslocamento. Torna-se olugar de passagem de fluxos energticos (gestuais, vocais, libidinais...). Prova ainda uma vez que umaperformance no quer dizer nada, que ela no busca nenhum sentido preciso e nico, mas que elaprocura revelar lugares de passagem, ritmos (.. .)(Traduo nossa).

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    demonstrao de uma dada realidade, parte das manifestaes teatrais associada

    negao de sua constituio enquanto linguagem.

    De fato, no recente a discusso sobre a dualidade intrnseca encenao. Com

    respeito a isso, vale lembrar dO Paradoxo do Comediante, de Diderot. Quase um

    sculo e meio antes dos legados naturalista e realista e, com isso, da modernizao da

    linguagem cnica, j se discutia acerca de uma teoria da sensibilidade para o ator

    teatral. Isto , um ator convencia e sensibilizava a plateia, servindo-se de certa

    faculdade de promover entre si prprio e a personagem efeitos ora de distanciamento,

    ora de aproximao. Diderot compara a atuao de duas atrizes:

    Mlle Clairon (...) passada a luta, depois de elevar-se uma vez alturade seu fantasma, ela se domina, ela se repete sem emoo. (...) Com

    Mlle Dusmenil no acontece o mesmo que com Mlle Clairon. Ela sobeao palco sem saber o que ir dizer; metade do tempo ela no sabe oque diz, mas chega ao momento sublime. E por que diferiria o ator do

    poeta, do pintor, do orador e do msico? No no furor do primeirojato que os traos caractersticos se apresentam, em momentostranquilos e frios, em momentos totalmente inesperados. (DIDEROT,1966: 168-169)

    Diderot procura discutir o mito do ator possudo que realiza sobre o palco um

    exerccio de inspirao, tomado por uma comoo incalculvel, aproximando o

    trabalho da atuao de uma natureza essencial que no pode ser conhecida. J em

    relao ao trabalho do ator glorificado por sua tcnica e, afinal, por sua capacidade de

    clculo, as escolhas das sonoridades vocais so ainda percebidas como um artifcio

    sem grandes consequncias para os engendramentos cnicos. A partir disso,

    classicamente, a voz tomada ora como um produto das oscilaes e eventualidades

    do ator, ora somente como um aparato tcnico.

    Em nenhuma dessas perspectivas torna-se possvel compreender a voz como

    produtora de um discurso. Nossa investigao procura reverter essa impossibilidade deanlise que tais perspectivas implicam. Partindo do momento da enunciao do texto,

    teremos como objeto semitico os sinais de engajamento do ator nesse processo de

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    significao. Isto , a voz em si manifesta seus sentidos e colabora com as propostas

    estticas das encenaes.

    Assim, a partir do questionamento sobre o domnio da linguagem que voltamos

    s abordagens dos estudos teatrais, enfatizando o momento em si da atuao.

    Considerando que a expresso cnica est baseada em princpios fundamentais da

    linguagem, esperamos encontrar a e em seu funcionamento espcies de dramaturgias

    construdas sobre as sonoridades vocais.

    1.1 A semitica teatral e as teorias do teatro

    No intuito de fornecer as bases necessrias para a plena compreenso da parte

    emprica de nosso trabalho, imprescindvel esclarecer os posicionamentos tericos

    diante das linguagens da encenao. Tal debate sobre as noes preliminares permite

    igualmente explicitar as justificativas para nossas escolhas metodolgicas. Antes de

    expor os questionamentos que emergem a partir das anlises propriamente ditas,

    devemos reapresentar o embate terico esboado nas pginas precedentes,

    posicionando a metodologia descritiva da qual nos valemos. Em outras palavras, as

    diferentes abordagens sobre o teatro constituem o pano de fundo a partir do qual se

    torna possvel a definio de nossa prpria pesquisa.

    Num primeiro momento, para compreender nosso objeto, observamos aparticipao dos pressupostos semiticos de filiao francesa nos estudos das

    linguagens teatrais em relao dramaturgia e ao espetculo e, chegando ao momento

    atual, buscamos a compreenso da ausncia predominante de um olhar que promova a

    inteligibilidade dos sistemas da encenao4.

    Na polmica em questo, outra tendncia de teorizao pode ser observada como

    mais divulgada e reconhecida. Isto , a crtica proposta formal e estrutural estabelece

    uma maneira de explicar o trabalho do ator contemporneo ou ao paradigma teatral

    4 Muitas vezes, temos de nos render dificuldade de acessar determinadas obras e materiais que no soencontrados em nosso pas como, por exemplo, as obras de Ane Goutman (Universidad Autnoma deMxico). Citamos de passagem A. Goutman, pois a autora parece inscrever-se na continuidade do

    projeto estruturalista francs voltado para a semitica do teatro, em oposio a inmeros outros estudosque so caracterizados pela ruptura com a episteme estrutural.

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    da presena (RANCIRE, 2009: 24). Em linhas gerais e, em especial, para os estudos

    estticos, a figura de Jean-Franois Lyotard surge no intuito de romper com os regimes

    de representao e simbolizao.

    No ensaio apresentado na internacional de semiologia teatral, Veneza, setembro

    de 1972, La dent, la paume, o filsofo formula o teatro energtico derivado da

    polmica artaudiana acerca da linguagem no teatro. Num primeiro momento, o autor

    que cunhou o termo ps-moderno reconhece uma estrutura no jogo teatral. Segundo

    Lyotard, essa estrutura equivalente a uma organizao entre duas instncias

    topolgicas (A e B) que se correspondem por meio de uma ordem causal entre elas. O

    punho cerrado o sinal da dor, do mesmo modo que a atuao sinaliza o ator. Em

    seguida, nesse mesmo ensaio, instituda uma espcie de troca de valores

    descodificada e no hierarquizada, o que supostamente revelaria na ltima instncia

    (B) uma multiplicidade de energias que nada quer dizer (LYOTARD, 1994).

    Essa tendncia de reflexo sobre a cena questiona a adequao das categorias

    semiticas junto constituio da atuao. Em dado momento, alguns autores, em

    especial aqueles identificados com o paradigma ps-moderno5, ocuparam-se da

    averso ao estruturalismo e noo de representao alegando, como contrapartida a

    essa dupla negativa, favorecer com isso o entendimento das manifestaes teatrais

    contemporneas, consideradas resistentes tradio estrutural.

    Sob essa perspectiva, o teatro definido na oposio entre uma tradiologocntrica e outra na qual prepondera o corpo em cena, como se esse dispensasse

    seus prprios sentidos. Desse modo, o espectador vai ao teatro para ver a montagem

    do texto ou para viver uma experincia incompreensvel. A partir disso, no sem

    algum espanto que observamos, ainda hoje, a discusso que dispe a linguagem teatral

    como tributria da literria. Est claro que essa qualidade da linguagem teatral coloca

    os usos da palavra realizados pelo intrprete como atrelados reproduo de uma

    5No sentido dessa ruptura, possvel ainda citar parte da obra de Jacques Derrida. Contudo, vemos quesua leitura de Ferdinand Saussure, em especial, e de seus seguidores extremamente imprecisa. Porenquanto, deixemos essas passagens e seus pormenores, para que possamos avanar em traos geraissobre as consequncias dessas reflexes e como elas atingem os estudos teatrais.

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    dramaturgia escrita. E, por sua vez, esse texto tomado como uma invarivel

    independente do corpo que lhe dado no momento da enunciao ou da leitura.

    Assim, uma visada ps-moderna domina o cenrio terico desvalorizando a

    anlise estrutural considerada como inadequada para as novas formas de teatralizao

    e para a compreenso do trabalho do ator. Em tal visada, encontramos a tradicional

    reduo da linguagem teatral e de seus elementos especficos, como a participao do

    discurso sonoro da voz na construo dos sentidos da encenao.

    Diante dessas abordagens, entendemos que a difcil objetivao da passagem da

    escrita para fala ou ainda do espao da palavra na encenao permanece como um

    mote para inmeras discusses tericas e estticas. Notamos tambm que, na leitura

    habitual feita sobre a noo de estrutura, o texto escrito parece estar sempre imanente

    manifestao teatral. E, por isso, a fala no teatro considerada somente um processo,

    sem que se apresente um sistema terico adequado para descrio das escolhas feitas

    pelo ator.

    Para chegar a essas observaes, percorremos alguns argumentos desta crtica

    que visa abster-se do vnculo com a anlise estrutural da linguagem. Explicitamos

    assim as demandas dessa ruptura, julgando a pertinncia e a produtividade das

    proposies realizadas por esta crtica, tendo em vista que elas interferem

    imediatamente na possibilidade de compreenso da voz do ator nas encenaes. Para

    tanto, o estatuto da noo de sistema perpassa a releitura das definies acerca dateatralidade.

    Essa etapa da pesquisa torna-se necessria para o alcance da potncia heurstica

    implicada na anlise semitica, na exposio de uma questo primordial: a

    explicitao dos princpios regentes na definio dos objetos tericos ou as bases que

    fundamentam os estudos das linguagens estticas e, mais especificamente, daquelas

    que o teatro abarca e sintetiza. Procuramos, portanto, contemplar as reflexes tericas

    gerais configuradas a partir do questionamento sobre o papel discursivo da voz no

    teatro. Isto , quando as teorias ocupam-se das definies do espetculo, elas assumem

    ou no a dimenso discursiva da voz do ator?

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    1.2 Primeiros desdobramentos do signo e as definies de teatralidade

    Na antologia organizada por Jac Guinsburg, Teixeira Coelho Neto e Reni

    Chaves Coelho, intitulada Semiologia do Teatro, possvel encontrar alguns textos

    das fontes batismais desse campo de investigao. Esses estudos datam a partir de1937 e so elaborados por autores como Jindrich Honzl, Jan Mukarovsky, Petr

    Bogatyrev e Roman Ingarden. Com eles, surgem as primeiras possibilidades de uma

    metodologia para anlise dos espetculos. Nesse sentido, a noo de sistema colabora

    como um pressuposto para a apreenso da multiplicidade expressiva que caracteriza

    essa manifestao (HELBO, 1983: 18).

    Nos postulados estruturais que encontramos nesses textos, o questionamento

    sobre a natureza do signo teatral pode ser reconhecido na origem de outro termo

    caro aos estudos teatrais da atualidade: a teatralidade. Obviamente, essa ltima noo

    no empregada de maneira uniforme, no apresentando um consenso nas menes

    dos diferentes autores (PAVIS, 2000; FRAL, 1988). Sendo assim, convm ressaltar

    certos aspectos na inveno desse conceito (SARRAZAC, 2000).

    Essa noo inserida na crtica teatral num momento em que a semitica ou,

    nesse caso, a semiologia, considerando como Roland Barthes evocava o projeto

    saussuriano, ocupava um espao de grande prestgio entre os pensadores da rea.

    Assim, notamos que o tema da teatralidade aparece na influncia exercida pelosestudos dos signos, no momento em que o estruturalismo era observado como um

    mtodo voltado para as humanidades.

    Alm disso, a teatralidade destaca a possibilidade da autonomia de formas

    prprias das expresses no espao cnico, j que ela significava a emancipao da

    encenao em relao s obras literrias. Tendo em vista esse ltimo aspecto que a

    define, a obra de Bernard Dort exemplifica a necessidade de reflexo acerca das

    propriedades dessa manifestao.

    Lavnement du metteur en scne et la prise en compte de lareprsentation comme lieu mme de la signification (nom commetraduction ou dcoration dun texte) nen ont, sans doute, constitu

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    quune premire phase. Constatons aujourdhui une mancipationprogressive des lments de la reprsentation et voyons-y un

    changement de structure de celle-ci: le renoncement une unitorganique prescrite a priori et la reconnaissance du fait thtral en tantque polyphonie signifiante, ouverte sur le spectateur. (DORT, 1988:178)6

    Na edio da revista Thtre Populaire (1953 1964), Dort era companheiro de

    Barthes. E, na verdade, a insero do termo na crtica do teatro francesa atribuda a

    Barthes, com a publicao do texto Le Thtre de Baudelaire, em 1954, e depois

    retomado nos Essais Critiques, de 1964:

    Une notion est ncessaire lintelligence du thtre baudelairien, cestcelle de thtralit. Quest-ce que la thtralit? Cest le thtre moins

    le texte, cest une paisseur de signes et de sensations qui sdifie surla scne partir de largument crite, cest cette sorte de perceptionecumnique des artifices sensuels, geste, tons, distances, substances,

    lumire, qui submerge le texte sous la plnitude de son langageextrieur. Naturellement, la thtralit doit tre prsente ds le premiergerme crit dune oeuvre, elle est une donne de cration, non deralisation. (BARTHES, 1993: 1194 1195)7

    Na nota introdutria dos Essais, de 1971, Barthes posiciona esses ensaios em

    relao ao seu percurso intelectual e s ideias europeias e, em especial, s parisienses.

    Ele aponta o ensejo dessa reflexo como resultante das primeiras consequncias do

    projeto semiolgico saussuriano e dos debates sobre sua juno com o marxismo e

    com a psicanlise nas teorias althusseriana e lacaniana. Entre 1966 e 1967, as

    6 O advento do encenador teatral e a tomada de conscincia da representao como o lugar prprio dasignificao (no como traduo ou decorao de um texto) constituram somente uma primeira fase.Constatamos hoje uma emancipao progressiva dos elementos da representao e vemos a umamudana na estrutura: a renncia de uma unidade orgnica prescrita a priori e o reconhecimento do fatoteatral enquanto polifonia significante, aberta sobre o espectador. (Traduo nossa).7 Uma noo necessria inteligncia do teatro de Baudelaire, aquela de teatralidade. O que ateatralidade? o teatro menos o texto, uma densidade de signos e de sensaes que se constri sobre acena a partir de um argumento escrito, essa sorte de percepo ecumnica dos artifcios sensoriais,gesto, tons, distncias, substncias, luz, que submerge o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior.

    Naturalmente, a teatralidade deve estar presente desde o primeiro germe escrito de uma obra, ela umdado de criao, no de realizao. (Traduo nossa).

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    primeiras interlocues entre estas teorias so reapresentadas pelas leituras de Jacques

    Derrida e Julia Kristeva. (BARTHES, 1993: 1167)

    Com isso, observamos tanto a transformao dos termos teatralidade e

    estrutura ou sistema, quanto suas imbricaes recprocas no seio dos estudos

    teatrais. No princpio dessas reflexes tericas, h uma preocupao em estabelecer

    uma hierarquia no interior dos espetculos entre as modalidades da linguagem verbal,

    a escrita e a fala. Nesta partio vemos que a dicotomia (lngua/fala ou

    sistema/processo) transportou-se para o mbito teatral. Dispomos, de um lado, um

    suposto conjunto de enunciados estveis escritos que configurariam o sistema e, de

    outro, as oscilaes do processo da fala em cada enunciao ou representao.

    Dessa maneira, a figura do escritor dramtico passa a encarnar uma estrutura

    materialmente definida ou, at mesmo, um sistema ditador de regras. Em relao a

    essa determinao, ou o ator a subverte ou lhe fiel, neste ltimo caso investigando as

    reais intenes do autor. Diante disso, contemplamos dois problemas no

    aproveitamento do sistema para a teatralidade. Na maioria das vezes, tal sistema

    acarreta uma hierarquia entre a letra e a voz, o que posiciona a escrita como uma

    determinante central da teatralidade, impondo sua primazia sobre a encenao. Em

    meio a isso, surge o problema da doao do ator, que no se configura como uma

    escolha em relao aos projetos estticos, mas sim como condicionamento obrigatrio

    de seu trabalho. Assim, a noo de sistema perde sua potncia heurstica, visto que elacolabora pouco para dar relevo entidade espetacular da atuao que, por sua vez,

    permanece margem da possibilidade de formalizao ou de sistematizao.8

    Ainda como uma consequncia desse pensamento, o ator destinatrio de uma

    manipulao que, modalizando essa posio, aceita ou no ser um simples porta-voz

    de algo que lhe , por vezes, completamente alheio. E, em relao s suas prprias

    8 Diante desse tema que coloca em relao o sujeito e o significante, convm lembrar o ensaio PalavraSoprada, publicado naA Escritura e a Diferena (1967), prximo ao ano em que Barthes localiza os

    primeiros desdobramentos da noo de signo: A palavra proferida ou inscrita, a letra, sempreroubada. Sempre roubada. Sempre roubada porque sempre aberta. Nunca prpria do seu autor ou doseu destinatrio e faz parte da sua natureza jamais seguir o trajeto de um sujeito prprio a um sujeito

    prprio. O que significa reconhecer como sua historicidade a autonomia do significante que antes demim diz sozinho mais do que eu julgo querer dizer e em relao ao qual o meu querer dizer, sofrendoem vez de agir, se acha em carncia, se inscreve, diramos ns, como passivo. (DERRIDA, 2002: 121)

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    falas, ele acaba por simbolizar ou o sujeito enunciativo que possui uma voz ativa e

    performativa ou, ao contrrio, uma voz passiva e manipulada por uma instncia

    superior, o autor dramtico.

    De qualquer maneira, assumindo ou no a anterioridade da literatura, a reflexo

    acerca da teatralidade tem procurado a todo custo legitimar as dimenses da

    linguagem do palco. Vemos com isso a existncia de um consenso implcito segundo o

    qual atores e encenadores no seriam meros executantes. Para apreender os discursos

    da atuao e de sua dimenso criativa, a noo de uma estrutura da teatralidade deve

    necessariamente ser revisitada. Na medida em que toda posio tomada acerca do

    sentido na teatralidade reflete sobre escolhas estticas e determinados processos de

    significao, o texto escrito no pode de maneira alguma ocupar de antemo o espao

    de um sistema orgnico e integral, em relao ao qual o palco seria somente um

    aparato decorativo (DORT, 1988: 178).

    Desse modo, faz-se mister compreender melhor a influncia da semitica seja no

    sentido de sua vertente barthesiana, seja no interior do conceito de teatralidade

    segundo os diferentes autores. Convm, portanto, enfatizar que as elaboraes tericas

    acerca da teatralidade podem tambm ser apreciadas como uma resultante daquilo que

    o mtodo estrutural promove. Contudo, essa questo terica negligenciada no que

    tange encenao quando a estrutura repousa sobre a palavra escrita, enquanto a

    falada se perde.Na falta de clareza sobre os sistemas da encenao e, por consequncia direta, do

    teatro vivido e tomado como uma experincia, as reflexes sobre a teatralidade

    postulam uma instncia anterior, alm ou aqum da linguagem e de seu princpio de

    sistematizao. Neste caso, a voz do ator permanece um territrio desconhecido que

    convoca os recursos de compreenso do mtodo semitico.

    Diante disso, interessante localizar o pensamento da franco-canadense Josette

    Fral, importante autora na medida em que reflete uma transformao nos estudos

    teatrais. Ela obtm seu doutoramento em 1978, sob a orientao de J. Kristeva. Num

    primeiro momento, a influncia dos estudos do signo declarada. Num outro, ela

    rechaada. Na medida em que se estabelece essa ruptura ao lado de diferentes

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    formulaes sobre a encenao, a teatralidade redefinida. Com isso, devemos

    localizar o que tomado como justificativa desse rompimento.

    1.3 A teatralidade na desconstruo

    De maneira geral, no mbito dos estudos teatrais, a crtica ao estruturalismo

    perpassada pelo problema no estabelecimento de um sistema a priori. Tal crtica

    argumenta que a natureza efmera da teatralidade no pode ser prevista inteiramente

    pela estrutura. Um dos desdobramentos desse entendimento considera que as

    categorias convocadas pela materialidade da encenao acabam por no pertencer

    ordem da linguagem seja ela compreendida como sistema de signos, seja como

    representao simblica. O fundamento desse argumento a crena de que no seio da

    teatralidade encontraramos uma espcie de realidade independente da linguagem.

    Diante das vrias referncias que convergem em uma teoria teatral, Fral (2000)

    assume a teoria enquanto traduo e descarta rapidamente os postulados estruturais. A

    partir disso, sentimos a obrigao de refletir sobre as diferentes propostas tericas e

    metodolgicas e, mais precisamente, sobre as prerrogativas e os alcances da teoria ao

    posicionar seus objetos de estudo.

    Pensemos no estruturalismo, em particular na semiologia. Osinvestigadores abandonam essa vontade cientificista que marcou apoca estruturalista e a que seguiu a poca em que a semiologiaconquistadora marcou a declinao ao revelar a sua impotncia para

    compreender e penetrar os sistemas (FRAL, 2000: 11. Traduonossa.)

    Nessa passagem, vemos que o termo sistema que, aqui, ainda no foi

    abandonado, designando o objeto de estudo de sua proposta terica. Todavia, ainda

    segundo essa autora, uma investigao pode ocorrer fora do sistema e na oposio ao

    estruturalismo. Em outro trecho, o mesmo termo parece configurar trajetrias de

    anlise opostas: o investigador no est mais a procura de modelos para aplicar, de

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    tabelas de anlises que permitam decodificar sistemas diferentes. No busca mais

    estruturas fundamentais: desconstri a obra. (FRAL, 2000: 11. Traduo nossa.)

    ntido o apelo a uma teoria da desconstruo oposta a uma da construo, esta

    identificada aos modelos estruturalistas. Com isso, tambm possvel notar que a

    noo de sistema solicita uma considerao sobre os procedimentos necessrios que

    delineiam o trabalho investigativo. Assim, na medida em que a autora estabelece o

    confronto entre duas vias heursticas distintas, necessrio compreender a diferena

    entre os sentidos da noo de sistema evocado por Fral.

    Nesse artigo, Que peut (ou veut) la thorie du thtre?, a atividade cientfica

    da semiologia colocada como uma simples produo de modelos, ou seja, um

    exerccio de criao de ferramentas interpretativas. Esses modelos so entendidos

    como baseados em uma estrutura que definiria completamente os processos de

    significao. Esta abordagem critica um analista que constri artificialmente um

    sistema a priori. Depois, ele pode sair pelo mundo, instaurando seus postulados ou

    procurando alguma prova ou evidncia, para afirmar que essas ou aquelas categorias

    so boas ou, ao invs disso, so falsas. Assim, no necessrio nem mesmo

    compreender as manifestaes ou os textos, visto que anteriormente a estrutura os

    define completamente.

    Munidos desse esteretipo, como verificar o corolrio da dupla enunciao

    elaborado por Anne Ubersfeld9? Certamente, quando nos deparamos com uma amplaformao de conceitos, nos perguntaremos qual a relao entre a teoria e a prtica?

    Pois, efetivamente, com a exclusividade em um dos elementos dessa oposio, a teoria

    posicionada como um conjunto de ideias muito distante da prtica.

    Em contraposio a esses exemplos, temos de ressaltar que a proposta

    estruturalista no exatamente equivalente ao que se diz sobre formalismo. Mesmo

    9 Para A. Ubersfeld, autora que explora a semitica do teatro, uma das condies do discurso teatral contemplada na passagem do texto cena e no desdobramento do sujeito enunciativo. Um imediato, oautor que compreende a totalidade das didasclias; outro mediato da enunciao, uma personagem. Asdidasclias so observadas como elementos concretos, que comandam a representao abstrata eimaginria das personagens (UBERSFELD, 2005: 159-161). Com isso, os problemas da autoria e daintencionalidade permanecem diante de tal concepo de discurso teatral.

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    sem esmiuar a complexidade desse termo, assinalamos que, por vezes, o chamado

    formalismo:

    (...) torna-se francamente pejorativo quando qualifica as pesquisas

    realizadas nas cincias humanas que utilizam, no seu instrumentalmetodolgico, procedimentos formais. Assim, a semitica acusada

    frequentemente de ser formalista e de desumanizar o objeto de suaspesquisas (...) (GREIMAS e COURTS, 2008: 220)

    Pensamos que, dependendo da maneira como se compreende essas noes, o

    sistema no constitui simplesmente um esquematismo abstrato transcendente

    matria. Ele no meramente uma adaptao reducionista que perpassa da

    representao abstrata realidade concreta, ou seja, as categorias semiticas no

    impem a contragosto suas definies gerais s manifestaes particulares. Pois,

    quando afirmamos que as estruturas so imanentes, queremos dizer que elas so

    condicionamentos necessrios ao entendimento e conformao de um saber diante de

    uma obra e de um evento artstico que convocam, ao seu tempo, as prprias categorias

    que os definem e que lhes so conformes. Mais ainda, a estrutura exerce uma funo

    constitutiva na matria que elas informam (no sentido, de dar forma). Neste sentido,

    essas formas possuem uma funo eminentemente produtiva.

    Fral (2000), desconsiderando as premissas racionalistas da semiologia, prope

    ento uma maior proximidade entre o investigador e o investigado. O sistema fruto da

    desconstruo sofre com o que condiciona um julgamento: ele somente pode ser

    considerado a posteriori, pois ele gerado na sano da performance e a partir da

    experincia sensvel do observador. Desse modo, a noo da teatralidade redefinida

    ao perpassar o jogo perceptivo entre o observador e o ator.

    Porm, antes de tratarmos da redefinio da teatralidade contemplada na teoria

    da desconstruo, necessrio dar ateno a essa espcie de desconstruo que evoca

    certo saber emprico. De maneira habitual, o empirista v a si mesmo como umobservador mais ou menos neutro que sai pelo mundo coletando dados, supostamente,

    naturais. Em seguida, ele classifica as singularidades para finalmente chegar s

    generalidades abstratas. Sendo assim, o sistema resultante da atividade de

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    desconstruo o resultado de um procedimento de induo, como classicamente se

    entende a atividade de explorao emprica.

    De fato, radicalizao dessa abordagem no suporta a sistematizao, visto que

    somente se pode dispor de um olhar na singularidade de cada ato. isso justamente o

    que podemos encontrar em outro ensaio de Fral (1985), Performance et thtralit:

    le sujet dmystifi. Neste texto, a ascenso da experincia sensvel torna-se a recusa

    da estrutura e possui como uma resultante direta a impossibilidade da anlise.

    Mediante as coeres da encenao, esse discurso terico deve se contentar em

    traduzir o vivido, sempre a posteriori e de modo parcial.

    Uma reflexo crtica sobre os pressupostos e os limites do empirismo de

    extrema importncia para a defesa da importncia das anlises estruturais. Na medida

    em que a noo de sistema no pode ser confundida com o correlato abstrato do

    realismo do dado, consideramos que os sistemas constituem as formas definveis no

    interior da investigao dos acontecimentos desenrolados na expresso cnica.

    Como j dissemos, em um primeiro momento, a noo de teatralidade instaura

    como seu objeto de investigao os processos de significao atinentes s expresses

    cnicas. Com isso, a procura do mtodo fortemente marcada pelas coeres das

    materialidades expressivas entendidas como ocorrncias ou oscilaes na

    temporalidade vivida. Mas, voltando-se para esses artefatos, a teoria influenciada pela

    desconstruo demarca a teatralidade no mais como representao, mas, sim, como aapresentao do real.

    Essa intruso da realidade, assumida pelo sujeito em cena, enuncia alguns

    atributos paradoxais: ela nada quer dizer, mas ela traduzvel pela metalinguagem da

    qual a teoria inevitavelmente lana mo; ela no narrativa, embora esteja em

    conjuno com algo pessoal e biogrfico; ela o presente contnuo, conquanto revele

    um passado primordial.

    La performance apparat ainsi comme une forme dart dont lobjectifpremier est de dfaire les comptences (thtralesessentiellement). Ces comptences, elle les rajuste, les redispose dansun dploiement dsystmatis. On ne peut viter de parler ici de

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    dconstruction mais au lieu quil sagisse dun geste linguistico-thorique , il sagit l dun vrai geste, une gestualit dterritorialise.

    (FRAL, 1985: 138)10

    Nesse excerto, o sistema reaparece com o mesmo prefixo da desconstruo. Com

    isso, duas questes esto implicadas. De um lado, a dessistematizao delimita a

    performance tanto como um gnero especfico quanto como uma tendncia do teatro

    atual. De outro, essa definio caracteriza a performance como algo da ordem do dado

    natural desterritorializado, situando-a fora da cultura.

    Segundo este modelo desconstrucionista, o corpo e sua voz em cena encerram o

    sujeito enunciativo em si mesmo como uma unidade permanente e verdadeira. E, desse

    modo, a materialidade de sua expresso torna-se um suporte para atribuio de

    predicados que condicionam instncia enunciativa imobilidade. Diante disso, aspossibilidades de investigao sobre a expresso dessa instncia dificultadas, na

    medida em que os dispositivos dessas linguagens no so considerados nem mesmo

    como evidncias.

    Desse modo, por oposio teatralidade tradicional, a performance ou a

    happening arttem delineada suas propriedades. H no teatro de seu prprio tempo um

    sujeito do desejo, o artista em si. Na negao das competncias teatrais, as

    personagens no so mais capazes nem de narrar nem de demonstrar determinados

    fatos. Elas nem mesmo podem ser chamadas de personagens, pois sem essas

    competncias significantes e que indicam um querer dizer, essa forma de atuao o

    prprio silncio e o vazio.

    Com essa classificao estabelecida para o entendimento da manifestao

    contempornea, a discusso sobre o papel da teoria transfigurada. Seu papel no

    mais compreender o conjunto de procedimentos necessrios para apreender as

    encenaes. Pois a teatralidade na desconstruo reflete a recusa tanto da teatralidade

    10 A performance surge como uma forma de arte onde o primeiro objetivo desfazer as competncias(essencialmente teatrais). Essas competncias, ela as reajusta, as redispe em um deslocamentodesistematizado. No se pode evitar de falar aqui de desconstruo, mas no lugar do que se tratava umgesto linguistico-terico, trata-se de um verdadeiro gesto, uma gestualidade desterritorializada.(Traduo nossa).

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    quanto do mtodo. O antiteatro est voltado a partir de sua definio para a apreenso

    daquilo que dito como inapreensvel.

    H ainda uma contradio fundamental que se deixa ver na profuso dos

    oxmoros que permeiam esse discurso terico. Pois, primeiramente, para alcanar o

    indizvel, as proposies relatam a anterioridade de uma instncia que despreza a

    linguagem e sua articulao. Nesse mesmo instante, pela via de formalizao que a

    linguagem proporciona, ela pode ser reconhecida. Por fim, a linguagem ostentada na

    organizao promovida por essa traduo do no verbal para o verbal.

    Diante dessa prerrogativa de teorizao da teatralidade contempornea, temos de

    revogar a anterioridade da linguagem e de seu sistema. Afinal, se a teoria engendrada

    por meio de uma metalinguagem descritiva, ela no prescinde da linguagem e, em

    ltima anlise, no despreza nem mesmo a elaborao esttica e discursiva dessas

    instncias enunciativas (a voz e o corpo do ator). Isto , consideramos que o sistema e

    sua autonomia formal promovem uma hiptese de leitura dos espetculos. Quer dizer,

    a estrutura deve ser tomada, sobretudo, como um princpio operacional, gerando a

    seleo ou a abstrao dos sentidos potenciais das manifestaes e o reconhecimento

    de suas formas.

    1.4. A autonomia formal do sistema

    Procuramos definir a teatralidade e a especificidade da linguagem teatral atravs

    do trabalho dos intrpretes que, com seu corpo e sua voz, produzem seus discursos e

    colaboram para os sentidos promovidos na encenao. Nesse sentido, um estudo

    semitico do uso da voz na prtica teatral est atrelado imediatamente com a questo

    da atuao e, desse modo, com o adensamento de signos e de sensaes que lhe

    caracterstico (BARTHES, 1993: 1194 1195). Assim, resgatamos a possibilidade de

    observar a inteligibilidade desses sistemas, tradicionalmente, compreendidos como

    sensveis e, por isso, inacessveis ao entendimento.

    Por essa via, visamos suspender o embarao que surge necessariamente de uma

    oposio entre o continuum sensvel e o conhecimento que se debrua sobre suas

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    potencialidades de sentido. Em outras palavras, nos posicionamos de maneira

    contrria parte do debate que defenda uma oposio radical entre um suposto

    formalismo do mtodo estrutural e uma realidade subsistente de maneira externa

    linguagem. Sublinhamos isso na medida em que, de fato, uma parcela considervel das

    discusses estticas defende um posicionamento deste tipo, considerando a estesiacomo um estado anterior e exterior linguagem, ou seja, externo ao seu simbolismo,

    fundamentalmente no articulado e sem forma.

    Por ora, nos atemos ao ponto de partida metodolgico, segundo o qual as

    categorias semiticas configuram a via rgia de acesso tanto s substncias

    manifestadas, quanto s suas qualidades sensveis. Sendo assim, a concepo da

    linguagem como estrutura destaca seu papel no somente na gerao do sentido

    propriamente dito, mas igualmente do prprio mtodo de anlise e das categorias

    articuladas por ele. Com isso, no possvel prescindir da noo de estrutura porque

    ela funciona ao mesmo tempo como um princpio classificatrio, do ponto de vista

    tipolgico, e como um princpio heurstico de investigao, do ponto de vista

    epistemolgico.

    Alm de destacar a estrutura da linguagem na sua descontinuidade, como uma

    ferramenta da razo colocada entre o observador e o objeto, ela surge tambm na

    qualidade do contnuo, sendo ela mesma integrante e constituinte de seu prprio

    objeto. Ou melhor, na compreenso da voz em relao aos recortes da anliseinerentes s espcies de apreciao, devemos tambm considerar que a estrutura

    destaca, em diferentes instncias desta mesma anlise, o lugar do mtodo e do objeto.

    Assim, mesmo num teatro chamado de no-representao, diferenciado da

    reproduo fiel do texto escrito, subsiste um teatro de matrias e formas e o ator no

    deixa de ser ator. E, ento, como num jogo de posies assumido entre o ator e o

    observador, vemos que ambos experimentam da iluso declaradamente construda e

    daquela outra, que se esconde. A voz projetada entre essas posies iniciais tomadas

    como possibilidade de sistema e processo de significao. No vaivm, os papis da

    relao so ambivalentes em uma espcie de dubiedade intrnseca, e sofrem

    reversibilidade entre suas posies.

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    Desse modo, o objeto voclico percorre o interior da linguagem, o que

    transforma seu sistema formal na prpria continuidade desse jogo. Consideramos que

    a semitica oferece uma via realmente fecunda para a anlise dos processos de

    significao nas encenaes teatrais, pois, no limite de sua especificidade, a dimenso

    vocal constitui-se como um fato de anlise.

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    2. A voz e o mtodo

    Para compreender a gerao de sentidos no interior dos discursos proferidos,

    grande parte do trabalho do analista consiste na procura dos procedimentos de anlise

    e, em nosso caso, na composio dos critrios pertinentes para abarcar a

    multiplicidade intrnseca ao objeto vocal. Logo de incio, necessrio notar que as

    apreenses possveis mostram como a metodologia transfiguraria seu objeto ao

    posicion-lo formalmente.

    Diferentes modos de abordar a voz so encontrados em La Voix et Son Temps,

    de Herman Parret (2002). Diante da diversidade dos modelos tericos que procuram

    defini-la ou, de outro modo, das tcnicas que querem educ-la, a voz tomada como

    um objeto complexo, ou seja, como um termo que pode ser decomposto em outros

    termos. Na esteira de H. Parret, aceitamos a possibilidade de investigao

    pluridisciplinar da voz e, para tanto, as maneiras de apreender com as quais tal

    investigador identificado. Desse modo, as sonoridades vocais so contempladas na

    plasticidade e na potencialidade de seus contedos afetivos seja pela fonoestilstica,

    que tem como principal predecessor a figura de Nicolas Troubetzkoy, seja pela

    incluso da afetividade na retrica e ainda, melhor dizendo, pela especulao de uma

    retrica musical.

    Contudo, gostaramos de destacar a especial relevncia das categorias tensivas

    na procura da inteligibilidade dos textos construdos pela voz, visto que a prpria

    descrio do corpus de anlise aponta para o encontro dessas categorias. Assim, do

    ponto de vista metodolgico, a descrio sugere o avizinhamento entre duas

    metalinguagens distintas, sendo uma voltada para as categorias geradas pelas

    impresses acsticas e outra relativa aos conceitos que constituem o espao tensivo dasignificao. Visamos esclarecer essa aproximao, ao acreditar que as sonoridades j

    apresentam indcios da dimenso tensiva do sentido. Para tanto, procuraremos

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    diferenciar a visada tensiva de outra em que as unidades pertinentes ainda so

    configuradas a partir do fonema.

    Tendo o modelo tensivo revelado uma metodologia produtiva a partir da

    deduo da base temporal e, por assim dizer, rtmica, o temrio (corpo, voz e tempo)

    pode ser acomodado dentro de uma teoria geral da linguagem, em conformidade com a

    semitica francesa atual, mesmo que sob a gide de contnuos debates. Tomada ora

    como um alargamento de suas bases tericas, ora como uma abertura de seu campo

    analtico, a presena desses temas subjacentes aos estudos da significao referida

    obra saussuriana e, portanto, aos prprios fundamentos da reflexo semitica. H.

    Parret (2002) sublinha as menes criao de uma disciplina fontica semiolgica

    nos manuscritos que Saussure nunca publicou.

    Il sagit de constituer une phontique smiologique . Ce qui

    intressera le phonticien smiologique est lquivalencesmiologique. Cette phontique ne peut se faire quen se librantdune certaine attitude naturelle , dune certaine faon de parler

    moule sur cette supposition involontaire dune substance . Cestpourquoi le thoricien se laissera constamment interroger par laquestion: Quest ce qui est dfinissable? Le progrs dans ladlimitation mthodique de son objet exige que lon mette entre

    parenthses (...) toutes les qualifications que lattitute naturelle nous a

    imposes. Dabord, il faut liminer de la phontique smiologique les

    qualifications mcanique, physiologique, articulatoire. (PARRET,2002: 56)11

    Assim, a exigncia de definio do objeto vocal dispensa uma atitude natural,

    em que a voz apreendida tal qual uma identidade definvel por si mesma. A partir

    disso, seus componentes fsicos so segmentados e, em seguida, recebem diferentes

    11 Trata-se de constituir uma fontica semiolgica. O que interessar ao foneticista semiologista

    a equivalncia semiolgica. Esta fontica somente pode se constituir ao se liberar de certa atitudenatural, de certa maneira de dizer moldada sobre esta suposio involuntria de uma substncia.

    Isto porque o terico se deixar constantemente interrogar pela questo: o que definvel? O progressona delimitao metdica de seu objeto exige que se coloque entre parnteses todas as qualificaes quea atitude natural nos imps. De incio, necessrio eliminar da fontica semiolgica as qualificaesmecnica, fisiolgicas, articulatrias. (Traduo nossa)

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    atributos (QUR, 2001: 13). Em outra atitude, com a qual nos afinamos, a

    segmentao dos componentes apresenta-se por meio de uma sintaxe implcita. Desse

    modo, as sonoridades so representantes das tomadas de posies sintxicas e, antes

    disso, dos procedimentos de anlise.

    Dito isso, percorremos um breve trajeto sobre as diferentes abordagens das

    sonoridades vocais. Tratamos da fonoestlistica e, na sua sequncia, das categorias

    impressionistas ou, em termos parretianos, fenomenolgicas, que qualificam os

    aparecimentos voclicos, trazendo elementos para atividade descritiva e, por

    consequncia, predicativa do analista. Por fim, procuramos diferenciar essa atividade

    da semitica tensiva, levando em considerao as linhas da entoao no que tange

    prtica teatral.

    2.1 Das impresses sonoras s unidades lingusticas

    Como uma disciplina auxiliar da lingustica geral, o estudo da oralidade

    ancorado no plano de expresso vocal traa sua trajetria de investigao passando da

    acstica aos contedos indexados ao signo lingustico. Sendo assim, julgamos lcito

    observar essa vertente de estudos da fonao, considerando que a voz humana, como

    produo do falante, integra os merismas substanciais da segmentao lingustica e

    tambm objeto abstrato do tratamento formal. H, com isso, um vnculo estreito entrea fonoestilstica e a unidade lingustica, de maneira que essa ltima compreendida,

    por vezes, na sua modalidade positiva pelas redues empricas.

    De incio, tendo contemplado a fonologia estrutural tradicional, Parret destaca

    que, em decorrncia da preocupao com as primeiras unidades da lngua, a voz, o

    corpo, e o tempo so fundamentalmente contingenciais ou, nos termos de Parret,

    constituem os materiais do rechao da axiomtica saussuriana (PARRET, 2002: 53).

    La voix, en linguistique structurale, nest ni plus ni moins quunindfinissable, et la sonorit spcifique des voix y est considrecomme une matire sans structure puisquon est dans la pure

    variabilit. (...) La voix nest en fait, pour le phonologue, quunensemble flou, une silhouette informe, de particularits acoustico-

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    articulatoires que, tout comme le corps des mots , ne peut mmepas tre considre comme le rsidu de la forme phonmatique.

    (PARRET, 2002: 51)12

    Esse ponto de vista assinalado por Parret (2002) expe a definio do objeto

    lingustico em relao ao qual a voz pode ser considerada uma coextenso meramente

    acidental. Entretanto, determinando os limites das unidades lingusticas, so aventados

    os princpios da hiptese estrutural para o conhecimento dos processos de significao.

    Pois, tendo em vista a autonomia do sistema lingustico, necessria a excluso das

    irregularidades presentes no concurso das circunstncias para o reconhecimento das

    constncias constituintes desse objeto.

    Com a esquematizao de operadores abstratos, a forma fonemtica surge como

    uma contraproposta hjelmsleviana ao empirismo liderado pela escola de Praga. Diantedas aporias entre as escolas estruturalistas, convm ressaltar brevemente que Louis

    Hjelmslev alerta os linguistas para a hipstase da forma e da substncia, ou seja, para

    que esses estratos da expresso lingustica fossem ento configurados como conceitos

    operacionais, funcionais, o que finalmente elimina um ipsum factum na determinao

    da teoria geral.

    On reprenait son compte lantique hypostase de la forme et de la

    substance, et lon neut pas le temps de dtache galement ce nouveauterme de la substance, dautant que le positivisme de lpoque fasaitde la matire la seule ralit, et considrait la forme comme uneabstration arbitraire. Il est pourtant intrressant dobserver que cettehypostase de la forme e de la substance, lindentification dlment delexpression et du son linguistique, ne fut introduite consciemment

    dans le systme quassez tard. (HJELMSLEV, 1985: 155)13

    12 A voz, em lingustica estrutural, no nem mais nem menos que um indefinvel, e a sonoridadeespecfica das vozes ento considerada como uma matria sem estrutura, pois que est na puravariabilidade. A voz de fato, para o fonlogo, somente um conjunto vago, uma silhueta informe, de

    particularidades acstico-articulatrias que, como todo o corpo da palavra, no pode nem mesmo serconsiderado como resduo da forma fonemtica. (Traduo nossa)13 Retomvamos a antiga hipstase da forma e da substncia e no tivemos tempo de extrairregularmente esse novo termo da substncia, enquanto o positivismo da poca fazia da matria a nicarealidade, e considerava a forma uma abstrao arbitrria. Entretanto, interessante observar que estahipstase da forma e da substncia, a identificao do elemento da expresso e do som lingustico, foiintroduzida conscientemente no sistema tardiamente. (Traduo nossa)

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    Com isso, tendo se tornado uma cincia da linguagem em geral, a semitica

    passa a abarcar os discursos verbais e no verbais, respeitando a hiptese estrutural

    para a compreenso das lnguas. Prope, assim, que seu objeto de saber no definvel

    em si mesmo, mas somente pelos procedimentos que viabilizam sua anlise e, enfim,

    explicitam seus mecanismos de construo.

    Diante disso, os estudos fonoestilsticos so considerados uma disciplina

    acessria da lingustica, observando a substncia residual da fonologia articulatria

    que, por sua vez, transforma-se em outro contnuo passvel de descrio por outras

    formas, nesse caso, reduzidas das flutuaes suprassegmentais. Seja como uma

    matria disforme decorrente da experincia lingustica, seja como uma substncia

    residual que caracteriza o sujeito falante, essa abordagem incorporada transmisso

    do cdigo verbal.

    Tomando o conjunto significante das sonoridades em relao ao objeto

    lingustico, a manifestao sonora da fala recebe diferentes tratamentos formais. De

    maneira geral, essas formas visam reduzir a flutuao dos investimentos sonoros sobre

    o cdigo verbal. Alm do nvel fontico, os sons so traduzidos seja como marcas dos

    usos relativos aos segmentos sociais, seja como marcas idiossincrticas. Para tanto, h

    primeiramente um tratamento fontico e, em seguida, um fonolgico, de modo que as

    qualidades pessoais da voz sejam observveis a partir desses primeiros investimentos

    fonticos, promovendo ento outros nveis de anlise, chamados de suprasegmental eparalingustico.

    Com isso, a voz pode ser identificada com o resduo da anlise do signo

    lingustico passvel de outras anlises, posicionada junto neutralizao das unidades

    fonolgicas. Ao mesmo tempo em que proporciona efeitos conotativos, a atividade

    composicional do falante representa a flexibilidade do sistema lingustico nos seus

    usos, garantindo a significao por meio da linguagem verbal. Em outras palavras, a

    voz depreendida como uma continuidade determinada pelas ocorrncias das

    unidades lingusticas, mas pode tambm ser tomada como uma substncia

    condicionada por suas prprias constncias.

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    Isto , a fonoestilstica, tendo se dedicado s marcas pessoais da lngua materna,

    caracteriza o sujeito da fala por seus sinais voluntrios e por ndices involuntrios. De

    um lado, essas marcas so consideradas endgenas (passionais). De outro, eles

    refletem motivaes exgenas (socioletais, situacionais e profissionais). A partir dessa

    classificao, os contedos so aglutinados como um acompanhamento ou,simplesmente, indexados ao signo lingustico. (LON, 1993: 13)

    De fato, quando nos lanamos percepo da esfera acstica, avaliamos a voz

    nas resultantes fonticas, manifestadas em nvel suprassegmental. Mas, ao

    questionarmos sobre as dependncias internas desse objeto, o uso da voz nas prticas

    teatrais deve avaliar as especificidades desse sistema, pois a relao de determinao

    entre a voz e as palavras pode ser revisitada, tendo em vista que a entoao

    constitutiva do enunciado das personagens encenadas.

    2.2 Das categorias impressionistas

    Na apreenso da voz como substncia fnica, predicados qualificam essa

    substncia. Basicamente, suas qualidades so divididas entre as intermediadas pelo

    produtor e as presumidas por um perceptor dos sons. De um lado, o aparato fisiolgico

    ou, simplesmente, o corpo carrega as qualidades vocais por ele produzidas. De outro

    lado, as impresses geradas so ressaltadas pelo ouvido interpretante.A indissociao da esfera acstica e dessa percepo faz com que os estudos da

    entoao sejam perpassados pelas categorias impressionistas. Essas so consideradas

    ambguas e, para garantir a univocidade das suposies perceptivas, a segmentao do

    nvel acstico passa por diferentes atribuies de funes em relao ao que dito.

    Quer dizer, para validar a percepo, as formas reduzidas da entoao so

    comprovadas pelas tcnicas experimentais e indutivas que, por sua vez, deixam

    margem a substncia no reduzvel. (ROSSI: 1981, 322)

    Quando os sons so segmentados por suas propriedades acsticas, o corpo

    necessariamente pressuposto para essa descrio. A base corporal torna-se

    especialmente relevante para detalhar os caracteres da tessitura e do registro fonatrio.

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    Evidentemente, h uma extensa discusso sobre o uso preciso desses conceitos e sobre

    as condies fisiolgicas apresentadas para que essas qualidades sejam emitidas.

    Sintetizamos a listagem dessas qualidades fenomenolgicas reunidas por

    Parret (2002: 41 45), procurando o predicado que subsumiria as variaes como, por

    exemplo, sombrio, sepulcral e plido, compreendidos pela aplicao da analogia

    como uma graduao da luminosidade. possvel observar os trs nveis dessas

    qualidades que, por sua vez, so apresentadas em duas esferas, a saber, a da voz e a do

    ouvido, conforme elas seguem abaixo.

    Voz (segmentao acstica) Ouvido (qualidades das impresses)

    Tessitura e tonalidade Cor; luminosidade; peso; profundidade;

    Volume Grandeza; textura;

    Tempo Velocidade; peso

    Continuidade Fluxo

    Registro fonatrio Timbre; fisionomia

    Corpo (fisiologia da produo)

    Localizao Abertura; fechamento; extenso

    Tenso muscular Textura;

    Modo de vibrao das cordas Textura; fisionomia

    Convm ressaltar que os adjetivos impressionistas regidos pelas emoes como,

    por exemplo, o montono e o dolente, reaparecem seja qual for a proposta de

    segmentao da sonoridade. Outro aspecto relevante acerca dessas categorias que

    quanto mais nos aproximamos das impresses reconhecidas como uma trama ou como

    um agrupamento (por exemplo, a textura spera e a lisa), mais essas caractersticas

    surgem ao lado de traos fisionmicos que, por sua vez, so separveis ora pelo tipo

    fsico (o gordo e o magro), ora pela personalidade (o rude e o delicado).

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    A partir da experincia perceptiva da audio, somos levados a crer que essas

    categorias impressionistas no se excluem mutuamente, mas manifestam-se em

    constante solidariedade, sobrepondo-se e justapondo-se. Essa simultaneidade,

    configurada numa sucesso, promove uma sintaxe cujas posies so negociadas entre

    as grandezas representadas pelo nvel acstico da substncia fnica. Do mesmo modo,encontramos em Hjelmslev a separao desses nveis da substncia e a tentativa de

    compreender esses nveis como reciprocamente solidrios (HJELMSLEV, 1991: 71).

    Sabe-se que a substncia fnica, considerada em seu conjunto e nosentido mais amplo do termo, exige uma descrio fisiolgica(tambm chamada articulatria, miocintica, etc.) e uma descrio

    puramente fsica (ou acstica, no sentido prprio deste termo), e quetalvez seja preciso acrescentar auditiva, segundo a percepo dos sons

    da linguagem pelos sujeitos falantes. (HJELMSLEV, 1991: 62)

    Em linhas gerais, para o presente estudo dos usos da voz no teatro, consideramos

    que a sntese das impresses mais relevante do que a procura das formas reduzidas

    pelos experimentos direcionados ao interesse estatstico. Isto , acreditamos que o

    sistema subjacente entoao teatral possa ser resultado de uma reflexo sobre as

    relaes entre os sons, estabelecidas pelos discursos presentes quando de um corpus

    em questo.

    Assim, como um dos primeiros procedimentos de anlise, as categorias

    subordinadas pelas impresses auditivas alcanam uma espcie de descrio que,

    modalizada pela ateno do analista, no pode ainda ser considerada a explicao dos

    mecanismos que regulam essa linguagem. Em outras palavras, na correspondncia

    entre a segmentao acstica e as categorias impressionistas, a anlise descritiva pode

    cair na tentao de atribuir autossuficincia desse sistema relao entre a natureza

    fsica dos sons e as suas consequentes impresses pr-formais, o que transformaria

    essa abordagem em proposta orientada para uma dada realidade no interior do campo

    da anlise semitica.

    Diante disso, a observao dos parmetros acsticos (intensidade, durao e

    altura) possibilita o primeiro contato com essa manifestao, em relao a qual a

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    metalinguagem descritiva acaba por predicar as redes discursivas da modulao vocal.

    Essa etapa descritiva visa um segundo momento, que pode ser chamado de adequao

    s categorias previstas pelo modelo tensivo, ou de converso ao sistema imanente

    (ZILBERBERG, 2006 b: 131). Acreditamos, com isso, que os discursos da entoao

    apresentem as cargas tensivas voltadas progressivamente sintaxe de suas grandezas.

    2.3 As sonoridades como um conjunto significante

    Do ponto de vista terico, nossa perspectiva pretende se deter na especificidade

    da semitica teatral, pois, no teatro, a maneira de dizer torna-se to relevante quanto

    aquilo que dito. Quer dizer, no teatro, o enunciado no est somente exposto e

    suplementado pela dimenso sonora, mas, ao contrrio, constitudo tambm por ela.

    Sem o papel constitutivo da entoao, o espetculo talvez nem pudesse ser

    compreendido. De fato, os elementos sensveis participam de maneira central na

    inteligibilidade da encenao, medida que os afetos anunciados pelas entoaes

    transformam-se em informao pertinente para o entendimento da audincia.

    Entre os inmeros exemplos relativos a essa caracterstica da semitica teatral,

    duas teorias da prtica teatral, consideradas praticamente como antagnicas, a de

    Artaud e a de Stanislavisky, ilustram como os sons da fala teatral privilegiam certa

    musicalidade e, consequentemente, uma determinada organizao das sonoridades. Naproposta radical de Artaud (1999), o ator teatral busca por pices e modulaes em seu

    exerccio vocal, de modo que esses fluxos sonoros gerem ora o impacto, ora o conforto

    dos ouvintes. Na proposta comumente chamada de realista e naturalista, o exerccio da

    atuao promovido no entorno das intenes do sujeito enunciativo, gerando

    modulaes variadas. Segundo Stanislavisky (1984), um ator da grande escola russa

    pode encontrar ao menos quarenta maneiras de dizer uma ou duas palavras,

    configurando um repertrio de escolhas que alteram completamente a construo de

    suas personagens, o jogo de cena em que um carter posicionado, e, logo, acompreensibilidade global do espetculo.

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    A partir disso, reconhecendo a potncia semitica da entoao, torna-se

    necessrio refletir sobre essas configuraes discursivas e a gerao de seus

    contedos. Assim, aceitamos:

    (...) vem do estatuto ambguo dessas unidades, que so ao mesmo tempoarticulaes reconhecveis do plano da expresso (por exemplo: curvaascendente / curva descendente) e articulaes do plano do contedo devalor gramatical (suspenso / concluso), isto , como morfemas de tipo

    particular que organizam a sintagmtica lingustica no nvel dos signos,os quais dependem de um princpio de articulao completamentediferente. Compreendem-se, a partir da, por exemplo, as razes quelevam a semitica teatral a considerar a dimenso prosdica umsignificante autnomo, distinto do significante verbal do texto teatral.(GREIMAS e COURTS, 2008: 165).

    Para descrever os discursos da entoao, procuramos a combinatria entre os

    componentes dessa articulao (ascendncia, descendncia), qual pode ser acrescida

    de um terceiro, localizado na permanncia sobre um mesmo tom. Nas palavras de Luiz

    Tatit: Uma voz que busca a frequncia aguda ou sustenta sua altura, mantendo a

    tenso do esforo fisiolgico, surge sempre em continuidade (no sentido de

    prossecuo). (TATIT, 1996: 21).

    Com a sintagmatizao desses componentes, outras categorias so convocadas

    como, por exemplo, a aspectualizao. Assim, a ascendncia da curva entoativa pode

    surgir tanto em seu aspecto incoativo quanto em sua durao, de acordo com as

    reiteraes determinantes. Logo, o plano da expresso das sonoridades vocais realiza-

    se por meio de uma sintaxe prpria da ao vocal que, doravante, pode ser observada a

    partir de seu programa narrativo. Assim, compreendemos a narratividade, tal qual

    explicitada por Claude Zilberberg.

    A narratividade surge como instncia modal interestratos, na

    medida em que foi depreendida de seus formantes habituais e, emprimeiro lugar, da grandeza das grandezas. Do ponto de vistaestrutural stricto sensu, esse estatuto de constante geral (eincondicionada?) explica que a narratividade possa ser concentradaem um lexema, tal como Greimas muitas vezes indicou, ou

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    desdobrada por sobre uma grande extenso discursiva. Em ambos oscasos, ser sempre catalisvel. (ZILBERBERG, 2006 b: 121-122)

    Assim, quanto mais nos aproximamos das qualidades abstratas relativas aos

    contedos mobilizados pelo substrato da expresso, mais nos coadunamos com o

    estudo das tenses e dos repousos presentes na semitica tensiva. Vislumbrando uma

    hierarquia regente do comportamento vocal realizada pelos atores teatrais,

    consideramos a semitica tensiva como uma metassemitica para explicitar o

    funcionamento da linguagem que visa a ser descrita.

    2.4 Brevirio da tenso

    Para introduzir os elementos da semitica tensiva, precisamos traar brevehistria do conceito tensividade e, em seguida, considerar seus aspectos sintxicos.

    Isso nos servir de preparao para a etapa de aplicao da semitica, na qual os textos

    entoados sero explicitados por meio das categorias tensivas ento convocadas.

    Em seu traado diacrnico, a noo de tensividade frica um pressuposto

    necessrio para o entendimento da obra Semitica das Paixes (1993), especialmente

    em seu captulo introdutrio dedicado epistemologia das paixes, inaugurando novos

    modelos de previsibilidade para os contedos passionais. Includa como parte da

    instncia modal da semitica narrativa, a dimenso tensiva surge com o objetivo de

    representar a carga patmica das figuras passionais.

    Em seu fundamento sintxico, a semitica tensiva opera a partir das vicissitudes

    de um estado e de sua transformao em acontecimento, priorizando a concesso

    (embora isso, entretanto aquilo) em vez da sintaxe implicativa (se isso, ento aquilo).

    Para a compreenso da tenso, a lgica do acontecimento integra o nvel da sintaxe

    fundamental, de modo que a exclamao (no plano da expresso) possa ser vista como

    acontecimento (no plano do contedo). No momento em que Zilberberg (2006 a)defende a centralidade do acontecimento como um dos fundamentos da gramtica

    tensiva, interessante notar sua pequena meno expresso teatral: (...) savoir que

    lvnement dans le plan du contenu, la thtralit dans le plan de lexpression sont,

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    ct du rcit et du schma narratif canonique, lune des avenues possible du sens.

    (ZILBERBERG, 2006 a: 144)14

    Assim, o plano de expresso anuncia os princpios de formao do sentido, na

    mesma medida em que a morfologia da slaba e o papel funcional do ncleo acentual

    podem ocupar a base do percurso gerativo do sentido. O acento possui caractersticas

    formais nos dois planos seja como suplemento dos fenmenos sensveis, seja como

    unidade apreendida pela afetividade. Zilberberg enfatiza : La problmatique de

    laccent est du ressort du plan du contenu; elle est de droit si la perspective est celle

    dune prosodisation du contenu (...) (ZILBERBERG, 2006 a: 100)15

    Desse modo, importante notar que pretendemos diferenciar uma descrio

    impressionista da sonoridade daquela trazida pelo aporte terico da semitica tensiva.

    Ao acreditar que a melodia da fala teatral remete dimenso tensiva do sentido, no

    concebemos a tensividade como algo equivalente modulao entoativa e suas

    temporalidades intrnsecas. Pensamos que essa possvel equivalncia decorre da

    vizinhana entre duas metalinguagens, uma que descreve as sonoridades e outra que,

    por sua vez, explica o fenmeno da linguagem pela deduo de suas leis

    condicionantes. Tomando uma etapa de anlise pela outra ou, simplesmente,

    acreditando que a descrio das sonoridades possa ser suficiente para a compreenso

    de seus sentidos, correramos o risco de distorcer a teoria, j que ela trata no somente

    de objetos sonoros e no-verbais, mas de objetos em expresses diversas.Procuramos assim enfatizar que nosso objeto no se apresenta tal qual uma

    natureza dada, plenamente observvel em sua materialidade expressiva. Em outros

    termos, no podemos considerar a conformidade entre os planos da expresso e do

    contedo, embora sua copresena e sua coocorrncia faam com que essa

    conformidade esteja circunscrita no vaivm dos procedimentos de anlise que revelam

    as identidades discretizadas. Desse modo, possvel compreender como uma premissa

    para nossas anlises a proposta tensiva sintetizada por Luiz Tatit.

    14 (...) saber que o acontecimento no plano do contedo, a teatralidade no plano da expresso so, aolado da narrativa e do esquema narrativo cannico, um dos porvir do sentido(Traduo nossa)15 A problemtica do acento concerne ao contedo, ela de direito se a perspectiva aquela de umaprosodizao do contedo (traduo nossa)

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    O plano da expresso que interessa semitica no mais,evidentemente, aquele que tratava das oposies fonolgicas ou dasrealizaes fonticas. Nada tem a ver tambm com a crena de que o

    som funcionaria como a materializao direta ou como representaoauditiva do continuum frico, de modo que a descrio sonora pudesse

    parafrasear a descrio do sentido. O plano da expresso pertinente,nessa fase de pesquisa em que o objeto descritivo possui a dimensodo discurso e seus elementos articulam-se na extenso sintagmtica,

    aquele que compreende as leis rtmicas da silabao. (TATIT, 2008:18 19)

    Em suma, diante das diversas qualidades da voz, apontadas por diferentes

    abordagens (PARRET, 2002), estabelecemos nossos critrios junto ao modelo tensivo

    de anlise. Ao mesmo tempo, as apreenses possveis da voz declinam-se nos modos

    pelos quais a metodologia a transfiguraria. Assim, para compreender suas

    configuraes no interior dos discursos proferidos, necessrio abord-las no como

    evidncia natural, mas sim como um construto terico. Desse modo, podemos

    compreender que a voz humana, como produo do falante, , ao mesmo tempo, um

    merisma substancial da segmentao lingustica e tambm objeto abstrato do

    tratamento formal.

    Na relao entre o som e o ouvido, a complexidade da composio sonora recai

    sobre a imponderabilidade de uma personalidade e na incerteza do que podemos

    afirmar sobre isso. No possvel esgotar seu sentido na descrio de sua

    materialidade bruta e na equivalncia entre essas unidades e suas informaes

    arbitrariamente selecionadas por um analista. Na continuidade do projeto estrutural,

    inversamente, damos ateno s estruturas como imanentes s configuraes

    discursivas.

    A utilizao da ferramenta metodolgica semitica, segundo nosso ponto de

    vista, a nica via realmente fecunda para a anlise dos processos de significao das

    encenaes teatrais, sobretudo no que tange a sua dimenso sonora ou vocal. A

    especificidade de nossa anlise permite assim notar que uma inadequada compreenso

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    da natureza do mtodo implica como seu correlato igual incapacidade de compreenso

    da potncia explicativa das categorias semiticas.

    importante, assim, destacarmos os aspectos do mtodo semitico que se

    demonstram particularmente relevantes ao objeto de nosso estudo. Considerando que

    no podemos prescindir da materialidade da expresso nem do desempenho do corpo e

    da voz dos atores em cena, daremos prioridade s categorias tensivas, as nicas na

    semitica atual que oferecem os mesmos parmetros descritivos tanto para a anlise do

    plano da expresso quanto do plano do contedo. Em outras palavras, a contrao ou a

    expanso dos corpos e das vozes nas cenas, seus pontos de tonificao ou atonizao,

    suas variaes de velocidade podem representar situaes de contedo que, como tais,

    tambm se projetam num campo de extensidade e tambm recebem diferentes cargas

    intensivas. Sendo assim, julgamos que as descries das sonoridades da fala e de sua

    produo de sentido, a partir do modelo tensivo, encontram um terreno plenamente

    favorvel para o desenvolvimento de uma semitica do teatro.

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    3. Apresentao docorpus de anlise

    O corpus constitudo a partir da seleo de trechos das encenaes de Medeia

    de Antunes Filho, reconhecido diretor paulista. No CPT (Centro de Pesquisas Teatrais)

    do SESC, trs tragdias gregas foram realizadas em quatro concepes: Fragmentos

    Troianos (1999), uma adaptao deAs Troianas de Eurpi