20080627 bourdieu e o sexo

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Mariza Corrêa 1 RESUMO Reconciliar o autor Pierre Bourdieu enquanto etnólogo da sociedade Cabila com o autor dedicado a desqualificar o empreendimento feminista, ao longo de vários artigos e de um livro recente (La domination masculine), parece uma tarefa improvável. Mas o que se percebe nessa leitura e releitura do autor é que em seus melhores momentos de análise as suas ferramentas metodológicas são excelentes auxiliares no combate a um texto que, inexplicavel- mente, trai o próprio fio central do trabalho de Bourdieu, em sua crítica sistemática ao nosso sistema de valores. Palavras-chave: Pierre Bourdieu; dominação masculina; sociedade Cabila. SUMMARY Reconciling Pierre Bourdieu as ethnographer of Kabylian society with the author who has dedicated himself to disqualifying feminism, through various articles and in his recent book La domination masculine, seems like an unlikely task. However, a reading and rereading of this author reveals that in his finest moments of analysis, the methodological tools he employs provide excellent weapons with which to confront a text that inexplicably betrays the very backbone of Bourdieu's work, in his critique of our system of values. Keywords: Pierre Bourdieu; male domination; Kabylian society. É também no jogo de palavras, e em particular através dos duplos sentidos carregados de subentendidos, que os fantasmas sociais do filósofo encontra[ra]m ocasião de se manifestar sem ter de se declarar. Pierre Bourdieu, 1995 Há quase uma década Pierre Bourdieu vem se dedicando a tentar entender a dominação masculina, ou a sujeição feminina, no âmbito de sua reflexão a respeito da economia dos bens simbólicos. Seu livro recém- publicado, La domination masculine, incorpora quase todas as tentativas anteriores 2 , retomando mais uma vez as pesquisas a respeito da sociedade Cabila, com ênfase na lógica do dom como substrato de sua compreensão da reprodução do capital social e do capital simbólico. É justamente o uso que Bourdieu faz dessa lógica, quando aplicada à nossa sociedade, que faz pensar no que Anne-Christine Taylor chamou de JULHO DE 1999 43 (1) Gostaria de agradecer aos participantes do seminário "Questões de gênero", realiza- do no segundo semestre de 1998 — no âmbito do qual essas idéias foram primeiro dis- cutidas — a viva interlocução que me proporcionaram e, par- ticularmente, as conversas com Erica R. de Souza, Marko Mon- teiro, Gustavo A. Santos, Paula C. de Almeida, Anna Paula Uzi- el, Elisiane Pasini, Adriana Pis- citelli e Miguel Vale de Almei- da. Agradeço também a Vavy Pacheco Borges a gentileza de O SEXO DA DOMINAÇÃO

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  • Mariza Corra1

    RESUMOReconciliar o autor Pierre Bourdieu enquanto etnlogo da sociedade Cabila com o autordedicado a desqualificar o empreendimento feminista, ao longo de vrios artigos e de um livrorecente (La domination masculine), parece uma tarefa improvvel. Mas o que se percebenessa leitura e releitura do autor que em seus melhores momentos de anlise as suasferramentas metodolgicas so excelentes auxiliares no combate a um texto que, inexplicavel-mente, trai o prprio fio central do trabalho de Bourdieu, em sua crtica sistemtica ao nossosistema de valores.Palavras-chave: Pierre Bourdieu; dominao masculina; sociedade Cabila.

    SUMMARYReconciling Pierre Bourdieu as ethnographer of Kabylian society with the author who hasdedicated himself to disqualifying feminism, through various articles and in his recent bookLa domination masculine, seems like an unlikely task. However, a reading and rereading ofthis author reveals that in his finest moments of analysis, the methodological tools he employsprovide excellent weapons with which to confront a text that inexplicably betrays the verybackbone of Bourdieu's work, in his critique of our system of values.Keywords: Pierre Bourdieu; male domination; Kabylian society.

    tambm no jogo de palavras, e em particularatravs dos duplos sentidos carregados de subentendidos,que os fantasmas sociais do filsofo encontra[ra]mocasio de se manifestar sem ter de se declarar.Pierre Bourdieu, 1995

    H quase uma dcada Pierre Bourdieu vem se dedicando a tentarentender a dominao masculina, ou a sujeio feminina, no mbito de suareflexo a respeito da economia dos bens simblicos. Seu livro recm-publicado, La domination masculine, incorpora quase todas as tentativasanteriores2, retomando mais uma vez as pesquisas a respeito da sociedadeCabila, com nfase na lgica do dom como substrato de sua compreensoda reproduo do capital social e do capital simblico.

    justamente o uso que Bourdieu faz dessa lgica, quando aplicada nossa sociedade, que faz pensar no que Anne-Christine Taylor chamou de

    JULHO DE 1999 43

    (1) Gostaria de agradecer aosparticipantes do seminrio"Questes de gnero", realiza-do no segundo semestre de1998 no mbito do qualessas idias foram primeiro dis-cutidas a viva interlocuoque me proporcionaram e, par-ticularmente, as conversas comErica R. de Souza, Marko Mon-teiro, Gustavo A. Santos, PaulaC. de Almeida, Anna Paula Uzi-el, Elisiane Pasini, Adriana Pis-citelli e Miguel Vale de Almei-da. Agradeo tambm a VavyPacheco Borges a gentileza de

    O SEXO DA DOMINAO

  • O SEXO DA DOMINAO

    paradoxo3: mas, se os antroplogos trazem para a sua cultura nativa ecos dacultura dos nativos que estudaram, modificando o lxico da sua disciplina,ser mesmo um paradoxo que levem esses ecos para suas anlises de outrasculturas? Quando o particular se torna universal, deve ser recolocado em seulugar para deixar de ser visto como tal?

    As anlises de Bourdieu a respeito da universalidade da dominaomasculina, evocando seus estudos das dcadas de 1950 e 1960 sobre asociedade Cabila, parecem no entanto, primeira vista, dedicadas antes aexibir todos os esteretipos da "lgica ocidental" que textos recentes detericas ou antroplogas feministas tm se empenhado em exorcizar: umalgica que utiliza por suporte pares de oposio como cultura/natureza,sujeito/objeto, pblico/privado, ns/outros e, por fim, masculino/femininae que poderia ser lida, assim, como produto exemplar dessa lgica, poroposio "lgica do dom"4. Mas o que faz com que a descrio deBourdieu parea uma caricatura dessa lgica quando aplicada s nossassociedades e no porque os Cabila, tratados como um "caso-limite", um"conservatrio" do nosso "inconsciente cultural", possam ser vistos comouma caricatura do Ocidente que coexistem mal nos textos a observao,quase de passagem, sobre a crtica feminista a respeito da "monopolizaogramatical do universal" e sua insistncia na universalidade da supremaciamasculina, isto , o reconhecimento da existncia de uma postura crticadessa supremacia, s possvel nas sociedades "modernas", e a insistncia napermanncia de valores "arcaicos", no em certos interstcios dessassociedades, mas como princpio determinante e estruturador delas5. Bour-dieu se penitencia por ter adotado em outro texto "uma definio etnocn-trica de trabalho" para analisar a diviso de trabalho entre os sexos, levandoem conta "apenas as atividades produtivas" (nfase original6), j que nassociedades pr-capitalistas trata-se do "exerccio de uma funo social quepoderamos denominar 'total' ou indiferenciada":

    o caso, na sociedade Cabila e na maioria das sociedades pr-capitalistas, mas tambm na nobreza do Ancien Rgime e nas classesprivilegiadas das sociedades capitalistas, de todas as prticas direta ouindiretamente orientadas para a reproduo do capital social e docapital simblico. [...] Ora, aceitar tal definio mutilada impedir-sede apreender inteiramente a estrutura objetiva da diviso sexual[nfase adicional], das "tarefas" ou dos encargos, que se estende atodos os domnios da prtica [nfase adicional] (1998b, p. 53).

    O pargrafo se refere sociedade Cabila, mas, como veremos,Bourdieu vai utilizar livremente essa definio ampliada de trabalho paraanalisar a lgica da dominao simblica vigente nas sociedades capitalis-tas. Isto , de uma viso etnocntrica, que aplicava aos Cabila a nooocidental de trabalho, passa-se a utilizar uma noo definida como pr-

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    fazer o livro de Bourdieu che-gar to rpido ao seminrio,por meio de Maria Claudia Bo-nadio, e a leitura cuidadosa deMartha Ramirez.(2) Pela ordem, os textos so:"La domination masculine" (Ac-tes de la Recherche en SciencesSociales, n 84, 1990), traduzi-do por Guacira Lopes Lourocomo "A dominao masculi-na". Educao e realidade,20(2), 1995; "Nouvelles rflexi-ons sur la domination masculi-ne" (Les Cahiers du Gedisst/Se-minaire 1993-1994. Paris: Ires-co, 1994), traduzido por MartaJulia Marques Lopes como "No-vas reflexes sobre a domina-o masculina". In: Lopes, Mar-ta J. M. (org.). Gnero e sade.Porto Alegre: Artes Mdicas,1996; "Conferncia do PrmioGoffman: a dominao mascu-lina revisitada" [1996]. In: Lins,Daniel (org.). A dominaomasculina revisitada. Campi-nas: Papirus, 1998a; La domi-nation masculine. Paris: Seuil,1998b. As citaes dessas obrastero por remisso o ano depublicao das edies brasi-leiras.

    (3) " legtimo, e em que con-dies, isolar um objeto comoo 'americanismo tropical'? Estetipo de questo possibilita, desada, explicitar um paradoxo.Todos os pesquisadores decampo sabem que o critriogeogrfico determinante damaneira pela qual eles abor-dam ou constroem uma pro-blemtica. Entretanto, se reco-nhecemos no meio profissi-onal e em tom de brincadeira um 'estilo' particular do tra-balho e da personalidade dosetnlogos em funo do lugarno qual eles realizam suas pes-quisas, os possveis efeitos des-sas diferenas de abordagens,num nvel propriamente cient-fico, so em geral negligencia-dos ou ocultados e no afetamo postulado, sob muitos aspec-tos fictcio, da homogeneidadeterica e conceitual da etnolo-gia" (Taylor, Anne-Christine."L'americanisme tropical, unefrontire fossile de l'ethnolo-gie?". In: Rupp-Eisenreich, Brit-ta. Histoires de l'anthropologie(XVI-XIX sicle). Paris: Klinck-sieck, 1984). Deixo de ladoaqui toda uma interessante dis-cusso derivada dessa questoe expressa nas crescentes dvi-das dos antroplogos a respei-to de tradies "locais" ver,por exemplo, Appadurai, Ar-jun. "Putting hierarchy in itsplace". Cultural Anthropology,3(1), 1988. Se em seus textossobre a dominao masculinaBourdieu aloca a Cablia tra-dio mediterrnea, seus traba-lhos sobre a regio tm sidotambm alocados com freqn-cia "tradio" islmica ver,por exemplo, Abu-Lughod, Lila."Zones of theory in the anthro-pology of the Arab world".

  • MARIZA CORRA

    capitalista para explicar a diviso sexual, do trabalho e todas as outras, nassociedades capitalistas. Universalidade e atemporalidade. Ao empurrar adominao masculina para um ponto remoto de nossa histria e paraum "estado arcaico" , fazendo-a enraizar-se num difuso inconscientecultural que o nosso, ainda que no o seja mais7, Bourdieu se colocatambm numa perspectiva exterior a ela, isto , na de um analista isentoda lgica que analisa, no contaminado nem pela "viso masculina", quedenuncia, nem pelo "inconsciente masculino" que , no obstante, o nossoinconsciente cultural8. Parte daquela tradio letrada do Ocidente, podetambm olhar para essas cenas que expressam a "mitologia coletiva" "este universo de discursos e de atos rituais inteiramente orientados paraa reproduo de uma ordem social e csmica baseada na afirmaoultraconseqente do primado da masculinidade" como integrante deuma sociedade que s permite que este inconsciente aflore "seja atravsda licena potica, seja na experincia semiparticular da cura analtica"(1995, p. 135, nfase adicional).

    Em segundo lugar, difcil conciliar os fundamentos da "lgicaocidental" com os da lgica Cabila: ainda que se aceitasse sua pertinnciaao mundo mediterrneo e, por extenso, se aceitasse um substrato comums diversas culturas que a existem9, difcil aceitar a transposio daquelespares de oposio, como traos isolados do contexto social, de umasociedade para a outra e vice-versa como se Bourdieu tivesse sido vtimado mesmo "efeito Montesquieu" que ele utiliza para criticar Lacan10 e,parafraseando, tivesse lanado mo de instrumentos do pensamento pelosquais a sociedade Cabila se pensa(va) para pensar a dominao masculinana nossa sociedade e, vice-versa, dos instrumentos pelos quais a nossasociedade se pensa, para pensar a dominao masculina na sociedadeCabila.

    Ignorando todos os trabalhos de pesquisa emprica ou de reflexoterica feitos pelas feministas contra a hegemonia e a homogeneidade dadominao masculina e aparentemente esquecendo seu prprio traba-lho de desmistificao da relao entre homens na sociedade Cabila noque diz respeito aos arranjos de parcerias conjugais, que aparecem, defato, na sua anlise, como uma relao entre mulheres que aparecia comose fosse feita entre homens11 , Bourdieu passa quase sem transio daanlise de uma dominao que social para uma dominao que masculina e, dessa, para um modo de dominao no qual o sexo dodominante determinante: homens e mulheres voltam cena textualesquecidos de sua origem Cabila ou ocidental, das distines de classe, ououtras, como homens e mulheres12. Sua prezada noo de habitus, quandoaplicada s categorias sociais histricas, parece no ter marcao degnero:

    Dizer que "noblesse oblige" o mesmo que dizer que a nobreza queest inscrita no corpo do nobre sob a forma de um conjunto de

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    Annual Review of Anthropolo-gy, n 18, 1989.0 prprio Bour-dieu j observara: "Assim, olao entre a sociedade argelinae a religio muulmana no ode causa e efeito mas, antes, odo implcito e do explcito, dovivido e do formulado. A reli-gio muulmana oferece a ln-gua por excelncia na qual seenunciam as regras tcitas deconduta. A sociedade argelinase quer e se proclama muul-mana e o prprio desse querer fazer ser o que se quer ape-nas pelo fato de formul-lo"(Sociologie de l'Algrie. Paris:Presses Universitaires de Fran-ce, 1985 [1958], p. 100).(4) A principal referncia teri-ca aqui Marilyn Strathern,que em The gender of the giftproblems with women and pro-blems with society in Melanesia(Berkeley: University of Cali-fornia Press, 1988) oferece umacerrada argumentao contra autilizao desses pares de opo-sio derivados de "nossa" l-gica para analisar outras socie-dades e, particularmente, as so-ciedades da Melansia, s quaisa lgica do dom tradicional-mente associada. Ver tambmMacCormack, C. e Strathem, M.(eds.). Nature, culture and gen-der. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 1980.

    (5) "E a fora da evidnciadxica v-se no fato de queesta monopolizao gramati-cal do universal, atualmentereconhecida, no aparece nasua verdade seno a partir dacrtica feminista" (1995, nota10). H algo de derriso notom geral desse primeiro arti-go de Bourdieu que difcil deapanhar e que parece quaseexplicitar-se nos comentriosmaldosos sobre Simone deBeauvoir, Luce Irigaray e JuliaKristeva, algo como o que sechama, em ingls, de patroni-zing, e tambm no tom queele empresta sua magistral(de mestre) demonstrao dalgica da dominao masculi-na. A desqualificao sistem-tica do que os lingistas cha-mariam de contradiscurso eque Bourdieu chamaria decampo de estudos feministas,se o reconhecesse como tal talvez explique o mal-estar daleitora que v toda a nfase sercolocada no Discurso da Or-dem, no Discurso Dominante.E, no entanto, nada mais pare-cido com a sua demonstraodo que a anlise empreendidapor Simone de Beauvoir em Osegundo sexo, cujo cinqente-nrio acaba de ser comemora-do: texto que, se pode serconsiderado marco simblicoda instaurao legtima, insti-tucional, do contradiscurso fe-minista ao discurso da filosofiaocidental, pode tambm servisto, tambm, como uma dia-tribe contra as mulheres, emtudo semelhante anlise em-

  • O SEXO DA DOMINAO

    disposies de aparncia natural (o meneio de cabea, o porte, amaneira de andar, o ethos tido como aristocrtico, etc.) governa onobre, acima de qualquer constrangimento externo (1995, p. 146),

    mas, quando marcada pelo sexo, parece atemporal "maneiras de serpermanentes" (p. 148)13.

    No livro, esta posio bem explicitada e apresentada como a suaquesto central:

    De fato surpreendente constatar a extraordinria autonomia dasestruturas sexuais em relao s estruturas econmicas, dos modos dereproduo em relao aos modos de produo: reencontramos, noessencial, o mesmo sistema de esquemas classificatrios, no importao sculo ou as diferenas econmicas e sociais, nos dois extremos doespao das possibilidades antropolgicas, entre os camponeses monta-nheses da Cablia e entre os grandes burgueses ingleses de Bloomsbury;e os pesquisadores, quase sempre vindos da psicanlise, descobrem, naexperincia psquica de homens e mulheres de hoje, processos em suamaioria profundamente recalcados, os quais, como o trabalho neces-srio de separao do menino de sua me ou os efeitos simblicos dadiviso sexual de tarefas e do tempo na produo e na reproduo,podem ser observados claramente nas prticas rituais, realizadaspblica e coletivamente e integradas no sistema simblico de umasociedade toda ela organizada segundo o princpio do primado damasculinidade. Como explicar que a viso androcntrica sem atenu-antes nem concesses de um mundo no qual as disposies ultramas-culinas encontram as condies mais favorveis sua atualizaonas estruturas da atividade agrria ordenada de acordo com aoposio entre o tempo do trabalho, masculino, e o tempo da produ-o, feminino , e tambm na lgica de uma economia de benssimblicos plenamente concretizada, possa ter sobrevivido s profun-das mudanas que afetaram as atividades produtivas e a diviso dotrabalho, relegando a economia dos bens simblicos a um pequenonmero de ilhas cercadas pelas guas geladas do interesse e doclculo? (1998b, p. 89, nfase adicional).

    Ou:

    preciso reconstruir a histria do trabalho histrico de des-historiciza-o ou, se se prefere, a histria da (re)criao continuada dasestruturas objetivas e subjetivas da dominao masculina que serealizam permanentemente, desde que homens e mulheres existem,

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    preendida por Bourdieu. Com-pare-se este texto com a Con-cluso do volume II, "A expe-rincia vivida", de O segundosexo (traduo de Sergio Milli-et. So Paulo: Difuso Euro-pia do Livro, 1960).(6) Daqui em diante se mencio-nar apenas a nfase adicio-nal; outras nfases nas citaesso do autor.

    (7) "Mas este inconsciente cul-tural, que ainda o nosso, noencontra jamais expresso di-reta e aberta na tradio letra-da do Ocidente" (1995, p. 136). tradio letrada do Ociden-te, justamente, que se dirigemcrticas como as de Simone deBeauvoir e de Judith Butler para s citar uma precursora euma representante contempo-rnea da linhagem filosficado feminismo. Ver a radicalmudana de posio do autora este respeito p. 94 de seulivro (na qual "toda a culturaletrada" cmplice de um "dis-curso oficial sobre o segundosexo"), ao qual incorpora tam-bm uma boa amostra da lite-ratura feminista contempor-nea, sem no entanto reconhe-cer a contribuio dessa anli-se ao problema que ataca: a"histria das mulheres" (aspasdo autor) "no pode se limitara registrar, por exemplo, a ex-cluso das mulheres de tal ouqual profisso, de tal ou qualexperincia, de tal ou qual dis-ciplina; deve tambm perce-ber e abarcar a reproduo eas hierarquias (profissionais,disciplinares etc.) e as disposi-es hierrquicas que elas pos-sibilitam e que levam as mu-lheres a contribuir para suaexcluso dos lugares dos quaiselas so de qualquer modoexcludas" (nfase adicional).

    (8) No texto da conferncia doPrmio Goffman, ele afirma,entre parnteses, a respeito daspesquisas sobre gnero: "(tra-balhos que li, em sua maioria,apenas ex post, depois de terrealizado a minha prpria in-vestigao, por medo de serdesviado para direes estipu-ladas pelo inconsciente mas-culino, que todos eles partilha-vam)" (1998a, p. 16).

    (9) Sarah Pink dedica um cap-tulo de sua interessante mono-grafia sobre as toureiras emAndaluzia discusso das crti-cas que o complexo honra evergonha, considerado tpicodas relaes entre homens emulheres no Mediterrneo, vemrecebendo (Women and bullfi-ghting gender, sex and theconsumption of tradition. Ox-ford/Nova York: Berg, 1997).Ver especialmente Comwall, A.e Lindisfarme, N. (eds.). Dislo-cating masculinity: comparati-ve ethnographies. Londres: Rou-tledge, 1994.

  • MARIZA CORRA

    e atravs da qual a ordem masculina foi continuamente reproduzidaem todos os sculos (p. 90, nfase adicional).

    A afirmao mais taxativa de Bourdieu nesses textos "a universali-dade de fato da dominao masculina" (1995, p. 137), ou a "oposiomatricial masculino/feminino" (1998b, p. 112) sugere tanto que oetnlogo cedeu lugar ao magister quanto que a tradio da contestaodessa dominao ou, como ele diz, da "luta cognitiva", ainda que to antiga,ou to presente, no nosso "inconsciente cultural" quanto a tradio gregapor ele evocada (Aristfanes)14 foi cuidadosamente apagada desses textosem nome do primado da estrutura da dominao sexual. Bourdieu costumadizer que se h interesse, universal, na universalizao, esta precisa, paramanter-se como tal, estar sempre em guarda contra seu desmascaramento isto , contra o fato de que, na prtica, os universais aceitos como normano so to "universais" (nem to normativos) assim...15

    Parntese caseiro: a minha aldeia, os garons franceses e ospederastas

    Pierre Bourdieu escreveu vrias verses de seu texto final sobre adominao masculina; recorri a todos eles nesta anlise porque acredito queo conjunto revelador de uma trajetria que, tendo comeado pelautilizao de um modo peremptrio, passou ao uso de um modo matizadode exposio sem, no entanto, ter renunciado seja ao recurso determina-o ltima a do habitus masculino e feminino inculcado no corpo dehomens e mulheres, numa operao transcultural e a-histrica, sempre amesma , seja crtica, ora paternalista ou condescendente, ora acrimoni-osa, a um campo de estudos que desqualificou de antemo. De fato, ocampo de estudos feministas s merece esses dois tipos de meno deBourdieu: ou as feministas no sabem o que fazem e este livro foi escritopara mostrar-lhes o caminho da verdade , ou esto to contaminadas pelalgica da dominao masculina que suas anlises so simples rplicas domesmo esquema classificatrio de sempre16.

    Parece irnico que o terico da noo de campo seja to insensvel sua prpria entrada intempestiva num campo (o dos estudos feministas) doqual ele tem escasso conhecimento e cuja existncia desqualifica ao longode toda sua escrita desses textos: talvez isso explique tambm a notaenvergonhada de agradecimento do livro que , at agora, o texto finalsobre o assunto, na qual se abstm de mencionar as feministas quecolaboraram para matizar suas idias iniciais, dizendo no saber se isso seriabom ou mau para elas... O autor invoca, na Concluso, o argumento, quetantas vezes combateu, da "autoridade cientfica" em quatro pginas emeia, a palavra "cientfico", ou algum sucedneo, aparece dez vezes.

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    (10) "Pode-se, assim, questio-nar se o discurso do psicanalis-ta no est atravessado, at emseus conceitos e em sua pro-blemtica, por um inconscien-te no analisado que, exata-mente como entre os analisan-dos, o ludibria, graas princi-palmente a seus jogos de pala-vras tericos; e se, em conse-qncia, no extrai, sem sab-lo, das regies impensadas deseu inconsciente os instrumen-tos de pensamento que em-prega para pensar o inconsci-ente" (1995, p. 134).

    (11) Bourdieu, Pierre. Esquissed'une thorie de la pratique.Genebra: Droz, 1972. Em Lesens pratique (Paris: Minuit,1980), reafirma que "a teoriaetnolgica retoma por sua con-ta a teoria oficial (isto , confor-me os interesses masculinos)".(12) S isso explica sua longainsero de uma anlise sobreum romance de Virginia Woolf com direito a outro comen-trio maldoso sobre suas leito-ras feministas como um ca-ptulo de seu livro.

    (13) Compare-se suas descri-es dessas maneiras de serpermanentes com a descriode Fanon sobre a atuao dasmulheres argelinas na revolu-o. Bourdieu: "E a exclusodo espao pblico que, quan-do se afirma explicitamente,como entre os Cabila, condenaas mulheres a espaos separa-dos e a uma censura implac-vel de todas as formas de ex-presso pblica, verbal ou mes-mo corporal fazendo da tra-vessia de um espao masculi-no, como os acessos ao lugarda assemblia (thajmath)uma prova terrvel pode serealizar em qualquer outra par-te de modo to eficaz. Ela tomaa forma dessa espcie de ago-rafobia socialmente impostaque pode sobreviver muitotempo abolio das proibi-es mais visveis e que leva asmulheres a se exclurem a simesmas da gora" (1995, p.147; 1998b, p. 45, nfase adici-onal; ver tambm 1998b, pp.33-34). Fanon: " preciso voltara esta jovem, que ontem tirou ovu, avanando na cidade eu-ropia coberta de policiais, depra-quedistas, de milicianos.Ela no caminha mais junto aosmuros, como tendia a fazerantes da revoluo. Constante-mente chamada a se apagardiante de um membro da soci-edade dominante, a argelinaevitava o centro da calada,que, em todos os pases domundo, pertence de direito aosque mandam. As espduas daargelina que tirou o vu seendireitam. O passo solto eplanejado, nem muito rpido,nem muito lento. As pernasesto nuas, no presas numvu, deixadas a seu bel-prazer,

  • O SEXO DA DOMINAO

    E retoma tambm seu modo de argumentar ao longo desses textos todos:trata-se de um mundo no qual os agentes, ou autores, so homens oumulheres e nada mais. Defendendo-se de um esperado ataque por parte dasmulheres que teriam o "monoplio" desse campo, diz ele:

    Reivindicar o monoplio de um objeto, seja ele qual for (seja atravs dosimples uso do "ns" em certos escritos feministas), em nome doprivilgio cognitivo apenas assegurado pelo fato de ser, ao mesmotempo, sujeito e objeto, e, mais precisamente, de ter experimentado naprimeira pessoa a forma singular da condio humana que se trata deanalisar cientificamente, importar para o campo cientfico a defesapoltica dos particularismos que autorizam a suspeio a priori, e prem questo o universalismo que, especialmente atravs do direito deacesso de todos a todos os objetos, um dos fundamentos da Repblicadas cincias (1998b, p. 123).

    Em vrios momentos de seu texto evocando a anlise que faz dofilsofo, citada na epgrafe deste artigo Bourdieu se permite entrelinhasou parnteses sobre sua experincia particular para validar sua anlisegeral17. O uso do parntese interessante, como um comentrio ao ladodo texto, que lhe acrescenta um valor pessoal. Seja uma reminiscncia deinfncia, comparada experincia dos Cabila

    (Tambm me lembro que, na minha infncia, os homens, vizinhos eamigos, que haviam matado o porco pela manh, numa breve de-monstrao, sempre um pouco exibicionista, de violncia gritos doanimal que foge, facas enormes, sangue derramado, etc. , ficavama tarde toda, e s vezes at o dia seguinte, tranqilamente jogandocartas, interrompendo-se apenas para levantar um caldeiro muitopesado, enquanto as mulheres da casa estavam atarefadas preparan-do os chourios, as salsichas, os salsiches e os pats) (1998b, p. 36);ou: (Quando eu era criana, o povo de minha aldeia costumava dizerque sempre chovia na Sexta-feira Santa e via nessa coincidncia umaprova natural de sua crena religiosa) (1998a, p. 17)

    , seja uma observao a respeito da relao entre os sexos na "nossa"sociedade:

    (Eis aqui um pequeno experimento goffmaniano que vocs podemfazer para verificar isso [o esquema classificatrio de sempre]: peama um garom, num restaurante, para trazer queijo e sobremesa. Vero

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    e as ancas esto 'liberadas'. [...]Quando a argelina precisa atra-vessar uma rua, durante muitotempo ela erra no julgamentoda distncia exata a percorrer.O corpo desvelado parece es-capar, ir-se aos pedaos. [...]Ela precisa inventar rapidamen-te novas dimenses para seucorpo, novas formas de contro-le muscular. Ela precisa criarpara si um passo de mulher-desvelada-fora. [...] A argelinaque entra completamente nuana cidade europia reaprendeseu corpo..." (Fanon, F."L'Algrie se dvoile". In: Soci-ologie d'une rvolution. Paris:Maspero, 1972). Ver a traduovisual dessa anlise do rea-prendizado do corpo femininono filme A batalha de Argel, deG. Pontecorvo.

    (14) Aristfanes citado porele duas vezes: primeiro paracriticar sua ausncia na anlisefeita por Foucault, que teriaignorado, em sua Histria dasexualidade, autores nos quais"o velho pedestal mediterr-neo aflora mais claramente"(1995, p. 136) e, depois, parase antecipar ao possvel argu-mento de que Lisistrata seriaum bom exemplo daquela con-testao: trata-se de "um pro-grama to manifestamente ut-pico que foi destinado a servirde tema de comdia" (p. 175).Parece que o lema ridendocastigat mores foi inteiramenteignorado como parte de "nos-sa" tradio cultural...

    (15) Cf. Bourdieu, Pierre. Ra-zes prticas sobre a teoriada ao. Campinas: Papirus,1996, pp. 153-156,223-228. Vertambm Bourdieu, Pierre eWacquant. Loc. "Sur les rusesde la raison imprialiste". Actesde la Recherche en Sciences So-ciales, n 121/122,1998: "Nada mais universal que a preten-so ao universal ou, mais preci-samente, universalizao deuma viso de mundo especfi-ca". Este texto um contrapon-to interessante anlise deBourdieu sobre a dominaomasculina: analisando o casobrasileiro, os autores se insur-gem contra a dominao ame-ricana no campo de estudosdas relaes raciais, que estariapromovendo a universalizaode lugares-comuns cuja "ori-gem est nas realidades com-plexas e controversas de umasociedade histrica especfica,tacitamente constituda comomodelo e medida de todas ascoisas". Contrastando a situa-o americana com a brasilei-ra, os autores criticam o "dua-lismo rgido" entre brancos enegros vigente nos Estados Uni-dos: "Ora, as formas pelas quaisos indivduos procuram o reco-nhecimento de sua existncia ede sua pertinncia pelo Estadovariam conforme os lugares eos momentos em funo de

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    que em quase todos os casos ele vai espontaneanente passar os pratossalgados para os homens e os pratos doces para as mulheres) (1998a,p. 17)18.

    Os homens e as mulheres da aldeia de sua infncia, as mulheres e oshomens urbanos com os quais conviveu depois de adulto, so todoscorporificaes de um mesmo princpio o da dominao masculina que ele estende a todas as sociedades e em cada sociedade a todos os seussegmentos. No entanto, e como ele prprio mostra em seus exemplosetnogrficos, trata-se, sim, de um princpio de dominao que, se dessexu-alizado, rouba todo o sentido da expresso "dominao masculina": seriapreciso buscar, em cada contexto, quais so os princpios bsicos dadominao, antes de atribu-la, de antemo, aos homens. Isto , o princpioda dominao, em qualquer sociedade, acessvel, em princpio, a"homens" e "mulheres" se for socialmente necessrio, politicamentedesejvel e economicamente "rentvel", "homens" ou "mulheres" podem, esempre o fizeram, ocupar o lugar da dominao. Bourdieu mesmo cita doiscasos: o de mulheres "praticamente dominantes" na sociedade Cabila e o dehomens que ocupam o lugar (estrutural) de mulheres na rede de parentesco(1998b, pp. 42 e 49)19. Isto , "a masculinizao do corpo masculino e afeminizao do corpo feminino" (p. 62) so socialmente to arbitrriasquanto a "circulao de mulheres" (p. 48) na nossa e em outrassociedades homens e mulheres podem circular como "objetos" e mulherese homens podem ocupar o lugar da dominao20.

    O vaivm constante em seus textos entre a anlise do princpio dadominao e sua corporificao em seres sexuados homens fica maisevidente nas suas observaes a respeito dos homossexuais:

    ... tendo sido necessariamente criados como heterossexuais, interiori-zaram o ponto de vista dominante e podem usar este ponto de vistasobre si mesmos (o que os destina a uma espcie de discordnciacognitiva e avaliativa que contribui para sua clarividncia particu-lar), e eles compreendem melhor o ponto de vista dos dominantes doque estes compreendem o deles (1998b, p. 37).

    Isto , os homossexuais, ao abandonarem a heterossexualidade, abandonamtambm o gnero masculino e deixam de lado todo aquele lento trabalho"dos esquemas que estruturam a percepo dos rgos sexuais e, mais ainda,da atividade sexual"? (1998b, p. 21)21. Ao mudarem a orientao de suasexualidade, passam de dominantes a dominados e adquirem mas ex postfacto, uma vez j feito o lento trabalho de inculcao do habitus , como asmulheres, que foram socializadas no habitus feminino, aquela "lucidezespecial dos dominados" e mudam tambm seu sexo/gnero? Ou seja, oshomossexuais so homens transformados em mulheres? Nenhum esclareci-

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    tradies histricas e constitu-em sempre uma ocasio delutas na histria. Assim, umaanlise comparativa aparente-mente rigorosa e generosapode, at sem que seus autoresdisso tenham conscincia, con-tribuir para exibir como uni-versal uma problemtica feitapelos e para os americanos"Agradeo a Hctor Segura terchamado minha ateno paraeste texto.

    (16) No se trata de exagero:na Concluso de seu livro,Bourdieu afirma que, se seaventurou num terreno (no sefala de campo do conhecimen-to) "quase inteiramente mono-polizado pelas mulheres", foipor ter acreditado poder pro-duzir uma anlise "capaz deorientar de outro modo tanto apesquisa sobre a condio fe-minina, ou, de um modo maisrelacional, sobre as relaesde gnero, como a ao desti-nada a transform-las" (p. 124).E em vrias notas, ao longo deseus vrios textos, vai regis-trando suas crticas ao empre-endimento feminista no li-vro, nas pp. 47 (Favret-Saada),50 (Rosaldo, Ortner, Rubin), 51(nota interessante sobre "o quedeveria ter feito" para mostrar adiferena entre suas anlises eas das feministas), 93 (Simonede Beauvoir), 105 (tericas emgeral) , notas nas quais apon-ta a viso restrita das pesquisa-doras, quando comparada comseu prprio trabalho. Seria oci-oso listar as notas semelhantesnos outros textos, j que todasseguem o mesmo padro.

    (17) Num texto j antigo, aindaque muito citado, C. Geertzconclua sua anlise das crticasao relativismo cultural com afrase: "quem queria verdadescaseiras deveria ter ficado emcasa" ("Anti anti-relativismo".Revista Brasileira de CinciasSociais, n 8,1988).(18) Ou ainda: "Por exemplo,nas enquetes feitas nas entra-das dos museus, numerosasmulheres interpeladas, sobretu-do entre as mais desprovidasculturalmente, exprimiam seudesejo de ceder a seu compa-nheiro de visita o encargo deresponder em seu lugar; renn-cia que no se d sem ansieda-de, como testemunham os olha-res que as esposas dceis lan-am alternadamente ao maridoe ao pesquisador durante todoo tempo da entrevista. Mas maisgeralmente, seria necessrio re-censear todas as condutas queatestam as dificuldades quasefsicas que as mulheres tm paraparticipar das aes pblicas epara se livrar da submisso aohomem como protetor, decisore juiz (eu lembraria aqui, pararaciocinar a fortiori, a relaoentre Simone de Beauvoir eJean-Paul Sartre tal como a ana-

  • O SEXO DA DOMINAO

    mento sobre como aquelas "maneiras de ser permanentes" foram alteradas: como se, sendo o sexo a origem de toda a dominao, os "invertidos" sexuaistambm a invertessem. Apesar de sua clarividncia,

    os prprios homossexuais [...] freqentemente aplicam a si mesmos osprincpios dominantes: como as lsbicas, eles freqentemente reprodu-zem, nos casais que constituem, uma diviso de papis masculinos efemininos pouco afeita a aproxim-los das feministas (sempre prontasa suspeitar de sua cumplicidade com o gnero masculino ao qual elespertencem, ainda que ele os oprima), e por vezes levam ao extremo aafirmao de virilidade na sua forma mais comum, sem dvida comoreao ao estilo "efeminado" dominante outrora (1998b, p. 130).

    Reproduz-se aqui a mesma lgica da crtica dirigida s tericasfeministas: se os homossexuais so "viris" porque incorporaram "disposi-es" do habitus dominante quando foram socializados como heterossexu-ais, distinguindo-se, assim, das categorias dominadas efeminadas; se so"efeminados" porque, alm de incorporarem essas disposies, as aplicama um corpo que lhes apareceria, de repente, como alheio (o seu) e agoraparte da categoria dominada na relao M/f. No h como escapar dasarmadilhas do habitus dominante tautologicamente, ele domina sempre.

    A nfase que Bourdieu atribui ao corpo, incorporao, ou corpori-ficao, de sinais de distino social antiga e justificaria se explicitada sua irritao com as feministas que ignoram sua anlise, ou a evitam, efazem sua prpria teorizao sobre o tema. O que justificaria tambm umaafirmao sua que parece ter, no entanto, outro objetivo: assegurar suaprimazia no trato da questo da violncia simblica22.

    O que interessante que, se em seus textos sobre a dominaomasculina o controle do corpo por parte das mulheres que merece ateno ver, por exemplo, sua citao sobre uma anlise a respeito do corpo daesportista23 , em anlises anteriores dava-se ateno feminizao docorpo masculino como forma de ascenso social. Num texto de 1977,Bourdieu observava:

    Tudo sugere que, nas classes populares, o processo que leva s disposi-es femininas (de que a pederastia nada mais do que uma dasmanifestaes), isto , intelectuais e burguesas, um fator de ascensosocial (o fato de sair das classes populares podendo ser acompanhadode uma mudana de conscincia social)24.

    Aqui, o "abandono dos valores masculinos [que] , ao mesmo tempo,o preo da ascenso social e o que favorece a mobilidade" (p. 180).

    50 NOVOS ESTUDOS N. 54

    lisa Toril Moi num texto indi-to)" (1995, p. 147, nfase adici-onal). J os indicadores de mas-culinidade dos clubes inglesesseriam "os mveis de couro,pesados, angulosos e de corsombria" (1998b, p. 64).(19) Mais adiante ele faz tam-bm referncia a um estudo deV. Karady sobre os judeus dospases da Europa central e suasocializao no sculo XIX,"uma inverso perfeita do pro-cesso de constituio do habi-tus masculino tal como descritoaqui", o que "favorecia o de-senvolvimento de disposiesdoces e 'pacficas' (atestadaspela raridade de violaes e decrimes de sangue) na comuni-dade judia" (p. 57). Esse onico caso citado como contra-exemplo ao longo de suas an-lises e, certamente no por aca-so, trata-se de um exemplo queevoca "disposies" que torna-vam os seres assim socializadosem vtimas potenciais... Ver adi-ante suas observaes de 1977sobre a pederastia (sic).(20) O que, alis, pareceriamais compatvel com a visode Bourdieu ao longo de suaobra, ao insistir na crtica ao"modo de pensar substancialis-ta, que o do senso comume do racismo e que leva atratar as atividades ou prefe-rncias prprias a certos indiv-duos ou a certos grupos deuma certa sociedade, em umdeterminado momento, comopropriedades substanciais, ins-critas de uma vez por todas emuma espcie de essncia biol-gica ou o que no melhor cultural", contrastando-ocom a sua construo do espa-o social, aquele no qual seinscrevem as "classes tericas",predispostas, "mais do quequalquer outro recorte terico,mais, por exemplo, do que orecorte conforme sexo, etnia,etc., a se tomarem classes nosentido marxista do termo" (Ra-zes prticas, loc. cit., p. 25).(21) interessante que aos ho-mossexuais masculinos masapenas aqueles que adotam o"papel" feminino? permiti-do o acesso a uma linguagemcultural inacessvel a todos osoutros seres, homens e mulhe-res, assim socializados nos "pa-pis" masculino e feminino. Aliteratura sobre o tema da "re-verso de papis" vasta: ex-cluindo os exemplos etnolgi-cos, sempre vistos como "exo-tismos primitivos", ou a litera-tura psicolgica sobre transe-xuais, basta lembrar as anliseshistricas de Natalie Davis (Cul-turas do povo sociedade ecultura no incio da Franamoderna. So Paulo: Paz e Ter-ra, 1990) e as anlises de doisexemplos de mudana de ha-bitus na idade adulta que setornaram famosos: Erauso, Ca-talina de. Lieutenant nun

  • MARIZA CORRA

    Bourdieu v expressar-se na oposio entre a boca ("bouche") e a goela("gueule") tanto a oposio entre o feminino e o masculino quanto aoposio entre os valores (viris) da classe trabalhadora e os valores(efeminados) dos burgueses:

    As qualidades dominantes colocam duplamente em questo a virilida-de, pelo fato de que sua aquisio demanda docilidade, disposioimposta s mulheres pela diviso sexual do trabalho (e a diviso dotrabalho sexual) e de que essa docilidade visa disposies em simesmas femininas (p. 181).

    Parece que quando as mulheres se tornam esportistas, aderindo a umethos das classes populares (quem sabe "descendo" na escala social),tambm se "masculinizam"25 e, vice-versa, quando os homens sofrem umprocesso de aburguesamento ("subindo" na escala social) se "feminizam":em verdade os valores masculinos esto nas classes populares e osfemininos habitam entre os burgueses?26

    Parece, afinal, que a dominao masculina no to homognea, ouhegemnica, quanto o pretendido, e tampouco se trata de homens exercendoessa dominao sobre mulheres: assim como encontramos "mulheres domi-nantes" na sociedade Cabila, tambm encontramos "homens efeminados" nasociedade ocidental. Mas se as mulheres ganham o controle de seus corpospor meio do esporte, os homens parecem perder o seu ao ingressarem nummundo ao qual originalmente no pertenciam. O belo quadro sobre "oespao das posies sociais e o espao dos estilos de vida"27 adquire assimuma colorao de gnero para "subir" h que feminizar-se, e para descerbasta "masculinizar-se"? Ou vice-versa: o "masculino" (classes trabalhadoras)est aqui submetido ao "feminino" (os burgueses)? E o que fazer com as"mulheres" que ocupam posio dominante nesse quadro (estando na partede cima dele) e com os "homens" que esto na parte de baixo?

    Mas essas so perguntas retricas retrica de um texto que no hesitaem atribuir um sexo dominao social, seja l como for que ela tenha sidodefinida e seja l onde e quando se manifeste ou tenha se manifestado enredando-se, assim, numa procura infinita de comprovaes impossveis28.

    O vaivm constante entre a anlise da sociedade Cabila e da sociedadeocidental29 acompanhado de um constante vaivm entre o indivduo e asociedade (relao l e aqui constituda da mesma maneira) mas no paraop-los, como Marilyn Strathern supe que a oposio opera na lgica"ocidental", e sim para reforar o efeito de sociabilizao, se se pode dizerassim, sofrido pelos agentes mesmo antes de nascer. Eles nascem numcampo determinado e isso determinar, aparentemente para sempre, seucomportamento subjetivo mas no como "indivduos", o que os dotariade certa autonomia em relao "sociedade", e sim como objetivao dasdistines sociais:

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    memoir of a Basque travestitein the New World. Boston: Bea-con Press, 1996; Kates, Gary.Monsieur d'Eon mulher um caso de intriga poltica eembuste sexual. So Paulo:Companhia das Letras, 1996.

    (22) Bourdieu afirma na Intro-duo: "Apenas para atestarque meu propsito atual no o produto de uma conversorecente, remeto s pginas deum livro j antigo [Le sens prati-que, loc. cit, pp. 246-247] noqual insistia no fato de que,quando aplicada diviso se-xual do mundo, a etnologiapode 'tornar-se uma forma par-ticularmente potente de socio-anlise"' (1998b, p. 9). Uma dastericas mais importantes so-bre a questo do "embodi-ment", Donna Haraway, porexemplo, no citada porBourdieu; mas ela tambm noo cita ao longo de seus textossobre o tema (ver, entre outros,Simians, ciborgs, and women the reinvention of nature.Londres: Routledge, 1991).(23) Sem citar a fome, Bour-dieu resume "um belo artigo"que mostra como as mulheresque "praticam intensamente oesporte vem sua relao comseu corpo se transformar, comoelas chegam a uma relao comseu corpo que se poderia dizermasculina, ou seja, a um corpoem si, no lugar de um corpopara o outro, um corpo que por si mesmo seu fim" (1996,p. 39, nfase adicional). Cabelembrar que as noes filosfi-cas postas em relevo aqui tam-bm so devedoras da anlisede Simone de Beauvoir, que asps em circulao no campofeminista.

    (24) "A economia das trocaslingsticas". In: Ortiz, Renato(org.). Pierre Bourdieu. SoPaulo: tica, 1983, p. 181, nfa-se adicional. Agradeo a AnaLucia Modesto por ter chama-do minha ateno para estetexto.

    (25) Mas Bourdieu prefere di-zer que elas se tornam lsbicasaos olhos dos outros... (p. 74).(26)"... e se, na Frana moder-na, as disposies do ponto dehonra masculino continuarama regulamentar as atividadespblicas dos homens, desde oduelo at a polidez ou ao es-porte, que, como na socieda-de Cabila, elas apenas tornammanifesta e realizada a tendn-cia da famlia (burguesa) a seperpetuar atravs de estrat-gias de reproduo impostaspela lgica da economia debens simblicos, a qual, parti-cularmente no universo da eco-nomia domstica, manteve suasexigncias especficas, diferen-tes daquelas que regem a eco-nomia abertamente econmicado mundo dos negcios"(1998b, p. 104).

  • O SEXO DA DOMINAO

    ... a virtude da incorporao, que explora a capacidade do corpo delevar a srio a magia performtica do social, o que faz com que o rei,o banqueiro, o padre sejam a monarquia hereditria, o capitalismofinanceiro ou a Igreja feitos homens (1980, p. 96).

    De fato, toda a obra de Pierre Bourdieu parece dedicada demonstra-o dessa "lgica que transcende os agentes particulares" (1980, p. 97) e queneles se incorpora e os corporifica, como se fosse lgica, agora,finalmente definida como sexuada.

    O que acrescentar a isso, seno recolocando uma das perguntas deMichelle Perrot ao filsofo: "Quelle dcouverte peut-on attendre de cetterecherche systematique du mme?" ["Que descoberta podemos esperardesta procura sistemtica do mesmo?"]

    Eplogo

    Ler e reler Bourdieu, no entanto, tem l suas vantagens: tantas vezeso autor de La domination masculine nos remete, em notas, ao seu relatoetnogrfico, ou etnolgico, como ele preferiria, sobre a Cablia, que nos fazduvidar sobre o que lemos antes. Bourdieu reconhecidamente um autor"difcil" quem sabe no lemos com a devida ateno seus livros anteriorese todo o seu mtodo esteja, afinal, aqui revelado?

    Mas no, voltando a Le sens pratique, particularmente ao ltimocaptulo ("O demnio da analogia"), a tentao recomear esta anlise londe ele se interrompeu e perseguir um dilogo, ainda que imaginrio, dasua etnografia com a etnografia de Marilyn Strathern sobre a Melansia, jque possvel perceber ecos de cada uma das anlises no texto da outra tarefa, evidentemente, para algum mais bem equipado com conhecimen-tos tericos sobre as sociedades do dom.

    Nas pginas finais desse captulo, Bourdieu escreve um breve eplogo("Do bom uso da indeterminao") no qual defende a lgica prtica contraa lgica lgica, apontando sua necessria "incoerncia": os exemplos dadosso todos a respeito das ambigidades e qualidades polissmicas deelementos, aparentemente, to nitidamente masculinos ou femininos conti-dos na narrativa do incio do livro e em seu novo livro30. A chuva podeser vista como um elemento masculino ou feminino, segundo seja definidapor sua origem celeste ou participe da feminilidade mida e terrestre econforme os rituais que cercam o desejo dela , bem como o tear, a casa,a brasa, o luar, o ovo e vrios tipos de alimentos: "O erro, neste caso,consistiria em determinar o indeterminado" (p. 430). A prpria apresentaoem curva escolhida por ele para pr em relevo os limiares do calendrio dosCabila sugere tambm a possibilidade de passagens de um estado, umaposio, um elemento, a outro. Bem como as descries do feminino/

    52 NOVOS ESTUDOS N. 54

    (27) Razes prticas, loc. cit.,p. 20.

    (28) "O verdadeiro rigor noest do lado de uma anliseque forasse o sistema alm deseus limites, abusando dos po-deres do discurso que faz falaros silncios da prtica, desfru-tando da magia da escrita quearranca a prtica e o discursoao tempo e sobretudo colocan-do a prtica mais tpica dasprticas questes, mais apro-priadas a mandarins, de coe-rncia ou de correspondncialgica" (Le sens pratique, loc.cit, p. 425).

    (29) Tambm notvel em Lesens pratique (loc, cit.): ver,por exemplo, o cap. 4, no qualse passa quase sem transioda discusso sobre a oposioentre o nif e o h'aram (sagradodireito e sagrado esquerdo masculino e feminino) dis-cusso sobre a formao daidentidade sexual da criana,apoiada basicamente por umabibliografia americana de psi-cologia e de psicologia socialdos anos 50 e 60. O mesmoocorre aqui, quando se passa,por exemplo, quase sem tran-sio, da discusso sobre umaanlise sociolgica a respeitodo exame vaginal nos EstadosUnidos a um mito Cabila sobreas posies de homens e mu-lheres na relao sexual (1998b,pp. 22-24). mito, alis, atri-bui o conhecimento originalsobre as "verdades do sexo" smulheres...

    (30) Nas primeiras pginas dolivro, Bourdieu faz uma alusopassageira a esse fio destoantede sua trama: "A ambigidadeestrutural, manifesta pela exis-tncia de um lao morfolgico(por exemplo, entre abbuch, opnis, e thabbucht, femininode abbuch, o seio), de umcerto nmero de smbolos liga-dos fecundidade, pode seexplicar pelo fato de que elesrepresentam diferentes mani-festaes da plenitude vital, dovivo que d vida (atravs doleite e do esperma assimiladoao leite)" (p. 18). E que: "Aindeterminao parcial de cer-tos objetos de fato autoriza in-terpretaes antagnicas, ofe-recendo aos dominados umapossibilidade de resistnciacontra o efeito de imposiosimblica" (p. 19). Mas noretorna ao tema.

  • MARIZA CORRA

    masculino e do masculino feminilizado em certas situaes (o ferreiro notem assento na assemblia dos homens; aquele que foge ao combate valemenos que uma mulher...).

    Ainda do masculino e do feminino, como princpios estruturaisestruturantes, do que se trata, mas tais princpios no esto mais (ou noesto ainda) inteiramente corporificados em homens e mulheres: elescirculam, como se fosse, pela sociedade Cabila, assim como Strathernsugere que tais princpios circulam na sociedade melansia e, desconfio eu,em muitas outras sociedades, inclusive a nossa...

    De fato, a unio dos contrrios no abole a oposio, e os contrrios,to logo reunidos, ainda que opostos, manifestam, de outro modo, averdade dupla da relao que os une, ao mesmo tempo antagonismoe complementaridade, neikos e philia, e que poderia aparecer comosua natureza "dupla" se os pensssemos fora desta relao (p. 353).

    A nfase a, como para a analista dos sistemas melansios, na relao,permitindo ainda uma leitura dos agentes como duplamente marcados pelognero. Mas tambm, ao longo da escrita, e como nas belas anlises deMary Douglas, uma nfase no limiar, nas fronteiras.

    A reunio do masculino e do feminino, do seco e do mido, pelotrabalho ou pelo casamento, invocada por todo o simbolismo perfor-mtico do ritual que l est para significar, no sentido de dizer comautoridade, a reunio de princpios votados esterilidade enquantopermaneam em estado separado, mpar, imperfeito (p. 398).

    Talvez por resumir essa ambigidade, essa polissemia, a anlisesobre a casa cabila ("A casa ou o mundo s avessas") , meio a contragostodo autor, reeditada como anexo; apesar de estar ainda, como ele observa,"inscrita nos limites do modo de pensamento estruturalista", serve como"introduo s anlises mais completas e mais complexas apresentadasantes". Mas justamente na anlise desse "microscosmo" que o Bourdieuque os antroplogos amam exemplifica toda a complexidade, ambigida-de e fluidez de princpios valorizados em todas as sociedades humanas e, por isso mesmo, de modo inteiramente diferente em cada uma delas.Relendo essa apresentao envergonhada de um trabalho to importante,La domination masculine soa como uma espcie de denegao feroz deseu passado "estruturalista" menos estruturalista no entanto do que aelevao da petite diffrence ao estatuto de grand partage da humanidadesugere...

    JULHO DE 1999 53

    Recebido para publicao em7 de junho de 1999.Mariza Corra professora doDepartamento de Antropolo-gia da Unicamp e pesquisado-ra do Ncleo de Estudos deGnero/Pagu.

    Novos EstudosCEBRAP

    N. 54, julho l999pp. 43-53

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