20080623 as sombras e o sopro

23
 AS SOMBRAS E O SOPRO  A PSICANÁLISE NA ERA DA LINGUAGEM Jurandir Freire Costa No presente, tornou-se trivial afirmar o parentesco da linguagem com a psicanálise. A linguagem, depois de Lacan, passou de meio pelo qual opera a prática analítica para a razão de ser da descoberta de Freud. O que antes ninguém parecia ter visto hoje parece evidente a todo mundo. Mas, como acontece em geral com qualquer grande invenção teó- rica, no campo da experiência humana, para cada problema resolvido sur- gem dois pedindo soluções. A noção lacaniana do "inconsciente estrutu- rado como uma linguagem", uma vez criada, suscitou grandes discussões, dentro e fora da psicanálise. De adesões incondicionais a oposições siste- máticas — cito como exemplos destas últimas os interessantes trabalhos de Viderman (1970; 1977) e de Laplanche (1980a; 1980b; 1980c; 1981) — a noção foi sendo aceita e converteu-se numa das idéias mais férteis  imaginadas por um psicanalis ta. Apesar disto, penso que nem tudo afir- mado sobre a natureza da linguagem foi justificado a contento. Por este motivo, e não por qualquer outro, procurarei retomar o assunto, discutindo-o do ângulo que julgo mais controverso. 1. A virada linguística em psicanálise A virada linguística em psicanálise começa quando Freud decepciona-se com sua teoria do "Trauma da sedução". A sedução trau- mática não era um evento real, confidencia ele a Fliess. Sua "neurótica" ou sua "fonte do Nilo" era uma miragem. Para sustentar o edifício psica- nnnn 71

Upload: rafaellosada

Post on 04-Feb-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 1/23

AS SOMBRAS E O SOPRO 

A PSICANÁLISE NA ERA DA LINGUAGEM 

Jurandir Freire Costa 

No presente, tornou-se trivial afirmar o parentesco da linguagemcom a psicanálise. A linguagem, depois de Lacan, passou de meio pelo qualopera a prática analítica para a razão de ser da descoberta de Freud. O queantes ninguém parecia ter visto hoje parece evidente a todo mundo.

Mas, como acontece em geral com qualquer grande invenção teó-rica, no campo da experiência humana, para cada problema resolvido sur-gem dois pedindo soluções. A noção lacaniana do "inconsciente estrutu-rado como uma linguagem", uma vez criada, suscitou grandes discussões,dentro e fora da psicanálise. De adesões incondicionais a oposições siste-máticas — cito como exemplos destas últimas os interessantes trabalhosde Viderman (1970; 1977) e de Laplanche (1980a; 1980b; 1980c; 1981)— a noção foi sendo aceita e converteu-se numa das idéias mais férteis já imaginadas por um psicanalista. Apesar disto, penso que nem tudo afir-mado sobre a natureza da linguagem foi justificado a contento. Por estemotivo, e não por qualquer outro, procurarei retomar o assunto,discutindo-o do ângulo que julgo mais controverso.

1. A virada linguística em psicanálise

A virada linguística em psicanálise começa quando Freuddecepciona-se com sua teoria do "Trauma da sedução". A sedução trau-mática não era um evento real, confidencia ele a Fliess. Sua "neurótica"

ou sua "fonte do Nilo" era uma miragem. Para sustentar o edifício psica-nnnn 

71

Page 2: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 2/23

Page 3: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 3/23

NOVOS ESTUDOS Nº 24 — JULHO DE 1989

Freud tentou superar o impasse, criando as teorias das etapas dodesenvolvimento libidinal, que deveria amarrar o recalque e o inconscienteno rochedo da evolução biológica. A tentativa fracassou. Cada fase ou etapaacabava definindo-se pela linguagem das pulsões, que nada mais era que

uma outra forma de descrever arranjos peculiares de representações oufantasias.

A outra opção foi a invenção das fantasias originárias, cujo aspectoestrutural, embora teoricamente mais consistente, coincidia, no pensamen-to freudiano, com a adoção de hipóteses filogenéticas ou de transmissãodos caracteres adquiridos. O evolucionismo, por sua tonalidadeespeculativo-ideológica, sempre foi um mau aliado da psicanálise. A reali-dade psíquica com suas fantasias estava, deste modo, afastada como hipó-tese viável sobre a realidade do inconsciente. Restavam os afetos e pul-sões. Estes outros elementos da realidade psíquica eram candidatos fra-cos ao posto de realidade inconsciente, pelo fato de não serem recalcá-veis. Sendo assim, a noção de realidade psíquica, como conjunto de fan-

tasias, afetos e pulsões, nem recobria a totalidade, nem identificava-se àsingularidade da noção de inconsciente. Estes foram os motivos que in-viabilizaram teoricamente a primeira versão conteudística do inconscien-te psicanalítico.

A segunda versão não era menos problemática. Historicamente, po-deria ser exemplificada pela noção de fantasia retroativa de Jung e pelasleituras hermenêuticas e fenomenológicas da psicanálise. Em linhas gerais,estas versões partiam do seguinte ponto de vista: admitindo-se a inexis-tência de referente fixo, coisa ou evento, que funcionasse como causa ob- jetiva do recalque ou núcleo primordial do inconsciente, não havia comodecidir que representações eram efetivamente primeiras ou primordiaise que representações eram imaginariamente pensadas como originais, sen-do, de fato, produtos de elaborações secundárias do EU, ou da deforma-

ção pela ação da censura egóica. Sem poder separar o joio do trigo, a psi-canálise deveria contentar-se em seguir de perto as associações, perlabo-rações e interpretações, até o ponto em que o analisando se desse por sa-tisfeito, e o analista concordasse com esta satisfação. Aí terminaria a análise.

É fácil ver que o inconsciente, nesta teoria, seria tão-somente umaprodução discursiva, em que discursos sobre discursos reconstruiriam, nopresente, uma história afetiva anteriormente marcada de forma sintomati-camente alienada. Quando Politzer, por exemplo, criticava o "realismocoisificante do freudismo", pensava que o processo psicanalítico deveriaculminar no reencontro do sujeito com "uma história concreta e dramáti-ca em primeira pessoa" (Politzer, 1967; 1969). Na mesma direção, Merleau-Ponty, em certo momento de sua obra, afirmava que os fatos descritos

por Freud representavam apenas a "possibilidade de uma vida de cons-ciência fragmentada, que não possui em todos os seus momentos uma únicasignificação... A pretensa inconsciência do complexo reduz-se à ambiva-lência da consciência imediata" (Pontalis, 1968, pp. 45-46).

73

Page 4: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 4/23

AS SOMBRAS E O SOPRO

Ou seja, a psicanálise seria a história do mesmo que se desconheceenquanto tal. A verdade do inconsciente é a história de seu desvelamen-to. Nem anterior à tomada de consciência, nem heterogêneo em relaçãoa esta mesma consciência, já que seria apenas um índice de sua ambiva-

lência, o inconsciente existe quando é dito pelo analisando ou pelo ana-lista e reconhecido pelos dois como aquilo que é verdadeiro. Visto poroutro ângulo, é uma mera possibilidade discursiva, limitada pelo horizon-te de razões plausíveis, concernentes à natureza do sujeito e de seus con-flitos psíquicos. O recalque, por seu turno, é uma maneira de aludir aqui-lo que não entrou na zona de relevância da consciência e que, agora, noprocesso psicanalítico, pode ser compatibilizado com a soma de defini-ções racionais que o sujeito dá de si mesmo e de suas circunstâncias.

Tais versões, naturalmente, não podiam satisfazer os psicanalistas.Chocavam-se de cara com o cerne da psicanálise. Além de diluírem o in-consciente em racionalizações intelectualistas e enredos sintomáticos de-fensivos, apostavam numa completude real ou ideal do sujeito e do dese- jo, que era o exato oposto do que Freud quis demolir. Neste tipo de ver-são filosófica da psicanálise, o sujeito reconcilia-se com sua identidade edeixa de ser sujeito à inquietante estranheza do desejo sexual. Em outraspalavras, dizem os analistas, o sujeito filosófico, assim pensado, poderiaequiparar-se ao Ego ou ao Ego-Ideal, jamais ao sujeito do inconsciente eda castração. O inconsciente hermenêutico — fenomenológico é, segura-mente, mais avesso à teoria psicanalítica que o inconsciente da "realidadepsíquica". Neste último, a noção de fantasia inconsciente assegura, pelomenos, a irredutibilidade dos processos primários ao modo de funciona-mento consciente. No primeiro, nem isso é respeitado. O inconscientetorna-se uma modalidade da consciência, definição que remonta à psico-logia pré-freudiana.

2. O salto adiante

Diante do obstáculo, a questão retornava: o que era e onde estavao inconsciente? Se não era o produto do trauma real e da dissociação daconsciência, motivada pela inconciliabilidade de certas representações como EU; se também não podia ser reduzido à noção de realidade psíquica,composta de pulsões, afetos e fantasias; se, por fim, também não podiaser concebido como mera possibilidade de traduções alternativas de mi-tos sobre o passado do sujeito, excluídos passivamente da consciência,pela ambivalência constitutiva desta instância, que definições poderiamser dadas da coisa freudiana? A resposta foi: o inconsciente não é uma subs-

tância com conteúdos profundos, semelhante à alma religiosa ou à mentefilosófica. O inconsciente é um regime de funcionamento; um conjuntode regras que delimitam e prescrevem o arranjo particular das representa-ções sexualmente investidas e conscientemente desconhecidas. Incons-nnnnn 

74

Page 5: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 5/23

NOVOS ESTUDOS Nº 24 — JULHO DE 1989

ciente é o termo genérico que descreve como as representações pulsio-nais organizam-se sistematicamente sob a forma de condensação, deslo-camento e dramatização. Melhor dito, é a própria lei ou conjunto de leis,definidas por Freud como lei dos processos primários. Sua alteridade re-

side em sua não conversibilidade ao modo de funcionamento das leis queregem a consciência. Dele pode tomar-se consciência mas nunca reduzi-lo em sua alteridade ao fato conscientemente percebido, pensado ouimaginado.

Transposto este umbral, o restante foi aparentemente mais fácil.Através da assimilação do deslocamento e condensações freudianas às fi-guras retóricas da metáfora e da metonímia, Lacan criou o célebre aforis-mo do "inconsciente estruturado como uma linguagem". O salto estavadado; a virada linguística na psicanálise tinha acontecido.

No entanto, alcançado este estágio muito trabalho havia pela fren-te. A noção de linguagem estava tradicionalmente cercada de polêmicassobre sua natureza ou definição. Não bastava usar o termo em sua acep-ção corrente para elucidar a natureza do inconsciente. Era preciso dizerque linguagem poderia servir de modelo à organização e funcionamentodo fato psicanalítico. Em primeiro lugar, esta linguagem não podia coinci-dir com as elocuções manifestas dos falantes. Se assim fosse, no máximochegar-se-ia a uma concepção intelectualista do inconsciente e do proces-so analítico. O inconsciente não devia ser apenas uma "linguagem esque-cida" ou uma linguagem desgramaticalizada que fugiu ao controle das re-gras do discurso público, como pensou Habermas (1982). No primeiro ca-so, supunha-se que o esquecido podia ser relembrado, e, no segundo ca-so, supunha-se que a regramaticalização significava redução do inconscien-te ao consciente. Nos dois casos, esquecia-se que a linguagem do incons-ciente não tem tradução na linguagem da consciência. Ela é intraduzívelporque as regras de sua gramática não têm equivalência na linguagem dos

atos de fala manifestos. Sem contar que, mesmo aceitando que a lingua-gem do inconsciente fosse a mesma da razão, submetida à quebra de seuselos ou de sua arquitetura lógica usual, o dilema voltaria ao marco zero.O pretenso responsável pela "desgramaticalização da linguagem pública"seria, de novo, o mundo interno das fantasias, pulsões etc., como acabademonstrando Rouanet, em sua defesa da concepção habermasiana da psi-canálise (ver: Rouanet, 1985; Prado Jr., 1965; Costa, 1988).

Em segundo lugar, a linguagem deveria transcender radicalmentea consciência, mas ser, simultaneamente, algo material e não identificávela uma pura forma ou esquema metafísicos. Nada se afastaria tanto do in-consciente freudiano, saturado de sexualidade, e exibindo-se através dechistes, sintomas, sonhos e atos falhos, quanto uma entidade desta espé-cie. Em terceiro lugar, a teoria defendida não poderia reeditar os velhos

problemas filosóficos da relação entre linguagem e representações. A lin-guagem não poderia ser entendida nem como simples representação dacoisa, evento ou imagem mental de coisas e eventos; nem poderia ser sim-ples representação das intenções dos falantes, de seus estados mentais ounnnn 

75

Page 6: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 6/23

AS SOMBRAS E O SOPRO

de suas suspostas sensações privadas; nem mesmo ser a representação domundo linguisticamente representado, isto é, representação da represen-tação. Todas estas concepções de linguagem enquanto representação dei-xavam intocado o caráter metafísico da linguagem, como moldura a-

histórica, vizinha do mentalismo, idealismo e fundacionalismo, acerbamen-te criticado pela posteridade wittgensteiniana (Steuerman, 1985).

A saída encontrada por Lacan foi a de combinar a linguística de Saus-sure com o estruturalismo antropológico de Lévi-Strauss, e daí construira noção de linguagem adequada ao inconsciente. De Saussure, Lacan re-tomou a idéia de signo, e, após desarticular a relação significante/signifi-cado, interpretada pelo linguista como interfaces de uma mesma unidadehomogênea, propôs a idéia da primazia do significante e da lógica do sig-nificante como fato essencial à compreensão de sua teoria psicanalítica.Renovando a idéia saussuriana da identidade relacional dos signos, enfati-zou a idéia da "identidade" relacional dos significantes e subtraiu da ca-deia significante qualquer conteúdo semântico. A "barra" que separa o

significante do significado apontaria para a ruptura de Lacan com Saussu-re, na medida em que foi definida como o obstáculo ou resistência àsignificação1.

De Lévi-Strauss, Lacan reteve a idéia de simbólico, enquanto estru-tura composta de termos relacionais que fornecem a matriz lógica dos fa-tos culturais, independentemente do sentido ou significado que estes fa-tos venham a ter. O universo de regras formais levi-straussiano seria o qua-dro neutro e invariante que, de forma trans-histórica, explicaria não osconteúdos dos fenômenos culturais significativos, mas as leis de permuta-ção ou combinação de elementos sígnicos que condicionam o surgimen-to da significação. Este simbólico, na psicanálise, teria uma estrutura lin-guística, segundo a concepção lacaniana da linguagem, e precederia a exis-tência dos sujeitos e dos sentidos que acompanham esta existência. E, as-

sim como havia criticado a homogeneidade do signo saussiriano, barran-do o significante do significado, até obter a completa independência lógi-ca do primeiro, Lacan opôs-se igualmente à exclusão teórica do sujeitona cadeia estruturalista imaginada por Lévi-Strauss. No inconsciente estru-turado como uma linguagem, o significante é o que representa um sujeitopara outro significante. Não há cadeia significante sem sujeito, nem sujei-to sem cadeia significante. O sujeito é aquilo que está no intervalo entredois significantes, e é sinônimo do "desejo" que anima esta cadeia. Semeste sujeito e este desejo, a materialidade significante seria um substratodesvitalizado, incapaz de responder pela experiência psicanalítica do in-consciente, quando não pela experiência humana como um todo.

Desta maneira, Lacan buscava desviar-se de uma noção de lingua-

gem dependente dos sentidos e contingências históricas, dotando-a de umamaterialidade ao mesmo tempo universal, sem ser filosoficamente aprio-rística, e transcendental com respeito aos atos de fala, sem ser metafísicanem empiricamente ineficaz. A este propósito, diz ele: "A referência à ex-nnn 

(1) Meu objetivo não é ode refazer, ponto porponto, a trajetória de La-can, na fabricação de suateoria do "inconscienteestruturado como lingua-gem". Para isto, remeto oleitor aos trabalhos abai-xo mencionados, que,entre outros, reputo re-presentativos de uma"démarche" deste tipo eque considero respeitá-veis e confiáveis, do pon-to de vista intelectual. Ne-les é possível encontrartodas as referências quena obra de Lacan apóiama tese em questão. Quan-to aos autores, obviamen-

te, estão inocentados daleitura que faço da inter-pretação lacaniana do in-consciente, que é de mi-nha exclusiva responsabi-lidade. Os trabalhos sãoos seguintes: Dor, Joël, Introduction à  la Lecturede Lacan, Paris, Denoël,1985; Jorge, Marco Antô-nio Coutinho. "Roteirodo Pleroma; outra Passa-gem de Freud", in Clíni-ca Psicanalítica; Rio, A ou-tra Editora, nº 3, outu-bro, 1988, pp. 117-198;Lacoue-Labarthe, Philip-pe & Nancy, Jean-Luc,  LeTitre de la Lettre, Paris,Editions Galilée, 1973;Miller, Jacques-Alain, Per-curso de Lacan — uma in-trodução, Rio, Jorge Za-har Editor, 1987a; idem,

 Maternas I, Buenos Aires,Manantial, 1987b; idem, Maternas II, Buenos Aires,Manantial, 1988.

76 

Page 7: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 7/23

NOVOS ESTUDOS Nº 24 — JULHO DE 1989

periência da comunidade como à substância deste discurso [trata-se dodiscurso do parentesco] nada resolve, pois esta experiência retira sua di-mensão essencial da tradição que instaura este discurso. Esta tradição, bemantes que o drama histórico venha nela inscrever-se, funda as estruturas

elementares da cultura. E estas estruturas mesmas revelam uma ordena-ção das trocas que, mesmo inconsciente, é inconcebível fora das permu-tações autorizadas pela linguagem" (Lacan, 1966, pp. 495-496). Ou, ain-da, respondendo a Jean Hyppolite, que lhe perguntava:Hyppolite — Parece-me que o senhor, há pouco, muito justamente opôso universal ao genérico, dizendo que a universalidade estava ligada ao sim-bólico mesmo, à modalidade do universo simbólico criado pelo homem.Mas é então uma pura forma. Sua palavra universalidade quer dizer, pro-fundamente, que um universo humano atinge necessariamente a formada universalidade; que ele conduz a uma totalidade que se universaliza.Lacan — É a função do símbolo.Hyppolite — Mas isto responde à questão? Isto nos mostra simplesmenteo caráter formal que toma um universo humano.Lacan — Existem dois sentidos para a palavra formal. Quando se fala deformalização matemática, trata-se de um conjunto de convenções a partirdas quais pode-se desenvolver toda uma série de consequências, de teo-remas que se encadeiam e estabelecem, no interior de um conjunto, cer-tas relações de estrutura; uma lei, falando propriamente. Ao contrário, nosentido gestaltista do termo, a forma, a boa forma, é uma totalidade, masrealizada e isolada.Hyppolite — É este segundo sentido que é o seu, ou o primeiro?Lacan — É o primeiro, incontestavelmente. (Lacan, 1978 p. 47)

Portanto, no inconsciente estruturado como uma linguagem, e nalinguagem enquanto sistema ou estrutura simbólica, estaria a resposta pa-ra a natureza do inconsciente inventado por Freud e reinventado por La-

can. O inconsciente linguístico-simbólico, ou "langagier", como foi de-nominado, era um efeito deste simbólico entendido como a forma de to-da linguagem possível. Este Outro simbólico, heterônomo à consciência,ao. sujeito, à história e a toda e qualquer contingência significativa do mun-do humano, tal como aparece ao olhar e ao pensamento dos homens, es-te simbólico era a razão de ser do inconsciente: "Esta exterioridade dosimbólico em relação ao homem é a noção mesma de inconsciente" (La-can, 1966, p. 469). Só este Outro irredutivelmente Outro protegeria a psi-co" (Ogilvie, 1988, p. 122). Portanto, se estas conclusões são aceitáveis,Outro poderia explicar a novidade da teoria e prática psicanalítica. Poristo, quando Hyppolite perguntou a Lacan para que servia uma noção desimbólico, universalizante, formalista e convencional, que além de tudoera incapaz de explicar as "escolhas contingentes" feitas pelos homens

no universo de opções culturais, Lacan respondeu: "Ela me serve (a pala-vra simbólico) para expor a experiência analítica. Você pôde ver isto noano passado, quando mostrei que é impossível ordenar de forma corretaos diversos aspectos da transferência, se não partirmos de uma definiçãonnnnn 

77

Page 8: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 8/23

 AS SOMBRAS E O SOPRO

da palavra, da função criadora, fundadora, da palavra plena" (Lacan, 1978,p. 49).

É verdade, Lacan posteriormente recuou em relação à excessiva im-portância dada ao simbólico em sua teoria. Alguns de seus intérpretes di-

zem mesmo que o fundamental, na teoria lacaniana, são as concepçõesdesenvolvidas na etapa das investigações sobre o Real, e sobre os fenô-menos adscritos a este registro: gozo, angústia, objeto a, fantasma segun-do alguns etc. É possível que assim seja. De qualquer forma, a ênfase noReal, ao que tudo indica, não levou Lacan a desdizer o que afirmara ante-riormente sobre a linguagem e o Simbólico. E, mesmo levando em contao que foi dito em fases posteriores da elaboração teórica, penso que a no-ção de inconsciente estruturado como uma linguagem não teria dificulda-des em coexistir com afirmações de outra sorte, graças à invenção da to-pologia lacaniana, onde os três registros, real, simbólico e imaginário,imbricam-se de modo indissolúvel. Este é o sentido que dá Ogilvie à afir-mação de Lacan: "O real é o inconsciente... O inconsciente é o simbóli-co" (Ogilvie, 1988, p. 122). Portanto, se estas conclusões são aceitáveis,acho que é oportuno perguntar mais atentamente quais as consequênciaspara a teoria das afirmações feitas sobre inconsciente, linguagem esimbólico.

3. Das sombras ao sopro

Deixemos de lado, metodologicamente, a questão do Real e de suasrelações com a linguagem. Consideremos apenas sua relação com o Sim-bólico e o Imaginário. Quando aceitamos a idéia de linguagem como umconjunto de regras formais, que são a estrutura universal e elementar da

experiência humana, esta aceitação é feita às expensas da dimensão do Ima-ginário, como elemento constituinte desta estrutura. Na revisão que La-can fez de Saussure e na adesão ao formalismo de Lévi-Strauss isto ficaexplícito. A lógica do significante foi construída sobre os escombros dafaceta imaginária do sentido: "E fracassaremos na discussão da questão(a questão é a da semiose) enquanto não nos livrarmos da ilusão de queo significante responde à função de representar o significado. Digamosmelhor: que o significante, em sua existência, tenha que responder a títu-lo de qualquer que seja a significação" (Lacan, 1966, p. 498).

A afirmação é peremptória. Porém o imaginário, na acepção de sen-tido, significado ou significação, insiste em ter vez na cidadela da lingua-gem sitiada pelo simbólico. E isto de várias maneiras. Em primeiro lugar,a definição de estrutura simbólica equivale a uma espécie de "competên-

cia universal" do tipo chomskyana. Ao contrário de Saussure, Chomskyprocurou resolver o problema da gramaticalidade — isto é, a capacidadedos "falantes competentes para diferenciar e decidir quais são as formula-ções corretas e quais as desviantes" — e da criatividade— isto é, a "habi-nnnn 

78

Page 9: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 9/23

NOVOS ESTUDOS Nº 24 — JULHO DE 1989

lidade de cada falante competente para formar um número infinito de sen-tenças, a partir de um número finito de elementos" — sem recorrer a fa-tores psicológicos, como a intenção dos falantes (Steuerman, 1985, p. 114).Com este intuito, pensou em "construir uma teoria dedutiva da estrutura

da linguagem humana que fosse, a um tempo, suficientemente geral paraaplicar-se a todas as línguas (não somente a todas as línguas conhecidas,mas a todas as línguas possíveis) e, concomitantemente, não tão geral demodo a tornar-se passível de aplicação a outros sistemas de comunicaçãoou a qualquer outra coisa semelhante que poderíamos não desejar cha-mar línguas" (Lyons, 1976, p. 98). Donde sua busca dos "universais for-mais; ou seja, os princípios gerais que determinam a forma das regras ea maneira como operam dentro do contexto de gramáticas de línguas par-ticulares" (Lyons, 1976, p. 99).

Explicitando melhor o que foi dito. Ao usarmos uma frase qualquer,esta frase pode ter o mesmo teor descritivo que uma outra mas possuirum sentido diverso. Como mostra Stegmüller, uma frase do tipo "Vocêcome este bolo" pode ser enunciada no modo indicativo, interrogativo

ou imperativo (Stegmüller, 1977, pp. 439-440). Na terminologia wittgens-teiniana, seria dito que um mesmo "radical de frase" pode comportar vá-rios sentidos, conforme o uso. Mais que isso, a própria variação modalda frase é ainda uma maneira grosseira de apontar para uma infinidade desentidos possíveis, decorrentes do emprego concreto de expressões emcontextos específicos. Assim, nota Stegmüller, conforme Wittgenstein mui-tas coisas diversas são designadas, por exemplo, pela palavra descrição."Sob este rótulo há coisas tão heterogêneas como: descrever uma paisa-gem; descrever um quadro; descrever o decurso duma competição espor-tiva; descrever o que, no momento, estamos sentindo pelo tato (ou acús-tica ou visualmente); descrever um estado de espírito etc." (Stegmüller,1977, p. 448). E, continua o autor, tomando, agora, o caso da interroga-ção, "Para o que chamamos interrogações vale algo bem parecido; umainterrogação pode equivaler a um pedido para auxiliar a própria memória(como se chamava mesmo aquele senhor — oo...?); pode ocorrer na for-ma de colocação de um problema por parte de alguém que manifesta cu-riosidade investigadora; pode ser expressão de participação nos sentimen-tos de outrem (Você já está melhor?); pode expressar uma exclamação deentusiasmo (Não é fascinante isto?); ou em certos contextos pode até mes-mo envolver uma repreensão (Como é que você pôde pensar uma coisadestas sobre ele?)" (Stegmüller, 1977, p. 448).

Em suma, a gramática transformativa de Chomsky buscava expli-car como uma sentença declarativa, por exemplo, relaciona-se com umasentença interrogativa, de mesmo conteúdo descritivo, a fim de que o fa-lante possa compreendê-las ou empregá-las corretamente. Como se vê, a

semelhança da competência universal chomskyana com a linguagem laca-niana é grande. Ambas criam a idéia de uma estrutura universal e trans-histórica capaz de explicar os atos de fala particulares, sem passar pela in-tenção subjetiva dos falantes. Porém, a teoria de Chomsky foi criticadannnnn 

79

Page 10: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 10/23

AS SOMBRAS E O SOPRO

em vários aspectos, dos quais dois são particularmente interessantes. Aprimeira crítica veio da parte de Del Hymes. Avançando a noção de "com-petência comunicativa", este autor mostrou que a distinção feita porChomsky entre competência e desempenho ofuscava o fato de que a "com-

petência é um assunto não só de correta decisão gramatical mas de corre-ta apropriação do uso" (Steuerman, 1985, p. 116). Ao falarmos, diz Steuer-man, citando Hymes, mostramos ao mesmo tempo a habilidade de "quan-do falar, quando não, bem como o que falar com quem, quando, ondee de que maneira" (Steuerman, 1985, p. 116). Chomsky presta contas àgramaticalidade mas não ao gênero de criatividade que inclui a proprieda-de do uso.

A segunda crítica veio da parte de Habermas. Ainda segundo Steuer-man, Habermas critica a teoria de Chomsky, pelo seu apriorismo, mono-logismo e elementarismo. Destes três pontos assinalados, dois são impor-tantes para meu propósito: o apriorismo e o elementarismo. Habermas per-gunta, a respeito do apriorismo, como a idéia de estrutura universal e aprio-rística pode compatibilizar-se com a idéia de que o "campo semântico uni-

versal também pode refletir a universalidade de escopos específicos daexperiência?" (Steuerman, 1985, p. 118). Ou seja, como o universal aprio-rístico pode dar lugar aos futuros universais, nascidos de experiências par-ticulares? Esta crítica reforça uma outra feita por Habermas ao elementa-rismo da concepção de Chomsky. Habermas diz; que se Chomsky aceitaque o "conteúdo semântico de todas as possíveis línguas naturais consis-te na combinação de um número finito de componentes significativos",então esta afirmação é "incompatível com a proposição que afirma queo campo semântico pode ser formado e modificado em associação estru-tural com visões globais da natureza e da sociedade" (Steuerman, 1985,pp. 118-119). Ou seja, o elementar apriorístico não se concilia com a idéiade uma alteração do campo semântico a partir de mudanças holísticas, nasvisões globais de mundo.

Esta digressão feita em torno da teoria da competência universalnão tem por objetivo identificar a noção lacaniana de linguagem e simbó-lico às teorias de Chomsky. Ela ilustra apenas um tipo de dificuldade en-contrada por toda teoria que julga poder afirmar, de forma apriorística,a universalidade ou a estrutura universal de um certo tipo de linguagem.A teoria de Lacan, ao que entendo, esvazia, à primeira vista, certas obje-ções feitas a Chomsky, anulando a marca do sentido na estrutura simbóli-ca. Esta estratégia, no entanto, não dissipa equívocos; cria novas compli-cações. O simbólico enquanto estrutura, malgrado a eliminação do senti-do, não só continua oferecendo o flanco às críticas de Hymes e Haber-mas, como abre a guarda no "front" desguarnecido pela ausência da sig-nificação. O que cabe perguntar ao simbólico é se uma linguagem que de-

fine o sentido como secundário ou adventício é uma linguagem teorica-mente defensável.Quando se pergunta pelo sentido, na linguagem inconsciente, teo-

rizada por Lacan, a resposta é: o significante cria o significado. Nova per-nnn 

80

Page 11: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 11/23

NOVOS ESTUDOS Nº 24 — JULHO DE 1989

gunta: como o significante pode criar o significado, se ele próprio é a-significativo, e a cadeia em que está inscrito não dispõe de estoques designificação? A esta pergunta, replica-se: a) o sentido é estabilizado pelapontuação ou pelo corte, que mostram sua ancoragem nos "points de ca-

piton"; b) o sentido emerge na cadeia como um produto do sujeito e dodesejo; c) o sentido ou significado é criado retroativamente, quando a ca-deia significante, após atravessar o lugar do Código, reencontra, no per-curso inverso, o lugar da mensagem, e deste último lugar sai banhada designificação. Em um trabalho anterior, procurei mostrar como estas expli-cações padeciam todas de um mesmo defeito, qual seja, o de fazerem dosentido uma substância que escorre ao longo da cadeia significante, demodo justaposto e gratuito (Costa, 1989). No momento, não preciso reto-mar na íntegra aquele argumento, para demonstrar o quero dizer. É sufi-ciente assinalar que todas estas respostas dadas à questão da significaçãosão insatisfatórias, porque pressupõem a mesma presença ou precedênciado significante onde deveria haver um elemento heterogêneo em relaçãoà cadeia simbólica, capaz de justificar a produção do sentido, ausente da

estrutura não-significativa. Se tomamos o caso do desejo e do sujeito estainsuficiência fica patente. O sujeito e o desejo são tidos como responsá-veis pelo advento do sentido. Mas como isto é possível se estes mesmoselementos foram previamente definidos como não possuindo nenhum atri-buto com consistência imaginária? Se a única propriedade aplicável ao su- jeito e ao desejo é a de se fazerem representar por significantes a-semânticos, como podem eles, de um momento para outro, produzir sen-tido? O raciocínio é circular. É como se a teoria não quisesse abdicar daautonomia do significante, mas, obrigada a curvar-se ante a evidência deque a linguagem, não obstante o teórico, teima em significar, reenviassesempre a um outro significante a tarefa de explicar a presença do incômo-do visitante. A impressão que se tem é a de um jogo de prestidigitação,onde os sucessivos passes de mágica procuram fazer com que o especta-dor esqueça que o coelho sempre esteve na cartola. O resultado é queo sentido, se seguirmos à risca a lógica do significante, não teria absoluta-mente por que existir. Se os termos implicados na cadeia simbólica res-pondem plenamente pela existência do sujeito, do desejo, da falta, da cas-tração, da experiência humana, da demanda de análise e do final de análi-se, não se vê bem como e por que a linguagem teria que inventar esta com-plicação a mais, chamada sentido. Sem o sentido; sem esse capricho des-necessário da linguagem, a lógica do significante seria perfeita. Feliz ouinfelizmente não é assim que acontece. E porque não é assim que aconte-ce, a autonomia do significante acaba por transformar a semiose num pro-cesso misterioso, necessário à vida mas não à teoria, e que só uma alqui-mia ainda mais estranha pode tentar explicar.

Não penso, é obvio, reabilitar a caduca noção mentalista de queo sentido está, desde sempre, inscrito num lugar da "mente" ou do"inconsciente-mente", prestes a vir à tona, quando num futuro qualqueristo se fizer necessário. Esta idéia, Wittgenstein comparou-a àquela outrannnn 

81

Page 12: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 12/23

AS SOMBRAS E O SOPRO

onde se diz que todos os movimentos possíveis de uma máquina estãoinscritos na estrutura das peças, a título de esboço ou de sombras poten-ciais dos movimentos atuais (Wittgenstein, 1979, pp. 84-85). Como resu-me McGinn: "Wittgenstein (no exemplo da máquina) está diagnosticando

aqui a concepção equivocada que estamos dispostos a assumir, a respeitodaquilo que é realmente ausente, mas possível ou futuro: tendemos a pen-sar no ausente como realmente presente sob a forma de sombra, de talforma que, quando o possível é atualizado, existe algo como uma revela-ção do que já existia" (McGinn, 1984, p. 9). Esta noção de sentido ou sig-nificação, Lacan procurou, de modo justo, superar quando despiu o in-consciente estruturado como uma linguagem de conteúdos profundos ouenterrados. No entanto, a crítica à teoria mentalista do sentido não temque necessariamente apelar para negação da dimensão significativa da lin-guagem por medo do mentalismo ou do psicologismo. Subir o Everestdo formalismo é a única maneira de olhar à distância o Olimpo dametafísica?

Em segundo lugar, a noção universalista de linguagem, como es-

trutura formal isenta de sentido, também parece sujeita a um outro tipode objeção. A teoria da linguagem, em Lacan, caminhou pouco a poucoda linguística para a lógica, procurando radicalizar a autonomia do signifi-cante e do simbólico, diante do sentido e do imaginário2. Sob este as-pecto, Miller dizia: "A diferença entre lógica e linguística é que a lógicanão pretende levar em conta os efeitos do significado; ocupa-se do signi-ficante puro, quer dizer, do significante enquanto não quer dizer nada"(Miller, 1988, p. 9). Implícita no raciocínio está a idéia da desvinculaçãodas formulações lógicas dos sentidos existentes nas chamadas linguagensordinárias. Ora, esta tendência a atrelar o simbólico à lógica, supondo queassim estaria garantida sua autonomia em relação às significações imaginá-rias das sentenças da língua corrente, também é discutível. Ela reproduz,em outra clave, a tentativa de liberar-se da linguagem cotidiana, feita porcertos representantes da filosofia analítica.

Foi contra esta concepção altamente abstrata e indefensável da na-tureza da linguagem que Wittgenstein insurgiu-se. Comentando o parágrafo242 das investigações filosóficas, McGinn diz que a lógica não precedeo emprego de expressões na linguagem ordinária, como também não éuma construção idêntica às construções desta linguagem (McGinn, 1984,p. 57). É um jogo de linguagem que funciona como uma espécie de "mé-todo de medição" diante do "resultado de medição" que são as lingua-gens correntes. Mas, diz McGinn, "método e resultado não são totalmen-te independentes, porque nós só olhamos uma operação como um méto-do de medição se ela nos dá uma certa constância de resultados" (ibid.).Da mesma forma, as relações lógicas entre expressões da linguagem ordi-

nária só são admitidas como válidas com base em justificações proferidasnesta linguagem. Stegmüller é ainda mais claro. Comentando, wittgens-teinianamente, a pretensão da filosofia analítica de construir uma lingua-gem precisa, onde os equívocos das línguas correntes fossem abolidos,nnnnnn 

(2) Naturalmente, nãopenso reduzir o empregoda lógica na teoria de La-can a este aspecto. Comomostram Forbes & DaCosta (1987, pp. 103-111)e Da Costa (1989, pp.32-33), a lógica, em psica-nálise, serve para o "es-clarecimento" de certasquestões da teoria psica-nalista; para a "sistemati- zação" de outras e, enfim,para permitir a "formali- zação" de certas invarian-tes dos relatos clínicos(Forbes & Da Costa, ibid.p. 103). No exemplo deMiller chamei apenas aatenção para um dos usospossíveis da lógica. Em-bora não esteja pessoal-mente convencido dasvantagens de se tentar

formalizar as "linguagensequívocas" em que nós,psicanalistas, discutimosnossas teorias e experiên-cias, admito que se possafazer uso da lógica deuma maneira analógica, afim de facilitar a transmis-são de idéias. Assim, porexemplo, certas afirma-ções que, em linguagemordinária, parecem ou sãocontraditórias ou parado-xais, são melhor entendi-das quando se recorre aoartefato das lógicas hete-rodoxas. Mas isso não é omesmo que afirmar a su-perfluidade das lingua-gens ordinárias e semequívocos. Da Costa,Newton. Entrevista in Is-so —  Despensa Freudia-na, Belo Horizonte, s/ed.,

(l):32-33, 1989; Forbes,Jorge F. & Da Costa, New-ton, CA., "Sobre Psicaná-lise e Lógica", Falo, Salva-dor, Fator Editora(l):103-111, jul., 1989.

82

Page 13: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 13/23

  NOVOS ESTUDOS Nº 24 — JULHO DE 1989

e os critérios de validade ou verdade das afirmações pudessem ser testa-dos de maneira segura, afirma: "esta liberdade inexiste, por certo, quan-do os axiomas e as regras são formulados de modo absolutamente preci-so, por exemplo, num sistema completamente formalizado da lógica ma-

temática. Wittgenstein observaria, a propósito, que a idéia de regras abso-lutamente precisas não passa de uma ficção. Com efeito, o uso dessas re-gras deve ser previamente elucidado com auxílio da linguagem corrente.Embora as expressões usadas possam, por sua vez, receber ulterior eluci-dação, e assim por diante, os esclarecimentos não deixarão de terminarem algum ponto. Seja qual for o ponto em que me detenha, devo contarcom o perigo da multiplicidade de possíveis interpretações... Jamais pos-so formular regras que governam o uso de palavras (da linguagem corren-te ou duma linguagem artificial) sem que reste margem para diferentes in-terpretações" (Stegmüller, 1976, p. 520). Bouveresse estende este argu-mento até o caso da matemática, para mostrar como a independência daslinguagens formais, em relação às linguagens ordinárias, é, segundo Witt-genstein, um mito (Bouveresse, 1987b, p. 133).

Lacan tentou desfazer esta dificuldade, mostrando como o linguis-ta, o filósofo analítico e o próprio lógico procuram, cada um a seu modo,suturar a falta do sujeito e do Outro. Voltando-se para o modelo das lógi-cas paraconsistentes, como mostrou Miller (1987b; 1988), a teoria quis,a um só tempo, erigir a lógica do significante como "lógica da origem dalógica" (Miller, 1988, p. 55) e como lógica que respeitava a "rebeldia" dalinguagem ordinária — "lalangue" de Lacan — diante da tentativa de for-malização de um Chomsky ou de um filósofo analítico como Russel (Mil-ler, 1987a, pp. 59-78). Noções como a de "multiplicidades inconsisten-tes", de Cantor, ou de "inconsistente", poderiam segundo este autor res-ponder às necessidades teóricas da psicanálise (Miller, 1988). Não tenhonenhuma competência para julgar afirmações referentes ao domínio daslógicas paraconsistentes. O que me ocorre perguntar é se mesmo estas ló-gicas podem anular o terreno prévio das linguagens ordinárias como fon-te de justificação de suas asserções. Se não podem — e conforme Witt-genstein isso não poderia acontecer —, então o problema não foi resolvi-do; foi diferido. Também as lógicas paraconsistentes são dependentes doscontextos ordinários em que se produzem os "jogos de sentido".

Aliás, esta dependência da "lógica do significante" em relação aos jogos de sentido mostra-se claramente em certos momentos da obra deLacan, onde se tenta provar o contrário. Tomemos o famoso caso dos ba-nheiros, analisado na "instância da letra no inconsciente" (Lacan, 1966,pp. 493-528). Dois banheiros, exatamente iguais, são encimados por ins-crições HOMMES — DAMES. Abaixo da palavra HOMMES, em vez da si-lhueta masculina, existe uma porta igual à outra, situada embaixo da pala-

vra DAMES. Para Lacan, a silhueta seria o referente, o significado que "fal-ta", e que mostra, à diferença de Saussure, a autonomia do significanteem relação ao significado. Em seu entender, no lugar do significado, o queexiste é simplesmente a barra que resiste à significação. Para comprovarnnnn 

83

Page 14: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 14/23

AS SOMBRAS E O SOPRO

a primazia do significante e a secundaridade do sentido, Lacan afirma queprimeiro o sujeito acede às marcas puras, diferenciais do significante e emseguida descobre o sentido. Ou ainda, primeiro o sujeito entra — melhorseria "é entrado" — na lei simbólica da segregação sexual ou segregação

urinária, para depois ingressar no universo do sentido, ou seja, escolherum ou outro banheiro em função do seu sexo. É dito que os significantesHOMMES e DAMES, indicados pelas letras H e D, não têm referentes dis-tintos, donde infere-se que o significado é precipitado pela entrada na or-dem significante; na ordem da diferença sexual. É por isto, diz ele, quemesmo um míope não necessitaria decodificar o significado para escolhero banheiro que lhe conviesse.

A imagem vale o que vale. Ela pretende ser uma metáfora da prima-zia do significante, da cadeia simbólica da linguagem, em relação aos efei-tos de sentido e à própria situação subjetiva diante da lei das diferençasdos sexos. Porém, o que encerra contradições não pode funcionar bem,nem mesmo como metáfora. O que está omitido neste exemplo é que osentido está presente do início ao fim da situação analisada. O que nãoexiste é uma determinada convenção significativa, ou melhor, uma deter-minada maneira de entender-se como o sentido de uma palavra é forma-do. Quando Lacan afirma que as palavras HOMMES e DAMES não têm sig-nificado, porque não são ilustradas pelas silhuetas do homem e da mu-lher, está restringindo, ad hoc, a noção de sentido. Está afirmando, sub-repticiamente, que o sentido de uma palavra é dado por seu referente os-tensivo, no caso, as figuras masculina e feminina. Entretanto, esta é umamaneira parcial de abordar o problema da significação. A idéia de que osentido de uma palavra ou signo linguístico é dado pela coisa ostensiva-mente designada, ou pela imagem mental da coisa, foi abundantementecriticada por Wittgenstein, assim como por seus sucessores e comentado-res (Arregui, 1984; Baker & Hacker, 1983; Delgado, 1986; Janik & Toul-

min, 1973; Kenny, 1973; Lecourt, 1981; Bouveresse, 1971, 1973; More-no, 1985/1986; Pears, 1983; Gargani, 1988). Uma palavra pode estar satu-rada de sentido sem precisar de nenhum referente ostensivo ou de ne-nhuma imagem mental que venha ilustrá-la. Uma frase do tipo "esta de-monstração não é convincente", por exemplo, é uma frase com sentido,na língua portuguesa, e não exige nenhum referente ostensivo ou imagemmental concomitante para ser compreendida. O sentido pode fazer-seacompanhar de imagens mentais ou designação ostensiva de coisas, masisto não é condição sine qua non da significação.

O exemplo dos banheiros parece-me tanto mais impróprio, quan-to sequer descartou a idéia da "imagem mental" do homem e da mulher,associada às palavras HOMMES — DAMES, ou às letras H e D. Detendo-sena falta das silhuetas masculina e feminina, a demonstração de Lacan fica

ainda mais frágil. Em minha opinião, se o homem escolhe um banheirode homens, embora este banheiro seja exatamente igual, por fora, ao ba-nheiro de mulheres, diferindo apenas na letra H ou na palavra HOMMESque encima a porta, não é porque acedeu à lei de segregação urinária atra-nnn 

84

Page 15: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 15/23

NOVOS ESTUDOS Nº 24 — JULHO DE 1989

vés dos significantes sem-sentido. É porque esta lei foi aprendida por meiode exemplos concretos, com sentidos convencionais, onde as letras H eD, escritas em cima de portas, em certos lugares públicos, significam "ba-nheiro para homens" ou "banheiro para mulheres". Este acesso ao uso

correto de banheiros ou lugares públicos não é um efeito fantasmagóricoda precipitação do sentido pela ação do significante. Tal apreensão do sen-tido inscreve-se numa prática social, que, embora fundada nas estruturaselementares do parentesco, não pode prescindir do concurso do sentidopara exercer sua eficácia. Para efeito de contra-argumentação, podemosimaginar exemplos que contrariam o que foi afirmado. Suponhamos queum sujeito estivesse visitando uma nave espacial, e não um restaurante,um museu, um cinema, um estádio de futebol, uma biblioteca, um aero-porto, ou qualquer outro lugar público obrigado a ter banheiros coleti-vos. Nesta nave, os signos utilizados para distinguir banheiros de homense mulheres seriam   e   , signos que lhe eram desconhecidos. Da mesmaforma, as portas de entrada, em vez dos tradicionais retângulos verticais,seriam portas ovais e horizontais, para maior comodidade dos astronau-

tas. O sujeito poderia facilmente identificar os sinais   e   como sinaisde "perigo", "material tóxico", "eclusas de ar", "sala de comando", "sópara técnicos" etc., o que não ocorreria com os astronautas. A diferençasignificante estaria presente; a lei da segregação urinária também, e nempor isso haveria a precipitação do sentido, através do acesso imediato dosujeito à coerção simbólica. Desconhecendo as convenções significativasrelevantes para a navegação espacial, o sujeito seria incapaz de apreendero sentido dos sinais, e não conseguiria decidir que banheiro usar.

O mesmo poderia acontecer num hipotético aeroporto brasileiroque decidisse separar banheiros de homens e mulheres, em duplas de doisbanheiros juntos para homens e dois banheiros juntos para mulheres. Ca-da dupla de banheiros estaria dividida em primeira classe e segunda clas-se. Nos banheiros de primeira classe as letras estariam em inglês e nos desegunda classe, em português. Aqui também, quem desconhecesse estaconvenção não teria como decidir em que banheiro entrar. Uma mulherpoderia entrar no banheiro encimado pela letra M (de "man", em inglês,suponhamos) achando que equivalia a "mulher" em português... A bana-lidade e improbabilidade destes exemplos não anulam seu valor de contra-argumentação. O essencial, no caso, é mostrar que uma regra não funcio-na como regra por suas propriedades intrínsecas de regra. Uma regra éregra porque a empregamos como tal, em contextos significativos.Pergunto-me se Lacan, procurando afirmar a todo preço a primazia do sig-nificante ou da lógica do significante, não tropeça na armadilha da "esca-da" de Wittgenstein. Isto é, serve-se do sentido para alcançar a "a-significância" e, uma vez no alto, joga fora a escada, afirmando que não

precisou de degrau para atingir o topo.Em terceiro lugar, penso que a concepção de linguagem como re-presentante do simbólico é questionável por um outro motivo. Pensemosbem no que significa simbólico em psicanálise. O simbólico, também de-nnn 

85

Page 16: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 16/23

AS SOMBRAS E O SOPRO

finido como o Outro, o tesouro dos significantes ou o lugar do Código,é algo que não pode ser apreendido e aceito como um derivado de obser-vações ou proposições empíricas. Por princípio, o simbólico não é inferí-vel do que convencionamos chamar de "fatos", já que precede não só

a consciência das coisas e estados de coisas, como é a condição de possi-bilidade do próprio sentido que existe nas proposições sobre as coisas domundo. O simbólico não é uma teoria articulada pelo sujeito cognoscen-te sobre a realidade. Esta teoria, em linguagem lacaniana, seria, no máxi-mo, um discurso universitário, representante da demanda imaginária, quepretende suturar a falta no Outro e no sujeito. Mas, se o simbólico nãoreleva da atividade cognoscitiva, nem tampouco é conhecido de maneirabruta pelos sentidos, como pôde então ser pensado e postulado teorica-mente como um registro fundador da experiência humana? Penso que sóexiste uma maneira de entender a natureza do simbólico, que é descrevê-lo ou defini-lo como algo que se dá ou se impõe de imediato ao sujeito.Algo que se dá de imediato é algo acerca de que temos certeza absoluta;algo que aparece como imediatamente verdadeiro3. Uma proposição

qualquer sobre coisas ou estados de coisas é algo de que podemos duvi-dar. É algo que podemos criticar, retificar, corroborar, falsificar, em su-ma, afirmar como válida ou como falsa ou verdadeira. O imediatamentecerto, pelo contrário, é algo que se impõe de forma cogente como verda-de. O simbólico seria, então, uma verdade necessária; uma certeza incor-rigível e indubitável.

Porém, o que viria a ser algo imediatamente certo, indubitável eincorrigível? Não poderia ser a substância pensante de Descartes. Lacan já a tinha despedido como uma ilusão do sujeito pensante ou do sujeitodo enunciado. Seria, então, a certeza da existência do sujeito e a certezada existência do Outro? Admitamos esta conclusão. O simbólico dá-se co-mo certo, indubitável e incorrigível na emergência dos significantes dosujeito e do desejo do Outro. Contudo, esta conclusão traz consigo a pre-missa de que existe em nossa experiência um "naturalmente dado" sobreo que não podemos enganar-nos. E este naturalmente dado só pode ser:a) ou uma propriedade daquilo que conhecemos; b) ou uma propriedadedo modo como conhecemos.

No primeiro caso, a propriedade em questão diz respeito ao fatode a coisa conhecida ser tal como aparece. Ou seja, não podemos enganar-nos sobre ela, porque nela coincidem aparência e realidade. O simbólico,a rigor do termo, não se faz representar, se entendemos por representa-ção um "fato que constitui um ponto de vista sobre outro fato", situadoem um "outro lugar da realidade" (Bouveresse, 1987a, p. 121). Se o sim-bólico fosse uma representação de uma coisa distinta dele próprio, pode-ria ser falso ou verdadeiro. Ora, já vimos que, para ser incorrigível e indu-

bitável, o simbólico deve ser concebido como uma entidade cuja proprie-dade definitória, por excelência, é a indiscernibilidade entre aparência erealidade. No segundo caso, o indubitável e o incorrigível é o que é co-nhecido de modo não-inferencial. Quer dizer, não só não posso enganar-nnnn 

(3) A argumentação con-tida neste tópico é inte-gralmente baseada nostrabalhos de RichardRorty. Limito-me, portan-to, a enviar o leitor àsobras deste autor, restrin-gindo as referências bi-bliográficas, no corpo dotexto, exclusivamente àspassagens em que houvercitação literal de Rorty.Rorty, Richard, Conse-quences of Pragmatism,Brighton, Sussex, TheHarvester Press, 1982;idem,  A Filosofa e o Es- pelho da  Natureza, Lis-boa, Dom Quixote, 1988.

86

Page 17: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 17/23

NOVOS ESTUDOS Nº 24 — JULHO DE 1989

me quanto àquilo que conheço, dada a propriedade da entidade de mostrar-se como "coisa" diretamente presente à mente (Rorty, 1988, p. 32), co-mo conheço esta propriedade fenomenal de um modo não derivado deproposições básicas anteriores.

Entretanto, como mostra Rorty (1982, 1988) temos razões de so-bra para suspeitar da filiação metafísica deste modo inequívoco e imedia-to de conhecer uma coisa absolutamente verdadeira. O simbólico, enten-dido não como uma invenção da imaginação dos homens, mas como aqui-sição de certezas indubitáveis e incorrigíveis, conhecidas de forma não-inferencial, aproxima-se muito do que poderia ser uma variante do hilo-morfismo grego. Na concepção hilomórfica, o conhecimento não consis-tia na posse de representações mentais das coisas do mundo, mas na iden-tificação do sujeito cognoscente com a coisa conhecida (Rorty, 1988:45).A tradição aristotélica afirmava que as formas substanciais do ser do ca-chorro, da estrela ou do triângulo, por exemplo, penetravam no intelectoe permaneciam nele como permaneciam no cachorro, na estrela e no triân-gulo reais. O hilomorfismo concebia a apreensão dos universais como ins-

tanciação em nosso intelecto daquilo que o cachorro instanciava em suacarne, a estrela, em sua massa incandescente, e o triângulo, em seus trêsângulos.

Acredito que este pressuposto é o que nos leva a aceitar a idéia deum simbólico conhecido não-inferencialmente, e que, ao ser conhecido,encarna a forma substancial no sujeito que conhece. O sujeito sabe, masnão sabe que sabe, pois saber, neste caso, não significa comparar a repre-sentação mental com a coisa real, através do "olho da mente", e sim tera substância como parte do intelecto. Ou seja, ele tem o "conhecimentode", mas não o "conhecimento de que", e o primeiro tipo de conheci-mento é uma transação direta entre sujeito e objeto, que prescinde da me-diação de proposições secundárias ou inferenciais para se estabelecer. Tra-duzindo para a psicanálise, poder-se-ia dizer que o sujeito marcado pelosignificante, ao cometer atos falhos, produzir sintomas ou associar livre-mente, mostra como foi identificado e identificou-se a este significantedo discurso do Outro.

A idéia é engenhosa e fascina pela audácia, o que não basta paratorná-la imune a críticas. Podemos pensar, perfeitamente, que não exis-tem entidades que nos convocam a ver, de modo não-inferencial, sua in-dubitabilidade e incorrigibilidade. Podemos pensar que, em vez de coisasindubitáveis e incorrigíveis, o que existem são descrições, declarações ouimpressões que consideramos como tais (Rorty, 1988, p. 89). Acreditarque existem coisas que são absolutamente verdadeiras porque delas nãopodemos duvidar é uma crença opcional e não compulsória. Esta crençaou premissa pode ser contestada com base na alternativa de que acreditar

que algo é indubitável e incorrigível é a mera expressão de nossa confian-ça, fundada na experiência de debates sobre tais questões, de que não en-contramos, até o momento, objeções sólidas para refutá-las. Se, ao invésde darmos crédito ao aristotelismo, pensarmos que a consciência não-nnnnnn 

87

Page 18: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 18/23

 AS SOMBRAS E O SOPRO

inferencial de fatos ou premissas é mais uma prática social, ou exercíciode "vitória argumentativa", como disse Rorty (1988, p. 128), do que umcontato imediato com uma entidade que possui a propriedade de ser in-dubitável e incorrigível, não precisamos do aparato teórico da metafísica

greco-cartesiana para afirmar que certas impressões ou descrições se nosaparecem como incorrigíveis ou indubitáveis. Uma vez mais, citando Rorty:"O que conhecemos de modo não-inferencial depende daquilo com queestamos familiarizados" (Rorty, 1988, p. 89). A alma, a existência de Deus,a idéia de sensação, de mente e do sujeito cartesiano, já foram tidas comoindubitáveis e incorrigíveis. Hoje, inúmeras teorias negam tal privilégioepistêmico a estas idéias, inclusive a psicanálise.

Pergunto se aceitar a idéia de um simbólico aprioristicamente apre-sentado como fundador das linguagens ordinárias, por ser conhecido in-dubitável e incorrigivelmente, não é uma forma de recusar o que Rortyderia se admitisse que não existe linguagem fora do sentido ou do imagi-expressas Verdades Imortais?" (Rorty, 1982, p. x.li). Pergunto se aceitara idéia de um simbólico, transcendentalmente onipresente, ainda que sob

o modo da falta, e que desdenha o vocabulário imaginário em que encon-trou sua justificação, não significa afirmar a existência de um sopro etéreoque anima as linguagens com sentido, sopro este capaz de existir além dossignificados visíveis, audíveis, corrigíveis e dubitáveis do mundo huma-no? Pergunto, em terceiro lugar, se fugir das sombras da acepção menta-lista do sentido, para refugiar-se no hálito translúcido e invisível da faltae da certeza da falta, é, de fato, um bom negócio intelectual. Este simbóli-co não será, por acaso, mais um herdeiro da Arché platônica, imóvel emsua realidade primordial, com o adendo de um furo, por onde o soprodivino faz desfilar as formações imaginárias dos comuns dos mortais? Fi-nalmente, última pergunta: este simbólico não será a última fortaleza, on-de vem esconder-se uma noção de verdade, que busca ser algo mais que"as crenças que não são úteis" ou "aquilo em que temos boas razões paraacreditar"? (Rorty, 1988, p. 19).

Ao contrário desta concepção de linguagem, que se perde nos con-fins de um simbólico indizível, posto que é a condição transcendental detodo dizer, penso que a psicanálise, inclusive aquela de Lacan, nada per-deria se admitisse que não existe linguagem fora do sentido ou do imagi-nário. Mas entenda-se bem, isto não é o mesmo que dizer que existe umregistro imaginário topologicamente ligado ao registro do simbólico e doreal. Isto quer dizer que só podemos ter acesso à linguagem através dos jogos de sentido. Isto quer dizer que não temos como provar nossa capa-cidade de ter acesso privilegiado a "pressuposições suscetíveis de seremdescobertas a priori" (Rorty, 1988, p. 19), e que seriam o fundamento sim-bolicamente a-semântico do sentido, a não ser recorrendo ao dogmatis-

mo metafísico. Como bem observou Rorty (1982, pp. 101-201), trocar o"fantasma na máquina" das "representações mentais" pelo "fantasma en-tre as linhas", acrescentaria eu, das "representações significantes", nãoé nenhum negócio da China. Aqui, ousaria voltar Lacan contra Lacan, di-nnn 

88

Page 19: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 19/23

NOVOS ESTUDOS Nº 24 — JULHO DE 1989

zendo que a invenção do simbólico não prova que a cadeia significanteé o alicerce fundacional de epifenômenos empíricos; prova, uma vez mais,a rebeldia e a imprevisibilidade de "lalangue". Imaginar que através dosentido — e só pode ser através dele — acedemos ao in-justificável, por-

quanto indubitável e incorrigível, parece-me tão factível quanto imaginarcomo seria o mundo aquém ou além da linguagem.

Fique claro, não tenho intenção alguma de trocar a "lógica do sig-nificante" por uma eventual "lógica do sentido". Esta tarefa supérflua equi-valeria, como no exemplo de Wittgenstein, a testar a veracidade da infor-mação de um jornal recorrendo a outro exemplar do mesmo jornal. Osentido não é mais fundamental que o significante, pelo simples fato deque não existe na linguagem algo "mais fundamental", que seja a "funda-ção" de todos os outros aspectos dos fatos linguísticos. Linguagem nãotem fundação nem é fundação, se por este termo pretende-se falar do se-dimento último e primeiro da experiência humana. Linguagem é um ins-trumento que expõe e faz parte de uma "forma de vida, repetiria com Witt-genstein. Falamos e empregamos palavras porque sem elas estamos priva-

dos de agir, pensar e sentir conforme determinadas categorias meios-fins.Sem a linguagem não saberíamos como resolver certos problemas e atin-gir certos objetivos, porque não existem 'problemas' nem 'objetivos' semlinguagem. É porque empregamos este instrumento chamado linguagemque nos damos conta de que a 'maneira pela qual as pessoas falam podecriar objetos', no sentido de que uma série de coisas não existiriam, seas pessoas não falassem de uma certa maneira" (Rorty, 1986b, p. 42). Éainda porque empregamos a linguagem que descobrimos como idéias quetemos a respeito do que somos, de onde viemos, para onde vamos, comoe por que somos da maneira que somos etc., foram, em grande parte, her-dadas daquilo que nos foi dito por outros que nos precederam no usoda linguagem. Por estas e outras razões, é entendível que se defenda a no-ção de inconsciente estruturado como uma linguagem.

Varrendo a poeira metafísica de Freud, Lacan pôs a psicanálise nocompasso da modernidade, prestando-lhe um enorme serviço. Depois dele,caiu definitivamente em desuso um certo modo ingênuo de falar de "re-presentações de coisa e de palavra"; "intenções inconscientes"; "instin-tos agressivos ou destrutivos"; "pensamentos inconscientes"; "atavismosfilogenéticos" etc. Todas estas expressões, além da própria idéia de fanta-sia como réplica fotográfica de resíduos sensoriais, ou de inconsciente co-mo espelho oculto, embaçado e distorcido por pulsões, a ponto de repre-sentar como anjos ou monstros as aparências das coisas e pessoas, poisbem, depois de Lacan, todas estas metáforas ganharam o devido lugar. Dei-xaram de ser aceitas como descrições realistas do que supostamente sepassa no "interior do sujeito", para tornarem-se um vocabulário útil, em-

pregado para resolver certos problemas, ou para que nós, psicanalistas,possamos entender-nos, quando falamos de certos assuntos. Destruindoo "mito da interioridade", Lacan liberou-nos do compromisso com a mentee com as entidades mentais. Mas não vejo em que a concepção mentalistannn 

89 

Page 20: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 20/23

AS SOMBRAS E O SOPRO

do inconsciente, imaginado por Freud como um arquivo fotográfico, quenão podemos consultar quando queremos porque o porteiro não nos deixaentrar; não vejo em que esta concepção pode ser substituída com provei-to pela concepção formalista de um arquivo kafkiano, repleto de signifi-

cantes a-semânticos, ou de máquinas cibernéticas codificadas em sistemasbinários, onde falta sempre um elemento, que impede os arquivos de for-necerem informações com sentido. Em meu ponto de vista, isto significacomprar o peixe em cruzados antigos, vendê-lo pelo mesmo preço emcruzados novos, e pensar que lucrou-se alguma coisa com a transação.

Penso que faz tanto sentido dizer que no inconsciente existe "sen-tido", quanto dizer que não há sentido e sim significantes a-semânticos.Estas duas fórmulas procuram afirmar metafisicamente a existência de al-go que certas correntes behavioristas, por exemplo, pretenderam, de mo-do igualmente metafísico, negar. Se no inconsciente existe sentido ou não-sentido, ou ainda, como quer Laplanche, "representações coisificadas decoisas ou palavras", esta parece-me uma interrogação secundária. Não pre-ciso saber se a disposição instintiva da aranha para comer moscas está ins-

crita em seus palpos ou patas, a título de arquivos de imagens ou arquivosde engramas, para constatar que tal disposição tende a repetir-se diantedas moscas, e tomar as medidas necessárias para resolver o problema, ca-so isto seja preciso. Da mesma forma, não preciso afundar-me em especu-lações metafísicas, sobre a natureza do inconsciente, para entender que,à revelia das intenções conscientes do sujeito, algo que não é instintivoobriga-o a agir, sentir e pensar de uma certa maneira. A idéia de que o"inconsciente é estruturado como uma linguagem" é importante porquemostra que, o que quer que nos impulsione a sentir, pensar e agir, inde-pendentemente dos móveis conscientemente conhecidos, não pode dei-xar de ter um substrato linguístico. A menos que se aceite a idéia impro-vável e falaciosa de que hormônios ou circuitos neuroquímicos são, aomesmo tempo, causa e justificação da produção do imaginário humano.Fora disso, a concepção do inconsciente como linguagem aposentou, deuma vez por todas, as premissas e consequências mentalistas, existentesno equipamento teórico psicanalítico. Já não conseguimos olhar com amesma inocência para as idéias de fantasias, afetos e representações comosucedâneos da idéia de mente como espelho do mundo. Mas, entre dizerque encontramos um vocabulário bem-sucedido ou uma hipótese plausí-vel, para lidar, com as psicopatologias da vida cotidiana ou com as psico-patologias "tout court", e dizer que conhecemos de modo apriorístico,indubitável e incorrigível aquilo que está além da imaginação e é funda-mento da verdade, a distância é enorme.

Para entender que a palavra tem uma enorme força criadora ou po-tência fundadora na vida dos sujeitos, não precisamos fazer delas um dom

de Zeus ou do simbólico "zeificado". Não é apenas sobre os homens quea palavra age. Com as devidas mediações técnicas, as palavras também agemsobre átomos e genes, e disto nenhum físico ou biologista jamais concluiuque existe um simbólico conhecível de modo indubitável e incorrigível.

REFERÊNCIAS

Arregui, Jorge Vicente. Acción y Sentido en Witt-genstein. Pamplona, Edi-ciónes Universidad Na-varro, 1984.

Baker, G.P. & Hacker,P.M.S. Wittgenstein — Meaning and Understan-ding. Bristol, Basil Block-well, 1983.

Bouveresse, Jacques. LaParole  Malhereuse. Pa-ris, Minuit, 1971.

— — — Wittgenstein: la Re-vue et la Raison, Paris,Minuit.— — —  Rationalité etCynisme. Paris, Minuit,1984.— — —  Le Mythe de l' In-teriorité. Paris, Minuit, 1987a.

— — — La Force de la Règle, Paris, Minuit, 1987b.

Costa, Jurandir Freire. "ARazão (científica) Segun-do Rouanet",  Reverso,Belo Horizonte, CírculoPsicanalítico de Minas Ge-rais. (27): 139-47, dez,1988.— — — Psicanálise e Con-texto Cultural — imaginá-rio psicanalítico, grupos e psicoterapias, Rio, Cam-

pus, 1989.

Da Costa, Newton, CA.Entrevista.  Isso —  Des- pensa Freudiana, BeloHorizonte, s/ed.(l):32-33, 1989.

90

Page 21: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 21/23

  NOVOS ESTUDOS Nº 24 — JULHO DE 1989

A noção do inconsciente estruturado como uma linguagem parece-me, semdúvida, uma noção mais atual e mais feliz que a idéia de "inconscienteinstintivo", ou de "inconsciente-coisa", ou de "inconsciente como arquivode fantasias". Mas não vejo necessidade alguma de derivar a existência de

uma linguagem sem-sentido desta idéia. Uma linguagem sem sentido é ummartelo de espumas ou uma cadeira de nuvens. Nada, evidentemente, nosimpede de imaginá-la. Porém, no instante em que ela deixar o céu das idéiase vier para o mundo dos homens, sua força, enquanto instrumento, faráda espuma ferro e da madeira, couro. E se em certas ocasiões o significan-te parece surgir desprovido de significado (o que, diga-se de passagem,não só é raro na análise de um sujeito, como nem sempre ocorre na análi-se de todos os sujeitos), não vejo por que este fenômeno deva ser exclusi-vamente interpretado como indício da presença do simbólico e sua natu-reza a-semântica. Se numa análise encontramos palavras ou frases "semsentido", porque descontextualizadas de universos de significações fami-liares, posso muito bem entender este fato como emergência do "incons-ciente no sujeito" ou do "sujeito do inconsciente", sem estipular a exis-

tência do fundacionalismo simbólico. Certas disposições para agir ou sen-tir de maneira compulsiva, a despeito das definições imaginárias e racio-nalizadas que o Ego tem ou dá de si mesmo ou do sujeito, também nãofazem sentido, dentro do universo de razões conciliáveis com o Eu, parafalar com Freud, e disto não se infere a existência do simbólico. Uma pa-lavra descontextualizada pode ser indicativa da manifestação do incons-ciente ou da história do desejo do sujeito. Porém a ausência de sentidode uma palavra não significa, ipso facto, que a estrutura de todas as lin-guagens possíveis seja apriorística e fundamentalmente a-semântica. O queaparece como "sem-sentido" é "sem sentido" para este sujeito e não sem-sentido porque é da natureza do simbólico que ele seja uma cadeia de sig-nificantes sem significação.

O exemplo do ato falho, do disparate, da palavra solta e desgarra-da em meio a um processo analítico, não é nem mais, nem menos com-probatório da natureza a-semântica do simbólico, da linguagem ou do in-consciente do que qualquer palavra estrangeira que possa vir à cabeça dealguém e cujo sentido seja desconhecido. Essa palavra hipotética pode terimpressionado o sujeito por várias razões. Pode mesmo, admitamos, tê-lomarcado e, por esta via, dar testemunho de seu desejo. Nenhuma destasexplicações entretanto acarreta necessariamente a hipótese de uma lingua-gem a-semântica, fundadora de todas as linguagens, e conhecida, psicana-liticamente, de modo indubitável e incorrigível. O que a existência da hi-potética palavra pode eventualmente provar é que o sentido original quesempre teve — já que era uma palavra usada em contextos de línguas fala-das — não foi ou não pôde ser entendido pelo sujeito, e permaneceu com

o "sentido" de "palavra desconhecida". Mas para entender este fenô-meno não precisamos de nenhum dispositivo teórico, metafísico. Tantoas hipóteses freudianas do recalque ou da formação egóica, quanto as hi-póteses lacanianas do ego-imaginário ou do próprio inconsciente estrutu-nnnn 

Delgado, Pilar Lopes deSanta Maria.  Introduccióna Wittgenstein — sujeto,mente y conducta. Barce-lona, Editorial Herder,1986.

Dor, Joël.  Introduction à

la Lecture de Lacan. Paris,Denoël, 1985.

Forbes, Jorge F. & DaCosta, Newton CA. "So-bre Psicanálise e Lógica",Falo, Salvador, Fator Edi-tora, (l):103-l 11, jul., 1989.

Gargani, Aldo G. Witt-genstein. Lisboa, Edições70, 1988.

Habermas, Jurgen. Co-nhecimento e Interesse.Rio, Zahar, 1982.

Janik, Allan & Toulmin,Stephen. Wittgenstein 'sVienna. Nova York,Touchstone Books, 1973.

Jorge, Marco AntonioCoutinho. "Roteiro dePleroma". Clínica Psica-nalítica. Rio, A outra Edi-tora, (3):117-198, out.,1988.

Kenny, Anthony. Witt-genstein. London, Pen-guin Books, 1973.

Lacan, Jacques. Éouts. Pa-ris, Seuil, 1966.— — —  Le Moi dans laThéorie de Freud et dansla Technique de laPsychanalyse. Paris, Seuil,1978.

Lacoue-Labarthe, Philip-pe & Nancy, Jean-Luc.  LeTitre de la Lettre. Paris,Editions Galilée, 1973.

Laplanche, Jean. Problé-matiques I — L'Angoisse.Paris, PUF, 1980a.— — — Problématiques II — Castration / Symbolisa-tions. Paris, PUF, 1980b.— — — Problématiques III — La Sublimation. Paris,PUF, 1980c.— — — Problématiques IV  —  L'Inconscient et le Ça.Paris, PUF, 1981.— — — Fantasias Originá-rias, Fantasias das Ori-gens, Origens, Origens daFantasia. Rio, Jorge ZaharEditor, 1988.

Lecourt, Dominique. L'Ordreet les Jeux. Paris, Grasset.

Lyons, John.  As Idéias deChomsky. São Paulo, Cul-trix, 1976.

McGinn, Colin. Wittgens-tein — On Meaning. Ox-ford, Nova York, Lon-dres, 1984.

91

Page 22: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 22/23

AS SOMBRAS E O SOPRO

rado como uma linguagem, desde que desatado da metafísica do simbóli-co, são capazes de propor explicações satisfatórias do fato. Querer levara psicanálise além disso, além de hipóteses passíveis de serem discutidasdentro dos limites de uma conversação historicamente possível, significa

acreditar que a "feiticeira metapsicológica" tem chapéu, vassoura e o po-der de encantar príncipes e belas adormecidas. Esta crença, como qual-quer outra, pode muito bem ser partilhada por quem quer que seja. Mas,repetiria, de novo, é opcional.

Por fim, diria que renunciar ao acesso privilegiado às estruturas "apriori" do simbólico não é o mesmo que avalizar as teses da hermenêuti-ca ou da fenomenologia, nem submeter a psicanálise à jurisdição da filo-sofia. A psicanálise do "inconsciente leigo" está distante da fenomenolo-gia, porque não acha que "inconsciente" é apenas um epifenômeno daambivalência constitutiva da consciência. Não bastassem as críticas quea própria filosofia fez à hipertrofia da consciência na fenomenologia, diriaque a psicanálise dispensa sem nenhum constrangimento qualquer acor-do com a transcendentalidade do Eu ou com a intencionalidade da cons-

ciência. Não percebo nenhuma boa razão, clínica ou teórica, para pensarque obsessões, fobias e outros sintomas possam ser conceitualmente tra-tados como erros do "julgamento", frente a uma consciência imaginanteque jamais se equivoca, quando intenciona como "não sendo" aquilo que"é". Estes fatos, como outros, parecem-me melhor compreendidos atra-vés das noções criadas pela psicanálise. De modo similar, considero quea distância entre as exegeses intelectuais da hermenêutica, por mais refi-nadas e sofisticadas que tenham se tornado, e o discurso reiterativo, insis-tente, conservadoramente igual do sintoma é enorme. O que move o cur-so de uma análise não são as novidades dos temas ou conteúdos dos dis-cursos. Basta lembrar que a intelectualização pode ser extraordinariamenteinventiva em explicações e versões do que o sujeito sente, embora sejaum processo defensivo, contra o andamento da análise. Não são os enre-dos imaginários e sim a força transferencial ou sexual investida nas pala-vras ou discursos que transformam a história do sujeito. Novas ou velhas,imprevistas ou conhecidas, vivazes ou monótonas, as palavras só redefi-nem a economia subjetiva porque ocupam um certo lugar na economiasexual. E não porque, magicamente, podem descortinar, por meio da re-flexão, mundos alternativos, no horizonte de possibilidades da tradição.

Não pretendo estender este trabalho além destes limites. Estou certode que outras questões teriam que ser postas, a fim de que algumas afir-mações pudessem ser melhor compreendidas. A primeira delas, que me-rece ser desdobrada, diz respeito à natureza da transferência. A transfe-rência pode ou não ser decomposta em momentos imaginários, simbóli-cos ou reais? Ela é produto da ação deste registro, como queria Lacan,

ou é o que permite tornar estes registros teóricos praticamente eficazes,na descrição ou explicação do processo psicanalítico? A segunda diz res-peito à natureza do que consideramos como verdadeiros testemunhos dosurgimento, na análise ou na vida, do sujeito do inconsciente. Por que,nnnnnn 

Miller, Jacques-Alain. Per-curso de Lacan —  uma in-trodução. Rio, Jorge Za-har Editor, 1987a.

— — —  Matemas I. Bue-nos Aires, Manantial,

1987b.— — —  Matemas II. Bue-nos Aires, Manantial,1988.

Moreno, Arley R. Witt-genstein — ensaio intro-dutório. Rio, Taurus,1985/86.

Ogilvie, Bertrand.  Lacan—  A Formação do Con-ceito de Sujeito. Rio, Jor-ge Zahar Editor, 1988.

Pears, David.  As Idéias deWittgenstein. São Paulo,Cultrix, 1973.

Politzer, Georges. Criti-que des Fondements de laPsychologie. Paris, PUF,1967.

— — — Ecrits 2. Les Fon-dements de la Psycholo-gie. Paris, Ed. Sociales,1969.

Pontalis, J.B.  Après Freud.Paris, Gallimard, 1968.

Prado Jr., Bento.  AlgunsEnsaios —  filosofia, litera-tura, psicanálise. São Pau-lo, Max Limonad, 1965.

Rorty, Richard. Conse-quences of Pragmatism.Breghton Sussex, TheHarvester Press, 1982 .— — — Foucault and Epis-temology. Foucault. ACritical Reader. Ed. DavidCouzens Hoy, Oxford,Nova York, Basil Block-well, 1986.— — —  A Filosofia e o Es-

 pelho da Natureza. Lis-boa, Dom Quixote, 1988.

Stegmüller, Wolfgang.  AFilosofia Contemporânea I. São Paulo, E.P.U.,EDUSP, 1977.

Steuerman, Maria Emília. Habermas Universal Prag-matics: an Overview.Londres, Institute of Edu-cation/University of Lon-don, 1985 (Tese dedoutorado).

Viderman, Serge.  LaConstruction de I'Espace Analytique. Paris, Denoël,1970.— — —  Le Céleste et le Su-blunaire. Paris, PUF,1977.

Wittgenstein, Ludwig.  In-vestigações Filosóficas.São Paulo, Abril Cultural,1979.

92

Page 23: 20080623 as Sombras e o Sopro

7/21/2019 20080623 as Sombras e o Sopro

http://slidepdf.com/reader/full/20080623-as-sombras-e-o-sopro 23/23

  NOVOS ESTUDOS Nº 24 — JULHO DE 1989

pergunto, o significante a-semântico seria "mais representativo" do sujei-to que as narrativas imaginárias construídas pelo dispositivo racionaliza-dor do Ego? Que se afirme que as racionalizações egóicas são um obstácu-lo ao curso da análise, é entendível. Mais obscuro é acreditar-se na exis-

tência de algo no sujeito mais verdadeiro que uma outra coisa. Por que,pergunto, no instante em que deixamos de lado a maquinaria formalistado simbólico, não podemos reavaliar o que já foi chamado de discursovazio do analisando? Será que, por trás do que Freud denominou "perla-boração", não existe a repetição de um discurso que, apesar do mesmoconteúdo descritivo, significa coisas diversas, e representa, sob a aparên-cia da mesmidade, uma alteração na economia psíquica do sujeito? Porúltimo, dadas as reservas metodológicas feitas de início, cabe perguntarem que medida as noções subsumidas no conceito de Real poderiam aplai-nar as arestas da teoria do inconsciente estruturado como uma linguagem?Estas questões, deixo-as em aberto, na expectativa de retomá-las,em outro momento, ou de que outro o faça em meu lugar, de maneiramais feliz ou melhor sucedida.

Jurandir Freire Costa épsicanalista e professordo Instituto de MedicinaSocial da UERJ.

Novos Estudos

CEBRAP

Nº 24, julho de 1989

pp. 71-93

93