2010_estudos feministas_entre o privado e o público_debate sobre o papel das mulheres na política...

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Estudos Feministas, Florianópolis, 18(2): 352, maio-agosto/2010 451 No meio do caminho entre o No meio do caminho entre o No meio do caminho entre o No meio do caminho entre o No meio do caminho entre o privado e o público: um debate privado e o público: um debate privado e o público: um debate privado e o público: um debate privado e o público: um debate sobre o papel das mulheres na sobre o papel das mulheres na sobre o papel das mulheres na sobre o papel das mulheres na sobre o papel das mulheres na política de assistência social política de assistência social política de assistência social política de assistência social política de assistência social Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Este trabalho se propõe a fazer algumas reflexões sobre a relação entre o público e o privado no contexto da operacionalização da política de assistência social, tendo por foco a família e o papel atribuído às mulheres. Há muito se vem criticando o papel instrumental das famílias e das mulheres dentro destas, no desenho das políticas de proteção social, com destaque para os programas de transferência de renda no âmbito da assistência. Com base em pesquisas 1 por nós desenvolvidas nesse âmbito, nossas reflexões são desenvolvidas tendo por eixos a família como locus da política social, com destaque para as políticas de combate à pobreza no âmbito da assistência social; as mulheres; e a mediação entre família e a política de assistência social no contexto do Sistema Único de Assistência Social. Palavras-chave alavras-chave alavras-chave alavras-chave alavras-chave: público e privado; mulher, família e política social; política de assistência social. Copyright © 2010 by Revista Estudos Feministas. 1 A centralidade na família e a política de assistência social: limites à autonomia das mulheres foi uma pesquisa coordenada por Cássia Maria Carloto, iniciada em 2006 com término em 2008, no Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina. Os dados para análise foram colhidos a partir de entrevistas com gestoras e beneficiárias de programas de Cássia Maria Carloto Universidade Estadual de Londrina Silvana Aparecida Mariano Universidade Estadual de Londrina A família como A família como A família como A família como A família como locus locus locus locus locus de política social de política social de política social de política social de política social A Política Nacional de Assistência Social afirma entre suas diretrizes que o foco de suas ações e programas é a família. Compreender de que modo ocorre a introdução das mulheres em uma política dirigida às famílias é nosso objetivo neste trabalho, e o centro de nossa preocupação são os efeitos dessa política sobre a cidadania das mulheres. O primeiro passo para uma investigação desse tipo é desnaturalizar a família. A naturalização da instituição “família” e a dificulda- de em entendê-la como construção social devem-se,

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Estudo sobre o papel das mulheres

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  • Estudos Feministas, Florianpolis, 18(2): 352, maio-agosto/2010 451

    No meio do caminho entre oNo meio do caminho entre oNo meio do caminho entre oNo meio do caminho entre oNo meio do caminho entre oprivado e o pblico: um debateprivado e o pblico: um debateprivado e o pblico: um debateprivado e o pblico: um debateprivado e o pblico: um debatesobre o papel das mulheres nasobre o papel das mulheres nasobre o papel das mulheres nasobre o papel das mulheres nasobre o papel das mulheres napoltica de assistncia socialpoltica de assistncia socialpoltica de assistncia socialpoltica de assistncia socialpoltica de assistncia social

    Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Este trabalho se prope a fazer algumas reflexes sobre a relao entre o pblico eo privado no contexto da operacionalizao da poltica de assistncia social, tendo por focoa famlia e o papel atribudo s mulheres. H muito se vem criticando o papel instrumental dasfamlias e das mulheres dentro destas, no desenho das polticas de proteo social, comdestaque para os programas de transferncia de renda no mbito da assistncia. Com baseem pesquisas1 por ns desenvolvidas nesse mbito, nossas reflexes so desenvolvidas tendopor eixos a famlia como locus da poltica social, com destaque para as polticas de combate pobreza no mbito da assistncia social; as mulheres; e a mediao entre famlia e a polticade assistncia social no contexto do Sistema nico de Assistncia Social.PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: pblico e privado; mulher, famlia e poltica social; poltica de assistnciasocial.

    Copyright 2010 by RevistaEstudos Feministas.1 A centralidade na famlia e apoltica de assistncia social:limites autonomia das mulheresfoi uma pesquisa coordenada porCssia Maria Carloto, iniciada em2006 com trmino em 2008, noDepartamento de Servio Socialda Universidade Estadual deLondrina. Os dados para anliseforam colhidos a partir deentrevistas com gestoras ebeneficirias de programas de

    Cssia Maria CarlotoUniversidade Estadual de Londrina

    Silvana Aparecida MarianoUniversidade Estadual de Londrina

    A famlia como A famlia como A famlia como A famlia como A famlia como locuslocuslocuslocuslocus de poltica social de poltica social de poltica social de poltica social de poltica social

    A Poltica Nacional de Assistncia Social afirma entresuas diretrizes que o foco de suas aes e programas afamlia. Compreender de que modo ocorre a introduodas mulheres em uma poltica dirigida s famlias nossoobjetivo neste trabalho, e o centro de nossa preocupaoso os efeitos dessa poltica sobre a cidadania dasmulheres. O primeiro passo para uma investigao dessetipo desnaturalizar a famlia.

    A naturalizao da instituio famlia e a dificulda-de em entend-la como construo social devem-se,

  • CSSIA MARIA CARLOTO E SILVANA APARECIDA MARIANO

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    conforme Chiara Saraceno, ao fato de que a famlia , aomesmo tempo, espao fsico, relacional e simblico, a pontode ser usado como metfora para todas as situaes quetm a ver com espontaneidade, com naturalidade, com oreconhecimento sem necessidade de mediao somosuma famlia uma linguagem familiar uma pessoa dafamlia.2 Para a autora, a famlia revela-se como um doslugares privilegiados da construo social da realidade, apartir da construo social dos acontecimentos e dasrelaes aparentemente naturais.

    Saraceno considera que a famlia constitui o materialprivilegiado com o qual se constroem os arqutipos sociais eos mitos que nem sempre so positivos. Ao lado das imagensda famlia-refgio, da famlia como lugar de intimidade e deafetividade, espao de autenticidade, arqutipo desolidariedade e de privacidade, juntam-se as imagens dafamlia como lugar de inautenticidade, de opresso, deobrigao, de egosmo exclusivo, a famlia como geradorade monstros, de violncia, a famlia que mata.3

    Essas imagens reforadas pela naturalizao soencontradas no s nas relaes pessoais cotidianas, mastambm nos princpios e nas prticas que norteiam aformulao da legislao, das polticas sociais, quer sefale de recuperar valores familiares, de encorajar asolidariedade familiar, ou, inversamente de uma famlia queexpulsa os seus membros doentes ou necessitados.4 A foradessa naturalizao leva no s a uma compreenso queignora sua historicidade, mas que tambm considera afamlia como uma realidade plenamente enquadrada,interiormente homognea e aprecivel como tal emqualquer contexto social e histrico, ou seja, a famlia,conforme refora Saraceno.

    A famlia, como afirma Lena Lavinas,5 tornou-se oparadigma do privado, o espao da vida domstica, dasrelaes interpessoais, o lugar do feminino e da subjeti-vidade. Com isso ela passou a ter um importante papelideolgico, seno fundamental, transmitindo os valores damoral burguesa, socializando as crianas, promovendo oscuidados dos velhos e dos doentes.

    Como assinala Eli Zaretsky,6 enquanto a famlia foiuma unidade produtiva baseada na propriedade privada,os seus membros consideravam que a sua vida domsticae as suas relaes pessoais estavam enraizadas no trabalhomtuo. A proletarizao separou a maior parte das pessoasou famlias da posse da propriedade produtiva, fazendoprevalecer a ideia de famlia como domnio separado daesfera pblica e do mundo do trabalho. Essa perspectivada famlia circunscrita esfera privada impera juntamentecom a naturalizao.

    transferncia de renda.Feminismo, Estado e proteosocial: a cidadania das mulherespobres foi uma pesquisadesenvolvida por SilvanaAparecida Mariano em Londrina,no perodo de 2006 a 2007, paraelaborao de tese de doutoradoem Sociologia defendida naUnicamp, sob a orientao daProf.a Dr.a Maria Lygia Quartim deMoraes. Os dados aqui analisadosforam coletados em entrevistascom grupo de mulheres usuriasda assistncia social.2 Chiara SARACENO, 1997, p. 12.

    3 SARACENO, 1997, p. 13.

    4 SARACENO, 1997, p. 13.

    5 Lena LAVINAS, 1997.

    6 Eli ZARETSKY, 1976.

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    NO MEIO DO CAMINHO ENTRE O PRIVADO E O PBLICO

    A dissociao entre as esferas da produo e dareproduo como pares dicotmicos sobrepostos oposioentre pblico e privado um trao fundamental do pensa-mento liberal.7 De um lado, tem-se a famlia como paradig-ma do privado, espao da vida domstica, das relaesinterpessoais, lugar do feminino e da subjetividade. De outrolado, tem-se o domnio do pblico, dos interesses impessoais,portanto civis e universais, lugar da poltica e dos negcios,arena exclusiva dos homens. Enquanto a esfera privadaimplica uma relao de dependncia, a esfera pblica marcada por pressupostos igualitrios que caracterizam arelao de cidados independentes entre si.

    A separao clssica entre esfera pblica e esferaprivada que remonta ao perodo das antigas cidadesgregas, conforme discusso de Hannah Arendt em Acondio humana,8 orientava-se por um critrio bsicopautado na existncia e no atendimento s necessidades.Desse modo, a esfera privada, associada ao espaodomstico, cumpria a tarefa de atender s necessidadesde seus membros, enquanto a esfera pblica, entendidaprimordialmente como espao poltico, reservava-se aosindivduos livres dos constrangimentos impostos pelasnecessidades. Podemos dizer, ento, que necessidade eraa categoria que distinguia uma esfera da outra e que atribuao status de igualdade presente na esfera pblica e desubordinao presente na esfera privada. Com o desenvol-vimento da sociedade industrial, o mundo do trabalho,compreendido como atividade produtiva e remunerada,tambm passa a constituir a esfera pblica.

    Inmeros so os estudos feministas que apontam osefeitos perversos da separao rigorosa entre pblico eprivado,9 separao esta que se associa a vrias outrasdicotomias, como, por exemplo, masculino e feminino, polti-co e domstico, produo e reproduo, cultura e natureza,independncia e dependncia, sempre de modo a sereforar mutuamente e a estabelecer uma hierarquia entreos polos opostos que resulta na associao da mulher comoo polo inferior da relao.10 Para essa tradio dicotmicae binria, a mulher est para o mundo privado e domsticoassim como o homem est para o mundo pblico e poltico.

    O pensamento crtico contemporneo tem mostradoque a forma tradicional de estabelecer a distino entre oprivado e o pblico faz parte de um discurso de dominao,legitimador da opresso das mulheres no mbito privado.Nessa direo, Elizabeth Jelin destaca como o que em umasociedade, numa determinada poca, definido comombito do privado pode se converter em pblico num outromomento. A famlia contempornea, para Jelin,11 ocupa umlugar contraditrio entre o mundo pblico e o mundo daprivacidade e da intimidade:

    7 LAVINAS, 1997.

    8 Hannah ARENDT, 1983.

    9 Como exemplo desta discusso,ver Gabriella BONACCI e AngelaGROPPI, 1995.

    10 Silvana Aparecida MARIANO,2005.

    11 Elizabeth JELIN, 2004, p. 110.

  • CSSIA MARIA CARLOTO E SILVANA APARECIDA MARIANO

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    Por um lado, est sujeita ao policiamento das institui-es sociais, especialmente aquelas que se ocupamdo desenvolvimento de uma populao e dofortalecimento da nao. A invaso de agnciassociais, de profissionais e experts que indicam epromovem prticas adequadas e boas (dealimentao, de criana, de relaes interpessoais,de cuidado com o corpo, de higiene e puericultura,etc.) no deixam de aumentar, minando as reas decompetncia da prpria famlia competncia antescentrada no patriarcado e nas tradies transmitidasde avs s mes e filhas [...] Por outro lado, e demaneira aparentemente contraditria, a famliatambm se apresenta como reduto da intimidade eda privacidade. Mas, quais so os limites destaintimidade? Como possvel redefinir as distinesentre o privado e o pblico em funo de proteger aprivacidade e a intimidade desejadas?

    Podemos notar que esse lugar contraditrio entre omundo pblico e o privado adquire contornos especficosde acordo com o grupo social ao qual nos referimos. Nestecaso, as famlias pobres, especialmente aquelasbeneficirias de programas assistenciais, vivenciam demodo particular a contradio entre os limites dasintervenes do poder pblico e o reduto da intimidade eda privacidade. Arriscamo-nos a afirmar que esse reduto singularmente estreito quando nos referimos realidade dasfamlias pobres.

    Entende-se por boa famlia o arranjo que cuida bemde seus membros, mantendo bons vnculos afetivos, bemcomo sua proviso. Esse pressuposto, combinado com oquesito de classe, constitui boa parte da base conceitualdas polticas sociais, incluindo-se os programas e os serviosde assistncia social. A lgica produzida entende que asfamlias pobres precisam de orientao, informao eeducao para esse cuidar. Dessa forma, ao conquistar essacondio de boa cuidadora, a famlia estaria potencializadapara a autonomia, para o exerccio da cidadania e para aemancipao. Esses conceitos e categorias autonomia,cidadania e emancipao so cada vez maisbanalizados e tratados de forma equivocada, como se fossemcategorias axiomticas e transparentes. desse modo queos encontramos nos documentos que traam as diretrizes dapoltica de assistncia social e na prtica cotidiana dosprofissionais. Se verdade que a famlia considerada umdos pilares da proteo social brasileira, tambm corretoafirmarmos que esse princpio apresenta-se de forma cabalna assistncia social, objeto de nossa pesquisa.

    A interveno do Estado na famlia remonta aosurgimento do Estado moderno, o que engendrou uma esfera

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    NO MEIO DO CAMINHO ENTRE O PRIVADO E O PBLICO

    pblica subtrada ao controle direto das parentelas e daslinhagens, constituindo-se em precondio para oaparecimento da famlia moderna como espao particulare dos afetos.12 Ao longo dos ltimos sculos o Estado passoua ser fonte de controle e de normas relativas famlia comoinstituio, bem como s relaes familiares. Com isso, aspolticas sociais de proteo implementadas pelo Estado,notadamente no sculo XX, com base prioritariamente naesfera governamental, tm a famlia como uma das princi-pais mediaes entre a ao pblica e os indivduos. Paratal fim de mediao, a famlia considerada tendo comoreferncia a diviso sexual do trabalho, com uma rgidaseparao entre a chamada esfera produtiva e a esferareprodutiva, assim como entre as tarefas e as responsa-bilidades masculinas e femininas.

    Todavia, a relao entre famlia e Estado tambmcontraditria. Em consequncia, podemos afirmar que nemsempre o controle almejado pelo Estado acompanhadode proteo pblica oferecida s famlias. Desse modo,nas ltimas dcadas, no Brasil e em muitos outros pases, osprogramas focalizados de desenvolvimento, que tmcomo eixo o combate pobreza, adotam como principalestratgia a chamada privatizao da famlia ou a privatiza-o da sobrevivncia da famlia, propondo explicitamentea transferncia de responsabilidades, que deveriam serassumidas pelo Estado, s unidades familiares, com baseem uma proposta de pluralismo de bem-estar.13

    H nesses programas uma valorizao da famliacomo locus privilegiado de superao das sequelas daquesto social, diante de um Estado que pouco tem prioriza-do os gastos com a seguridade social e pouco tem imple-mentado, em termos de poltica social, estratgias desuperao das desigualdades sociais.

    Potyara A. Pereira-Pereira,14 ao tratar da proteo familiarsob a tica do pluralismo de bem-estar,15 aponta algumasdificuldades conceituais e polticas que essa abordagem,com o seu pragmatismo, recusa-se a perceber. A primeirarefere-se ao carter contraditrio da famlia, cujo ncleo no uma ilha de virtudes e consensos, mas permeada portenses e contradies e que, como toda instituio social,deve ser encarada como uma unidade simultaneamenteforte e fraca. A segunda refere-se dificuldade de definir osetor informal do qual faz parte a famlia em relao aos demaissetores oficial, comercial e voluntrio:

    Pois sob a poltica social, a proviso pblica freqentemente contrastada com a proviso privadade maneira genrica. Ao se dividir a proviso privadaem trs setores, fica difcil estabelecer fronteiras entreessas fontes privadas de proviso. O mercado pode

    12 SARACENO, 1997.

    13 Cssia Maria CARLOTO, 2006.

    14 Potyara Amazoneida PEREIRA-PEREIRA, 2004.15 Pereira-Pereira (2006, p. 31)explicita a concepo daproposta do pluralismo de bem-estar a partir de Mishra (1995):Formulada simplesmente, aproposta bsica subjacente a estaabordagem que a providncia bens e servios que satisfaamas necessidades bsicasproporcionem proteo social deriva de uma multitude defontes: O Estado, o mercado(incluindo a empresa), asorganizaes voluntrias ecaritativas e a rede familiar.Pereira-Pereira comenta nomesmo pargrafo, a partir de

  • CSSIA MARIA CARLOTO E SILVANA APARECIDA MARIANO

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    exercer atividade filantrpica, como j vem exercen-do no bojo de suas estratgias de marketing, assimcomo as organizaes voluntrias sem fins lucrativospodem praticar atividades comerciais, como jpraticam, cobrando de seus beneficirios contrapar-tidas financeiras.16

    Pereira-Pereira chama a ateno tambm para o fatode que complicado perceber o setor informal como umlocus puro e simples de bem-estar privado, como se ele nofosse objeto de regulao legal e de polticas pblicas.17

    A autora constata que, a esse respeito, grupos feministastm criticado a tendncia de se restringir as relaesfamiliares esfera privada ou pessoal e lembrado comveemncia, que tais relaes no esto separadas deestruturas socioeconmicas mais amplas.

    Se, em termos histricos, a famlia como instituiosocial privada responsvel pela proteo dos indivduos,o surgimento da questo social, com as demandas porresponsabilizao do Estado em relao proteo social,ainda que parcial, muda o enquadramento doposicionamento da famlia. Com isso, a famlia passa aocupar uma posio dupla, simultaneamente privada epblica, e est diretamente implicada nos diferentes sistemasde proteo social.

    O que predominante para pensarmos sobre ossistemas de proteo social, com especial nfase a respeitoda situao das mulheres, o modo como so construdasas mediaes entre a famlia e o mercado de trabalho.Diferentes modelos de Estado de bem-estar representamopes variadas de se fazer essa mediao. O casobrasileiro um exemplo desprovido de Estado de bem-estar,a instituio familiar sempre fez parte integral dos arranjosde proteo social.18

    Jelin19 analisa que todo o edifcio social tanto noplano microssocial da diviso de trabalho intrafamiliar comono de polticas sociais est baseado na existncia e nofuncionamento da organizao domstica e da famlia eque, diante do diagnstico contemporneo que expressa acrise da famlia, levantam-se vozes que demandamintervenes pblicas para salv-la da situao de crise.Jelin chama a ateno para o fato de que expresses comofortalecer a famlia podem ter, de um lado, uma carga depoliciamento e, de outro lado, fica implcito somente ummodelo de famlia a ser fortalecido, qual seja, o modelobaseado no casal heterossexual monogmico e seus filhos,com sua lgica de funcionamento tradicional.

    Como afirma Jacques Donzelot,20 em seu livro Apolicia das famlias, preciso cuidar das famlias pobres,atender de alguma maneira s suas carncias subjetivas/

    Johnson (1990), que concebeu-se, dessa forma, um agregado deinstncias provedoras e gestorasno campo do bem-estar, formadoem torno dos objetivos comuns,composto por quatro setores prin-cipais: o setor oficial, identificadocom o governo; o setor comer-cial, identificado com o mercado;o setor voluntrio, identificadocom as organizaes sociais nogovernamentais e sem finslucrativos; e o setor informal, iden-tificado com as redes primrias einformais de apoio desinteressadoe espontneo, constitudo dafamlia, da vizinhana e dosgrupos de amigos prximos.16 PEREIRA-PEREIRA, 2004, p. 37.17 PEREIRA-PEREIRA, 2004, p. 37.

    18 PEREIRA-PEREIRA, 2004, p. 29.19 JELIN, 2004.

    20 Jacques DONZELOT, 1980.

  • Estudos Feministas, Florianpolis, 18(2): 451-471, maio-agosto/2010 457

    NO MEIO DO CAMINHO ENTRE O PRIVADO E O PBLICO

    objetivas, para no desestabilizar a ordem capitalista. Essecuidar implica no s transferncia de recursos materiais,mas transmisso de um campo cultural, envolvendo hbitos,valores e comportamentos necessrios boa famlia, ouseja, aquela que consegue cuidar e enquadrar seus filhospara que esses no se tornem adultos incontrolveis edesestabilizadores da ordem, principalmente por meio decomportamentos tidos como violentos, delinquentes,criminosos etc.

    Embora diversificada em sua composio, para serconsiderada uma boa famlia, ela deve ser capaz de proverfinanceiramente; estabelecer vnculos afetivos positivos semviolncia domstica; manter as crianas na escola; cuidarde sua higiene, alimentao e vesturio; e conviver comparentes consanguneos, como, por exemplo, avs e tios. necessrio lembrar que, muitas vezes, os avs enotadamente as avs tm se responsabilizado peloscuidados e pela guarda das crianas, disponibilizandouma casa, mesmo que pequena, mas limpa e ajeitada,com as coisas no lugar.

    Muito se fala sobre as transformaes no mundo daintimidade e as mudanas recentes na diversificao dearranjos familiares. Entretanto, como o passado exerce seupeso sobre o presente, ainda convivemos com a tradioque regula a organizao familiar, estruturando-a com basena diviso sexual do trabalho e na supostacomplementaridade de papis. Assim, nossas pesquisas nosindicam que as responsabilidades de homens e mulheresse diferem no interior das famlias, de acordo com o padrovigente das relaes de gnero.

    Podemos encontrar objees confiantes no fato de quetal tradio no representa fielmente a organizao dasfamlias brasileiras, do modo como encontramos apluralidade de casos empricos. Contudo, uma vez que atradio exerce seu peso sobre o ideal construdo em tornoda famlia, mesmo no sendo um padro universal, no difcil encontrarmos arranjos familiares que buscam umaaproximao com o ideal de famlia. Esse ideal tambminfluencia o desenho e a execuo das polticas estatais demodo geral e das polticas sociais em particular. Assim sendo,a relao da mulher com a famlia socialmente concebidacomo se fosse praticamente uma ligao quase natural. Amulher o pilar da famlia, disseram-nos algumas mulheresatendidas em projetos assistenciais.21 Falas desse tipoexpressam a incorporao de um padro tradicional deorganizao familiar e de relaes sociais de gnero que,de todo modo, est presente tanto nas concepes dasmulheres usurias da assistncia social quanto nas prticasprofissionais empreendidas na execuo dos programas edos projetos assistenciais.

    21 Entrevistas realizadas commulheres usurias da assistnciasocial em Londrina, no ano de2006.

  • CSSIA MARIA CARLOTO E SILVANA APARECIDA MARIANO

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    Apesar da fecundidade das crticas j desenvolvi-das, perdura em nosso meio a compreenso de que a famlia o locus de atuao da mulher e o mercado de trabalho, olocus de atuao do homem mesmo sabendo que homense mulheres esto presentes em ambos os espaos , e essaconcepo incorporada pelas intervenes estatais. Logo,as chamadas polticas de famlia dirigem-se preferencial-mente s mulheres. a mulher, imbuda do papel femininoque lhe foi tradicionalmente atribudo, que incorpora afamlia diante dessas polticas.

    No por acaso que o grande foco das polticas decombate pobreza est no cuidado com as crianas, vistoque uma das principais condicionalidades no acesso, porexemplo, a programas de transferncia de renda relaciona-se manuteno dessas na escola. Como bem abordaAna Maria Medeiros da Fonseca,22 os programas de com-bate pobreza pressupem um investimento nas crianaspara poder romper o ciclo da pobreza. Nesse enfoque ocentro a famlia e a estratgia a instrumentalizao dopapel da mulher/me por meio de suas responsabilidadesna esfera privada, para o bom desempenho desses progra-mas no contexto neoliberal, isto , no contexto de contenoou reduo dos gastos sociais.

    Esse enfoque em que a mulher corporifica o grupofamiliar diante das polticas estatais dirigidas famliarepete-se em todas as polticas sociais brasileiras, podendoser identificado na sade, na educao e na assistnciasocial. Neste artigo nossa nfase posta na poltica deassistncia social por se tratar de nosso campo de pesquisaemprica.

    As mulheres e a mediao entre a famliaAs mulheres e a mediao entre a famliaAs mulheres e a mediao entre a famliaAs mulheres e a mediao entre a famliaAs mulheres e a mediao entre a famliae a poltica de assistncia sociale a poltica de assistncia sociale a poltica de assistncia sociale a poltica de assistncia sociale a poltica de assistncia social

    Com base em anlises de documentos oficiais e empesquisa qualitativa realizada junto aos Centros deReferncia da Assistncia Social (CRAS) em Londrina, estadodo Paran, podemos visualizar de que modo a mulherassume o lugar da famlia na poltica de assistncia social,incorporando a funo de mediao entre o arranjo familiar(esfera privada) e a poltica pblica (esfera pblica).Destaca-se de partida que a mulher o principal ator/atrizna poltica de assistncia social, seja na gesto e execuo,seja como beneficiria. Esse ponto de partida j produtodo padro das relaes de gnero, que orientam, de modomais ou menos rgido, a conduta dos indivduos e a aoestatal. A associao famliamulher incorporada tantoentre as beneficirias da poltica quanto nas instituiesresponsveis pela poltica. Essa associao to natural

    22 Ana Maria Medeiros da FONSECA,2001.

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    NO MEIO DO CAMINHO ENTRE O PRIVADO E O PBLICO

    que dispensa ser nomeada nos documentos do Ministriodo Desenvolvimento Social e Combate Fome (MDS).

    Percorrendo os documentos produzidos e divulgadospelo MDS, podemos observar que o rgo pensa a suaprtica tendo como foco a famlia, entendendo-a em seusvariados arranjos. A incorporao da diversidade dearranjos na definio de famlia no implica, contudo, aeliminao dos traos idlicos. Assim, define que famlia o ncleo bsico de afetividade, acolhida, convvio,autonomia, sustentabilidade e referncia no processo dedesenvolvimento e reconhecimento do cidado.23 Essa uma concepo idealizada e naturalizada acerca dafamlia, uma vez que representa apenas uma de suasfacetas, a da harmonia, e oculta as demais, oculta o seuoposto, em que h tambm o conflito e at mesmo aviolncia, conforme discutido anteriormente.

    Com essa concepo de famlia, informada por umaabordagem de cooperao e harmonia, o MDS elaborouas diretrizes metodolgicas do trabalho com famlias e comindivduos, visando s orientaes para o funcionamentodo Sistema nico de Assistncia Social (SUAS) e dos Centrosde Referncia da Assistncia Social (CRAS). Nessedocumento podemos destacar alguns pontos, como aorientao para realizar trabalho com grupos de famliasou seus representantes24. Trata-se da estratgia de adotarmetodologias participativas e dialgicas que seconcretiza com os trabalhos em grupo. Na prtica, quemparticipa dos grupos so quase sempre as mulheres. Emborao documento empregue a categoria gnero em algunsmomentos, a rigor ele opera com uma cegueira de gneroquando trata dos procedimentos de atendimento. O mesmoocorre ao falar de entrevista familiar.25 Supe-se que ogrupo familiar esteja presente, quando em geral a mulherquem presta as informaes sobre as condies dosmembros da famlia. Mais uma vez o sujeito26 diludo nanoo de famlia.

    Os programas e os servios da assistncia socialproduzem uma invisibilidade das mulheres, ocultam suasfunes e responsabilidades, ao mesmo tempo que fazemuso de seus papis tradicionais. Eis a sua ambiguidade.Porm, essa prtica no pode ser nomeada no discurso,pois revelaria a fragilidade, se no a contradio, de seafirmar que o foco a famlia. A bem da verdade, o foco soas mulheres. Se os documentos assim o dissessem, revelariamseu carter ideolgico. Ento, em nome da coerncia,mantm-no no no dito. Conforme Marilena Chau,27 osilncio uma das formas de operar da ideologia.28 Assim,o sujeito desses programas, em sua forma discursiva, abstrato e descorporificado, contrariando a realidade quenos comprova que esse sujeito tem gnero: a mulher.

    23 MINISTRIO DO DESENVOLV-IMENTO SOCIAL E COMBATE FOME, 2006a, p. 27.

    24 MINISTRIO DO DESENVOLVI-MENTO SOCIAL E COMBATE FOME, 2006a, p. 30.25 MINISTRIO DO DESENVOLVI-MENTO SOCIAL E COMBATE FOME, 2006a, p. 35.26 No trataremos de modoaprofundado da noo de sujei-to neste artigo, especialmenteno que diz respeito aos debatessobre direito e sujeito de direito.Vale ressaltar que o status dos/asbeneficirios/as, ou usurios/as,da assistncia social como sujei-to ou como objeto da poltica uma das questes que animamo debate sobre a poltica deassistncia social e cidadania noBrasil. Aqui usaremos a categoriasujeito sem lhe atribuir qualquerstatus poltico especfico, apenasnos referindo s pessoas que, dequalquer modo, tomam parte nodesenvolvimento dos programase dos servios estatais.27 Marilena CHAU, 2000.28 Segundo Marilena Chau,existem trs procedimentos pormeio dos quais se opera aideologia: a inverso, que colocaos efeitos no lugar das causas etransforma estas ltimas emefeitos; a produo doimaginrio social, atravs daimaginao reprodutora, que simultaneamente representaodo real e normatizao dascondutas; e o silncio, em quenem tudo dito, como condiode garantir a coerncia (CHAU,2000, p. 221-222).

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    460 Estudos Feministas, Florianpolis, 18(2): 451-471, maio-agosto/2010

    O que silenciado nos documentos orientadores nopode ser ocultado nem negado na prtica. Nesse sentidoh um claro distanciamento, um descolamento, entre osdocumentos que instituem as orientaes e a operacionaliza-o da poltica. Aqueles no dizem que a mulher arepresentante preferencial da famlia, mas na prtica asestratgias so dirigidas para a participao da mulher/esposa/me.29

    Por outro lado, o MDS postula que a eqidade entregneros deve ser um tema orientador, no sentido de revertersituaes injustas e onerosas para as mulheres dentro docontexto familiar.30 Consideramos, todavia, que para ocumprimento de tal objetivo indispensvel dar visibilidades estruturas de poder que operam no interior das famlias eque so eventualmente reproduzidas nas aes estatais.Entendemos ser absolutamente impossvel alterar situaesque descansam na invisibilidade, que so ocultadas pelaprpria prtica da poltica estatal. Uma vez mais estamosno terreno da ambiguidade ao tratar do discurso do MDS.

    De acordo com as observaes que realizamos nosCRAS, podemos afirmar que as mulheres so as principaisdemandantes dos benefcios assistenciais, incluindo-se osprogramas de transferncia de renda, e as principaisresponsveis pelo cumprimento das condicionalidades, sejaparticipando diretamente das atividades programadas, sejazelando para que os demais membros da famlia tambmcumpram as exigncias, como frequncia escolar e aten-dimento sade. Vale dizer que, quando as necessidadesde consumo da famlia no so satisfeitas com a renda dotrabalho (masculino e feminino), cabe mulher a buscados recursos governamentais. Por que esse modo desatisfazer as necessidades em geral uma prerrogativa damulher nas famlias empobrecidas?

    Cynthia Sarti chama a ateno para a importnciade se pensarem as famlias pobres no somente sob umaperspectiva produtivista, que restringe a famlia unidadede consumo, com anlises como reproduo da fora detrabalho e estratgias de sobrevivncia, mas incorporan-do tambm a dimenso simblica que constitui a realidadedas famlias pobres. A preocupao da autora pensar empesquisas que correspondam ao pressuposto de que apobreza tem, portanto, uma dimenso social e simblicaque define os pobres.31 Certamente as dimenses social esimblica no excluem a dimenso econmica, mastambm no se subordinam a ela. Entendido desse modo,os pobres no so o homo economicus tpicos do sistemacapitalista e tampouco formam uma cultura inteiramenteautnoma, no sentido de que tm uma especificidade, umadiversidade, e so, ao mesmo tempo, parte subordinada aum todo mais amplo.32

    29 Ver MINISTRIO DO DESENVOLVI-MENTO SOCIAL E COMBATE FOME, 2006a e 2006b.

    30 MINISTRIO DO DESENVOLVI-MENTO SOCIAL E COMBATE FOME, 2006a, p. 41.

    31 Cynthia Andersen SARTI, 2005,p. 42.

    32 SARTI, 2005, p. 45.

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    NO MEIO DO CAMINHO ENTRE O PRIVADO E O PBLICO

    Essas ressalvas nos so teis para se pensar que opapel das mulheres na esfera familiar produzido e reprodu-zido de modo variado entre grupos sociais de diferentesclasses sociais, como tambm entre raa/etnia e religio,entre outros. No entanto, as vicissitudes existentes se associamaos padres de dominao, de forma que as mulheresvivenciam nesses variados espaos, ainda que de mododiferente, os efeitos combinados da explorao de classee da discriminao sexual.33

    Dentro dessa perspectiva, quando falamos dospobres ou das famlias pobres importante que tenhamosa percepo de identificar as clivagens de gnero para secompreender o papel das mulheres e dos homens. Mesmoconcebendo que as desigualdades so reproduzidas poruma estrutura multidimensional que extrapola as relaesde gnero, ainda crvel que falemos de uma questo damulher, na medida em que os homens ainda concentramo poder econmico e poltico na maior parte do mundo e asmulheres persistem sendo as grandes responsveis pelafamlia e pelo cuidar dos filhos, da casa e, cada vezmais, das finanas da famlia.34

    Esse papel de cuidadora recai mais pesadamentesobre as mulheres pobres, desprovidas dos servios ofere-cidos pelo mercado, alijadas de muitas das facilidadespropiciadas pelas tecnologias e receptoras de serviospblicos muitas vezes de qualidade duvidosa. Por outrongulo, tambm o papel de cuidadora o mais frequente-mente invocado pela poltica de assistncia social ao sedirigir s mulheres pobres. Podemos at mesmo asseverarque, nessas circunstncias, a classe social se combina coma estrutura das relaes sociais de gnero e esses doisfenmenos ganham corpo no desenho de um sistema deproteo social extremamente precrio.

    H claramente um marcador de gnero no desenhodos programas e no acesso s polticas sociais, o queinfluencia a conduta de homens e mulheres de forma aorientar quem busca quais bens e servios. Isso diz respeitoao modo como um padro de valor cultural institucionalizado na poltica de assistncia social, como,por exemplo, convocar sempre as mulheres para as reunies.Encontramos, nos diversos grupos acompanhados napesquisa, diferentes explicaes das mulheres para aadeso delas e a ausncia dos homens.

    Eu acho que a mulher [...] de forma geral elas estoem casa pra resolver [...] muitos homem no quersaber nem de ajudar a esposa, por exemplo, podevir reunio. s vezes a esposa no est bem ou praajudar [...] porque muitas delas aqui trabalha, s vezesno pde estar aqui porque trabalha (Grupo 6).

    33 Maria Lygia Quartim de MORAES,2000, p. 93.

    34 MORAES, 2000, p. 97.

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    462 Estudos Feministas, Florianpolis, 18(2): 451-471, maio-agosto/2010

    Tem marido que deixa tudo pra mulher, tudo amulher que faz e o homem no se envolve comnada [da casa] (Grupo 7).

    Os homens no vo ao CRAS porque eles no gostamde ficar sentados, esperando. A mulher tambm nogosta, mas ela j est acostumada, porque assimtambm no posto de sade (Grupo 9).

    s vezes eles tm vergonha. Vergonha de ficar nomeio da mulherada, vergonha de participar de umprograma de assistncia social. , eu acho queeles sentem vergonha. Acho que o homem se sentehumilhado, alguns devem sentir, vo dizer, ah, elevai l atrs de coisas [...] (Grupo 1).

    Dentro da mesma lgica dessas conversas, um grupodialoga mais longamente sobre as supostas virtudes dasmulheres e a irresponsabilidade dos homens no cuidadodas crianas e da casa. Esse ponto merece um pouco maisde nossa ateno a fim de que possamos problematizar omodo como as mulheres realizam a mediao entre a famliae a poltica de assistncia social. Assim, vejamos o dilogopor ns registrado em um dos grupos durante a pesquisamencionada:

    Eu penso que muito bom [o repasse do benefciopara a mulher], porque tem muito marido que s vezesno d dinheiro pra mulher e os filhos pedem as coisaspra me [...] me eu quero isso, me eu estou comvontade de comer isso, me d dinheiro [...] e a pessoano tem pra d. A [o benefcio] vem no nome da mee ela tem aquela esperana de ter o dinheiro na horaque a criana pede, a a me [...] vai l [comprar]porque na hora que ela receber o seu Bolsa Famliaela paga. desse jeito. mesmo, eles s vm na me, no vai no pai no. que eles pedem pro pai e o pai, ah, vai comerarroz e feijo e pronto. Eles conhecem a me e j sabem que se eles pedirali vai ganhar [...]. O homem, no todos os homens, pega o dinheiropra comprar cigarro, pra bebida, pro jogo de bicho[...] e a mulher no, a mulher sabe o que se passadentro de uma casa, o que precisa, principalmentecom os filhos. a maioria. Eu conheci um homem que ele recebia o BolsaFamlia e ele no dava para mulher dele e ele pegavao dinheiro e gastava. Era pinga, era bebida, todo ms. A mulher mais segura, ela no d dinheiro assim torta e direita e o homem j no. A mulher est mais por dentro do que passa no lar. Amulher sabe quando est faltando o arroz, o feijo, o

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    NO MEIO DO CAMINHO ENTRE O PRIVADO E O PBLICO

    acar, o sapatinho pra criana, o chinelinho. A mulhersabe o que est faltando. O homem no. O homem tno trabalho, chega noite, janta, vai dormir. Ele noquer nem saber. Tem homem que to sem vergonha que se pegaro dinheiro vai parar de trabalhar.

    Dos muitos aspectos que poderamos apontar nessesdilogos, o que nos interessa no momento captar o modocomo uma concepo idealizada em torno das divisesdos papis sexuais orienta a conduta das pessoas e introduzida em uma poltica social. Essa concepoexpressa, de modo explcito ou implcito, a vigncia de ummodelo de famlia, com papis complementares e hierarqui-zados que, por sua vez, representam a herana de umafilosofia acerca da distino entre pblico e privado.

    O universo simblico construdo nas interaes sociaisno interior das famlias pobres explica essa organizao detarefas e responsabilidades a partir de uma divisocomplementar de autoridades entre o homem e a mulher nafamlia, que corresponde diferenciao que fazem entrecasa e famlia.35 Conforme Cynthia Sarti sustenta, a casa identificada com a mulher, e a famlia com o homem. Casae famlia, como mulher e homem, constituem um parcomplementar, mas hierrquico.36

    Quando esse padro cultural institucionalizado napoltica de assistncia social, ocorre uma traduo. Comoa mulher est associada esfera da reproduo e o homem, esfera da produo, e como a assistncia social vincula-se reproduo, opera-se, ento, certa mudana nessearranjo. Perante a poltica, a famlia identificada pelafigura da mulher, e no pela do homem.

    As falas das usurias explicitam como os papissociais da mulher, de mantenedora e cuidadora, responsvelpelo trabalho reprodutivo, ainda recaem sobre elas.Tambm revelam as diferenas de valorizao entre o tempodo homem e o tempo da mulher, sugerindo que a mulhertem mais tempo a perder aguardando o atendimento nosservios pblicos, o que geralmente envolve longas horasde espera. Por fim, parte da citao, composta de falas devrias mulheres, reveladora das diferenas de gneroquanto autoestima e vergonha. Os sentimentos devergonha e de humilhao atingem diferentemente homense mulheres em relao busca por assistncia social,justamente em virtude dos paradoxos da cidadaniafeminina.

    A atuao da mulher como mediadora entre a esferaprivada e a esfera pblica, como se d no mbito daspolticas de assistncia social, denota a fragilidade daquelegrupo familiar. Esse papel assumido pela mulher quando

    35 SARTI, 2005, p. 28.

    36 SARTI, 2005, p. 28.

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    464 Estudos Feministas, Florianpolis, 18(2): 451-471, maio-agosto/2010

    o homem falhou no cumprimento de suas responsabilidades,quando ele fracassou em relao tica de provedor.Conforme afirma Sarti, apoiando-se em Alba Zaluar, a ticado trabalho, para os trabalhadores urbanos [pobres], noadvm do valor moral da atividade em si, mas do papel deprovedor da famlia que tem o trabalhador, configurando,portanto, uma tica de provedor.37

    Diante disso, o peso do fracasso mais forte sobre ohomem do que sobre a mulher, o que explica a presenamacia de mulheres nos programas e nos projetos sociais,considerando-se que simbolicamente h uma associaoestabelecida entre assistncia e fracasso. Se o fracasso pesamenos sobre a mulher, j que seu papel principal o deboa dona de casa, e no o de provedora, assumir o fracassoe dirigir-se a um programa assistencial comparativamenteum ato menos difcil do que seria para o homem.

    Na diviso complementar de papis e autoridadeentre homens e mulheres cabe a essa manter a unidade dogrupo e controlar o oramento domstico, uma atribuioque no est relacionada capacidade de ganhardinheiro, mas sim ao papel de dona de casa.38 So essasatribuies que favorecem a eleio da mulher comoresponsvel pelos recursos repassados pelos programas detransferncia de renda, a exemplo do que ocorre com oPrograma Bolsa Famlia (PBF). Fazendo uso dessas atribuiesdesignadas socialmente s mulheres, esses programasobjetivam potencializar suas chances de obter eficincia.De modo pragmtico, sem perder de vista os fatoresideolgicos de dominao de gnero, esses programasreforam na dimenso simblica o valor de que a mulher a administradora do lar. Ao tomar como sinnimoscentralidade na famlia e matricialidade familiar, apoltica de assistncia social deixa transparecer no subtextoa ideia de que seu foco, a bem da verdade, a funomaterna.39

    Ao tratar dos aspectos econmico e moral do papelde provedor, dissemos que cabe ao homem, dentro dessemodelo de complementaridade, a mediao da famliacom o mundo externo e que, quando ele fracassa nodesempenho de tal papel, a mulher que assume essamediao. Duas ressalvas devem ser feitas a esse respeito.Primeiro, essa ocorrncia no caracteriza uma situao decrise, prefervel que a tratemos em termos de dinmica dosgrupos familiares. Segundo, essa mudana no nos autorizaa falar de um processo que eventualmente contribua parauma maior aquisio de poder por parte das mulheres, umavez que sua incluso na poltica de assistncia social nose d com base em direitos de cidadania, mas sim combase em seu papel de esposa e/ou me, trabalho esse que

    37 SARTI, 2005, p. 49.

    38 SARTI, 2005.

    39 Conforme o Novo DicionrioAurlio (2004), matri um ele-mento de composio que signi-fica me: mtrio, matriarca.

  • Estudos Feministas, Florianpolis, 18(2): 451-471, maio-agosto/2010 465

    NO MEIO DO CAMINHO ENTRE O PRIVADO E O PBLICO

    no se constitui em mercadoria. O primeiro efeito a se esperar o reforo dos papis tradicionais de gnero. Nisso h umimportante complicador se considerarmos que o trabalhodas mulheres dirigido aos programas sociais mantm acaracterstica de no mercadoria, e, segundo Francisco deOliveira, a pior coisa no mundo da mercadoria quandovoc no mercadoria.40

    Ao incorporar a tradio do cuidado feminino demodo acrtico, a assistncia social organiza grupos socio-educativos que se renem mensalmente, com a presenaquase exclusiva de mulheres. Supe-se que esses grupostenham carter multiplicador e as mulheres transmitiriampara sua famlia e comunidade as informaes e os conhe-cimentos adquiridos com a assistente social. Novamente,podemos inferir que h, implicitamente, um modelo defamlia no qual a mulher o suporte e o esteio, a potencia-lizadora de vnculos e iniciativas para melhoria dascondies de vida, mulher esta que tem uma famlia queest disposta a ouvi-la, vida por compartilhar seus novosconhecimentos, com facilidade de relao com compa-nheiros e filhos, ou seja, o modelo idealizado de famliaconjugal nuclear sem conflitos geracionais e de gnero, emque os membros tm interesses em comum ou, do contrrio,a mulher ser capaz de articular esses interesses e promovera harmonia familiar, a autonomia e a emancipao.

    Do que podemos apreender na pesquisa de campo,a idealizao presente na poltica de assistncia social emtorno das funes domsticas femininas de cuidado e afetoencontra sintonia com os valores portados pelas usuriasda poltica. De forma sinttica, podemos caracterizar aspercepes das usurias do seguinte modo:

    a) sobre as responsabilidades das mulheres: emlinhas gerais as mulheres veem com naturalidade asresponsabilidades que lhes so atribudas; acham que asessas responsabilidades so excessivas, mas no esboamcrticas ou desejo de mudana; acreditam que os homensno dariam conta das tarefas que elas cumprem ou nofariam com responsabilidade e qualidade;

    b) sobre a destinao dos benefcios s mulheres:elas pensam que os recursos dos programas de transfernciade renda devem mesmo ser destinados s mulheres, porqueos homens teriam menos responsabilidade em usar odinheiro. Ningum admite que seu marido/companheiro seenquadre nesse padro, mas algumas acreditam que osmaridos das outras so assim irresponsveis;

    c) sobre a coero para participao nas atividadesem grupo:41 as mulheres demonstraram boa aceitao arespeito; admitem que a exigncia de participar das

    40 Francisco de OLIVEIRA, 2006, p.73.

    41 A Secretaria Municipal deAssistncia Social de Londrinaorganiza grupos de apoio socioe-ducativo como atividade comple-mentar aos programas de transfe-rncia de renda federais. Formal-mente essa no uma condicio-nalidade, porm h forte pressopara garantir a presena dasmulheres nesses grupos.

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    466 Estudos Feministas, Florianpolis, 18(2): 451-471, maio-agosto/2010

    reunies representa uma responsabilidade a mais, mas nose queixam quanto a isso porque entendem que devemmesmo oferecer essa contrapartida;

    d) sobre os objetivos das reunies dos grupos socioe-ducativos: segundo a percepo das mulheres, o objetivo manter-se informadas sobre as novidades dos programas,notadamente o PBF; consideramos este um objetivo muitotmido, o que revela que os resultados em torno de mudanassociais almejados pelas gestoras esto muito distantes derealizar-se; e

    e) sobre as mudanas em sua vida com o PBF: soapontadas mudanas em relao ao consumo (compra dematerial escolar, de uniforme, de roupa, de comida etc.).Perguntadas sobre outras mudanas, as mulherespermaneciam em silncio.

    Podemos constatar que a relao das mulheres coma cidadania e com o Estado passa pela associao dessas maternidade. Enquanto os homens adentram o espaopblico com o status de indivduo, cidado e trabalhador(todas essas qualidades da esfera pblica), as mulheresfrequentemente se incluem a partir de questes do mundodomstico, questes essas associadas s tarefas dereproduo, o que afirma seu estatuto poltico em razo dasfunes maternas e de cuidado. O direito social, expressono sistema de proteo social, tambm caracteriza o modoambguo de conceber a cidadania das mulheres. As misturasentre pblico e privado, direito e favor e direito e obrigaoe a fixao da mulher maternidade definem os contornosdessa cidadania fragilizada e sexuada.

    Considerando-se as percepes das usurias, temoscondies de levantar questionamentos em torno do papelda poltica de assistncia social no sentido de contribuirpara a ruptura com a clausura domstica a que as mulheresextremamente pobres esto submetidas, visto que seencontram alijadas do trabalho remunerado e dos espaosde participao poltica. A existncia de uma ruptura dessanatureza poderia ser interpretada como conquista deautonomia para as mulheres.

    A poltica de assistncia social aposta seriamentenessa possibilidade de autonomia. Todavia, entendemosque as ferramentas adotadas sequer so compatveis coma dimenso do desafio que est por ser enfrentado. Por outrolado, tambm no h compatibilidade em se falar depromoo de autonomia das mulheres quando as estrat-gias esto todas orientadas para o reforo da associaoentre mulher e maternidade. Alm do baixo valor transferido em agosto de 2007 o valor mdio transferido pelo PBF erade R$ 74,00 (setenta e quatro reais) por famlia beneficiada

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    NO MEIO DO CAMINHO ENTRE O PRIVADO E O PBLICO

    , a assistncia social deposita sua confiana por mudananos grupos socioeducativos e de gerao de trabalho erenda.

    Os grupos socioeducativos tm como objetivo ofortalecimento emocional, social e poltico das usurias. Osgrupos de gerao de trabalho e renda objetivam a auto-nomia financeira, por meio da capacitao para o mercadode trabalho ou da criao de grupos de incluso produtiva,orientados pelos princpios da economia solidria, visandoao desligamento dos benefcios assistenciais.

    De modo breve, podemos afirmar que ambos os tiposde grupos, na experincia de Londrina, no correspondemaos objetivos estipulados. Em suma, o que eles promovem ,na melhor das hipteses, um meio de sociabilidade paraas usurias e, com isso, o que conseguem mudar, quandomuito, o nvel de autoestima das mulheres. Quanto dimenso poltica ensejada com os grupos socioeducativos,o que encontramos foi sua substituio por uma psicolo-gizao da situao social das usurias. Exemplo disso que as mulheres mal compreendem os prprios objetivos deexistncia do grupo. Quanto ao trabalho, os grupos de croche tric, por exemplo, constituem-se em experincias deterapia ocupacional, sem perspectivas de que as mulherespossam da tirar ganhos suficientes para seu sustento.

    Ao elevar o status da mulher para a condio demediadora do grupo familiar com o mundo pblico, por meioda poltica de assistncia social, esses programas noavanam o suficiente para possibilitar, de fato, a participaodas mulheres pobres e extremamente pobres nas questesque mais importam no mundo pblico: trabalho e poltica.

    Consideraes finais: a transioConsideraes finais: a transioConsideraes finais: a transioConsideraes finais: a transioConsideraes finais: a transioincompletaincompletaincompletaincompletaincompleta

    As experincias dos grupos organizados pelaassistncia social em Londrina com pessoas responsveispelos benefcios dos programas de transferncia de rendasinalizam, em certo sentido, a possibilidade de que essapoltica contribua para a sada dessas mulheres pobres doprivado para o pblico. Essa passagem de uma esfera paraoutra, no entanto, ambgua, pois cria um espao desociabilidade que se pauta pelas necessidades do privadoe pelos atributos da vida domstica. Assim, as mulheres ficamno meio do caminho entre o privado e o pblico. Trata-se deuma passagem que no se completa.

    Essas experincias no constituem possibilidadespara uma insero efetiva na esfera pblica. Entendemosaqui que dois critrios so fundamentais para se qualificara esfera pblica: a participao no mercado de trabalho

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    468 Estudos Feministas, Florianpolis, 18(2): 451-471, maio-agosto/2010

    (trabalho remunerado e visvel) e a participao ativa nosespaos de deliberao coletiva (uso da voz, da persuaso,da influncia). Nessa perspectiva, o espao de sociabili-dade insuficiente para tipificar a esfera pblica. De modoequivalente, entendemos que a constituio de um espaopblico amplo, participativo e democrtico condionecessria e indispensvel para a construo da cidadaniae para a reduo das desigualdades sociais. No existepoltica de justia social sem cidads e cidados, isto ,sem uma esfera pblica povoada por mulheres e porhomens, inclusive das parcelas que vivem na pobreza.

    Como afirmamos anteriormente, no que diz respeito ocupao e ao trabalho, a assistncia social, a exemplode tantas outras polticas sociais brasileiras, gera atividadese responsabilidades para as mulheres que no contribuempara a converso de seu trabalho em mercadoria, aocontrrio, mantm-nas no mbito das atividades reprodu-tivas, portanto privadas. J destacamos como na sociedadecapitalista a valorizao do trabalho ocorre somente quandoesse mercadoria.

    A vida poltica propriamente dita, entendida comoparticipao ativa nas discusses e nas deliberaes dosassuntos coletivos, outro ponto nevrlgico na relao entreas mulheres usurias e a poltica de assistncia social. Essadimenso da esfera pblica mantm-se, no geral, intocada.As mulheres atendidas no participam dos debates e dasdeliberaes sobre as aes que influem em suas vidas,nem mesmo sobre as formas de execuo dos programas edos servios dos quais so alvo, e no sujeitos.

    Sob esses critrios, a poltica de assistncia socialno obtm o resultado de alar as mulheres pobres para aesfera pblica. Se a participao na esfera pblica condi-o fundamental para a cidadania, embora no seja porsi s suficiente, essas consideraes nos deixam algumasinquietaes para se interpelar a noo de cidadaniapresente nas polticas sociais, o modo de se buscarem ainter-relao entre o pblico e o privado e os efeitos para acidadania das mulheres.

    Ao analisar a famlia como fator de proteo social,Goldani42 mostra a absoro por parte da famlia de maioresresponsabilidades diante da fragilidade das aes estatais,amortizando o impacto das polticas econmicas e dareestruturao capitalista sobre o mercado de trabalho. Seriaimportante, para a democratizao da famlia, que aspolticas de famlia pensassem nessa instituio social comoalvo de suas aes com vistas maior autonomia dosindivduos, e no com o objetivo de se beneficiarem desuas funes protetoras, reduzindo as necessidades deinvestimentos pblicos.

    42 Ana Maria GOLDANI, 2002.

  • Estudos Feministas, Florianpolis, 18(2): 451-471, maio-agosto/2010 469

    NO MEIO DO CAMINHO ENTRE O PRIVADO E O PBLICO

    Os modelos de proteo social em alguns paseseuropeus tambm se apoiaram e se apoiam numa dadaorganizao familiar, mas o foco na famlia tem carterdiferente. Goldani43 assinala que, na perspectiva daequidade de gnero, um dos modelos mais discutidos deNancy Fraser, de 1994 modelo universal baseado na parti-cipao de homens e mulheres no emprego remunerado eno trabalho de cuidadores. As principais medidas para ochamado fortalecimento da famlia tm sido um investimentoprioritrio na universalizao do acesso educao infantile ao ensino fundamental, ambos em perodo integral, e nainsero das mulheres no mercado de trabalho, comprogramas de carter afirmativo para as famlias que tmna mulher a figura de referncia.

    Conclumos fazendo coro com uma frase de Jelin: Elllamado habitual a fortalecer la familia sin el apoyo socialque este llamado implica es, de hecho, una expresin decinismo social y de irresponsabilida.44

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    44 JELIN, 2005, p. 87.

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    [Recebido em julho de 2007e aceito para publicao em maio de 2009]

    Halfway Between the Private and the Public Domains: A Debate on the Role ofHalfway Between the Private and the Public Domains: A Debate on the Role ofHalfway Between the Private and the Public Domains: A Debate on the Role ofHalfway Between the Private and the Public Domains: A Debate on the Role ofHalfway Between the Private and the Public Domains: A Debate on the Role ofWomen in Social Assistance PoliciesWomen in Social Assistance PoliciesWomen in Social Assistance PoliciesWomen in Social Assistance PoliciesWomen in Social Assistance PoliciesAbstract: Abstract: Abstract: Abstract: Abstract: The purpose of this paper is to reflect on the relationship between the public andprivate domains in the context of the operationalization of social assistance policies, focusing onthe family and the role of women. For a long time there has been criticism on the instrumental roleof families and women in such policies, in the organization of policies for social protection, witha focus on programs dealing with the transfer of income within social assistance. Based onresearch carried out in this area, the reflection has been organized in two topics: the family as thelocus of social policies with an emphasis on policies aiming at the reduction of poverty in thecontext of social assistance; women and the mediation between families and social assistancepolicies in the context of the Unified System for Social Assistance.Key WordsKey WordsKey WordsKey WordsKey Words: Public and Private; Women; Family and Social Policies; Social Assistance Policies.