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caderno dos Doutores da Alegria outubro 2007 BOCA LARGA

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dr alegria - 2007

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caderno dos Doutores da A

legria

outubro 2007

BOCA

LARG

A

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BOCA LARGACaderno dos Doutores da Alegria

outubro - 2007

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida semautorização expressa dos organizadores e do editor.

Boca Larga não se responsabiliza pelas opiniãoes emitidas pelos seusarticulistas, colunistas e entrevistados

Doutores da Alegria - Arte, Formação e DesenvolvimentoRua Alves Guimarães, 73 - Jardim América05410-000 - São Paulo-SPTel.: (11) 30615523 Fax: (11) 30615523E-mail: [email protected]

Impresso no Brasil - outubro de 2007.

Doutores da AlegriaArte, Formação e Desenvolvimento

Gestão 2006-2008

conselho diretorPaulo Roberto Pereira - Presidente

Claudia (Lala) Deheinzelin - SecretáriaNicolas Schaeffter - Tesoureiro

conselho fiscalCarmem Rittner

Osvaldo de AlvarengaRoberto Mônaco

grupo executivocoordenador geral

Wellington Nogueira

diretoresLuis Vieira da Rocha

Norma-LydsThais Ferrara

coordenadoresÂngelo BrandiniMorgana Masetti

Soraya SaideTatiana Ramos

supervisorasDaiane Carina

Maeda BarbosaRenata TruzziSimone Ribeiro

* * *Caderno Boca Larga

Redação

organizaçãoEdson Lopes, Morgana Masetti

& Beatriz Sayad

edição e projeto gráficoEdson Lopes

ilustraçãoEdson Lopes & Orlando Pedroso

(vinhetas)

transcriçõesGlobal Translations

revisãoDimas Munhoz Gomez

& Edson Lopes

diagramação e editoraçãoThaís Lari Braga

CMN Arte Digital

mobilização de recursosEdson Lopes, Maeda Barbosa

e Milena Marques

impressão e acabamentoSR Gráfica

papéisCartão supremo

& Reciclato/Suzano

ISSN 1808-5083

CDU 792

Boca Larga: Caderno dos Doutores da Alegria / nº 3 (outu-bro de 2007).- São Paulo: Doutores da Alegria, 2007 - anual.

1. Artes Cênicas- Periódicos. 2. Palhaços. 3. História de vida.4. Saúde.

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Apresentações

Beatriz Sayad

histórias, máscaras e picadeiros...edson lopes

vida em cenamorgana masetti

Memórias de Palhaços e Comediantes

entrevista com Nelson Garciapor edson lopes e maria rita oliveira

entrevista com Anchizes Pintopor morgana masetti, danielle barros e flávia reis

entrevista com Benedito Esbanopor ângelo brandini, edson lopes e maria rita oliveira

entrevista com Walter di Carlopor morgana masetti

entrevista com Brasil João Carlos Queirollopor edson lopes e maria rita oliveira

entrevista com Walmir Chagaspor luciano pontes e marcelino dias

entrevisa com Pirajá Bastos de Azevedopor morgana masetti e danielle barros

entrevista com Agostinho Blaskepor ângelo brandini, edson lopes e maria rita oliveira

entrevista com José Barrosopor edson lopes e maria rita oliveira

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Agradecimentos

agostinho blaske, alexandre mathias, alice viveiros de castro,andré leite dos santos, ariel paulo rangel, arilson lopes, brasiljoão carlos queirollo, beatriz pereira gonçalves, camila dealmeida leal, carlos albuquerque, cira ramos, chicoribeiro, dani barros, diogo cardoso, dimas munhoz, emersonbasso, erick s. krulikowski, fátima gaglianone, felipe de abreualcântara, fernando escrich, fernando lobo, gabriel monteiro,josé barroso, josé ribamar bílio torres, juliana de moraesbarbosa, marco antônio pereira gonçalves, marcos camelo,marcos. camilo, nice vasconcelos, pirajá bastos, raul hernandorobayo, renato de abreu, sônia fátima beltram diaz, teófanesantônio leite da silveira, tiago malafaia marques da silva, thaíslari, thiago augusto santos silva, ulisver joão batista linhares,virgínia randmer, walmir chagas.

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6 Doutores da Alegria

Quando pensamos em fazer uma introdu-ção para esta edição do caderno Boca Larga,toda baseada em depoimentos, pensei: a intro-dução deve ser também um depoimento.

A idéia de realizar entrevistas que contémum pouco da vida e do trabalho dos comedi-antes, e de construir, assim, uma matéria quenão encontramos facilmente quando procura-mos referências de palhaços brasileiros, nascede duas fortes constatações que despontam donosso dia a dia como palhaços em hospitais: ade que o registro atua determinantemente natransformação de uma experiência em algo aser transmitido; e de que o trabalho dos Dou-tores da Alegria, malgrado a sua naturezaefêmera, volátil, e a sua forte inclinação a esca-par de tudo aquilo que categoriza, que fixa, queexplica, provoca em nós, que o realizamos, tal-vez por tudo isso mesmo, uma imensa “vonta-de de contar”. E uma imensa vontade de ou-vir. Aprendemos que falar sobre, escrever so-bre (e o nosso trabalho tem muito a ver comisso) não só redimensiona a experiência vividacomo também inspira a experiência por viver.Fazer e refletir (e considero aqui reflexão não

só como aquilo que se depreende da experiên-cia mas, simplesmente, como aquilo que se es-colhe para contar, aquilo que resta na memó-ria) são coisas distintas mas nossa meta, mui-tas vezes, é encontrar essas intersecções. Parao palhaço, mesmo que essa não seja umaintersecção fácil, ela é necessária. Thinking inmouvement é o lema do ator, do palhaço, doperformer, sobretudo quando o ambiente re-quer escolhas a cada instante de sua atuação,escolhas artísticas, éticas, poéticas.

Assim, as histórias que formam este volu-me do Boca Larga, parte do projeto Memóriasde Palhaços e Comediantes e que nos foramcontadas, têm menos uma função histórica oudocumental. Se fundam, na realidade, na cren-ça de que o relato é algo que deve ser recupe-rado como possibilidade de transmissão deuma experiência cara, que não se esgota napele de quem a viveu. E mais, de que o relatoé, ele mesmo, um modo de perpetuar. Ele nãorepete a experiência, ele a perpetua mesmo aomodifica-la, ao transformá-la, justamente, emrelato. Quem conta um conto aumenta umponto, não é assim que se diz? A memória se

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cria, fortemente, na fala, na conversa, naquiloque fazemos quando nos encontramos paracontar aos nossos, ou aos que chegam a nós,quem somos, de onde viemos, nossas peque-nas peripécias, nossos grande sonhos. Dondea vontade de deixar que as entrevistas não per-dessem esse caráter, que por vezes pode sercaótico, fragmentado, mas que, na medida emque nos familiarizamos com ele, nos habitua-mos, leitores-ouvintes que somos, a reconstruiras partes que faltam, a deduzir o que não estádito, a imaginar na palavra, na costura, aquiloque está implícito.

Assim como no teatro, esperamos que aslacunas sejam antes um estímulo à imagina-ção do que uma impossibilidade de penetra-ção neste mundo das memórias. Recolher de-poimentos revelou-se para nós uma atividadequase teatral. Fadada ao instante, imprevisível(malgrado a estrutura que nos guiava), emoci-onante, transformadora. Para os que recolhe-ram, para os que entregaram generosamentesuas lembranças em falas organizadas, em his-tórias pessoais, em lapsos de cenas preciosasque não têm outro registro senão o corpo de

quem as inventou e viveu, em lágrimas, em ri-sadas, em uma hora de conversa que não sin-tetiza mas anuncia toda uma vida, dedicamosesse caderno. E anunciamos, construtores deacervos de memórias que nos tornamos depoisdesta aventura que se prolonga até o próximoano, com novas entrevistas interessadas emoutras histórias de palhaços e comediantes, queem 2008 o Boca Larga será dedicado à pesqui-sa de linguagem que os palhaços dos Douto-res da Alegria desenvolvem. O espaço da pes-quisa é, para nós, o de uma investigação quenão temos certeza de onde vai dar mas cujasperguntas se mostram efetivamentemobilizadoras de novos rumos. A idéia de queo registro altera nossa prática, de que ao con-tarmos aquilo que vivemos reencontramos demodo enriquecedor, formador, a experiênciaoutrora efêmera do cotidiano, não paraeternizá-la, mas para reavivá-la, nos convidaa estender essa prática a nós mesmos, na cer-teza de que nossa experiência merece amultiplicidade das vozes que a constituem.

Beatriz Sayad

apresentação

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histórias, máscaras e picadeiros...

Reservamos um espaço especial da cole-ção Boca Larga, lançada anualmente, às his-tórias e narrativas — atividades de reconstru-ção do vivido — contadas por palhaços e co-mediantes, gravadas, transcritas ecolecionadas a partir da generosidade daque-les que cederam voluntariamente suas entre-vistas, parcerias e apoios singulares — GlobalTranslations, SR Gráfica, Museu da Pessoa.nete ESPM-RJ — e esforços conjuntos de integran-tes dos Doutores da Alegria das sedes de SãoPaulo, Rio de Janeiro e Recife.

A tentativa de coletar e reunir histórias devida de palhaços e comediantes, algumas de-las apresentadas neste volume, aparta-se dapretensão crítico-teórico, da construção de bi-ografias e das pretensões de uma “política dajusta memória”, relacionadas aos problemas datransmissão da história, no interior da históriaoficial e ideológica, aos modos de Ricoeur1,para embasar argumentos sobre a importân-cia, do espaço do circo, dos pavilhões, dasburletas, das variedades, dos circos-teatro e docirco e nobilitar o painel das artes e do teatropopular, das dramaturgias no Brasil. Os rela-tos encontrados neste número anunciam ver-sões, crônicas e, por vezes, saudosismos anun-ciando que o passado também pode ser ideali-

zado, que uma história são muitas histórias edesdobramentos sócio-culturais que permane-ceriam ocultos em lacunas na tentativa de seconstruir uma história “no singular” da traje-tória do circo através de precários acervos efontes. Esta é uma publicação de versões depalhaços e comediantes2.

Segundo Bachelard o conhecimento da in-timidade pessoal, por meio das memórias, dá-se pela recordação dos espaços em que se pas-saram as vivências,pelo corpo marcado, e nãodo tempo. Por mil alvéolos, o espaço retém otempo comprimido. O tempo não anima a me-mória tanto quanto o espaço e a cicatriz. A me-mória, para Bachelard3 não registra a duraçãoconcreta, bergsoniana4. Assim, pelo espaço é quese encontra os fósseis de uma duração concreti-zados em longos estágios. Por isso o circo, a rodade pano, os shows de palhaços e principalmen-te o circo-teatro, suas condições, aspectos, ele-mentos culturais, relações sociais aparecemcomo marcas muito fortes nas rememoraçõesdos palhaços aqui representados.

Pesquisadores como Mário FernandoBolognesi, Alice Viveiros de Castro, VerônicaTamaoki e Ermínia Silva, referem-se igualmen-te a vieses históricos e olhares antropológicos;lançam problematizações que se referem tantoao palhaço — que não é personagem exclusiva

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do circo — e ao corpo do palhaço como figuracatalisadora da condição fluída do universo cir-cense, do sublime e do grotesco; ora referem-seao palhaço como figura cômica por excelência,ou tentam entendê-los, uns através de arquéti-pos e repertórios clownescos e outros através dapenetração à realidade daqueles que habitaramas lonas, compondo, mimetizando apresenta-ções e narrativas. Cada pesquisa, em seus por-menores de construção, embasou-se em fontescomo jornais, revistas, propagandas de circos,programas e folhetos, textos raros de cronistase críticos, textos de memorialistas, discografias,textos de peças, álbuns de fotografias, observa-ção participante, teses e entrevistas que entoamvozes singulares e reveladoras. Cada um quese aventure na pesquisa sobre o circo ou sobrepalhaços no Brasil constata a precariedade quecerca muitos dos acervos e dos vestígios comocartazes, fotografias, discografia, filmografia, ce-nários, vestimentas, cartas, documentos e bole-tins como da Federação Circense de 1925 a19385. Estas pesquisas lançam novos repertóri-os, abordagens e questões — que se sobrepõem,contestam e dialogam com produções anterio-res como de José Cláudio Barriguelli, Pedro DellaPaschoa, Maria Lúcia Martes, entre outros — edão novos sentidos a fontes que poderiam serrecolhidas e guardadas a esmo em acervos par-ticulares e públicos; e requerem a organização,digitalização de novos acervos, para que o pú-

blico que o consulta formule outras novas pes-quisas e por conseguinte novas publicações.Assim, coletamos, reunimos e apresentamoshistórias de vidas submetidas à seletividade damemória ou à vontade de abrir ou ocultar se-gredos daquele que narra, como tentativa decriar um acervo público, aberto e digitalizado.O Memórias de Palhaços e Comediantes. Cadahistória com sua força, contundência, versão,com as transformações no modo como cada umproduziu suas artes. Cada história para umaconsulta, um atento leitor.

As histórias de Nelson Garcia, AnchizesPinto, Benedito Esbano, Walter di Carlo, Bra-sil João Carlos Queirollo, Walmir Chagas,Pirajá Bastos de Azevedo, José Barroso e Agos-tinho Blask, neste volume, expõem a presençaampla e constante de companhias circensesvolantes e seus integrantes por todo o Brasil,nas capitais e em seus bairros, aventuras, des-crições, resultados de pequenas e grandes pai-xões, afeições familiares e muita produção ar-tística daqueles que formam uma categoriaprofissional desde o século XVIII. Figuras emtorno das quais se teciam relações de trabalhoe relações sociais fomentadoras de alteraçõesno cenário das cidades, tensões sociais e cul-turais provocadas pela itinerância e que seri-am abordadas em jornais, folhetins e boletinspor críticos e memorialistas e repercutiria na

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produção intelectual da década de 1970 sobos paradigmas, da cultura popular, do confli-to entre cidade e campo; e influência dos mei-os de comunicação de massa.

As entrevistas, em sua maioria, referem-se ao circo que produzia também teatro emlarga escala — afirmando que essa é uma basedo circo, que se sobrepõe à formação do pa-lhaço, que o circo estava comprometido com ocirco-teatro — com artistas polivalentes, acro-batas, músicos, palhaços, dançarinos, atores,autores de peças e criadores de números e atéginastas. Desde o final do século XIX no Rio deJaneiro são encontradas fontes jornalísticas quedescrevem a utilização do picadeiro e palcopara apresentação de peças jocosas, pantomi-mas, dramas e comédias, desde lá muitos em-presários já nomeavam seus espetáculos oulonas como circo-teatro, como o Teatro de Va-riedades ou Circo-Teatro de Albano Pereira,construído em Porto Alegre em 1875. Esboçamtipos e profissionais e um campo de trabalhosingular que absorvia artistas que se apresen-tavam no teatro, nos cafés, nos cabarés e pa-godes. O circo era o lugar de um tipo decontratação, lugar de trabalho e atuação. O cir-co como se vê nas entrevistas deste volume co-locava em jogo relações culturais, transmissãode saberes e práticas que possibilitavam as re-lações de trabalho e a criação da figura do ar-tista circense. Nele cabia um complexo proces-

so de formação artística, de educação, de trans-missão voltada para os que nasciam no circo,àqueles que fugiam ou se incorporavam às fa-mílias e circos. Formação geral, solidária, en-volvida com a necessidade, com as experiên-cias. A necessidade, a substituição, a continui-dade do espetáculo fez com que cada entre-vistado se tornasse escada, tony de soirée, clowne palhaço. Integrar-se ou viver no circo é inte-grar-se a um modo de organização, a um modode vida, ao conjunto de memórias gestuais,orais, sonoras, sociais e culturais, relações so-ciais e de trabalho que definiram a produçãodo circo e a produção do palhaço. Ermínia Sil-va especifica que “aprender a fazer circo” éuma atividade cultural, artística e esportiva per-manente, “pois quando um jovem tornava-semuito bom num determinado número —malabares, salto, trapézio, etc. — o campo deoferta na área era tão amplo que se lhe coloca-va um novo desafio, tornando-o aprendiz emoutra área, como tocar um instrumento, repre-sentar no teatro ou mesmo ser autor das peçase músicas, participar da confecção do guar-da-roupa, da cenografia, da iluminação, daprópria produção de espetáculo.(...) na tradi-ção do circo-família, não havia nenhum adul-to — jovem ou idoso — que também não tives-se o que fazer”7.

O circo é revelado em cada entrevistacomo grande empreendimento da vida de

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cada um e o palhaço como grande estilo e for-ma artística, fosse dono, ou apresentasse seusnúmeros como contratado. Neste empreendi-mento o circo-teatro aparece como ambientede produção em larga escala, com peças ela-boradas, grande número de artistas, com mú-sicos e grandes aparatos cômicos, cênico e atémaquinários ousados dentro dos próprios es-petáculos, como recursos cênicos ecenográficos. Cada entrevistado revela-se atore especialista em tipos físicos, galã, ingênuo,cômico, cínico, cuja denominação informavasobre uma função dramática e não sobre umpersonagem. Incorporavam o mais atual emexperimentações, iluminações, invenções téc-nicas e habilidades em espaços que muitas ve-zes não camuflavam os instrumentos de tra-balho, as prestidigitações, os truques e até ospontos6. No circo permitia-se testar novos for-matos de espetáculos — com adaptações aostextos originais, alterações àqueles transmitidosoralmente, personalizações e até novas criaçõese escriturações — e combinações das atraçõese das gentes de circo, de acordo com as cida-des por onde se passava, dos dias de espetácu-lo e da receita do circo visada pelo empresário,pelo dono. Assim, o circo enfileirou muitos su-cessos teatrais, autores, ensaiadores e cenas quepretendiam meios de divulgação dos espetá-culos e do formato final das produções, com apenetração junto à população — principalmen-te nas cidades privadas de estruturas variadas

de entretenimento —, às cidades e aos bairrosna cidade. Daí a importância dos circos juntoà história de bairros da cidade de São Paulo,como Brás, Bexiga, Móoca e Santa Efigênia,largo São Bento, Praça da República, a partirdo entendimento de que o circo instalava-setambém (mesmo em cidades menores) em ter-renos próximos a regiões movimentadas, zo-nas de comércio e de transporte por bondes etrens. Ligando-se a um fluxo de transportes,comércio, circulação, concentração econtratação de pessoas.

Segundo Ermínia Silva (2007) o circo foi“um dos importantes veículos de produção,divulgação e difusão dos mais variados empre-endimentos culturais”(nota - idem, p.20) queatualizava o cotidiano das cidades, suas ma-zelas, os recursos impressos, os problemas dascidades, dos comércios, as tensões em torno devalores morais, diversões e variedades. Ainda,como cada entrevista demonstra, os circos ecompanhias volantes, incorporavam um vetorde comunicação entre as cidades e um vetorde formação e incorporação de artistas e pro-fissionais nas novas mídias que surgiam no Bra-sil na segunda metade do século XX, forjou ar-tistas, galãs e cômicos no circo-teatro e parapalcos, boates, cinema e TV.

A coleta de rememorações e narrativas depalhaços e comediantes não realiza uma mera

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reconstrução saudosa, embora reconheçamosque também se idealize o passado. Cada entre-vistado, convidado e voluntário, a partir do es-paço do circo sob a máscara do palhaço, des-creve o circo, o palco, o picadeiro, o estúdio defilmagens, entende seus percursos, fracassos,motivos, acham qualificações e explicações paraa vida social, para a produção cultural e o estilode vida que assumiram, repercutiram e questio-naram como circenses, criadores, provocandosuas gerações subseqüentes e o presente. É as-sim, com este volume inaugural, que damos umpasso inicial para criar um acervo, entender etraçar perspectivas sobre a diversidade cômica.

Edson Lopes.

Notas(1) Paul Ricoeur. “Entre mémoire et histoire”, in Project.Paris, número 248, p.11, 1996.

(2) Este projeto surgiu de um modo simples, coloquial,banal, durante uma conversa com Thaís Ferrara (atriz,besteirologista e diretora artística dos Doutores da Ale-gria) em que lembrávamos da atuação, dos bordões dealguns comediantes, de suas criações, constatando quea lembrança de seus nomes talvez se dissolvessem coma ausência de suas histórias. Naquela situação, lem-

brávamos o quanto a digitalização e disponibilizaçãode acervos de TVs são fontes indispensáveis, mas quecontam apenas partes, ocultando pequenas histórias etantos outros nomes que escapavam ou que passaramlonge dos estúdios e programas de televisão na segun-da metade do século XX.

(3) Cf. Gaston Bachelard. A poética do espaço. São Pau-lo, Martins Fontes, 2000.

(4) Cf. Henri Bérgson. Matière et mémoire. Paris, PressesUniversitaires de France, s/d.

(5) Tamaoki organiza e recupera acervo referente aosboletins mensais da Federação Circense fundada em20 de março de 1925 sob o tema Unidos Seremos For-tes, com recursos da Funarte e apoio do DPH-PMSP/Depto. Do Patrimônio Histórico/ prefeitura munici-pal de São Paulo e ASFAC- Associação de Famílias eArtistas de Circo.

(6) A função do ponto era cumprida por uma pessoaque conhecia ou tinha o texto completo de cada peçaa ser apresentada. Sua presença era considerada es-sencial nas representações teatrais graças à grandequantidade de peças e variações nos repertórios dascompanhias.

(7) cf. Amínia Silva. Circo-Teatro: Benjamim de Oliveirae a Teatralidade Circense no Brasil. São Paulo, Ed. AltanaLTDA, 2007, p 291.

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Vida em cena

Eles chegaram: senhores com olhar demeninos. Tinham uma vivacidade contagiante.Sentaram e contaram suas histórias nem sem-pre alegres mas potentes. Tinham a força nar-rativa que se cola novamente à experiência vi-vida. Falaram da primeira vez que viram o cir-co e das brincadeiras de menino. O Sr. JoséBarroso, o Gachola, montava cirquinho comlençóis no quintal de casa. Os ingressos eramas balas Piolim. Sem dinheiro e louco para as-sistir a um espetáculo, passou por baixo da lonae perdeu um sapato. Quando voltou com seupai para pedir seu sapato de volta foi convida-do a vender doces no circo. Walmir Chagas, oVéio Mangaba, conta que gostava de se fanta-siar e dublar os discos de 78 rotações comCarmem Miranda e Jackson do Pandeiro. Oprimeiro espetáculo que viu foi em um circosem lona, no estilo Deus tomara que não chova.Foi no bairro de São José, no carnaval de Reci-fe, que viu os primeiros palhaços de sua vida:Arlequim, Colombina e Pierrô.

O circo abriga modos de vida : cigana,

aventureira, sonhadora, trabalhadora, sofredo-ra. Homens múltiplos que se exercitam em tudoque a lona pede: dirigir caminhões, montar,desmontar, consertar. O multiartista, como dizSr. Walmir, se define assim: na terra de cego quemtem um olho é rei. Em um mundo de especialis-tas, estes homens de circo nos ensinam a cor-tejar a multiplicidade. Debaixo desse céu depano eles nascem, crescem, casam, multipli-cam-se, celebram a passagem do tempo. Mon-tam suas famílias por gerações. O Sr. Pirajá so-nhava também em ter seu velório dentro dopicadeiro. Mas a quinta geração de circo desua família foi para a universidade e seu circofechou. Hoje ele mata as saudades do picadei-ro indo para o seu trailer que fica estacionadono quintal da sua casa.]

Esses homens em seu cortejos circensesdespertavam a cidade: na chegada os mora-dores ajudavam a montar o circo e ganhar ca-rimbo na mão para ter passagem livre para osespetáculos. Na relação com a cidade o circoabrigava novas formas: em Belford Roxo, na

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época da gripe espanhola, o avô de AnchizesPinto transformou o circo em hospital para dis-tribuir comida e remédios. Na partida de tremvinha a choradeira dos amigos e amoresconstruídos. Como conta o Sr. Esbano: artistade circo é que nem marinheiro, um porto novo,tudo novo. E o circo também leva gente poronde passa. Nelson Garcia, o Figurinha, con-ta que seu tio, Antolim Garcia fugiu com o cir-co. Seu pai foi resgatá-lo em Minas Gerais. Oavô de Ankito, bacharel em direito, fugiu como circo atrás de uma eqüestre atiradora, quese tornou sua esposa.

Estas histórias mostram que a força do cir-co se faz pelo espetáculo e pela estrutura des-tes homens, mulheres e crianças que se desen-volvem através da filosofia de vida do circo.Elas são também retrato de uma época: épocaem que o circo-teatro tinha três camarotes: umpara o prefeito, um para o juiz e um para odelegado. Em que Roberto Carlos ia delambreta cantar no Circo do Sr. Pirajá. Épocaem que o pai de Gachola atravessava o rio Tietê

a nado com as roupas amarradas nas costaspara trabalhar como pedreiro. Do cassino daUrca, TV Tupi, Cinelândia. Época em que acensura do teatro era 22 anos e da lei de Getú-lio Vargas onde todo colégio tinha uma cadei-ra livre para o artista de circo. Época em queas pessoas viravam desaparecidos políticoscomo o irmão do Sr. Walmir Chagas. Que sefazia espetáculo no Retiro dos Artistas para oPresidente Médici. Histórias que guardam nagaragem de casa objetos da recordação: a ben-gala do Piolim, os 56 filmes de Ankito, foto-grafias de circo, teatro e televisão. Históriasque contemplam a magia do espetáculo. Tan-tas, tão diversas e fantásticas que nos fazemaplaudir, fora do picadeiro, esses homens, fi-lhos e pais de circo, guardiões das paródiasde cem anos, redatores da história de umaépoca, senhores e meninos.

Morgana Masetti.

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Nelson Garcia: Meu nome de batismo éNelson Garcia. Pertenci à família Garcia, doCirco Garcia. Nasci em São Paulo, na RuaMaestro Cardim, na Liberdade, no ano de1921.

Doutores da Alegria: Seus pais eram bra-sileiros?

N: Meu pai era brasileiro, filho de espa-nhol. Por parte de mãe, meus familiares sãoportugueses. Minha mãe era portuguesa. Mi-nha avó paterna tinha oito filhos: seis espanhóise dois brasileiros, que eram meu pai e meu tioAntolim Garcia, fundador do Circo Garcia.

Não éramos de circo. Meu tio AntolimGarcia, quando menino, tinha loucura por cir-co e a minha avó tinha um armazém de secose molhados no Paraíso, lá ele fazia e brincavade cirquinho. Era moleque, garoto ainda, e jáfazia cirquinho no quintal da venda da mãe.

Acabou fugindo com o circo. Foi um escânda-lo danado. Então, houve uma reunião familiarpara escolher qual dos irmãos ia buscá-lo. Esseirmão foi justamente o meu pai que era cincoanos mais velho que ele. Foi buscá-lo lá emMinas Gerais e o trouxe.

DA: Na marra?N: Na marra. Ele era garotão, meninote.

Assim é a história. Depois ele acabou fugindonovamente com o circo. Era a loucura dele. Em1932 ele apareceu aqui em São Paulo com umcirco de categoria, grande. Na época a forçaartística do circo era o teatro. E naquela vezele acabou carregando um irmão, o meu pai, aminha mãe, eu e uma irmã para o circo. Assimcomeçamos a trabalhar.

DA: E você tinha quantos anos na época?N: Doze anos e trabalhava como ator mi-

rim. Fazia peças, as comédias. Fazíamos de tudo

História de Vida: Nelson GarciaTRANSCRIÇÃO PORTUGUÊS - ÁUDIO - 00:46:00

Figurinha

Entrevistadores: Edson Lopes e Maria Rita Pires do Rio

Gravação e transcrição para o Projeto Memórias de Palhaços e Comediantes, com depoi-mento de Nelson Garcia a Edson Lopes e Maria Rita Oliveira no dia 20 de Abril de 2007, noestúdio cedido pelo Museu da Pessoa.net. Duração desta gravação: 00:46:00. Transcrição porGlobal Translations.

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BOCA LARGA

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no picadeiro, tudo de cor. As peças não tinhamponto. Comecei a fazer um pouquinho de gi-nástica, o “abecê” do artista circense: aquelascambotinhas, envergadas, volta de mão, saltos,depois o flip-flap e o salto mortal. Esse era o“abecê” dos artistas circenses daquela época. Nopróprio circo, os artistas antigos ensinavam agente. Daí comecei a aprender outras coisas,malabares, equilíbrio e escada livre que é umnúmero que a escada fica livre e a gente sobe naescada balançando, desce de costas, sobe decostas, joga malabares ou toca um instrumen-to. Eu fiz esse número. Fiz também o globo damorte quando já era moço e assim por diante.

DA: Antes dos doze anos você moravaaqui em São Paulo?

N: Sempre morei na Vila Mariana.

DA: E como foi esse período de molequeantes do circo?

N: Meu pai tinha um armazém na Penha.Gostava de brincar como toda a garotada. Eumorava em frente ao cemitério. Me lembro deuma brincadeira de moleque. Naquele temponão existiam essas brincadeiras de hoje, os brin-quedos a gente mesmo construía. Faziapatinetes, carrinho de mão, carrinho de“rolimã”. Não existiam brinquedos fabricados.Quando chovia, amassávamos o barro e ficá-vamos fazendo guerra.

Eu me lembro dessa cena porque, sem que-rer, de longe, um jogava no outro e acertei oolho de um amiguinho meu. Ficou grudado nosolhos dele! Levei um susto danado. Que susto!Minha mãe me deu uma surra. Mas nós jogá-vamos bolinha de gude, também. E pião, mui-to pião... Hoje não tem mais nem isso, jogarpião, prego... Acabou tudo isso. Ninguém sabejogar bolinha de gude, não sabe jogar pião,arrebentar o pião do colega. Quem arreben-tasse o pião do colega, ganhava o pião.

DA: E você também ajudava no armazémdo seu pai?

N: Não, era muito pequeno. Tinha seis anosnaquela época.

DA: E como foi essa mudança para o cir-co? Como a família resolveu mudar?

N: O meu tio Antolim Garcia nos levoupara o circo. Meu pai também era ator, minhairmã era atriz. Uma grande atriz, por sinal.Minha irmã e eu fomos atores mirins, e assimfomos lutando com a vida.

DA: O nome do circo já era Garcia?N: Era Circo Garcia.

DA: Como era o circo?N: Já era grande, de categoria. Tive o prazer

de pertencer a três circos: Circo Garcia, Piolim

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- História de Vida: Nelson Garcia -

Doutores da Alegria 21

— porque fui genro do Piolim —, e Circo Nerino,do palhaço Picolino. Três circos de categoria.

DA: São os três maiores circos do Brasil.N: Na época eram. Depois o Garcia conti-

nuou sendo o maior do Brasil. Só que agorafechou, faliu. Paciência!

DA: O Circo Piolim era de São Paulo. Umagrande atração no Centro da cidade.

N: Fazia os bairros também, mas depoisficou na Rua Paraíso por muito tempo. Daliele mudou para a Praça Marechal Deodoro.Ficou por lá por 20 anos. Ele fez uma cobertu-ra de alumínio. O único circo com coberturade alumínio. Na época, era pano ou lona.

DA: Como o senhor passou de ator a pa-lhaço?

N: Fui ator mirim. Depois passei a ser pa-lhaço, já no circo do meu pai, o Circo Cruzeirodo Sul. Na época, o chamariz dos circos era opalhaço. O palhaço tinha que agüentar o rojão.Por causa disso, quando o circo começava aganhar dinheiro, os palhaços se sentiam osdonos da situação, os donos do circo. Comojogador de futebol. Queriam ganhar mais, se-não iam embora. Eu fazia o escadinha dos pa-lhaços que entravam no circo do meu pai. Erao escadinha, o clown, com aquelas roupas bo-nitas. Adquiri prática como palhaço e faleipara o meu pai: "Pai, o negócio é o seguinte:

eu vou fazer o palhaço. Eu faço o palhaço"."Ah, você faz?". "Faço, pode deixar". Aí come-cei a fazer o palhaço. O meu pai foi quem meapelidou de Figurinha.

DA: Por que?N: Porque quando ele levava os caminhões

do circo nas oficinas mecânicas, havia aquelesmeninos que ajudavam os mecânicos com asferramentas. E esses meninos sempre recebi-am apelidos. Rebite, Chupeta de Galo, uns ape-lidos assim esquisitos. Numa dessas oficinashavia um rapazinho a quem os mecânicos ape-lidaram de Figurinha. Figurinha difícil: "Ô,Figurinha... me dá a chave número tal e a cha-ve ..." ... "Traz o pé de cabra!" ... "Traz aí aque-las ferramentas de oficina" Aí meu pai lembrou-se desse nome e "botou" o nome de palhaçoFigurinha. Fiquei como Figurinha, Figurinhadifícil, a vida é essa...

DA: Isso aconteceu no Cruzeiro do Sul?Quantos anos você tinha?

N: Já era moço. Foi em 1943. Eu tinha 22 anos.

DA: Você fazia o palhaço. Mas continua-va fazendo teatro?

N: Sim! O teatro era a força do circo. Comohoje é a novela para a televisão, naquela épo-ca o teatro era para o circo.

DA: As pessoas iam para o circo ver o teatro?

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22 Doutores da Alegria

N: O meu tio Antolim, meu pai e minhairmã foram grandes artistas de teatro.

DA: E que peças você fizeram? Você lem-bra de alguma?

N: Comecei com um papel em O Gaiatode Lisboa. Tinha 52 páginas de cor. Foi o pri-meiro papel que eu fiz. Assim, de cara. Fiqueidoido. Meu pai era ator também, meu tio umgrande ator e a minha irmã uma grande atriz.Sobre mim, não vou falar porque sou suspeito,mas eu agradava, não sei por que razão. Quan-do moço, comecei a fazer os papéis de galã cô-mico e assim fui me ambientando. Quando fizpalhaço, já era ator cômico, galã cômico. Eufazia galã até para a minha mãe e para a mi-nha irmã. É assim a vida circense.

DA: E você fazia sucesso também com opúblico? As meninas gostavam do galã?

N: Eu conseguia fazer o povo rir. E ninguémacreditava que eu conseguisse, porque era meiotímido, retraído. Mas consegui, de maneira que avida foi progredindo, até que em 1958 os promo-tores de propaganda das Bicicletas Monark meviram fazer uma apresentação no Circo Bombrildo Valter Stuart, que aliás faleceu. Era muito meuamigo. Ali me viram fazer a apresentação. A fá-brica de bicicletas achou interessante me chamarpara fazer promoções e eu fui. Fiz um contratoexperimental de um mês com as BicicletasMonark, ganhando 45 mil Cruzeiros. Nem o

Roberto Carlos ganhava isso! Foi um estouro nomeio artístico quando souberam! Nossa Senhora...!"Figurinha, meus parabéns!". Fiquei 20 anos tra-balhando para Monark e me aposentei pelaBiciletas Monark.

DA: Era garoto-propaganda da marca debicicletas?

N: De maneira que com a Monark, porexemplo, é que rodei o Brasil todo e uns paísesda América do Sul. Rodei com eles, de carro,de Kombi, de avião, de navio... Eu ia em tudoquanto era cidade. Uma cidade por dia, e àsvezes mais. Quando as cidades eram perto, demanhã, eu fazia o show em uma e depois pas-sava para outra. Às 2 horas da tarde, fazia umshow em outra cidade e à noite em outra. Aqui,no Estado de São Paulo, que têm cidadespertinho umas das outras, era assim. Faziaquatro ou cinco shows e, ainda, em algumascidades que tinham canais de televisão, faziaa TV local. Agora estou chegando aos 86 anos,exatamente no dia 20 de maio. Meu pai, AgenorGarcia, faleceu aos 97 anos. Foi o que morreumais velho na família inteira.

DA: E sempre trabalhou no circo?N: Não. Trabalhou em várias e muitas coisas.

DA: Você disse também que trabalhou natelevisão. Abriu a televisão aqui no Brasil.

N: Ah, sim.

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Doutores da Alegria 23

DA: Como foi essa história?N: Havia aquele Cirquinho Bombril, o fa-

moso Cirquinho Bombril. O primeiro progra-ma de circo que houve na televisão brasileira.Eles me chamavam para fazer números. Faziavários números de bicicleta. Não fui o maiorciclista em dificuldade, mas fui em qualidadee em quantidade de aparelhos, porque tinhanove tipos de bicicleta, vários monociclos. Che-guei a fazer, também, uns programas de pa-lhaço na TV Tupi. Depois, trabalhei tambémnas outras emissoras. E quando saía para ointerior, nas capitais de outras cidades que ti-nham programas infantis, ia lá e me encaixa-va. Eles me encaixavam em um programa de-les, da cidade. Já era patrocinado. Não ficavacustoso para eles.

Graças a Deus! Eu posso morrer amanhã,mas tenho o prazer de conhecer o meu Brasilde norte a sul, de leste a oeste, sudoeste a sudes-te. É assim. Eu fiz tudo! As capitais, interiores...

DA: E quando você trabalhou com oPiolim?

N: Bom, eu trabalhei com ele antes de ca-sar com a filha dele. Fazia escadinha para ele,no lugar do filho, meu cunhado.

DA: Conheceu sua companheira no circo?N: Era minha colega. Eu nunca pensei que

ia casar com ela. Nunca pensei, mas nasceu

qualquer coisa diferente. Foi difícil, ela nãoacreditava. Brincávamos, vivíamos juntos. Elafazia também número de bicicleta, fazia juntocomigo. Fazíamos acrobacias em dupla nasbicicletas.

DA: E quando o senhor percebeu que gos-tava dela?

N: Estava gostando dela sem querer. En-graçado, nasceu um negócio e ela custou a acre-ditar. Ela ria e não acreditava que eu estavagostando dela. Aí fui... fui... fui... consegui. Vocêimagina? O meu casamento foi tão feliz que,em quatro anos de casados ela teve seis filhos.Duas vezes gêmeos. Só aí são quatro. Depois,com a idade, os filhos não casavam e ela esta-va com saudade de criança coitada e quis ado-tar uma menina. Adotamos uma menina. Hoje,essa minha filha está com 35 anos. Me deu duasnetinhas. Eu sou avô, com uma netinha dequatro anos de idade.

DA: E você criou os seus filhos no circotambém?

N: Não, não foram criados no circo. Por-que, na época, a gente queria que eles estudas-sem, porque o estudo é tudo. Eu já tinha comoexemplo dois irmãos advogados, formados,com uma vida bem melhor que a minha. Tiveum irmão que foi um brilhante advogadocriminalista e outro chefe da procuradoria doEstado, aqui em São Paulo. Portanto, achava

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24 Doutores da Alegria

que eles deveriam estudar. Uma acabou se for-mando em técnica contábil. O filho que eu que-ria que se formasse, não se formou. Andou fa-zendo umas falcatruas e não se formou. As-sim é a vida. A minha filha adotiva se formouno magistério. É professora. É a vida. Estouaqui. Um velho alquebrado.

DA: E o senhor não trabalha mais comopalhaço?

N: Não, não tenho mais pique. Hoje façouma coisa que gosto muito de fazer: cozinhar.Mas cozinho desde menino. Às vezes, quandoera menino, coincidia, na mudança do circo,de eu ir na frente. Naquele tempo, se aluga-vam casas. Era fácil alugar casas por um mêsou 20 dias. Alugava nas cidades e, às vezes, iana frente dos meus pais. Quando meus paischegavam, em uma outra viagem de cami-nhão, eu já tinha arroz feito e ovos fritos. Des-de menino! Eu era menino ainda e sempre gos-tei de cozinha. Cozinho até hoje. É uma lou-cura. Comecei a fazer de tudo, feijoada,macarronada...

DA: Ainda vive com a sua senhora?N: Não. Sou viúvo. Ela faleceu, infelizmen-

te. Já faz 5 anos e meio. Faleceu com 79 anos.É a vida. Paciência... Teve uma queda na sala,quando foi pegar o controle para desligar atelevisão. Caiu e fraturou o fêmur. Depois nãoconseguiu andar mais, foi para a cama e na

cama definhou. Acabou falecendo. Era umaatleta. Fazia números de ginástica no circo.Saltava muito bem, saltos mortais, ginástica emgeral. Era uma atleta. Eu também fui atleta.Mas ela foi uma grande artista e no teatro eramuito boa também... É assim a vida...

DA: Você foi escada do Picolino também?N: Trabalhei com ele no circo. Os pais dele

tinham o Circo Nerino , e me contrataram parao Nordeste brasileiro. Eles se ambientaram porlá, de maneira que eu fui contratado para sero palhaço do circo, porque o pai dele já nãotrabalhava mais, pois era muito idoso. O tiotambém tinha problema de voz, rouquidão navoz. Fazia os palhaços lá e não dava certo. Porisso me contrataram. Aí o Picolino ficou comomeu escadinha. Fazia dupla comigo.

Mas infelizmente a minha senhora ficoudoente, não se ambientou no Nordeste e eu tiveque sair do Circo Nerino. Aí é que o Picolinopassou a fazer o palhaço. Então, quando elecomeçou a fazer o palhaço, fazia uma mesclado meu modo com o do pai dele. Juntava osdois. Depois pegou a linha, o estilo dele. Só queo pai dele era Picolino, porque Picolino é pe-queno em italiano. O Roger Avanzi não é pe-queno. É altão. Tinha que ser Picolão.

DA: As viagens eram todas feitas de cami-nhão. Qualquer imprevisto, tinha que voltar...

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N: O Nerino também tinha vários cami-nhões. Aprendi a dirigir em caminhão. No cir-co do meu tio Garcia havia dez caminhões paratransportar o circo. Levava tudo de uma vezsó. Eram caminhões-carreta. Enquanto o circoestava estacionado, às vezes, eu ia no cami-nhão e dava umas marchas a ré no terreno...Tudo que aprendi foi por curiosidade.

Não tive mestre para ensinar isso ou aqui-lo. Gosto de olhar, sou curioso. Sempre fui cu-rioso. Aprendi de tudo: mecânica, pintura,carpintaria. Fazia cenografia, cenários do cir-co, das peças teatrais. Eu é que fazia! Aprendicom meu tio Garcia, de vê-lo fazer. Aprendicarpintaria, eletricidade... o meu negócio eramserviços manuais.

DA: Qual palhaço você mais gostava dever trabalhar?

N: Bom, modéstia à parte, o meu sogroPiolim. Imagine que o Piolim trabalhava de umjeito que, enquanto ele soltava piada, que opovo estava rindo, ele tinha sempre uma pia-da para fazer para a gente [companheiros depicadeiro], para contar, para cochichar com agente. Era danado, nasceu para fazer aquilo.Mas era também uma pessoa bastante calada.Evitava conversa fiada, era reservado.

DA: E você é religioso?N: Eu não pratico religião, mas tenho um

princípio católico. Entro na igreja quando medá vontade, não por obrigação.

DA: Chegou a fazer a Paixão de Cristo no circo?N: Adivinha qual o papel que fazia?

DA: Jesus?N: Eu, cômico — palhaço tem que ser sim-

pático —, fazia o Judas. Um papel antipático.Meu pai fazia Jesus, o meu tio Antolim tam-bém e eu o Judas; a minha irmã fazia a Maria,a virgem.

DA: Aos 86 anos, quais os seus planos?N: O que eu penso agora na vida é ganhar

na mega-sena, deixar meus filhos em boa situ-ação. Isso é o que eu penso. De resto, a minhamoradia vai ser em Pinheiros, no cemitério SãoPaulo, onde está meu pai, minha mãe, um ir-mão e minha esposa.

DA: Depois que a sua esposa faleceu, nãoteve outra companheira?

N: Não. Já tinha idade. Quando ela fale-ceu, já estava com 80 anos. Para quê?

DA: E nunca quis ter um circo seu?N: Não, sou ruim em dirigir. Prefiro ser di-

rigido. Mandar não é comigo.

DA: Agradeço sua disposição, o tempo quevocê reservou para conversar com a gente. Nós

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também somos um pouco mais jovens e bas-tante curiosos. Aprendemos um monte sobreo circo e as andanças dos palhaços no Brasil.

N: Pois é, eu também tenho que agrade-cer a vocês. Foi uma manhã bastante bacana,de modo que estou satisfeito.

Notas(1) Esta entrevista foi gravada no dia 20 de abril de2007.

(2) CF. Roger Avanzi e Verônica Tamaoki. Circo Nerino.São Paulo, Pindorama Circus & Códex, 2004 & entrevistade Edson Lopes a Roger Avanzi (Picolino Segundo)publicada no Boca Larga, primeiro volume, de 2005, entreas páginas 87 e 95.

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Anchizes Pinto: Meu nome é Anchizes Pin-to. Nasci em São Paulo, capital, no Brás, nodia 26 de novembro de 1924.

DA: Seus avós e pais são de onde?A: Do circo! Quer dizer, cada um nasceu

em um lugar. O meu pai nasceu em Palmas.Meu avô era de Barra do Piraí. Minha avó deUberaba.

DA: Todos de circo?A: Sim. Meu avô tinha cinco circos. Sou

sobrinho do Piolim. Tenho uma bengala queera do meu pai, irmão do Piolim. A dupla eraFaísca e Piolim. Tenho essa bengala guardadacomigo, porque papai a usava.

Meu Avô paterno tinha cinco circos. Cha-mava-se Galdino Firmiano Pinto. Tinha um cir-co fixo em São Paulo, na Praça MarechalDeodoro, o Circo Piolim, cuja cobertura era dealumínio. Praticamente um teatro, mas tinhapicadeiro e palco. Nasci lá. Aos sete anos já eraprofissional. Entrei com quatro e já fazia tony

soirée, aquele palhaço que fica na pista imitan-do os artistas, fazendo errado, enquanto trocamos aparelhos, tiram o trapézio, botam uma bar-ra. Eu fiz isso com 5 anos, na verdade. Daí emdiante, fiz de tudo. Era volante de acrobacia,cômico e também galã nas peças. Fazia dramae comédia. Meu avô tinha a mania de ensinartudo de circo para todo mundo. Tínhamos pro-fessores. Inclusive, a gente fazia os exames decolégio e, nas datas dos exames, a gente vinhapara São Paulo. O circo viajava e tínhamos queviajar junto, porque a gente trabalhava. Eu, porexemplo, era volante de acrobacia. Fazia inclu-sive o globo da morte com motocicleta. Fiz tudoem circo. Aprendi até acrobacias ligeiras. Essaginástica de solo, de saltos, que hoje essas meni-nas atletas fazem, aprendi e fazia. Vencemosum campeonato sul-americano, Carequinha,Franklin Azevedo e eu. Os três representavamo Brasil naquela ocasião.

DA: Antes do seu avô, a sua família já ti-nha circo? Ou começou com ele?

História de Vida: Anchizes Pinto

Ankito

Gravação e transcrição para o Projeto Memórias de Palhaços e Comediantes, com depoi-mento de Anchizes Pinto a Morgana Masetti e Dani Barros no dia 13 de junho de 2007, noestúdio cedido pela ESPM-RJ. Duração da gravação: 01:14:25. Transcrição por GlobalTranslations.

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A: O meu bisavô era fazendeiro em Barrado Piraí.

DA: Começou com o seu avô?A: Sim. O meu avô fugiu atrás do circo

por causa da minha avó... Meu avô era bacha-rel em direito, filho de um milionário, meu bi-savô. Ele se apaixonou e fugiu.

DA: O que sua avó fazia no circo?A: Minha avó era eqüestre atiradora. Fa-

zia tiro ao alvo na anca de um cavalo. Corriaao redor do picadeiro, com uma pistola. Umagrande atração. Pelo que me lembro, fazia coi-sas assim. Um negócio, que me impressionavamuito: pegava uma tábua envernizada e umamoeda de 400 Réis. Mostrava para a platéia.Ela a colocava sobre uma mesa, deitava e tira-va a moeda de cima da mesa sem riscar a tá-bua, à bala. Era uma coisa engraçada. Meu avôcorria um risco...! Botava uma batata inglesana cabeça e a minha avó, com o espelho, atira-va e tirava a batatinha da cabeça dele... Umdia, ela dizia para ele: "levante a cabeça". Eele, lá de trás: "atira". "Levanta a cabeça". "Ati-ra". "Você quer, né?" Ajeitou e pum... pegou abatata, mas riscou a cabeça dele... Ele tem amarca até hoje. Lembro, eles contavam, masnão vi. Contavam muita coisa engraçada. Aminha avó era matriarca mesmo, mandava edesmandava em tudo.

DA: Quantos filhos eles tiveram?A: Três. Piolim (Abelardo Pinto), Raul Pin-

to e meu pai Anchizes. Casaram-se com mo-ças da cidade, que depois passaram a ser artis-tas também. A minha tia, esposa do Piolim,Benedita, era de Guaratinguetá. Minha mãe deRio Novo. A Alice foi da trupe imperial japo-nesa, porque meu avô montou o Circo Imperi-al Japonês. Montou o Imperial JaponêsTemperani, o Queirollo, tudo era dele.

Circo geralmente é uma família só, tantoque preferem que se case com uma pessoa decirco, mas as moças passavam a ser artistas tam-bém. Minha mãe passou a entrar nas comédi-as, minha tia Benedita também. Assim era avida. Muito boa, ainda sinto falta. Dei então umafugida do circo, porque ouvia falar do Cassinoda Urca. Eu, modéstia à parte, saltava muito. OCarequinha e o Franklin Azevedo também. Issoque fazem hoje as meninas, a família Hipólito...ginástica de solo... a gente saltava muito. Eu so-nhava em trabalhar no Cassino da Urca, masnão podia sair do circo, porque fazia de tudo.Era volante de acrobacia. O volante é aqueleque, na trupe de acrobatas, fica na tábua, nabáscula, pula, salta, volta, cai sentado em umacadeira que o outro pega lá em cima... Era tudoda família. Era o volante, fazia o globo da mor-te, palhaço, ponto, tudo. Eles não queriam queabandonasse... meus pais que pediam. Eu perdimeu pai com 13 anos.

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Doutores da Alegria 29

DA: O que aconteceu?A: Com papai? Coração. Então fugi. Papai

faleceu, fiquei só eu e minha mãe... Quer dizer,a família toda. Vovó é que mandava mesmo.

DA: Tinha irmãos?A: Não. Era filho único de mãe viúva. Por

isso estou no Brasil. Porque nunca deixei mi-nha mãe. Enquanto a minha avó foi viva, dei-xei minha mãe com a minha avó... Estava acos-tumada. A minha mãe completou 13 anos de-pois de seis dias de casada.

DA: 13 anos? Seis dias depois de casada?A: É. Na época da gripe espanhola, que dizi-

mava todo mundo, meu avô em Rio Novo pas-sou, parou o circo e botou os artistas todos paradistribuir comida... O meu pai conheceu a minhamãe entregando comida e remédios na casa dela.

DA: Por causa da gripe espanhola?A: E transformou o circo em um hospital.

Botou os artistas todos para fazer as entregas,os Temperanis, os Queirollos, todos os que tra-balhavam no circo carregavam comida... Asmulheres cozinhavam. Salvou a cidade. Atéhoje há uma fotografia de 2 metros do meuavô na Prefeitura de Rio Novo.

Perdi papai. Como fazia os números desolo, queria trabalhar nos cabarés da madru-gada. Não podia sair com 14, 15 anos, porque

não tinha idade. Assim mesmo, dava umasfugidas e saía, então fiz mamãe assinar umpapel que um amigo advogado me deu. Elanem sabia o que era direito, assinou um papelme emancipando. Então, era maior de idade.

DA: Ah, mas o senhor a enganou?A: Não, o rapaz, que era meu amigo fez o

papel e eu chamei mamãe: “assina aqui paramim. Isso aqui é...” E ela assinou. Guardei opapel. Foi o que valeu para trabalhar na Urca.

DA: Foi trabalhar na Urca?A: Fugi e fui para a Urca. Quer dizer, che-

guei ao Rio de Janeiro e não conhecia nada.Tinha 16 anos, quase 17. Foi em setembro e euaniversario em novembro. Desembarquei naCentral do Brasil. Não conhecia nada. Eu sósabia de uma pensão onde moravam artistasque trabalhavam com o meu avô. Faziamcachê no circo. Moravam aqui [Rio de Janei-ro] e trabalhavam nos circos daqui, porqueexistiam muitos circos nos bairros antigamen-te. Sabia que era a pensão Rio Lisboa, na es-quina da Rua Lavradio com a Senado. Fuiperguntando onde era a pensão. Vim de trem.E fui perguntando, perguntando e cheguei àpensão. Hoje é o Hotel Viçosa. Cheguei... e ,antigamente, havia café da manhã, almoço ejantar. Estava todo mundo tomando caféquando cheguei. Desembarquei às 8 horas echeguei às 9:30, quase 10 horas.

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Cheguei lá. Aí me viram: “Oi, como está,Anqui?” Porque era Anqui, não Anquito. Meunome é Anchizes, mas me chamam de Anqui.“Vim trabalhar na Urca...” Foi uma risada só,porque não tinha artista nacional na Urca. Sófaziam a audição, um teste no intervalo dosbalés que ensaiavam, uma vez, duas vezes porsemana. Descansavam e os artistas que tinhamfeito ficha, faziam uma audição. Seria comona televisão hoje, a mesma coisa: “Faz a ficha,deixa o seu telefone que a gente telefona.” E ocara ficava esperando anos da vida e nuncatelefonavam. Aí riram e falaram assim: "Nin-guém trabalha lá. Não faz isso, porque nin-guém...” Eu disse: "Mas eu vou trabalhar lá.""Não dá para você trabalhar". "Mas eu vou.Tenho que trabalhar". Pedi que me ensinassema chegar: "Pegue um ônibus ali... Forte Naval,São João, Largo da Carioca." Ensinaram-mecomo ir pelo Largo da Carioca. Cheguei lá às11 horas, meio dia. Desci na Urca, porque omotorista me disse: "É aqui a Urca". Era aque-la imensidão, aquele troço que tem até hoje,infelizmente abandonado. A Urca eraindescritível. Coisa de cinema... de cinema épouco. Eu fiquei olhando para aquela porta devidro enorme, aqueles degraus que tem atéhoje... Entrar como? Via descer. Parava umcarro e descia lá na frente... entrava. O caradescia do ônibus e ia direto para aquela porti-nha. Fiquei olhando lá para longe. Tem até hoje

a portinha. Fui lá, e todo mundo passava e di-zia: "Vim falar com o Sr. 'Fulano' Garcia". Fiza mesma coisa. Entrei na fila, chegou na roletae o segurança: "E o senhor"? “O Sr. 'Fulano'Garcia está me esperando”, abriram a porta eeu entrei. Fiz uma audição e fui contratado nomesmo dia.

DA: Para fazer o que?A: Estreei como um grilo...

DA: Grilo?A: Porque saltava muito. Comecei a sal-

tar... saltava para lá, para cá e o Sr. Garcia,que era o diretor geral falou: "Poxa, eu tenhovisto gente da Europa toda — ele era portugu-ês — mas nunca vi ninguém saltar desse jeito.Você é muito bom. É de onde?" Começou aperguntar, e eu falei que tinha vindo de SãoPaulo. E ele falou: "você veio..." "Vim traba-lhar aqui." "Ah, você veio trabalhar aqui? Estábem, quantos anos você tem?" Eu disse: "16".Ele disse: "Poxa vida, não dá". Eu disse: "Masfui emancipado". Aí mostrei o papel. Ele faloulá com o advogado, Dr. Fernando Robson."Pode trabalhar". Fizeram a minha roupa eestreei como um grilo no show Canta Brasil.

DA: Por tempo o senhor trabalhou lá?A: Ah, de 1941 a 1945, quando fechou.

Fazia ciclismo. Montei um número de ciclis-

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tas, cômico-acrobático. Sempre acrobático. Abase do meu negócio era acrobacia, porque erao que eu sabia fazer bem. Fiquei lá.

DA: E a sua mãe ficou em São Paulo?A: A mamãe estava lá em São Paulo, com

a minha avó. Enquanto a minha avó viveu, eudeixei a minha mãe. Depois que a minha avófaleceu, fui buscar mamãe e a trouxe...

DA: Para o Rio...?A: E aí tive... nossa... convites pelo

Cantinflas. O Cantinflas viu uns filmes meus equis me contratar. Cinco anos de contrato parair para... mas eu tinha que levar mamãe. Eledisse: "Não pode, você tem que ir sozinho pri-meiro, porque tem uma maneira de propagan-da, tem não sei o quê... depois você pode man-dar". Aí eu disse: "Está bom. Então estou fora".E não fui. Fui para onde ia a velha. Ela estevecomigo até os 94 anos de idade. Faleceu há 8anos, ali na minha chácara. Estávamos lá, ondeeu estou hoje. Fiquei na Urca, mas fechou...

DA: Quando fechou, o que o senhor foifazer?

A: Voltei para São Paulo. Eu falei: "vouvoltar para São Paulo". Estava desempregado,ué! Voltei para São Paulo e fui trabalhar noscircos de lá, porque, além dos circos, havia oPiolim e o Arrlia...

Fui para casa. Fiquei trabalhando nos cir-cos e comecei a trabalhar... — eu tenho atépropaganda disso —...no Maravilhoso [boa-te]... era um dancing, fazia shows lá. Traba-lhava também no OK, que era outro Cabaré.O Príncipe, que era um empresário que tinhacontato com o Campo de Villes de BuenosAires, mandou umas fotos, uns negócios, e fuicontratado em Buenos Aires também. Fiqueilá por 5 anos. Vinha todo ano ver mamãe e afamília. Passava um mês, dois meses aqui evoltava para Buenos Aires. Fazia peão emBuenos Aires, Viajava pela Europa, fazendoacrobacia. Em 1952, um barão que era supe-rintendente do Copacabana Palace me viu emFrankfurt. Já não tinha mais jogo [referênciaao cassino do hotel], mas havia shows e esseseria um especial com a Lady... um show bo-nito. Era a primeira bailarina do Municipal eeu fazia um tigre saltando por cima dela. Aíentão o barão me contratou para fazer umshow aqui [Rio de Janeiro]. Eu falei: "eu vou,e ainda vou ganhar dinheiro nas férias." Vi-nha mesmo e vim.

DA: No Copacabana?A: Fiz o show no Copacabana Palace.

Então, João Daniel montou um tira-teima...aqueles teatrinhos pequenininhos de 200 lu-gares. Mini-teatros tinham uma porção e oJoão Daniel me contratou como atração. Só

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fazia um show no Copacabana à meia-noite.Ele pediu a licença e eu ganhava mais umanota lá e trabalhava porque gostava. Traba-lhava no Copacabana e no teatro. Adoeceu ocômico e me pediram para fazer. Fui fazer desacanagem no picadeiro. Fui substituir em umarevista. Watson Macedo tinha saído daAtlântida e estava montando um filme dele:"Fogo na Roupa", me viu trabalhando e con-tratou para dois dias de filmagem. Fomos em1939 e eu passei a ser o primeiro ator do filme.

DA: Esse foi o primeiro filme que o senhor fez?A: Foi "Fogo na Roupa". Passei de acroba-

ta para cômico e não consegui sair mais. Es-treou o filme e foi um sucesso. Fui contratadopela Cinelândia para fazer três filmes.

DA: Que idade o senhor tinha quando fezo primeiro filme?

A: Bom, eu já tinha... 1941, 1945... eu ti-nha 30 anos.

DA: E começou...A: Em 1952. Foi isso. 30 anos de idade, eu

acho. Mas não sabia nada de cinema, nem decoisa nenhuma... Fui fazendo aquela coisa decirco. Disseram que eu parecia muito com oOscarito, que já era um grande sucesso. Nun-ca tinha visto o Oscarito, porque quando tra-balhava com o Walter Pinto eu não estava aqui.Perguntam de vez em quando: "você imitava

o Oscarito"? Eu digo ainda: "força eu fiz, masnão, nunca consegui". Ele era bom demais. Masporque nunca vi trabalhar. Nem falo isso. Es-tou falando hoje para vocês aqui, mas nemfalo. Fiz 56 filmes, mais ou menos 60, 62, 63,porque têm uns à parte aí.

DA: Todos para o cinema?A: Só cinema. Não podia fazer televisão.

Quando podia, fazia a Tupi de São Paulo.Quando a primeira televisão inaugurou fuifazer um quadrinho e, depois, a TV Rio. De-pois a TV Globo. De vez em quando faço ain-da. Foi assim... Surgiu então o Cinema Novo.Nas entrevistas me perguntam: "o que o se-nhor acha do Cinema Novo"? Eu digo: "Cine-ma Novo? Primeiro que para mim não existeCinema Novo. Existe gente nova fazendo ci-nema." O cinema é o mesmo, né? Não existecinema novo. A aparelhagem é nova? O pes-soal é novo? Quer dizer, tem gente nova fa-zendo cinema, que por sinal são muito bons.Bons filmes... Um monte de porcaria também,como na época. Mas o Oscarito é que foi o pre-cursor do cinema. Depois fui saber a históriadele. Veio para cá muito cedo. Era espanhol,veio bebê... Oscar Teresa... o nome dele é enor-me. Se existe cinema no Brasil, deve-se a ele.Fazia cinema em cima de caixote. O cara nãoera fácil não. Estou falando porque só soubedisso depois. Teve o Zé Trindade, o Mazzaropi,o Otelo, que trabalhou muito com o Oscarito.

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Depois, quando o sujeito estava quase pa-rando —porque também me disseram: "pas-sou o Oscarito para trás?" Eu disse: "Dois ca-valos correndo. Um pára. Quem ganha?" Cadapergunta estúpida...

DA: O senhor parou de fazer circo? Pa-rou de atuar no circo ou continuou?

A: Parei com o circo e não fiz mais. Nãodava...Fui para Buenos Aires, fazendo acroba-cia e fui para o Liverger, o Astor, viajei umbocado.

DA: Mas antes de começar no cinema, vocêfazia mais acrobacia, é isso?

A: Ah, sim, sempre fiz acrobacia. Era acro-bata até 1952, no Copacabana Palace. Depoisfui fazer publicidade por acaso. Gostaram efiquei fazendo, como faço até hoje. Ligo muitoe não ligo nada... Sempre fui da teoria que avida são dois dias.

DA: A vida é feita em dois dias?A: A vida são dois dias: ontem e hoje. De

manhã você não sabe de nada, sabe? O quevai fazer amanhã? Você pode fazer seus pla-nos, mas certeza você não tem.

DA: E o senhor casou?A: Tive algumas casas montadas e três

casamentos. Minha mulher até botou no livro.É uma biografia com detalhes. Eu sempre dis-

se a ela: "contar a história qualquer um podecontar, mas provar, pouca gente pode".

DA: Esse livro está publicado?A: Ah, ela estava escrevendo... Agora só

depende de um patrocínio, tanto que está paraser lançado. Mas sempre dizia a ela que preci-sa comprovar o que faz. Então ela comprova.O livro tem 170 fotografias, fora contratos ecoisas...

DA: É sua terceira esposa?A: É.

DA: Como o senhor conheceu as suas es-posas? Conta um pouquinho...

A: Ela? Essa?

DA: Não, todas.A: Ah, todas? É difícil, porque tem algu-

mas casadas, não dá para contar. Eram dois,três meses com uma, montava a casa, e sem-pre saía com a escova de dentes. Por isso nãotenho nada. Gasto tudo. Não tenho nada, di-nheiro nenhum. Um apartamento, umachacrinha, uma besteira, e o suficiente paraviver. Não ligo para nada, nunca liguei. Cai-xão não tem gaveta! Levar para onde? Tenhoum monte de filhos por aí.

DA: Quantos filhos o senhor tem?A: Registrados, que eu saiba, com certe-

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za? Três. Tinha três. Uma faleceu aos 35 anos,na noite de Natal de 1982, mãe de três filhos.Deixou-me três netas lindas e bisnetas...

De vez em quando aparecem homenagens.O que fazer?! É o reconhecimento, pelo menos,do que eu fiz. O livro da minha mulher foi acei-to logo de cara por causa dos detalhes. Desdedetalhes como de quando meu pai conheceu aminha mãe... Ela começou por aí, com casoscontados por minha mãe. Tem fotografias mi-nhas no circo com o meu pai, com a minha mãe.Cada coisa que ela conta tem uma fotografiaao lado... Tem até um contrato da Urca. Aindahá uma curiosidade sim pela minha vida... aTelemar me fez recentemente uma homenagemmuito bonita; os Correios, os telégarfos e atéprofessor de faculdade também.

DA: Qual filme o senhor mais gostoude fazer?

A: Gostei de todos. Como trabalho, temalguns melhorzinhos. Foram todos de grandesucesso de bilheteria. No "Metido a bacana"eu fazia dois personagens... Hoje fazem doispersonagens com duas câmeras de televisão.Três câmeras fazem três, quatro personagens,mas na época não. Só tinha uma máquina decinema que fazia dois personagens, porque seusava o reflexo. Havia a Super Power. Me en-sinaram muito nesses 56 filmes, porque soucurioso, trabalhando com gente que conhecia

muito. Vitor Lima, Betanco, Eurides Ramos ...conheciam muito cinema... Hélio Barrozo Neto.Eu perguntava muito e eles me ensinavam. Seialgumas coisas de cinema. Por isso que eu tedigo que a Super Power era uma máquina comuma máscara. Se colocava uma máscara nalente, de um lado e você fazia o personagemaqui, cortava, voltava a máquina... A única quevolta no lugar certo, no corte certo. Então vol-tava, trocava a máscara, de roupa, e fazia ooutro personagem.

Era difícil... Um trabalho difícil. Fiz doisfilmes assim. O "Metido a bacana", em que fa-zia um príncipe e um pipoqueiro, e o "PistoleiroBossa-Nova", em que fazia os dois... O que con-fundia o pistoleiro... Aquela mesma história detodos. Foram esses dois. Agora... sucesso mes-mo foi o que fez menos dinheiro. Marquei esseporque fez menos dinheiro.

DA: Qual foi?A: O "Boca de Ouro". Não o do Nelson

Rodrigues, outro. Uma paródia feita para oMazzaropi, que se mandou, fugiu. Foi para SãoPaulo fazer os negócios dele. Largou faltandoquatro dias para começar a filmagem. Já tinhatudo montado. Então o Dr. Alípio chegou: "Kito,está tudo montado, não tem como. Você faz?"Eu disse: "Eu faço sim". Não é o meu caso. Foiescrito para um caipira. Eu não sabia fazer cai-pira, mas fiz. Fez mais renda do que "O Manto

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Sagrado." Na mesma época que o "Metido a Ba-cana", que já era produção do Herbert Richard.Todo mundo pensa que eu trabalhava naAtlântida. Nunca trabalhei na Atlântida. Sem-pre fui da Cinelândia e comecei depois com oHerbert. Só. E fiz aí os 56 filmes, com esses dois.

DA: O que é preciso para ser um bom palhaço?A: Ser engraçado. Você precisa... se você

gosta de ser palhaço, faz palhaço. Precisa sa-ber apenas o seguinte: o humor é um negóciomuito sério. Não é brincadeira. É sério demais.Drama qualquer um faz. Comédia não. Vocêvê os caras que tentam fazer cinema, comédia,não conseguem, mesmo que sejam excelentesatores de teatro ou televisão.

O humor tem um tempo para você fazer,mas isso está dentro da pessoa. Você deve ter,porque você faz o palhaço, e tem que ser ver-dade. Sendo verdade, tem graça. Se não forverdade, não tem graça. Por exemplo, não seicomo é que eu posso te explicar. Você pega umpastelão... simplesmente bate na cara do outro,não tem graça nenhuma... Não tem graça, senão tiver o porquê. Agora, se o outro estivermexendo com você, cutucando você... vocêolha e faz um "beng" [voz forte] na cara dele.Aí tem graça, porque teve uma verdade... temque ter o porquê bater com um pastelão. Nãosei se eu estou me explicando bem. O humortem que ser verdadeiro, não pode ser mentira.

Mentira não tem graça. Você vê essa novela,Pé na Jaca: agrada. Não sei como agrada, masagrada. E tem uns atores que são meus ami-gos. Mas não gosto, com exceção do MuriloBenício, que sabe fazer graça muito bem.Aquelas caras dele, aqueles cacoetes são bons.Diz a piada na hora certa, no lugar certo.

Como dizia, não se pode contar uma ane-dota no velório que não vai funcionar... Presteatenção, se você bater com esse mesmopastelão no rosto de uma senhora de idade,não tem graça... mas, se você bater na cara deum galã metido a besta que está botando ban-ca de todo lado o povo morre de rir. Oexpectador se identifica com a gente, com opersonagem. Estão me chamando de falecidona rua até agora. Pulam em mim, uma vezderam um pulo em cima de mim, quase mederrubaram. Saia do supermercado com aminha mulher, a Denise. Uma mulher correu:"o falecido", e pulou em cima de mim. Quasecaí. Não caí porque a Denise me segurou. Ofalecido foi um personagem que fiz na novelaAlma Gêmea. Se identificam de tal maneiraque passa a ser realidade... Graça para crian-ça é uma, graça para adulto é outra. Entãovocê deve ficar no meio.

DA: Muito obrigado pela entrevista.

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Benedito Esbano: O meu nome é BeneditoEsbano. Sou filho de Eduardo Esbano e deAntônia Pereira Esbano. Nasci em Guaratinguetáem 23 de agosto de 1927. Estou com 79 anos.

O meu pai chegou bebezinho da Itália.Veio com meu avô, mas foi registrado emGuaratinguetá. Tanto meu pai quanto minhamãe são de Guaratinguetá. A minha mãe nãoera circense, mas casou-se e acabou se tornan-do. Vivi em Guaratinguetá até os 15 anos.

Da minha avó materna eu tenho uma gratarecordação. Como a maioria dessas pessoas an-tigas, era muito conservadora, mas muito alegre!Eu não sei se todos os portugueses são assim, masela tinha muita raça. Era muito alegre! Aos meus15 ou 16 anos, faleceu. Não conheci meu avô porparte de mãe, nem por parte de pai, que faleceuno ano em que nasci, em 1927.

Meu avô era da Itália. Começo o livro queeu estou escrevendo1, sobre as nossas

andanças, assim: Tudo começou em 1890, coma chegada ao Brasil, vindo de Gênova, de umjovem italianinho de 23 anos de idade, cha-mado Josepe Esbano. Somos de Guaratinguetáporque Josepe Esbano, quando veio da Itália,depois de andar muito por Minas, São Paulo eRio de Janeiro, se fixou em Guaratinguetá. Omeu pai nasceu ali e eu também. E fiquei porlá até os 15 anos de idade.

Doutores da Alegria: Conhece a históriado encontro de seus pais?

BE: Meu pai era filho de ciganos que sefixaram em Guaratinguetá e continuaram fa-zendo aquilo que o grupo deles fazia, traba-lhos com metais, tachos, todo tipo de funilaria.Quando a gente se fixa num lugar, acaba atéesquecendo um pouco das origens. Meu paitrabalhou numa fábrica como funileiro e foibarbeiro. O interessante é que descobriram umdom para o teatro. Meu pai e meu irmão eramatores. Se fizeram atores, gostavam daquilo.Isso foi naquele tempo do mambembe, daque-

História de Vida: Benedito EsbanoTRANSCRIÇÃO PORTUGUÊS - ÁUDIO - 00:40:58

Picoli

Gravação e transcrição para o Projeto Memórias de Palhaços e Comediantes, com depoi-mento de Benedito Esbano a Ângelo Brandini, Edson Lopes e Maria Rita Oliveira no dia 05 demarço de 2007, no estúdio cedido pelo Museu da Pessoa. Net. Duração da gravação: 00:40: 58.Transcrição por Global Translations.

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le teatro de aventura, em que se formava umgrupo que saía fazendo espetáculos pelo inte-rior. Naquele tempo toda cidade de interior ti-nha um cinema que era cine-teatro.

Cresci em Guaratinguetá e acabei traba-lhando desde criança. Em 1942, eu já tinha 15anos, apareceu na cidade um circo-teatro, oCirco Nova Iorque, da família Augusto. O donodo circo foi o famoso palhaço Pelado. Era umpalhaço muito bom. Esse palhaço chamou meupai para fazer um conserto de funilaria, latariae folhas, no circo. Ele foi, é claro. Teatro e cir-co, era tudo a mesma coisa. Acompanhei meupai para conhecer o circo. Eu me lembro queantes do final da temporada meu irmão pediupara o dono do circo para apresentar uma peçade teatro ali e ele cedeu. Lembro-me até dapeça: "O Gaiato de Lisboa", aonde eu fazia oGaiato, o papel do menino.

DA: Era uma comédia?BE: Era uma comédia portuguesa. Muito

bonita. Pela peça, o menino deveria ter 12 anos,inclusive, certa vez, Adelaide Abranches —acho que é esse o nome dela —, aos 60 anos,representou esse "Gaiato de Lisboa". O teatrotem essa facilidade, não é? Como eu, por exem-plo, com quase 80 anos, ainda faço Jesus Cris-to na peça "A Paixão de Cristo."

Ao final da temporada do Circo Nova

Iorque, a família Mastandréia deixou o circo.Quando um artista que fazia só um númerono picadeiro, um trapezista, um malabarista,saía do circo, não tinha importância, masquando saíam artistas que participavam daspeças, atores e atrizes, era um problema, devi-do ao teatro e porque desmontava-se todo orepertório de peças. Então, o Pelado nos con-vidou para acompanhar o circo. Já nos conhe-cia. Sabia que a família toda era de teatro.

Não pensamos duas vezes, em uma sema-na pegamos as nossas coisas e fomos emborapara o circo. Meu pai estava empregado numafábrica, fazia serviço de funilaria. Teve que fi-car para trás por mais alguns dias, para de-pois nos acompanhar. Este foi o nosso iníciona vida de circo. Mas já éramos de teatro.

DA: Quem foi para o circo?BE: A família era: meu pai, minha mãe, eu e

meu irmão. Mas nós levamos, também, mais trêspessoas que faziam parte do grupo de teatro.Duas moças e um rapaz. Fomos em sete pessoas.

DA: "O Gaiato de Lisboa" foi a primeiravez em que você representou no teatro?

BE: Não, a primeira peça que fiz no tea-tro, aos 12 anos, foi uma comediazinha cha-mada "Uma Anedota".

DA: Eram todos textos portugueses?

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BE: A maior parte das peças de circo eramportuguesas e espanholas. Algumas francesas.Não eram peças feitas para o circo. Eram dra-mas, comédias, levadas antigamente aos gran-des teatros. Tinha uma tragédia portuguesaque agradava muito quando a gente montava:"Ferro em Brasa", muito boa! E foi aí que ini-ciou a nossa entrada na vida circense. Já éra-mos de teatro e como o circo era circo-teatro,então não houve o que estranhar.

O meu pai era um belo ator, tinha maistendência para a parte cômica nas peças. Sem-pre os comediantes eram dele. Não foi difícilpara ele passar de comediante a palhaço Picoli.E eu, então, passei a fazer o clown para ele.

DA: O que é esta figura que você chamade clown?

BE: Bom, o clown quer dizer palhaço tam-bém. O clown era o "bem vestido", que entravacom aquela espécie de macacão de cetim, comaplicações muito bonitas, cartola, bengala, lu-vas brancas e sapatos de verniz, era o elegante.

DA: Também era o "inteligente" da dupla?BE: Isso. Esse clown foi o primeiro palhaço do

circo. Uns o faziam de bengala e outros comopierrô. Depois é que entrou o excêntrico todomaquiado. Então ele era o elegante e o palhaçoera aquele engraçado, bonachão, o bobo que fa-zia tudo errado, mas que, às vezes, deixava o clown

em apuros com a graça dele. Esse era o clown. Te-nho uma foto em que estou de clown, em umcirquinho pequeno e meu pai de palhaço. Fiz clownpara ele durante toda a sua vida de palhaço. Foiquando, em 1956, ele nos deixou.

DA: Assim, você se tornou o palhaço?BE: É, passei a ser palhaço aos trancos e

barrancos, numa necessidade que eu agrade-ço. Não à necessidade, porque meu pai fale-ceu, mas foi uma necessidade. Meu pai era oúnico palhaço dali, o circo-teatro sempre teveum palhaço só. Não é como circo de tiro quetem vários palhaços. O circo-teatro era de umpalhaço só e de uma responsabilidade tremen-da. Se o palhaço não pegasse na praça, o circofracassava. Então meu pai faleceu e nós con-tratamos um outro palhaço, da família Polito,para fazer a estréia conosco.

DA: A essa altura vocês já eram os donosdo circo?

BE: Sim. Estivemos no circo do Pelado,Circo Nova Iorque, por três anos. No final de1944 saímos do circo, em Machado, MinasGerais, tínhamos a nossa trupe de sete pessoase também a experiência do mambembe. Entãonós pegamos só um amador, ali de Machado,e saímos em oito pessoas, trabalhando pelascidadezinhas. A gente chegava na cidade e de-pois que chegava íamos procurar um lugarpara trabalhar. Sempre foi de forma mambem-

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be, como aventura. Trabalhamos em cinemase em clubes. Assim fizemos por sete meses. Em1945, no término da guerra, um pessoal doCirco Irmãos Martins nos chamou, nos conhe-ceram no circo do Pelado e nos chamaram paraver se queríamos deixar aquela aventura e se-guir no circo deles. Também não pensamosmuito. Fomos para o Circo-Teatro IrmãosMartins, em São João da Boa Vista. Ficamosdois anos com eles. Em Jundiaí, em 1947, fo-mos para o Circo Simões. O dono não era ar-tista, era só um empresário, mas tinha um gran-de circo. Foi quando chegamos em São Paulo,em 1947, em São Caetano. Fizemos uma tem-porada com eles e foi quando apareceu umartista tradicional do Circo Lucy que queriaparar com o circo e vender a lona. Compra-mos o circo, era pequeno, lutamos com umpouco de dificuldade.

DA: E foram os oito? A companhia toda?Eram coesos?

BE: A companhia toda. Sim, éramos. Pe-gamos outros artistas também. O elenco eramuito certinho, porque estavam todos ali den-tro, e os principais papéis das peças estavamcom a gente. Então, mesmo se saísse um ououtro, sempre se dava um jeito.

Tocamos o circo por nossa conta. Em 1953ou 1954, resolvemos fazer um pavilhão. Esta-

vam na moda os pavilhões de teatro, cobertosde zinco. Então fizemos também o nosso emSanto André, chamou-se Teatro Popular Volan-te. Continuamos com as peças, meu pai conti-nuou fazendo palhaço e eu o clown. Só não tí-nhamos aquele número de trapézio, não dava.Era só palco. Mas o circo e o malabarismo, esta-vam ali. Em 1957 meu pai faleceu. Contrata-mos um palhaço para estrear com a gente, e navéspera da estréia ele mandou dizer que nãopodia ir, que tinha que viajar para o interior.Meu irmão olhou para mim, levantando aque-la conversa: "E agora?" Me lembro até das pala-vras dele: "É você!". Eu disse: "Eu o quê?" "Vocêvai ser o palhaço." Ele estava certo, eu conheciaas entradas cômicas fazendo o clown, elegante,certinho, que tinha sempre razão. O palhaço éoutra coisa. "Não, mas você já conhece! E de-pois não tem outro!". Foi na véspera. Eu esco-lhi, então, uma das entradas cômicas que dessemais campo para fazer graça. Eu não me lem-bro qual foi, mas eu sei que escolhi a que maisdava oportunidade de graça, que fosse mais fá-cil para fazermos, e acabei entrando. Meu ir-mão fez o clown para mim. Fiz a estréia muitonervoso, com muito medo, apesar de saber queo público não sabia que eu estava estreando.Mas entrei por necessidade. Eu sempre digo:"Bendita necessidade!", amo ser palhaço. De-pois fui pegando o jeito. Já sabia tudo como meupai fazia. O meu pai agradava muito como pa-

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lhaço. E o nome do palhaço? Eu dizia: "Paraquê arrumar um outro se eu já tenho o nome dopalhaço do meu pai?"

DA: Era palhaço e continuou como ator?BE: Sim! Sempre estivemos em circo-teatro.

Era muito bom, muito gostoso, porque o circo-teatro apresentava uma peça por dia, tinha umrepertório grande. Quando terminamos, tínha-mos um repertório de 90 peças. Estreávamossempre com uma peça espanhola intitulada"Terra Baixa" ou "O matador de Lobos". Estre-ávamos no sábado. No domingo levávamos umaalta comédia intitulada "Hotel dos Amores". Nasegunda-feira levávamos a tragédia portugue-sa da qual falei: "Ferro em Brasa".

DA: Como era a estrutura do espetáculo?Primeiro apresentavam o espetáculo de pica-deiro (o show de variedades) e depois os dra-mas? Como era?

BE: Era dividido em três partes, mas nóschamávamos sempre de 1ª e 2ª, tanto que quan-do um artista que não conhecíamos chegava lá,para ser contratado pelo nosso circo, a genteperguntava: "Você é de 1ª ou de 2ª?". O artistajá sabia. O de 1ª era do picadeiro, eram os nú-meros, e o de 2ª era de teatro. Então ele falava"Sou de 1ª ou de 2ª" ou "Sou de 1ª e de 2ª". Amaior parte deles era sempre de 1ª e de 2ª. Ocirco mesmo, o espetáculo, era dividido em 3

partes. A 1ª parte, no picadeiro, levava sempreuns 2 ou 3 números. Não podia alongar muito.

DA: Quais eram os tipos de números?BE: Era circo. Qualquer número: trapézio,

malabares, números de altura, de solo e a en-trada do palhaço. Quando terminava o pica-deiro, abria-se a cortina do palco imediatamen-te, sem intervalo, e aparecia então o humorista.Era um humorista caipira ou qualquer tipo dehumorismo. Então apresentávamos no palcoum ato de variedades, como chamávamos.Com cantores, cantoras e esquetes com ohumorista. Quando terminava o ato de varie-dades vinha o intervalo, de 10 ou 15 minutos,era para os artistas se trocarem para o dramaou para a comédia. A gente levava somente apeça, quando era muito longa. Nós levávamosuma peça, que era "Conselho e Guerra", de 14atos. Então o circo era assim, dividido em 3partes: picadeiro, variedades no palco e depoisdrama ou comédia (o teatro).

DA: E você era de 1ª e de 2ª?BE: 1ª e 2ª. Além de palhaço, fui equilibrista

e atirador de facas, mas me dediquei mais aopalhaço mesmo.

DA: E seus personagens no teatro eram sem-pre cômicos, ou faziam os dramáticos também?

BE: Não! O gostoso era isso! O primeiro

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papel que eu fiz depois de adulto, foi numapeça francesa: "Aimer" ou, "Assassino poramor". Eu fazia um conde. Eu não me lembroagora o nome do personagem, mas foi o pri-meiro. Então o gostoso era isso, porque numdia eu fazia um conde e no outro um mendi-go, um cômico e um dramático. O gostoso eraisso. Eu fazia um galã, fazia o cínico, como erachamado o vilão. Fazia o cômico e não haviadificuldade porque também fazia o palhaço.O bom era isso, o gostoso era isso.

DA: E o teatro sempre tinha a figura doponto?

BE: Eu fiz ponto durante muitos anos. Oponto era que nem o goleiro em time de futebol.Qualquer coisa que o artista não pegasse muitobem, que vacilasse, o ponto era o responsável.Eu fui ponto e sei disso. Tínhamos o sinal. Nãopodia falar muito alto, tinha aquela cupulazinhana frente e não podia falar alto senão o públicoescutava. Mas, às vezes a gente abaixava de-mais, então, quando o artista não estava escu-tando, fazia assim: "toc, toc, toc" no chão, como pé. Ele batia o pé no chão. Esse era o sinal deque não estava escutando o ponto.

Aí a gente alterava um pouco a voz. E nãoera fácil o ponto não e também não era fácilpara o artista trabalhar o ponto, ter a práticade trabalhar com o ponto. Porque a gente en-

saiava uma peça nova e com cinco ou seis en-saios, já a levávamos ao palco.

DA: Não tinha tempo de decorar texto.BE: Não, não se decorava. Às vezes acon-

tecia de um artista ficar doente no dia do espe-táculo, mas a companhia era sempre grande etinha sempre o reserva, o que ficava no bancosentado para isso. O outro artista entrava, pe-gava a peça no dia, lia a peça durante o dia,"enfronhávamos", como costumávamos dizer,e dava uma conversinha com o ponto: "Olha,cuidado comigo". E ia assim, sem saber nada!Eu me lembro de uma vez que eu estava traba-lhando no Circo Bibi, um circo de teatro muitobom. Trabalhava também um artista de um cir-co Liendo, outro circo também muito bom,Cícero Liendo. E a dona do circo deu um papelpara esse artista, o Cícero, na peça "O segredodo mordomo". Eu não conhecia a peça. Deu apeça para o Cícero na quinta-feira para apre-sentar no domingo. No sábado à noite (era aquiem São Paulo mesmo) — não morávamos nocirco, íamos à noite e voltávamos —, o Cícerochegou lá e falou: "Escuta..." e entregou o pa-pel, "é muita responsabilidade esse papel paraa senhora me dar na quinta e eu fazer no do-mingo. A senhora, por favor, muda de peça".Quando terminou o espetáculo, ela veio a mime disse: "Sr. Esbano, está aqui o papel. O senhorvai fazer para amanhã". E eu já sabia dele e

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disse: "Mas um momentinho... eu não conheçoa peça e é o papel principal, é o centro...", o cha-mado papel central da peça, o centro dramáti-co... "e o Cícero leu a peça na quinta-feira e fa-lou que não pode, e a senhora vem me dar ago-ra, sábado à noite, para amanhã?". Eu lembro oque ela disse: "O senhor faz!", e bateu a mão nomeu ombro. Eu peguei a peça, cheguei ali emcasa, não fui dormir naquela hora. Li umas duasvezes, porque não adiantava ler só o meu pa-pel, tinha que conhecer a peça inteira. Ama-nheceu no domingo, levantei cedo, li a peçatodinha e me lembro que no final da peça tinhauma discussão desse personagem com omordomo. Eu pensava: "Nessa discussão eu nãoposso vacilar!". Porque com o ponto, a gente faz.Às vezes não pegava e dava uma risada, isso eaquilo, e olhava para o ponto e batia o pé nochão, e tinha-se facilidade. Agora, numa dis-cussão, numa conversa rápida, não dava. En-tão procurei decorar, tinha facilidade. E deco-rei. E, no mais, ia com o ponto, porque eu tinhaprática de pegar ponto. Entrei nervoso, é claro.Quando um artista era novo na peça, oensaiador dava uma passada do texto, comocostumava-se dizer. Não ia provocar um ensaiocom todo mundo só por causa daquele artista.Aí eu falei para ela: "Vamos dar umapassadinha mesmo por causa da marcação".Tinha marcação que antigamente era: "Você estáa um", "Você está a três". E em dado momento

o artista que estava a três, passava a estar a dois...Tinha marcação... eu não sei o teatro de hojecomo é...Ela disse: "Não precisa." Eu disse: "Masescuta, e a marcação? Eu vou atrapalhar a mar-cação de outro, vou ficar vendido..." "Onde osenhor ficar está bom." E aconteceu a peça e eutive muita sorte, graças a Deus. Responsabili-dade demais eu sempre tive, e sabia. Entrei ner-voso, talvez mais responsável do que nervoso,porque eu sabia que eu pegava o ponto. Eu melembro que no final da peça, nessa discussão,descobria-se que esse mordomo era irmão de umfulano. E o mordomo começava a falar, contartudo para ele, aquela coisa: "Você fez isso..." eele, então, vindo de cabeça baixa. Quando omordomo acabava de falar, ele erguia a cabeça,aproximava-se do mordomo e dizia: "Dá-me umabraço, meu irmão!". Então, o circo todo aplau-dia. A platéia se entusiasmava muito. Isso erado circo-teatro, o público aplaudia mesmo, par-ticipavam de tudo. "Deixe-me abraçá-lo, meuirmão."

DA: É a última fala da peça?BE: Sim, é o final. Então aplaudiram e a peça

terminou logo. Quando terminou, ela veio em mim:"O papel é seu, Esbano!". Mas isso acontecia! Nãoera só comigo não, acontecia várias vezes.

DA: Voltemos ao pavilhão teatro lá deSanto André.

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BE: Depois o teatro deu uma caída. Nadécada de 1960, mais ou menos, começou acair e o circo-teatro acabou, infelizmente.

DA: Acha que isso aconteceu com o circo-teatro ou com o circo em geral? Por quê?

BE: Não, foi o circo-teatro que acabou. Euvou lhe dizer uma coisa. Não é que o públicodesgostou e não quis mais o circo-teatro. Nãoé isso. O que teve um pouco de culpa foi o rá-dio e a televisão. Naquela época, mais ou me-nos entre 1960 e 1970, os artistas de rádio co-meçaram a ir ao circo, a dar espetáculos nocirco. E lotava! Depois, então, com a televisão,mais ainda. Então, o dono do circo, que tinhasempre a sua companhia grande e que paga-va, começou: "Mas espera aí, eles vêm aqui,enchem o circo." Começou a dispensar com-panhia e a ficar com uma família só, para fa-zer uma comediazinha e o palhaço, que eranecessário. Então o palhaço apresentava umacomédia, uma chanchada, e depois então seapresentavam os artistas do rádio e da televi-são. O próprio dono do circo acabou com ocirco-teatro. Olha, nós ainda continuamos.Acho que fomos os últimos, porque o circo-te-atro era maravilhoso, era muito bonito!

DA: Eu não sou muito velho e vi o circo-teatro quando era criança no final dos anos de1960, começo dos 1970. Ainda havia muito cir-co-teatro no interior de Minas Gerais.

BE: Lembra o nome de algum circo?

DA: Eu não lembro os nomes dos circos. Ti-nha um chamado Panamericano, mas acho quenão era teatro. Tem umas falas que até hoje re-cordo, a gente repetia na cidade. Tinha um vilãode "O céu uniu dois corações", cuja fala era óti-ma: "Vai indo tudo maravilhosamente bem".

BE: No começo, eu fiz o galã de "O céuuniu dois corações" e depois fiz o cínico, De LaTorre: "Vai indo tudo maravilhosamente bem."

DA: É! Em cada malvadeza que ele fazia,falava isso.

BE: De tanto falar aquilo, o público, às ve-zes, repetia no próprio espetáculo. O circo detiro já existia, em menor quantidade. A maiorparte era circo-teatro. O Garcia era circo-tea-tro no começo. Mas o circo de tiro continuaaté hoje. Não com a freqüência que tinha anti-gamente. Mas nós, depois que terminou o cir-co-teatro, também fizemos um circo de tiro eera só picadeiro.

DA: Já era Circo Esbano?BE: Sim, o circo-teatro era circo Esbano

também. Era só teatro popular volante, massempre foi Circo Esbano. Ainda existe um cir-co Esbano por aí, de um sobrinho meu. É circode tiro também: sem teatro, só de números.

No Norte ainda existem alguns circos-tea-

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tro. Outro dia estive conversando com umasenhora cuja família tem circo-teatro e era doNorte também. Nós até começamos a relembraras peças de antigamente. No circo-teatro, éengraçado, e no circo em si, havia muitas par-ticularidades. O que era interessante era o res-peito que existia. O circense não era tido, anti-gamente, como profissional. Ele não tinha car-teira, não se assinava carteira para entrar nocirco, não existia isso para o circo. O artistavinha para ser contratado e perguntávamos:"O que é que você faz?", "Bom, eu faço tal nú-mero, sou malabarista", "E quanto é que vocêquer ganhar?", "Eu trabalhava com outro eganhava tanto", "Está bem, está certo, vocêestréia amanhã." Ninguém pensava em assi-nar compromisso nenhum. Mas existia o res-peito. O artista, para sair do circo, tinha quepagar 15 dias para o diretor. O diretor do cir-co, o dono do circo, para mandá-lo emboratambém teria que pagar 15 dias. E ele sabiaque era obrigado, mas obrigado por quem? Porninguém. Era respeito que se tinha, e não exis-tia lei nenhuma.

DA: Era um código de ética próprio.BE: Justamente. No circo-teatro, principal-

mente, não existia lona e nem o plástico, como setem hoje. Era paninho de algodão. Quando cho-via, varava tudo. O público aceitava isso. Tantoque quando o tempo estava meio ruim, o públicolevava guarda-chuva para dentro do circo. Sabi-

am. Era normal chover no circo. Nós tínhamostambém outra lei. Não sei como apareceu: quan-do chovesse, se já tivéssemos levado cinco nú-meros no picadeiro, não precisava devolver oingresso para o público. Se tivesse levado dois outrês, o público entendia e saía. "Olha, a chuvaestá demais, não dá, por favor, ao passar pelaporta, pegue sua senha e vamos marcar o diapara voltar." Existia tudo isso.

DA: Como era a relação com o público? Vocêfazia sucesso com as meninas, era assediado?

BE: O palhaço era a figura principal docirco-teatro. Ele tinha que agradar. A compa-nhia de teatro era muito importante, mas opalhaço era a figura principal. Tinha que agra-dar. Ficava falado na praça, na cidade. Comoo De La Torre, que na peça falava: "Tudo ma-ravilhosamente bem". Como eu, por exemplo,quando eu chego, sempre digo: "Eu sou o pa-lhaço Picoli, que quando não está lá, está aqui".Essas coisinhas que se faz e outras coisinhasque pegam na praça... E o povo acaba usandoaquilo no cotidiano. É claro que o palhaço eraassediado pelas moças. Tanto que tem até essenegócio de dizer que "o palhaço é ladrão demulher". E tiveram mocinhas que até chega-ram a fugir com palhaços. Piolim foi um deles.Aliás, a moça era da minha terra, deGuaratinguetá.

DA: Piolim roubou mulher?

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BE: É, roubou. Mas ela quis ser roubada.Foi com ele. Depois se casaram e viveram todaa vida juntos. O palhaço era assediado sim. Eera muito gostoso, havia muito respeito naqueletempo. O artista do circo, ou o palhaço, não éporque sabia que, de repente, ia embora e aca-bou, que faltava com respeito à moça.

O artista de circo era que nem um mari-nheiro. Chegava num porto, era tudo novo. Agente viajava muito de trem de uma cidadepara outra e na saída era aquela aglomeração.Era circo-teatro. Podia-se ficar três, quatromeses numa cidade. Iam os filhos do prefeito,filhos do delegado, todo mundo ali na partida.Era aquela choradeira na hora de ir embora.A gente também pensava "puxa vida!". Tinhasempre muito jovem no circo, muitas mocinhase rapazes. Mas, quando o circo chegava naoutra cidade, acabavam as lamentações, por-que aí vinham novas aventuras.

DA: É interessante isso no circo, porque,pelo menos no interior, quando chegava umcirco, estabelecia-se imediatamente um víncu-lo ali com a vizinhança toda. Eu me lembroque os vizinhos forneciam água para o pessoaldo circo em troca de uma "permanente" paraentrar o show.

BE: É, justamente. Porque chegávamos nosterrenos... e não era como os terrenos que exis-tem nas capitais, que já têm os banheiros, os

sanitários e água. A gente chegava e via o vizi-nho mais próximo. A primeira coisa que se fa-zia era tomar o conhecimento com todo mun-do. Isso é próprio do circense mesmo, conhe-cer tudo. Ele sabe que precisa dos outros. En-tão a gente conseguia justamente isso. A gentedava uma "permanente" para a família e pe-gava a água. A luz não, porque era ligada.

DA: Eu lembro que na montagem do cir-co, por exemplo, todo mundo ajudava, não erasó o pessoal do circo que ficava trabalhando.Eu lembro que puxava aquelas cordas parasubirem as lonas, a criançada, todo mundo.

BE: A criançada fazia questão de ajudar,porque depois eles sabiam que iam entrar degraça. Então queriam vender pirulito, queri-am vender maçã do amor. Aqueles que ajuda-vam no circo tinham um carimbinho, que agente batia na mão do menino pra que quan-do chegasse à noite, ele mostrasse direto. Emuitos também passavam por baixo, furavama lona. Isso era tradicional. É muito tradicio-nal passar por baixo da lona. Apesar de quecirco-teatro, a maior parte deles, não era comlona de roda. Eram empanados, como a gentefala. Era tudo de tábua, de zinco. Mas a gentedeixava. Mesmo a criança que não tinha aju-dado e que estava ali na porta do circo na horado espetáculo e a gente via que não podia en-trar, não tinha dinheiro, a gente deixava. En-tão, tinha muito disso.

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Eu me lembro que o circo-teatro era obri-gado a ter três camarotes: um para o delega-do, um para o prefeito e outro para o juiz. Oimportante é que eles compareciam: a famíliado delegado, a família do juiz e do prefeito. Osespetáculos podiam ser assistidos por qualquerpessoa. Hoje já é um pouquinho diferente. Àsvezes, tem uma apelaçãozinha. Lá não tinha,nem do palhaço e nem das peças. De jeito ne-nhum. Então a gente tinha aquela satisfaçãode vê-los ali nos camarotes.

O circo era sempre bem acolhido. O circoNova Iorque, o primeiro circo em que entra-mos, tinha a sua bandinha própria. Os músi-cos viajavam com o circo. Então, quando agente descia na estação, os músicos já desciamdo trem tocando, com farda, e tocando iam atéo terreno do circo. A propaganda já começavana chegada.

DA: Seu circo não tinha animais?BE: Não. É até curioso isso. Não me lem-

bro de um circo-teatro que tivesse animais. Nãotinha, não. Depois, quando passamos para ocirco de tiro, aí sim tínhamos um número decavalos, que era muito bom.

DA: Quando você percebeu que o circoestava acabando?

BE: O circo-teatro, como a gente já con-versou, na década de 1960, acabou devido aos

artistas de rádio e de televisão que entraramno circo. O circo de tiro existe ainda, mas compouca freqüência. Eu sei: porque os artistassempre ganharam bem. Principalmente os ar-tistas do circo de tiro; eles ganhavam e ganhamainda o seu cachê pela qualidade dos núme-ros. Não tem um preço só. É pela qualidade donúmero. E hoje a gente vê muitos artistas re-clamando. Chega no fim da semana —porqueo circo paga por semana—, e dá apenas umvale porque não tem, porque a semana foi mal.Então, está existindo muito isso no circo. Elescontinuam com o circo porque circense é mes-mo de raça, aquilo é dele e ele não se conformade, de repente, ter que deixar o circo e fazeroutra coisa. Não dá pra isso. Mas continua ain-da com público. Não é como antigamente, mascontinua. Nunca tivemos apoio nenhum dasautoridades estaduais, federais ou municipais.E tinha lugar, tinha cidade que, além de nãoapoiar, dificultava. Tinha cidade que o delega-do não queria que o circo entrasse. Não sei seele teve algum problema com o circo, porquedificultava. Até hoje é assim, o meu sobrinhoestá com um circo parado há duas semanassem encontrar terreno para entrar. Os terre-nos estão desaparecendo. E, quando se encon-tra algum, são muito caros.

Quando é um terreno da prefeitura, é pro-blemático porque precisa passar por tanta bu-rocracia que quando sai a aprovação o circo

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não precisa mais do terreno. O dono do circonão pesquisa 4 ou 5 terrenos. Quando percebeque já começou a fracassar, é que vai procurarterreno. Então precisa do terreno de imediato.É uma pena, porque a prefeitura deveria coo-perar com isso.

DA: Hoje o movimento do circo se baseiaem megaproduções, megaespetáculos. Vocêacha que esse tipo de evento ajudou a acabarcom o circo tradicional?

BE: Com isso, chegam a fugir dotradicionalismo do circo. Quer ver? Vou dar umexemplo: um mágico que fez o primeiro circodele aqui. Saiu com um circo pequeno e voltouduas ou três vezes com um circo grande. Es-queci o nome. A última vez que veio, mais pa-recia um espetáculo da Broadway do que umcirco. Não só a gente, os artistas de circo, nota-mos, como a própria imprensa. A própria im-prensa disse o que estou lhe dizendo. Bonito,mas de número de circo mesmo tinha pouco.Tinha mais bailado, aquelas coisas. Eu acho queo circo, quanto mais tradicional parece, melhor.Eu acho que o circo não pode inovar. Se elepuder ter a bandinha ao invés do som, é me-lhor. O gostoso do circo não pode desaparecer.Como o apresentador, que chega e diz: "Res-peitável público! A função desta noite..." —an-tigamente não se dizia espetáculo. Era função:"não percam!". Antigamente, tinha o propagan-dista do circo, que saía na rua de perna de pau,

de palhaço, com porta voz de lata e a criança-da atrás gritando. Às vezes, até a bandinha iatambém. E o palhaço, de perna de pau, falava:"Hoje tem marmelada? Tem, sim senhor. Hojetem goiabada? Tem, sim senhor. E o palhaço éladrão de mulher... não percam hoje, às oito equarenta e cinco". O circo sempre começou àsoito e quarenta e cinco. O circo-teatro não eraoito e meia, nem nove horas, era oito e quaren-ta e cinco! Tem coisa que nem os próprios artis-tas se lembram mais: "Olha a moça na janelacom sua cara de panela", "olha o jovem noportão com sua cara de mamão". Tinha coisasque eles cantavam e as crianças respondiam:"Hoje raia o sol, se esconde a lua, olha o palha-ço no meio da rua". Os próprios circenses dehoje, se falar disso, não sabem. Essetradicionalismo é que é o gostoso do circo.

DA: Conheceu o Cirque du Soleil?BE: O espetáculo é bonito, mas decepcio-

nou. Só trouxeram um pedaço do espetáculo,um pouco menos do que a gente esperava, issodecepciona. A imprensa também falou isso. Dopalhaço eu não gostei. Estava com uma ber-muda, uma camiseta, sem maquiagem, semnada! E a brincadeira foi chamar alguém daplatéia e me lembro, foi até um senhor gordoque não estava gostando muito do jogo. Atéque ele ameaçou sair e o palhaço foi lá e o pu-xou para trás. Coisa que eu não fiz de palha-ço. E não faço nada forçado. Ele voltou, veio e

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depois saiu de uma vez. Depois o palhaço foilá e pegou aquele jornalista, o Chico Pinheiro,que deu um show! Roubou a cena do palhaço.A cena que o palhaço estava apresentando, eraum tiroteio: o mocinho e o bandido. E a con-tra-regra muito boa! Saía "pá, pá, pá" na hora.Teve a cena final, que eles vão para atirar, oChico Pinheiro rolou no chão e sacou o supos-to revolver ali e "pá, pá, pá... pá" e a contra-regra rápida, preparada; o rapaz que estavafazendo o palhaço o pegou e levantou os bra-ços. Muito bom! E foi isso que ele fez. Não fezaquele palhaço que eu faço, que o Picolino faz.

DA: Você reconhece nesse tipo de espetá-culo alguma coisa do circo tradicional?

BE: Primeiro, acho que aqueles que assisti-am o circo não eram ingênuos. Os circos conti-nuam a mesma coisa. O que o Soleil faz pode serum circo. Eles fazem coisas que são de circo. Osnúmeros do circo continuam sendo os mesmos.É engraçado. O único número novo que apare-ceu em circo, que eu sei, durante toda a minhavida, foi esse número de tecidos. O único!

O Cirque du Soleil apresentou uns núme-ros com altura muito criativos. Pode havercriatividade. Isso pode. O Soleil tem e seria bomse os outros também tivessem. Ninguém podeir contra a beleza. É muito bonito. E o Soleiltrouxe isso. Mas os números são os mesmos.

DA: É só uma outra forma de trabalharaquele número?

BE: Sim, pela fantasia. Antigamente, obailado do circo antigo, quando o circo se cha-mava "Circo de Cavalinho", não se dizia "Che-gou o circo...", não! Era "chegou o Circo deCavalinho!", e os senhores sabem o porquê de"Circo de Cavalinho".

DA: O que era o "Circo de Cavalinho"?BE: O circo não é uma atividade circense,

porque atividade circense vem de tão longe ecomo os ciganos ninguém sabe de onde veio,nem nunca vai saber. É bom esse mistério. Émuito bom! Ninguém sabe quando começou aatividade circense. Há pouco tempo li que ar-queólogos chineses descobriram, na velha Chi-na, datadas de 5000 anos, marcas em pedra depessoas num exercício de número circense. En-tão vem de longe. A gente remonta sempre aossaltimbancos, que eram também ciganos. Porisso eu digo que começou com os ciganos. MasPhilip Astley, militar que tinha o seu númerode cavalos, achou que poderia dar um espetá-culo também como hoje em dia os militares dãocom os cães, então uniu-se aos saltimbancos ecomeçou a apresentar espetáculos em galpões.Só que existiam poucos lugares. Resolveramentão fazer uma cobertura. E por que o pica-deiro é redondo? Podia ser quadrado, retangu-lar, mas o número de cavalos em liberdade faz

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movimentos circulares. Então o picadeiro tinhaque acompanhar. E o circo acompanhou o pi-cadeiro também. O número principal do circoera o número de cavalos do senhor Philip Astley.Era o número principal, tanto que depois ou-tros circos o fizeram e colocaram cavalos tam-bém, porque se achavam na obrigação de colo-car. Daí que vem o nome "Circo de Cavalinhos"2.O que mais aparecia ali eram os cavalos. O trans-porte também era feito com carroças e cavalos,mas esse é o motivo dos "cavalinhos". Isso eu seie tenho certeza.

Eu acredito que o próprio bobo da corte tam-bém fazia o palhaço. O palhaço também se ins-pirou no bobo da corte. O primeiro palhaço eracomo o clown, fazia apresentações de cartola etudo, ou como pierrô. Esse palhaço tinha quesaber contar e tocar violão, porque a apresenta-ção dele era com o violão. Ele cantava uma mú-sica engraçada e no meio da música contava al-gumas pilhérias e piadinhas. Como: "Minha pri-ma Doralice, convidou para vir dançar lá no bai-le, então eu disse só se a mamãe deixar... Poma-da, pomada, pomada de caixinha, tudo isso acon-tece para quem anda de pastinha... O palhaçodeste circo, já não tem mais o que fazer, vai me-xendo a tal pomada, tem pomada para mexer".Essa era uma das músicas que se cantava. Istominha mãe que me ensinou.

Depois surgiram as pantomimas, que eram

só por mímica. O circo viajava de um país paraoutro e, a não ser que o artista fosse um poli-glota, ou quase isso, ficava com as mímicas só.Aí eles acharam necessidade do palhaço pin-tar a cara, porque tinha que ter sempre aquelecômico principal. E esse que fazia o clown es-tava acostumado com aquilo de cantar e con-tar as piadas. Era mais um humorismo. Masera chamado de palhaço. Depois as comédiaspassaram a ser faladas também. Como as chan-chadas, que existem até hoje. Depois então,quando surgiu o palhaço cara pintada mes-mo, para as comédias, aí uniram os dois: oclown e o palhaço que fazia as pilhérias. A gen-te não sabe de quando data essa junção. Sa-bem que as entradas cômicas dos circos deantigamente são as mesmas até hoje?

Se eu encontrar hoje, visitando um circo,um palhaço e ele me falar: "Escuta, eu estousem clown hoje à noite. Me faz o clown?". Oque eu vou perguntar para ele? "Qual é a en-trada?", e ele fala assim: "O Filho Pródigo". Ecomo sei, não precisa ensaio. Ou a entrada da"Chiquinha", a entrada da "Abelhinha", que éa mais levada em circo!

DA: A da abelhinha é maravilhosa! É umadas melhores.

BE: Eu fiz um filme com o Dedé Santana,"Os Irmãos Sem Coragem", parodiando a no-vela da época, "Os Irmãos Coragem". Ainda não

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tinha "Os trapalhões", era o Dedé Santana e oDino Santana, Maloca e Bonitão, e uma cenaera dentro do circo. Eu estava levando com omeu sobrinho a "Abelhinha" no picadeiro e oDedé vinha correndo, entrava no circo, no pi-cadeiro, e eu o pegava e fazia a cena com ele.

DA: "Abelhinha, abelhinha, joga mel na mi-nha boquinha...". Qual dessas entradas você, comopalhaço, mais gostava de fazer? Ou gosta, ainda?

BE: Olha, tem tantas. As entradas erammuito boas. Essa "Abelhinha" a gente usavamais nas matinês, porque era mais infantil. Masa do "Filho Pródigo" é muito boa. A da"Chiquinha" também é boa. A história do ca-samento. Aliás, eu estou escrevendo para oComando Maluco. O Hilton Franco pediu pramim, e eu até falei pro Dedé: "Poxa, mas vocêtambém se lembra do circo, de tudo...", "Ah,mas eu já esqueci", e eu até escrevi para ele.Pus "O Filho Pródigo", a "Chiquinha"...

DA: Tinha sempre umas com assombra-ções que eram boas.

BE: Eu uso até hoje. Outro dia fui agracia-do com o prêmio "Carequinha" da FUNARTE.Tive que levar 5 espetáculos nas escolas e ti-nha que ser um espetáculo com criatividade.Então coloquei o nome de "O Circo no mundoda fantasia" e fiz uma interação dos palhaçoscom os personagens de histórias infantis. Le-vei uma dessas entradas da assombração.

DA: E você tem isso documentado?BE: Fica tudo na cabeça! Não tenho nada

documentado. O Dedé me pediu. Aí é que eufui procurar relembrar tudo, as pilhérias... Por-que a gente levava as entradas cômicas e, an-tes das entradas, as pilhérias. E as pilhériastambém já eram conhecidas. "Então, qual quevai hoje?", "A pilhéria do sonho e a entrada daChiquinha". Os artistas conheciam. Já sabiam.Fazia-se primeiro uma ou duas pilhérias e aí aentrada cômica. A gente procurava usar sem-pre as melhores pilhérias e entradas cômicas,logo de cara, para pegar bem. O palhaço pen-sava e o povo já estava dando risada.

DA: Você tem filhos?BE: Eu tenho quatro. Continuam a tradi-

ção. Quando o meu irmão viajou com os Ne-ves, eu fiquei pra cá. A minha mãe já era deidade, um pouco doente e não podia viajar mais.Já que os meus filhos estavam na idade da esco-la, eu aproveitei para colocá-los na escola e"estudá-los". Tanto que eles são todos formados.A minha mais velha é publicitária, tem a caçulaque não chegou nem a fazer circo e está se for-mando em direito. Tenho um filho que estavafazendo Rádio e TV aqui e quando estava no 3ºsemestre, falou: "Pai, eu vou para Londres estu-dar inglês para voltar e ter mais campo. O se-nhor tranca a minha matrícula". Ele foi para lánuma segunda-feira e na terça-feira já estavaestudando. Eu dei o dinheiro para ele ir, paguei

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a passagem, 1500 dólares, e depois ele teve quese virar lá porque eu não podia bancar. Lavouuns pratos por lá. Fala inglês perfeitamente bem,voltou e queria continuar a faculdade, mascomo passou muito tempo teria que recome-çar, perdeu tudo aquilo, então o que ele fez? Seformou em acupuntura. Massagista antes, de-pois acupuntura e, por último, fisioterapia.

É fisioterapeuta, acupunturista, fala in-glês perfeitamente e sabe onde está? Traba-lhando em cruzeiros! Em navios, faz cincoanos, já! Ele está fora do país faz 20 anos, masveio só nessa época e fez a faculdade. Mas ocirco para ele é tudo! Ele faz de tudo em circo!Ele é trapezista, malabarista, equilibrista, sal-ta, faz de tudo. O número de laço e chicoteque é o forte da família, toda a família faz, elefaz e está lá mostrando no navio.

DA: Então ele faz circo nos navios.BE: Faz o show sozinho. Ele fantasia, é

ator também, mistura. Tem dias que ele sai deCharles Chaplin, faz todas aquelas coisas, fazde tudo sozinho. Tenho uma outra filha. Estanão quis estudar. Ela é meio nervosa e parachegar até o segundo grau foi cansativo, masem compensação, é muito atirada! Todos elesamam o circo! A minha filha mais velha é pu-blicitária, diz: "Pai, quando o senhor paroupara a gente estudar, o senhor não deveria terparado". Ela se empolga demais no circo. Ela

gosta daquilo! Ela é aquela que chega e cum-primenta de um jeito que é como se dissesse:"Eu estou aqui. Batam palmas!", de um modoque ela gosta demais.

DA: Legal! E todos eles foram educadosem circo? Todos cresceram no circo?

BE: Todos nasceram no circo, menos a mi-nha caçula, que foi adotada. Mas era para sernossa filha mesmo! Então aproveitei e formeia todos. A época era boa. Eu ganhava pra isso,graças a Deus! Então eu tenho até orgulho dequando posso falar: "Eu formei meus filhos",o que não quer dizer que estejam esquecendodo circo. Pelo contrário, não esquecem do cir-co de jeito nenhum!

DA: E você nunca trabalhou em outra coisa?BE: Nunca. E não posso reclamar. Tenho a

minha casa, graças a Deus. Não é um palácio,mas é uma casa boa. A minha filha mais velhatem o apartamento dela, a minha caçula, quevai se casar agora, já comprou casa. E tudo comcirco, com os números, com o meu palhaço.

DA: A sua senhora era de circo também?Como se conheceram?

BE: Não. Nos conhecemos em São JudasTadeu. Ela era mocinha ainda. Nós chegamoscom o Pavilhão lá e ela era muito saidinha.Logo que chegou no circo, começou a conver-sar com os artistas, depois já não ia mais para

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assistir o espetáculo de graça, entrava no pal-co e aconteceu até um caso interessante nopalco do teatro. Nós estávamos levando naquelanoite "Deus lhe pague" e, engraçado, tem no"Deus lhe pague" uma pontinha, como nós cos-tumamos dizer, um papelzinho pequeno quenem nome tinha, que era "A Vizinha", que en-tra e fala uma coisinha de nada. No 2º ato, lem-brei com o meu irmão: "Escuta, e a vizinha,quem vai fazer?". Eu não sei o que tinha acon-tecido com a moça que fazia. Se tinha saído...só sei que não tinha quem fizesse a vizinha. E aminha mulher, que hoje é minha mulher, esta-va sentada ali no palco. Aí meu irmão falou:"Escuta, vem cá, vem cá! Eu vou te explicar evocê vai fazer a vizinha". "Não, mas eu nuncatrabalhei...". "Não, mas você faz!" Nós explica-mos na hora, ela entrou e fez a vizinha, pelaprimeira vez. E hoje é uma bela atriz.

DA: Ela entrou para a companhia?BE: Entrou. Pediu para a mãe para acom-

panhar o circo. A mãe dela deixou. Acompa-nhou o circo antes de nos casarmos. Tirou nú-mero de altura, aquela corda indiana, e é umabela atriz. Hoje em dia a gente fala em levar peçae ela não quer mais. Nesse espetáculo que eu fizpara a FUNARTE, em que eu levei o negócio daBranca de Neve misturado com os palhaços,falei: "Escuta, você vai fazer a bruxa para mim".No fim ela foi. Mas é gostoso! Eu tenho certezaque ela gostou. Representar é muito bom!

DA: Hoje em dia tem pouco circo, mas temmuito palhaço de formação teatral. O que vocêacha dos palhaços da nova geração?

BE: São grupos de entusiastas da nossa artee é muito bom! Eles formam, organizam grupos,como os Parlapatões e outros mais. E eles entãomontam um espetáculo de circo dentro do gru-po. Nunca foram de circo. Não fazem o palhaço,por exemplo, que eu faço, com a tradicional pe-ruca careca. Se maquiam, às vezes, não tão for-te como o palhaço tradicional se maquia... àsvezes, não tem muita graça. Mas eles gostam eisso é muito bom pra gente! Eles estão conseguin-do o que os artistas de circo mesmo, tradicionais,nunca conseguiram! Eles conseguem tudo. Eulutei com o meu irmão, com a secretaria da cul-tura, quando o Sr. Marcos Mendonça era secre-tário e nos embrulhou. Nós queríamos resgatar ocirco-teatro! Meu irmão fez um circo bonito, ven-deu um terreno e uma casa em Mogi Mirim parafazer o circo. E nós não conseguíamos nada. Elesconseguem! Eles botam o circo no Anhangabaú,armam circo em tudo quanto é lugar. É o que eufalei com o José Wilson no raso da Catarina, con-versando sobre isso: "Zé Wilson, deixai-os vir! Sãobem-vindos! Eles estão conseguindo pra genteuma porção de coisa!" E eles chamam de circomoderno, não sei porque. Mas é isso. Eles podemnão ter a graça do palhaço, mas fazem e conse-guem. E isso é bom.

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DA: Quais são os palhaços que admirouem sua época?

BE: Olha, os palhaços que se tornaram maisconhecidos foram aqueles que estiveram namídia pela televisão, como o saudosoCarequinha, o Arrelia, o Torresmo, Fuzarca,Chicnharrão que nem chegou a fazer televisão.Chique-Chique, outro palhaço muito bom! To-dos eles eram bons. O Chique-Chique, eu melembro dele, era criança ainda quando o assisti.

Não é porque foi o primeiro circo que nósentramos, mas o palhaço Pelado era muito bom!Ele tinha classe, dentro daquela jocosidade dele.É engraçado, é uma curiosidade, porque o pa-lhaço, para ser completo, tem que fazer desco-bertas. A graça não dá para ensinar. É o que eusempre falei. O palhaço não se ensina. É possí-vel orientá-los quando já têm um dom. O pa-lhaço tem que saber usar os gestos, cair engra-çado, levantar engraçado, mímicas... e outracoisa: tudo de um modo simpático, porque àsvezes a gente vê um negocinho meio agressivo.O palhaço tem que ser todo simpático! Eu achoe procuro fazer assim. Esses palhaços antigos,como eu estava falando, tinham tudo isso. En-tão não tinha um que eu admirava mais. Masdo Pelado sempre fui fã! O modo de falar doArrelia era o mesmo do Pelado. Primeiro conhe-ci o Pelado, depois o Arrelia.

Na época, quando entrei no circo, eu não

conhecia nem o Arrelia. Antes fazia só teatro.Não tinha circo. Mas o Pelado devia ser maisvelho que o Arrelia. Pela idade com que o Ar-relia morreu e que o Pelado morreu. Ele tinhamania de falar "Vagabundo" . Então a fala éigual. Existe sempre essa curiosidade da mi-nha parte: quem será que copiou quem? Nãosei até hoje. Não estão aqui, então eu não sei.Sobre palhaços e admiração... bom, os palha-ços de antigamente eram muito bons! Eles se-guiam aquela mesma escola. Era uma coisamuito severa e já vinha de família, de pai prafilho, pro neto e os números de circo também.

DA:A tradição de circo tem um poucoessa trajetória familiar, não?

BE: Iam passando de um para o outro e ascoisas do circo eram levadas muito a sério. Ti-nham alguns que o pai queriam que fossem pa-lhaços, mas que não dava para aquilo. Não adi-antava. A primeira coisa que o pai e a mãe fa-zem para o filho, no circo, quando tem seus 3 ou4 anos, é pintar a cara de palhacinho. Mandamsair e ele vai, mas depois começa a crescer e vêque não é aquilo e acabou. Alguns dão certo...

Já que eu estou contando sobre tudo daminha vida, eu fiz um filme também. E já queestava falando de cinema, o filme era do dire-tor Denoir de Oliveira, saudoso Denoir deOliveira. Ele gostava demais de circo! Foi láem casa. Era "Sete dias de agonia". Ele colo-

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cou a família de circo dentro do filme. Estáva-mos eu, minha esposa, meus filhos, todos lá.Foi tirado de um livro "O encalho dos 300".

No filme eu fiz o palhaço Picoli. Eu tenhoaté a fita em casa e a família toda trabalhou.Na hora da apresentação do show, ali no meiodo barro, com aqueles caminhoneiros todossentados em cima dos caminhões, dos tijolos,assoviando, o Denoir falou: "Esbano, eu tenhoo texto aqui, mas esquece o texto. Faz comovocê quiser". Pensei comigo: "Eu tenho que ar-rumar um jeito de falar o meu nome, já queestou trabalhando aqui". Foi quando usei:"Hoje tem marmelada?", aquela coisa do circoantigo... "Eu sou o palhaço Picoli, que quandonão está lá, está aqui." Eu bolei isso na hora edepois ficou. Fiz parte como palhaço e tam-bém, de cara limpa.

DA: Qual o bordão do Picoli?BE: Nem sempre eu uso esse negócio de

"Hoje tem marmelada? Hoje tem goiabada?".Em lugares especiais, que vejo principalmenteidosos, eu falo. Mas quando não tem isso nocirco, na apresentação, é comum. O "Respei-tável Público" eu gosto de usar, só que falo jácom a voz diferente. Outro dia eu fiz uma en-trevista e ainda falei: "O palhaço é o único que

tem alvará para falar errado", então eu falo.Eu entro e falo: "Rispeitáver Púbrico! Eu sou opalhaço Picoli, que quando não está lá, estáaqui! Muito Boa noite! Ah, não! Assim não!Eu quero muita alegria, eu quero um boa noi-te bem arto! Boa noite! Ah, assim está bom,assim está bom!". Aí eu cumprimento o meuclown: "Como é que vai rapaz? Tudo bem?". Equando tem idosos eu entro e falo: "Hoje temmarmelada? Tem, sim senhor! Hoje tem goia-bada? Tem, sim senhor! E o palhaço, o que é?É ladrão de mulher!".

DA: Obrigado, obrigado!

BE: Poxa vida, eu que agradeço! Eu é queagradeço de estar aqui!

Notas(1) Ao começo da entrevista, Benedito Esbano relatou-nos o desejo de publicar sua biografia, para qual jun-ta material e alguns trechos.(2) Sobre o circo de cavalinhos, conferir Alice Viveirosde Castro. O elogio da bobagem: palhaços no Brasil eno mundo. Rio de Janeiro, Editora Família Bastos,2005; "Um jeito brasileiro de ser palhaço: apontamen-tos de uma história do palhaço no Brasil" in BocaLarga, vol. 1. São Paulo, Doutores da Alegria, 2005,pp. 53-65. Cf., também, Mário Fernando Bolognesi.Palhaços. São Paulo, Editora UNESP, 2003 (nota doeditor).

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Walter di Carlo: Meu nome é Walter DiCarlo, nasci em um dia muito florido, o maisflorido do ano, no dia de Finados de novem-bro de 1931. Vou completar 76 anos. Nasciem circo, sempre vivi de circo e casei com umaexcelente artista de circo.

Nasci no Rio de Janeiro, na rua dos Invá-lidos 177, onde hoje é um depósito de bebi-das. Quando falo em circo fico emocionado.

O meu pai viajava muito com o circo,possuiu um que faliu no Rio de Janeiro hámuitos anos, era alemão, chamava-se Berlim,e foi comprado pelo Sr. Joaquim de Araújo,um grande equilibrista que conforme contamos antigos de circo, certa vez fazia equilíbriona Quinta da Boa Vista, na presença de Dom

Pedro II e caiu lá de cima, de casaca, dentroda lagoa. Foi um vexame danado.

Já trabalhamos nesse circo do Joaquim deAraújo. Tinha muitas feras. Eu era muito pe-quenininho. Meu pai era muito amigo da Famí-lia Olimecha. Vivemos a maior parte da infân-cia no Circo Olimecha. De manhã, a gente en-saiava e eu adorava os palhaços. Eu ficava nocamarim deles. Achava que o maior palhaço doBrasil se chamava Tomé Bartolo Olimecha. Euera pequeno e o que me chamava atenção era omodo como fazia o trabalho. Era interessanteporque ele tinha o riso gozado.

Os palhaços saltavam, faziam cascatas,quedas... Eu os adorava. O Alfredo não tinhauma mão. Parece que houve um problema com

História de Vida: Walter Di Carlo*TRANSCRIÇÃO PORTUGUÊS – ÁUDIO - 01:32:00

Walter D

i Carlo

Gravação e transcrição para o Projeto Memórias de Palhaços e Comediantes, com depoi-mento de Walter di Carlo a Morgana Masetti, Dani Barros e Diogo Cardoso no dia 03 de Mariode 2007, no estúdio cedido pela ESPM-RJ. 01:32:00. Transcrição por Global Translations.

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explosivos. Alfredo era o clown. Havia o clowne o tony de soirée, o palhaço. Adorava o Tomé.Meu apelido era Teco. Falavam “Terecoliterecolá, escorrega aqui, escorrega lá”. Os doisirmãos trabalhavam juntos, mas não se davame não se falavam. Falavam comigo, um ou ou-tro falava comigo. Eu achava aquilo estranho,mas... eles colocavam o que iam fazer numpapel, número da entrada do boxe... estavaescrito lá. Faziam, se abraçavam em cena, masnão se falavam. Morreram sem se falar.

Eu adorava os Olimechas. Naquela época,havia um número final: Árabe. É de salto. Apóso circo, vinha o salto. Era pequenininho, masfazia o número de salto também. [Sobre meupai,] foi sempre um camarada. Não sei se so-freu muito nessa vida de circo, porque tinhaum recalquezinho. Era de uma família de tra-dição muito boa, forte. Tinham muito dinhei-ro, mas perderam tudo...

Doutores da Alegria: O que sabe sobre asgerações passadas?

W: Meu pai não falava nada, não contava,era meio fechado. Quando pequeno, me levavana Quinta da Boa Vista onde dizia haver umesqueleto de elefante: “Esse foi do circo do seuavô”. Só que fiz pesquisas e não encontrei nada,por enquanto, de elefante. Fiz as pesquisas atra-vés da Alice Vieira de Castro1, que levantou na

Argentina a história do Circo Crioulo e da Fa-mília Carlo. Quando trouxe isso para a EscolaNacional de Circo, me interessei porque meupai não falava quase nada. Contavam que aminha avó trouxe aqui para o Brasil um núme-ro de pombas, que vinham na palma da mão.A pomba saía, levava não sei o quê, fazia umaporção de coisas. Além disso, fazia números acavalo. Fui à Biblioteca Nacional pesquisar. Poraquele livro do Circo Crioulo, da Argentina,“puxei” 1874 aqui no Rio de Janeiro. Na Ruado Lavradio, 94 ou 96, se eu não me engano,havia o Politeama (referência a um teatro)fluminense. Lá estava escrito “Irmãos Carlo”.Nessa época, meu pai não era nascido (nasceuem 1887). Eles vieram para cá com cavalos.Ocorreu espetáculo muito grandioso. Trabalha-va o Frederico, o George, que é o meu avô, e aAmélia, que trabalhava sobre o cavalo.

Antigamente, fazia-se muitos números decavalos e excêntricos... Foram para a Argenti-na, voltaram...

DA: Os seus avós eram brasileiros?W: Não. Meu avô era estadunidense, e meu

bisavô inglês. Minha avó Amélia era francesa,mas descendente de ingleses.

DA: E os dois provinham de famílias cir-censes?

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W: Famílias tradicionais de circo. Descobri,por meio de uma história que meu filho obteve nainternet. Depois que “puxei” na biblioteca, vi queexistiam mesmo os Irmãos Carlo. Era verdade.

DA: Como seus avós se conheceram ecomo vieram parar no Brasil? O senhor sabe?

W: Não sei a história. Percorreram muitoos Estados Unidos. Depois, foram para a Aus-trália. Rodaram bastante. Vieram para a Amé-rica do Sul, depois voltaram e foram para aArgentina. Foram para Montevidéu, voltaramoutra vez, fizeram teatro. Depois do fim, aquina Rua do Lavradio, começaram a trabalhar noTeatro São Pedro, que venceu o João Caetano.Colocavam no palco um tapete de coco para oscavalos não escorregarem. Depois, aprenderamde um inglês, chamado Frank Brown, se nãome engano, um número de pantomima aquáti-ca. Um “Mata Louco” dentro do palco. Foi umsucesso. Em seguida, foram morrendo um eoutro. Meu pai nasceu aqui no Rio de Janeiro,em 1887. Foi crescendo, depois se acabando,porque morreram os mais velhos. Eu sei que eleficou sozinho, fazendo um número no Rio deJaneiro com um irmão que já faleceu. Chama-va-se George Di Carlo. Sei de uma história so-bre um Cassino não sei onde, na Laranjeira ouno Catete, em que faziam um número de mala-barismo e um com cães, os Irmãos Carlo. Estáregistrado na Biblioteca Nacional.

DA: O seu avô não tinha circo próprio?W: Não. Teve um circo, mas não conheço a

história. Meu pai era muito fechado, entende?Minha mãe também era de família tradicionalcircense, Argentina, Vila Maior, mas veio comdois anos para o Brasil. Fazia trapézio volantesem rede. Etelvina. Tomava muitos remédios —ela dizia — porque já tinha quatro filhos. Euera o quinto. Não me queria. Mas este negrinhonasceu. Disse também que, grávida, chegou afazer um número de cair de calcanhar sem rede.Por isso, tenho medo de altura. Meu negócio émalabarismo. Meu pai montou, depois, um nú-mero de Escada Diabólica, que adaptou de unsingleses que trabalhavam no centro, na Av. RioBranco. Talvez no Teatro Politeama, não sei di-zer, que trazia grandes atrações internacionais.Viu um inglês fazer um número com barricas.Homens embriagados subiam na barrica. De-pois, no final, a barrica caía. Faziam uma“cambotinha” para trás e terminavam o núme-ro. Meu pai bolou algo com escada e mesa. Fa-zia algumas cascatas na mesa, depois subia naescada, balançava — coisas de palhaço —, ecaía. Foi um número com o qual viveu muitotempo. Minha mãe com o trapézio volante. Fo-ram nascendo os filhos, ele foi montando umnúmero de dança acrobática. Edgard, George eeu fazíamos um número desse tipo e malabaris-mo. Minha irmã, com seis anos, fazia um nú-

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mero de arame com malabarismo. Casou-se comesse número.

DA: Vocês moravam no circo?W: Muita gente chegava a morar, mas

houve uma fase em que a gente alugou tam-bém. Aqui, onde nasci, no 177 da Rua dos In-válidos, foi um casarão antigo. Havia muitascasas de cômodos com quartos enormes ondemorava muita gente de circo, porque era pró-ximo do local em que se armava o circo. Aquino centro, na Tiradentes, na Rua do Lavradio.

DA: Vocês moravam ali?W: Ali morei muitos anos e nasceram qua-

tro irmãos. Norma, Edgard, Aldo e Walter. AElza nasceu em São Paulo, é a mais velha.

DA: Então, o senhor cresceu no Rio de Ja-neiro.

W: Sim. O interessante é que meu pai...todo pai gostaria que seu filho se formasse. Agente de circo nunca... em circo não se quersaber de instrução. Instrução maior é o pica-deiro. Ler e escrever são à parte. Você apren-de. Nosso próprio pai ensinava a ler e escre-ver. Quando fui para o colégio, já sabia ler eescrever.

DA: O senhor foi para o colégio com queidade?

W: Aos sete ou oito anos, passei para osegundo ano, porque já sabia fazer prova. Meupai era um engenheiro que não tinha forma-ção cultural. Ele sabia fazer tudo no circo. Alona, aparelhos... era muito habilidoso. Até apasta para ir ao colégio ele fazia! A partir deuma lona “10”, ele passava um verniz e pare-cia couro. Cortava, ele mesmo fazia. Estudeimuito pouco. Fiz o “tico-tico”, o primário. Naépoca havia latim e francês no primeiro ano,mas meu pai não agüentou pagar e teve umadecepção comigo. No começo, era bom estu-dante, mas depois fiquei muito preguiçoso nocolégio. Não gostava muito. Gostava de circo.Então pulava o muro para jogar futebol. Ti-nha aulas de música, uma aula chata de la-tim... chata pra caramba! Acabei levando“bomba”. Fiquei com recalque, porque ouvimeu pai falando com o diretor: “Então o se-nhor o coloca à noite! É mais barato.” Ele ti-nha dificuldade. Você, hoje, tem facilidade deensino gratuito. Naquela época, não tinha tan-ta facilidade assim. Mesmo quando meu pai jáestava doente, chegou a fazer o último panopara o Circo Olimecha. Trabalhou na Aveni-da Brasil onde havia uma igreja com umgalpão. Eu levava até comida para ele. Tinha13 ou 14 anos. Eu levava comida... Estavamuito doentinho, mas quis terminar o pano.Terminou de fazer o pano do Olimecha, queera amigo de infância.

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O toldo do circo era feito de algodão. Umalgodão grosso que ele cortava feito um balão.Fazia gomos, depois havia o relingue, o empa-te, uma porção de coisas. Impermeabilizavacom um preparado que aprendeu. Entregou opano e adoeceu. O internaram emJacarepaguá, num hospital. O interessante, euvou contar essa história, porque sou católico,mas gosto de rezar sozinho. Não sou espírita,não tenho nada, mas aconteceu um caso inte-ressante. Na época, meu irmão arrumou umemprego... Aprendi a bater datilografia, tra-balhei como contador, mas fazia trabalhos deoffice-boy e no circo. Ganhava 300 cruzeiros.Peguei o dinheiro do primeiro mês e levei paraele. Quando coloquei a mão nas costas dele,estava magrinho... Estava com câncer no estô-mago. Fumava muito. Entreguei o dinheiro eele começou a chorar à beça. Acordei com aque-le pensamento ruim e fui trabalhar: “Seu paimorreu, seu pai morreu”. Foi impressionante.Quando cheguei para almoçar em casa —morava em uma casa de cômodos ainda, emSanta Teresa —, a proprietária disse: “Ó, vemcá almoçar comigo. Tenho uma notícia triste”.É como se eu já soubesse. Antes, quando tinhaido dormir... escutei uma batida na porta,“bum, bum, bum”... chamei minha mãe. Eramuito corajosa: “Mãe, tem um cara batendona porta”. “Tem nada! Vá dormir, seu bobo”.

“Bum, bum, bum”. Escutei e corri para minhamãe. Era medroso para caramba...

DA: Que idade você tinha?W: Eu tinha 13 ou 14 anos, mas era me-

droso, boboca mesmo. Hoje os meninos com 9anos são todos vivos, mas eu era bobo. Minhamãe: “Então eu vou deitar contigo ai”. Entãoela escutou a batida também, “bum, bum,bum”. Ela: “Quem é?”. Desceu e não viu nin-guém. No dia seguinte, aquele negócio na mi-nha cabeça: “O teu pai morreu, o teu pai mor-reu”. Não sei se era aviso. Não entendo nadade espírito, mas ele morreu.

Com a morte de meu pai, eu resolvi voltarpara o circo. Havia um Circo Dudu na Praçadas Bandeiras. A Cacilda Gonçalves era umagrande atriz daquele circo e ele fazia bem onúmero de palhaço, mas eu não gostava doestilo dele... Gosto não se discute. O Dudu fa-zia a coisa apimentada demais. Voltei a ensai-ar com os meus irmãos malabarismo, salto,para voltar à atividade, porque tinha trabalha-do em um escritório. Começamos então a tra-balhar no Circo Americano do Aquiles Pinto.Trabalhamos no Coliseu Argentino, que eramuito bom. Fazíamos um quarteto de malaba-rismo. Depois, em 1949, a Família Queirollo,que conhecia o nosso trabalho falou com An-

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tônio Garcia, o velho dono do circo, e nos con-vidou. Começamos então a trabalhar porcachê. Em Belo Horizonte, todos são contrata-dos mensal ou semanalmente. Nós fomos porcachê, com o arame de minha irmã, e o quar-teto apresentando dança e malabarismo. Noshospedávamos em um hotel.

DA: E sua mãe, também trabalhava?W: Ficava em Santa Teresa. Morava lá e nós

viajávamos. A gente estranhava, porque estáva-mos acostumados ao Rio de Janeiro. Enquantoaqui se fazia número de circo, lá cachê. Voltava,gastava o dinheiro, e ia lá trabalhar. Se não ti-nha espetáculo, não ganhava nada, entende?Tínhamos que guardar o dinheiro para passar omês. Às vezes, ficávamos uma semana sem tra-balhar por causa da chuva. Não tinha espetácu-lo. Era cachê. Não havia segurança. Era contro-lar o dinheiro até contratar um trabalho. Umcontrato com o Circo Garcia já era mais estável.Nós trabalhamos com o Coliseu Argentino... masnum determinado momento, no Rio de Janeiro,a situação ficou ruim. Meu irmão falou: “Vocêvai para São Paulo”. Tenho um primo que tra-balhou muito com o Sílvio Santos... Não me lem-bro agora. Além do Claber e do GilbertoFernandes, o Gibi, que trabalhava lá, fazia mui-tas pegadinhas para o Sílvio Santos. Fez muitoteatro. A mãe dele é minha prima. Fomos paralá. Ela morava também em um lugarzinho meio

ruim... Pedimos para ela: “Vamos ficar aqui, parapegar uns cachês”, eu e o meu irmão mais novo,o Aldo. Do quarteto, os dois mais novos forampara a casa da minha prima.

Em São Paulo trabalhei no circo do Piolim.Estava na avenida São João. Eu trabalhavacom malabares e ele me falou: “Ô, teu pai foium grande clown”. Clown é o “escada” do pa-lhaço. “Trabalhei com o teu pai”. Trabalhei noPiolim e no Arrelia. Fiz televisão com o Fuzarcae o Torresmo, e também com o Arrelia.

Fiquei só. Morei uma temporada em SãoPaulo para juntar um dinheirinho. Quandovoltei, trouxe um dinheirinho bom. Minha pri-ma não quis nada. Fiz uma cesta básica, masnão quis receber. Voltei então para o Rio, co-meçamos a trabalhar novamente, depois divi-dimos a trupe: dois foram para o Águias Hu-manas e dois para o Circo Continental, do Es-tevão Robattini. Eu e meu irmão fazendo dan-ça e malabares. Comecei a trabalhar ali e numdeterminado número, acho que foi em Maceió,fazendo um salto em uma mesa, com duas ca-deiras, quebrei a mão. Meu irmão bateu com ocalcanhar, fechou, quando segurei na cadeira,quebrou minha mão. Aí eu continuei, não seicomo, escorregando com um braço só e fazen-do “cambota” e virando, e fazendo malabaris-mos ainda! Uma semana com a mão quebra-

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da! Mandaram botar breu e ovo, desinchou econtinuei trabalhando. “Vai tirar radiografia”.Estava quebrado. Fiquei só anunciando o es-petáculo, enquanto meu irmão fazia o núme-ro da cama elástica com a esposa.

Quando o circo chegou a Recife, fui morarem um hotel e falei com o secretário: “Tem umcirco aí?”. “Tem o Circo Frequete”. “Vamos lá,assistir”. “Ah, não! Eu já fui ontem”... Mas melevou lá. Foi quando vi minha esposa pela pri-meira vez. Tocava acordeão, fazia número deparada de mão de um braço, jogos de tranco, eera a primeira atriz do palco. Logo me interesseipor ela, mas estava noiva e a prima dela davaem cima de mim. Eu falei: “Eu quero a morena,essa morena bonita”. Ia lá e falava com ela, masnada. Tinha um namorado músico. Já deve es-tar velhinho. Aí eles brigaram. Quando eu sou-be, fui lá e falei: “Olha, escuta, eu estou a fim devocê. Eu queria namorar você sério, porque gos-tei de você”. Ela topou. A mãe dela não gostoumuito não, sabe? É filha única. “Não, porque elaainda pensa nele...”. “Não, mas ela vai esquecer.Ela vai gostar de mim”. Ficamos namorando. Amãe dela falou: “Você tem que esperar um ano”.“Um ano na conchinchina, outro lá não sei onde!Não dá um ano. Tem que ser, no máximo, qua-tro meses, três, porque o circo vai ficando longe eeu sou pobre”. Em três meses marquei o noiva-do, em quatro meses casei com ela.

Era 18 de agosto de 1958. Tinha 26 anosmais ou menos. Ela 17 para 18. E não me assis-tiu trabalhando. O interessante é isso! Não meviu trabalhando, porque eu só fazia o clown,mestre de pista e anunciava o espetáculo. Opai dela era padrinho do meu irmão. Isso deumuita força para o nosso namoro. Casei e elaficou sem fazer o número, mas tinha um carainteressado, um empresário, dizendo que elafizesse. Começou a fazer o número, o“antipodismo”, que são jogos com os pés eparada de mão. Havia um conjunto e lá ela iacom o acordeão tocar também. Depois de umtempo fiquei trabalhando com o meu irmão.Depois resolvi me separar dele. Separei e co-mecei a fazer um número com ela de malaba-rismo. Viemos para o Rio e comecei a montaresse número cômico, era um excêntrico musi-cal. Havia um famoso excêntrico musical quese chamava Bosan. Fez muito sucesso há mui-tos anos. Já estava velhinho. Ele me vendeu osguizos e comecei a ensaiar com minha esposa.Ela tinha muita musicalidade, tocava sax,acordeão... montei um número que fez suces-so. E agradou à beça. Certa vez, esse velhinhoBosan trabalhou no Pequeno Jornaleiro, umshow de Natal em que todo ano eu trabalhava.Fiz o mesmo número que ele com os guizos.Eram guizos nos pés, na cabeça e nas mãos. Elacom o acordeão, tudo com notas. Tocava-se umamúsica do folclore francês, eu com a cabeça e

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ela com o acordeão. Nesse dia, que ele foi, com-binei com o contratante: “Eu entro, faço a moe-da, faço a bombinha de encher — porque toca-va Jesus Cristo com a bombinha de encher pneue ela fazia os guizos—, aí anunciei o Bosan. Nofinal, ao invés de eu tocar o guizo, ele tocava.Ficou até bonito: “Eu vou apresentar o meu pro-fessor Bosan, com 80 anos”. Eu fiz ele ganharseu cachê e eu ganhei o meu.

Tem uma outra história. Trabalhai no cir-co Piccadilly na Presidente Vargas. Estava nosubúrbio e aí me contrataram. O dono canta-va tango. Dizia ele que era gaúcho. Era maisargentino que brasileiro, mas dizia ser brasilei-ro, embora tinha sido criado na Argentina. Fa-lava espanhol e cantava tango muito bem. Eraum dos sócios. Entrei para fazer malabarismoe minha mulher acompanhava no acordeão.

Certa vez, eu anunciava o espetáculo, umafraca matinê de domingo, e apareceu no circoJoão Goulart com Maria Teresa, sua esposa, e osfilhos pequenininhos. Era 1961, se não me enga-no. Geralmente, quando vinha uma autoridadedessas, sempre vinham seguranças e assessores.Mas naquela ocasião não veio ninguém! Entra-ram no circo sem seguranças, sem ninguém.

João Goulart chegava da China, MariaTeresa estava bonita, novinha, com os filhos

pequenos, uma menina e um menino. Ninguémtinha máquina fotográfica. Testemunhas jámorreram. Viram, podiam contar. Zé Preá eoutras pessoas assistiram. O outro sócio memandou anunciar. Eu falei: “Eu não tenhogabarito para anunciar ou capacidade parafazer um agradecimento para uma autorida-de, vice-presidente da República”. “Não! Vailá e diz que ele é um amigo dos artistas”... Aimeu Deus! Respirei fundo, entrei e agradeci apresença de Sua Excelência João Goulart e suadigníssima esposa, seus filhos, o amigo dos ar-tistas. Ele ficou rindo. O outro sócio deu umabronca em mim: “Como usted fala con miconterraneo brasilero Joaum Goulart? Yo queteria que fazer esso!”. “Não tenho culpa! Foiseu sócio que mandou. Eu não queria!”. Elearrumou umas flores para presentear e, no fi-nal, minha mulher tocou e ele cantou tango.

Com o tempo e eu comecei a montar umnúmero novamente para o Circo Nacional Te-atro. Agildo Ribeiro e Roberto Freire trabalha-vam na peça. Não esse Roberto Freire de Reci-fe. Era de São Paulo. Era o diretor do ServiçoNacional de Teatro. Ele adorou nosso númeromusical. Trabalhamos e fomos contratados. Ocirco fazia aquela apresentação para encher oteatro às seis horas da tarde. Na Avenida RioBranco ficava aquela confusão danada. O pes-soal do circo fazia malabarismos e eu fazia um

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número de palhaço excêntrico-musical com asanfona — eu vivia desse número. O pessoalpedia bis: “Bis não! Voltem amanhã!”. Lá tra-balhou todo o tipo de artista, do mais perfeitoao mais “rasqueta”. Rasqueta era o artista mais“rasca”, que fazia malfeito, que tinha a roupatoda ruim. Dava-se oportunidade a todos.Adoraram o nosso trabalho. Quando havia umtrabalho fora dali, na favela, na Rocinha, ía-mos junto, o nosso número era incluído, o meue o da Vilma: Walter e Vilma. Depois mudeipara Teco-Teco e Vilma. Então havia muitaciumeira de artistas.

DA: Como era o número?W: Ela entrava tocando acordeão e sax,

eu entrava com um outro instrumento, às ve-zes um apito e atrapalhava. Ela falava: “Vocêé muito egoísta. Só você quer trabalhar? Eutambém sou música”. Então, havia aquela con-versa toda. “Mas eu trouxe um instrumentopara você tocar comigo”. Aí eu mostrava o ins-trumento para ela. Era uma borracha com umabomba. Entregava a ela: “Vamos tocar a músi-ca do Roberto Carlos” — que fazia o maiorsucesso na época. Começava primeiro comBaião de Dois, depois chegávamos a tocar Je-sus Cristo, que era sucesso. Quando tocáva-mos aquilo, o pessoal aplaudia. Ela tinha umafacilidade danada para tocar. Tirava qualquermúsica, enquanto a maioria dos artistas que

faziam esse mesmo número, com aquela bor-racha só tocava Baião de Dois. Saía uma músi-ca de carnaval, ela tocava. Hoje a gente temdificuldade em arrumar a borracha para fazerisso. Não tem mais, é difícil achar. Então tinhao número da bombinha e o das moedas quecomprei do Bosan.

DA: Com moedas?W: Eu tocava no chão e ela acompanhava.

E carregava no carro uma pedra de mármore,porque tinha lugar que, às vezes, era de terra,então como é que ia bater ali e fazer o som?Tinha que ter também um banquinho, mas euera desorganizado. Passei para os meus sobri-nhos esse número, Chuchu e Chuchuzinho.

DA: Eles fazem o número?W: Fazem o número das moedas, cada um

com seu estilo. Tem gente que gostava mais demim, tem gente que gosta mais deles. Gosto nãose discute.

Enquanto ela tocava, eu colocava os guizos.Ela tocava uma música, dançava, e depois euentrava. “Vou tocar agora com cinco notas”.Aí começava a tocar com os guizos e, às vezes,tinha também nove notas. Ela tocava quatronotas, quatro guizos. Eu colocava nos pés e nasmãos. Aí tocava a Valsa dos Patinadores. Erainteressante esse número e não existe mais... E é

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difícil você montar isso, porque aquelas notasdesafinam muito e a afinação é difícil de se fa-zer. E não se acha mais o metal.

DA: Por quanto tempo o senhor fez essenúmero?

W: Fiz por muitos anos. Desde que casei.

DA: Qual é o seu nome, como palhaço?W: Teco-Teco. Aliás, minha mãe deu o

apelido. O meu pai escolheu William. Faziaaquele número de escada e colocou Williamporque o nome dele era Guilherme. Willian eOndina. Faziam a escada diabólica. Depoismeu pai começou a fazer muito clown, o “es-cada” do palhaço. Fez clown para o Piolim epara o João Olimecha.

Eu fazia o Teco-Teco. Trabalhei muito como Carequinha, fazendo o número musical coma minha mulher.

Fizeram um programa no Rio, se eu nãome engano era o Circo do Ozonito, de um co-lega meu, bem mais novo, um grande artistade São Paulo. Vieram para cá (Rio de Janeiro)com a tradicional família Ozon. Ele e o irmão,que faziam clown, criaram um programa naTV Rio que obteve sucesso. Eu fiz aquele(clown) que atrapalha a entrada. Trabalhamosdurante algum tempo nisso, mas o irmão dele

atrapalhou o negócio. Ao invés de conversardireitinho, atrapalhou. Depois veio o Arrelia,com um patrocinador, o Biscoito Aymoré e oprograma saiu do ar. Sou também sócio bene-mérito do Retiro dos Artistas. Trabalhamosmuito para o Retiro, ajudamos muito. No tem-po de solteiro, fiz muitos shows para angariarfundos. Nunca quis nenhum tostão. Algunscolegas recebiam, mas eu não.

Trabalhei também para o PresidenteMédici quando visitou o Retiro, para oFigueiredo quando esteve lá na re-inaugura-ção. A Globo melhorou o refeitório e levoumuitas autoridades. Tive de trabalhar semmaquiagem com minha esposa. Estavam oIvon Cury, que fazia a Pensão do Salomão como Jorge Murad. Eles, eu e minha esposa fize-mos o show para o Figueiredo e para as auto-ridades. Fizemos a moeda e os guizos de caralimpa. Estavam presentes inclusive a GlóriaPires, que devia estar grávida da Cléo, porqueestava bem cheinha já. E quando há “autori-dades”, os jornalistas caem em cima para sa-ber. “Walter e Vilma! O guizo, como é isso?”Saíram muitas notícias de jornal. Guardei tudoe isso serviu para a minha aposentadoria, por-que naquela época tinha que comprovar. Hojetem que contribuir muito. Antigamente vocêcontribuía, e o atrasado tinha de provar que

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possuía carteira assinada, alguma coisa... al-gum programa, prospecto valia como prova.Aceitavam testemunhas também.

DA: Até quando o senhor fez espetáculos?W: Foi há uns 10 anos. Já tinha um dinhei-

rinho de aposentadoria. Tenho a minha casi-nha e o dinheiro. Parei de fazer shows. Foi aderrota da minha mulher. Já não dava maispara fazer como fazíamos. Era muita correria,carregar peso, dirigir... temos um limite, maspor ela trabalharíamos até hoje. Por ela, eu es-tava vivendo de circo.

Comecei a trabalhar e, com o dinheiro, apagar como autônomo as arrecadações da pre-vidência e me aposentei. Não era um grandedinheiro, mas dava para viver. Paguei um pla-no de saúde, o que para velhos é terrível, maspara isso o dinheiro dava. Comecei a ganharmais um dinheirinho na Escola Nacional deCirco, mas muito pouco. Realmente é pouco oque pagam lá, mas aceitei porque aquilo seriatambém uma terapia para ir e vir. Ficar para-do em casa, um velho fica pensando um mon-te de besteiras. A minha mulher me incenti-vou. Me chamaram há um tempo atrás, por-que faltavam professores. Lá já trabalhavam oPirajá e o primo dele, o Latur Azevedo. Deiaulas de solo, acrobacia, contorção. Sabia decontorcionismo, porque quem é de circo, ma-

caco velho, sabe. Montei até o número do ho-mem sapo, com a ajuda de alguns colegas.

O Edgar, que já fez contorção, lecionavacom o auxílio do Zé Lingüiça, o Eberaldo. Tam-bém fez contorção, e ajudava, mas o aluno erameu! Tive a idéia. Fui até a família Schuman,que mora em Niterói, antigos de circo e formi-dáveis artistas. Já estão velhinhos. Falei comeles, comprei a cabeça e o corpo da fantasia desapo e passei a ensaiar o rapaz. Levava jeito.Tinha 20 anos, um mulatinho simpático. Sal-tava bem, mas não sabia colocar o pé na cabe-ça ainda, não sabia fazer o espacate e come-çou a treinar. Em dois anos, já fazia o númeroe estava agradando! Então comprei o apare-lho do Schumann, um tubo. O final do núme-ro era escorregar naquele tubo. Puxava-o, elepulava na cadeira, caía no espacate e depoissaltava. Agradava muito! Esse aluno foi con-tratado pelo Ringle, trabalhou no picadeirocentral. Já viajou para a China, foi para o fes-tival da Hungria. Há muitos alunos fazendosucesso na Europa, e esse foi um deles. Conti-nuei dando aulas. Desde aquele negócio dePlano Collor o que se ganha não dá nem parapagar o plano de saúde, mas vou segurandoaté onde puder. Quando não puder, paro depagar o meu plano de saúde e pago só o daminha esposa. E vou continuar até quandoDeus quiser.

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DA: Você disse que seu filho começou atrabalhar com vocês, mas que não se aprimo-rou e deu continuidade para outra formação.Como foi isso?

W: Fiz um show uma vez, em umaescolinha, e o coloquei de palhaço no espetá-culo. Era para me ajudar, mas era muito ruim.Eu explicava para ele: “Não force a voz, falenaturalmente”. Ele forçava e não saía nada.“Desisto!” Ficou bravo comigo, mas como pa-lhaço não levava muito jeito. Certa época via-jei sozinho anunciando espetáculos. Fui parao Amazonas, para o Acre. Sempre trabalheicom a minha esposa, mas dessa vez ela nãoquis ir. Ela não gostou do empresário: “Nãovou”. Eu já tinha assinado o negócio. Haviamuitos shows de natal no final de ano, na Mari-nha, na Aeronáutica... Eu possuía o númerode mala misteriosa, que comprei para um in-divíduo que não me pagou. Ficou para mim.Aprendi a fazer e apresentava nas boates, nosshows e ensinei meu filho. Enquanto eu viaja-va, ele fazia a mala misteriosa com a minhaesposa nos shows. Foi só o que ele conseguiufazer. Como palhaço era uma negação.

Qualquer um pode ser palhaço. Um atorpode ser palhaço, pode fazer o gesto. O difícildo palhaço, palhaço mesmo, aquele tradicio-nal de circo, é saber saltar. Você aprende a sal-

tar, não é difícil. Mas fazer a cascata gozada,como os antigos faziam... — O Carequinhacaía correndo, voltava, de um lado para o ou-tro — isso é que é difícil. A risada gozada, afala gozada é difícil. O grande ator já nascecom o talento, está na veia. O grande palhaçoestá na veia também. Qualquer um pode fazero palhaço, mas o grande palhaço é difícil.

DA: O que forma um grande palhaço?W: A risada dele tem que ser gozada, a

gesticulação, o modo de falar, saber fazer asquedas, as cascatas. Como o Tomé Olimecha.Adorei o Piolim, gostava do Arrelia nas comé-dias. Tinha um dos Queirollos que eu gosteimuito, cantava bem à beça.

Todo profissional fica nervoso em dia deestréia. O Tomé chegava, dava uma rondada esalto mortal, caía de barriga no chão. Aí o ou-tro, o clown, puxava a calça dele, brincava como colarinho... “Seu Olimecha!”, assim domina-vam o público! O pessoal ria e ele começava.Era um sucesso danado. Depois começou a fa-zer teatro. Os Olimechas incorporaram o pal-co. Meu pai não gostava: “Circo é circo, palco éteatro.” Luís Olimecha tinha a LourdesOlimecha no palco, uma grande atriz, mãe deLuís Olimecha, que fundou a Escola Nacionalde Circo. Uma grande atriz, trabalhava em ca-

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valos, foi trapezista, Maria de Lourdes Siciliano.Era pequeno quando ela fazia o número de ca-valo. A adorava, achava linda!

No palco, o Tomé tinha que tirar a pintu-ra. Ia de cara limpa. Tinha muitos dentes deouro e sem maquiagem ficava esquisito, masse destacou nas comédias, porque era gozado.Um Oscarito. Achava o Tomé um grande cô-mico, para mim o melhor palhaço do Brasil,não desfazendo os demais, mas gostava demaisdele. Não sei se era por causa da minha infân-cia com ele.

Esses eram grandes!

DA. Obrigado.

Notas(1) Alice Viveiros de Castro é atriz e diretora de

teatro. Desde 1985 atua na difusão e promoção dasartes circenses e se dedica à pesquisa da história docirco no Brasil. Publicou em 2006 O elogio da bobagem:palhaços no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro, EditoraFamília Bastos, 2005, 267 pp. (nota do editor)

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Brasil Queirollo: Meu nome é Brasil JoãoCarlos Queirollo. Nome do meu pai: Brasil JoséCarlos Queirollo, minha mãe: Otilia Queirollo.Eu sou de São Paulo, mas do interior. Nasciem Palmital, interior de São Paulo, perto dePresidente Prudente.

A minha mãe é de origem portuguesa. Omeu avô, João, pai da minha mãe, era de Por-tugal, veio para o Brasil jovem e foi chefe daestação da Sorocabana. Somos descendentesde portugueses e italianos genoveses, da famí-lia Queirollo, da Itália mesmo, de Gênova, deuma tradição da parte circense. O meu avôportuguês não tinha nada a ver com o circo.

Então essa é a fusão que houve pela passa-gem do circo do meu avô, onde meu pai traba-lhava, na cidade de Palmital, aonde ele conhe-ceu a minha mãe. Foi lá que tudo aconteceu.

Doutores da Alegria: Petrona Queirollo?B: Casada com o Sr. José Carlos Queirollo.

Erradicados lá, nômades. Tiveram sete filhos.Não me lembro o nome de todos. Esses sete fi-lhos trabalhavam juntos como acrobatas empraças públicas. Viajaram o mundo: Rússia,Europa, Ásia, depois foram convidados paraos Estados Unidos, aonde se apresentaram, nopicadeiro central do Ringenbross. De lá come-çaram a descer para Canadá, México, Brasil, eno Brasil se erradicaram, dizem que seerradicaram, ou tiveram algum problema fi-nanceiro e ficaram. Montaram o Circo IrmãosQueirollos, em meados de 1870.

O Sr. José Carlos não ficou no Brasil, vol-tou para a Itália porque lá ele tinha uma casade carnes. Ficou a Dona Petrona aqui. Eles nãotinham registros. Cada um dos filhos foi regis-trado num lugar, um no Uruguai, outro naBolívia e outros no Brasil. Por que o meu pai, oTorresmo, tem o nome de Brasil? Porque elefoi o primeiro que nasceu no Brasil. Ele temum primo que tem o nome de Jorge UruguaiQueirollo. Outro se chamava Antônio Argen-tino. Em cada lugar que passavam, registrava-

História de Vida: Brasil João Carlos Queirollo

Pururuca

Gravação e transcrição para o Projeto Memórias de Palhaços e Comediantes, com depoimen-to de Brasil João Carlos Queirollo a Edson Lopes e Maria Rita Oliveira no dia 11 de Abril de 2007,no estúdio cedido pelo Museu da Pessoa. Net. Duração da gravação: 00:80:00. Transcrição porGlobal Translations.

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se com um nome. O nome do país era parasaber onde nasceu. Com o tempo falavam Jor-ge Boliviano Queirollo ou Antônio do Chile eera engraçado. Alguns tiraram isso do nome

Meu pai chamava-se Brasil José CarlosQueirollo. Era Brasil do Brasil, José do pai, Carlosdo meu bisavô e Queirollo que era da família. Oque o meu pai fez? Falou: “Não. Vou pôr o nomedo meu filho Brasil João”. João por parte do meuavô, por parte materna, Carlos pelo meu avô,Queirollo pela família e Brasil de brasileiro. O piorfoi quando a minha irmã nasceu.

Minha mãe teve brigas homéricas com ele,porque meu pai queria pôr o nome da minhairmã de Brasília. Na época, Brasília nem exis-tia, nem se sonhava e cogitava em construirBrasília. A minha mãe falou: “Não”.

Foram dois filhos só do meu pai e meu paiera filho único do Chincharrão. Então eles fi-caram aqui e formaram um grande circo: OsIrmãos Queirollos, na época, em 1800. Morreua matriarca, que era a minha bisavó Petrona, ehouve como em toda boa família cisões. Cadaum foi para um lado. Nossa família é muitogrande em Curitiba, Paraná; é muito grandeno sul, na Argentina. Acho que cada um mon-tou um pequeno circo e se separaram. Meu avôpassou de acrobata a palhaço. Só que meu avô

era palhaço, antes, no circo da Petrona. Osoutros não, os outros eram acrobatas. Ele fa-zia dupla. Conheceu, nessa andança, a minhaavó. A minha avó era Argentina, DonaGraciana. Ela era bailarina argentina, dança-va tango. Casou com o meu avô e formaramum pequeno trio, que era o meu pai, meu avôe minha avó, porque eles só tiveram um filho.Tiveram dois, mas um faleceu pequeno. Mon-taram o Circo Teatro Mundial, circo - cinema -teatro Mundial.

DA: E ele era o Chincharrão?B: O Chincharrão, que trabalhou um bom

tempo com um dos irmãos, o Arres. Quandohouve a dissolução o Sr. Abelardo, o Piolim,era ajudante do circo e como estava há muitotempo ali, conhecia tudo, oArres chegou ao Sr.Abelardo e falou: “Aprendeu tudo?” Dizemque ele sempre foi meio acanhadinho e magro.Aí dizem que chegou para o Sr. Abelardo efalou: “Vem cá, tu és um Piolim”. Sabe o queé? É castelhano, Piolim é barbante.

Tanto que se você pegar as característicasde roupa do Chincharrão são as característi-cas de roupa do Piolim. Ele só mudou a ima-gem. E o Sr. Piolim deu certo. Agradava, óti-mo, maravilhoso e trabalhou Arres e Piolim umbom tempo, até o dia que o Sr. Abelardo tam-bém quis se erradicar. Veio para São Paulo e

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montou um circo na Av. São João. O meu avômontava o circo no Largo Anhangabaú, o Ar-relia montava o circo ali onde era o CassinoAntártica, embaixo do Viaduto Santa Efigênia.E o Piolim montava na Av. São João, lá nofinzinho, o circo dele era um pouquinho me-nor que os outros. A cidade era aquela região.

Televisão? Não tinha. Teatro era pequenini-nho. Cinema, então, pior ainda. Mas tudo é evo-lução. O circo o cinema derrubou. O teatro, o ci-nema derrubou. A televisão derrubou o cinema.

DA: Então ela o conheceu no circo?B: Não foi bem no circo que ela o conhe-

ceu. O meu pai, o Brasil José Carlos, que é opalhaço Torresmo, tinha um serviço de alto-falantes. Ele ficava na praça enquanto o circoficava parado. Ele fazia aquele serviço de car-ta do amor. Coisa muito antiga, onde um ad-mirador oferecia carta para alguém.

Vendia as propagandas pela cidade, comose fosse uma rádio local. Não sei se foi no circoou se foi lá, andando na praça, alguma coisadeve ter acontecido. Perguntei para a minhamãe e ela falou: “Nós nos conhecemos emPalmital” e daí para frente, ela não falou maisnada. Ele ofereceu para a Otilia uma música,acabaram se conhecendo, casaram-se, masminha mãe permaneceu em Palmital. Ele via-

java com o circo, que era o Cine Teatro Mun-dial, que era o circo, o teatro e o cinema, paraque pudesse andar, fazer toda a região, aondenão existia nem luz.

Minha irmã foi a primeira a nascer, nas-ceu na cidade de Assis. Minha mãe foi paraAssis, começou a caminhar com o meu pai,indo nos circos também. Quando ela ficou grá-vida de mim, voltou a Palmital. Nasci emPalmital, depois ela continuou acompanhan-do o meu pai. Foi quando o meu pai chegou àconclusão: “Não, meus filhos precisam estu-dar”. Hoje existe a lei que diz que o filho decircense, onde estiver, pode freqüentar a esco-la, o que eu acho um erro. Porque três mesesem uma escola, três meses em outra, não resol-ve nada. Mas meu pai já tinha uma visão dife-rente: “Eu vou estacionar, vou deixar o meupai e minha avó, e vou me estacionar em umacidade grande, para que os meus filhos pos-sam ter uma vida”. Foi aí, acho, que começoutoda aquela mudança do famoso tradicional.Estacionou e falou: “Eles precisam estudar,precisam se formar”. Acho que foi no adventode 1950, aonde começou a TV Tupi. O AssisChateaubriand voltou dos Estados Unidos di-zendo que ia ter um grande sucesso, que seriano Brasil a TV, a imagem refletida pela televi-são. Foi quando meu pai estacionou mesmo,começou a fazer alguns programas, já era

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muito amigo da família Pereira, do Sr. AlbanoPereira, que era o Fuzarca. Juntaram-se e for-maram uma grande dupla, de grande sucesso.Aí começou a parte mais sossegada da tradi-ção circense. O Arrelia foi para a TV Record,inaugurada no Rio de Janeiro. Foram os doisprimeiros a fazerem a TV.

Meu pai foi convidado pelo professorHumberto Simões, ventrílogo. Tinha dois bo-necos e andava metido nesse negócio da TVTupi, com o Assis Chateaubriand. Acho queeles foram convidados para fazer o primeiroprograma que ia ser transmitido. O Sr. AssisChateaubriand mandou importar dos EstadosUnidos uns dez aparelhos de televisão, queespalhou pelo centro da cidade, para que pu-dessem assistir. Então, era um programa porsemana e esse programa era apresentado peloHomero Silva, que eu tive o prazer de conhe-cer, e pela Márcia Real. Começaram a fazerum programa de auditório, ao vivo. Nesse pro-grama tinha as variedades e foram convida-dos, o ventríloquo, o cantor, a dançarina e opalhaço. Era um programa de uma hora. Atelevisão começou transmitindo, no máximo,uma hora por semana, em branco e preto. Meupai viu que aquilo seria um sucesso. Aí o Sr.Assis Chateaubriand começou a trazer os apa-relhos e colocar nas lojas, os famosos RCA.

Eu tenho, em casa, guardado, um livrinhodas reprises que o meu pai fazia na televisãocom o Fuzarca, marcado à mão. Está lá: “Inau-guração da TV Tupi, PRF3TV Canal 3, primei-ro programa, dia 12 de outubro de 1950”. Eraum livrinho de anotações, como um diário detudo o que ele fazia, porque ele falava que na-quele veículo [na tv] não podia repetir. No casode teatro o público muda, mas na TV nãomuda. Então ele tinha todas as reprises anota-das até 1962. Ele tinha tudo marcadinho parasaber e poucas vezes repetia.

Fuzarca e Torresmo se separaram. Eu melembro, já era maior, a TV Tupi separou a du-pla. O meu pai foi para a TV Cultura e oFuzarca ainda ficou um tempo na TV Tupi,fez dupla com o filho, mas não deu certo, aca-bou parando, fumava demais. Morreu de cir-rose. O meu pai foi para a TV Cultura, me con-vidou para trabalhar com ele. Eu tinha 12 ou13 anos. Fizemos a TV Paulista, um programachamado Zás-Trás. Saímos de lá, fomos fechara TV Excelsior. Fizemos o programa Recreiodo Torresmo na TV Excelsior. De lá nós fomosconvidados, voltamos para a TV Paulista, quehoje é a Globo, e da Paulista fomos para a Ban-deirantes no início da tv a cores. Eu cheguei afazer o personagem do Nacionaro Kido! O quevocê quer mais?!

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Fiz também peças teatrais. Na TV Tupi eufiz várias peças, trabalhei no Teatro da Juven-tude que era um teatro da TV Tupi. Fiz OsMenores da Semana, fiz uma série de progra-mas. Comecei desfilando.

DA: Você morava em que bairro de SãoPaulo nessa época?

B: Nós sempre moramos na Zona Norte.Meu pai tinha uma casa na Rua Antônio Cle-mente, uma travessa da rua Dr. Zuquim. Meupai era meio sedentário no sistema de localiza-ção. Tanto que todos os meus negócios são naZona Norte. Eu não consigo vir para a ZonaSul. Então ele comprou um sítio muito grandeem Mairiporã. Mudou para lá e, do sítio, com-prou uma casa perto dos Bancários. Foi umadas razões também de eu ter ficado lá um tem-po, na Rua Isolina, porque ele andava doente.

DA: Circo você não fez?B: Fiz, nós montamos um circo em São

Paulo durante um ano. Não era um circo gran-de. Achava que podia e, de fato, ganhou umbom dinheiro com o cirquinho dele, mas, infe-lizmente, a gente fazia muitos shows e não ti-nha tempo de cuidar do circo. A gente viajavademais. Como dizem os outros: eu tenho maishoras de avião, do que urubu voando. A genteteve uma vida muito atribulada. Nós saímosdo país, fizemos Portugal, fizemos a Europa,

fizemos toda a América do Sul. O Brasil a gen-te conhece de cabo a rabo, porque quando aTV Bandeirantes começou, nós fomos chama-dos por causa do colorido do palhaço, ele foi aestampa da Bandeirantes durante um bom tem-po, e o nosso programa foi se expandindo.

A bandeirantes tinha acabado de pegarfogo, comprou o Teatro Bandeirantes. Entrouum diretor, o Sr. Waldir Bônus, e falou para oLucas: “Vamos começar a ampliar, vamos con-vidar algumas crianças para virem assistir oprograma”. O que nós fizemos? Montamos umcirquinho, pequeno circo, mas era chamado OGrande Circo. Tínhamos problemas com osnúmeros artísticos. Por quê? Por causa daqui-lo que eu disse para você: a televisão queima.Se você não mudar, ela acaba te queimando.Então tínhamos que fazer alguma novidadetodos os dias. Só que o nosso programa, erasemanal, era de sábado e passava no domingoe ele era mandado para o Brasil inteiro. Entãoo programa que passava aqui em São Pauloem um sábado, ia passar três sábados depoisem Manaus. Porque a fita tinha que ser man-dada via correio. A gente os via fazendo osenvelopes, fechar e mandar para a coligada deManaus, para a coligada do Rio de Janeiro,para a coligada de Belo Horizonte. Quandosurgiram, via Embratel, as transmissões, que aBandeirantes montou — porque dizem que a

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Bandeirantes foi o primeiro canal a transmitira cores, se não me engano, não tenho certeza,mais ou menos me lembro disso e acho que foipara a Copa de 1970. Tinha poucos aparelhosà cores. Era como começou a televisão, compoucos aparelhos a cores e caríssimos. Então,era feito nesse sistema. Quando entrou viaEmbratel, nós estouramos. A gente dava de 10a 0 na Globo, com o programa infantil, O Gran-de Circo. O que a Bandeirantes fez? Tirou-nosdo Morumbi e nos mandou para o Teatro Ban-deirantes na Brigadeiro Luís Antônio. Aquilolá era um inferno, um teatro de 1.300 lugares,lotava todos os programas, todas as gravações,acima do normal, aí começou a nossa vida deviagens, gravava-se, mas as gravações eramdiferentes do que se faz hoje. Hoje se você erra,você faz de novo, mas o nosso programa paracrianças não, se contasse uma piada duas, trêsvezes, a criança não dava mais risada.

Então nós fazíamos como se fosse um pro-grama ao vivo, mesmo em respeito ao públicoque estava lá. Estávamos acostumados a fazerprograma ao vivo. Não existia esse negócio devídeo-tape para gravar. Hoje em dia eles dãocomida para um camarada que vai assistir umprograma de auditório, o cara erra, o outro nãovem, o outro está fora. Então, leva-se o dia in-teiro para gravar aquele negócio, quando agente é convidado para fazer isso, a gente fica

lá cinco horas esperando para fazer dois mi-nutos no ar. A gente entrava já ensaiado coma equipe, fazia o programa, matava o progra-ma, gravava direto e aí eu ia para a edição. Eutambém era o produtor. Já tinha uns 20 ou 25anos. Tanto que eu fui até diretor da Bandei-rantes. Eu editava, fiz uma série de coisas porlá, produzi programas para eles. Nós ficamoslá por quase 16 anos.

DA: E o rádio?B: O rádio tinha grandes programas. Os

de auditório, inclusive. Fiz muitos. Era a coisapior do mundo, o palhaço e o escada do pa-lhaço fazerem o programa de rádio. Você nãoestava vendo a cara do público. Não tem ima-gem e o palhaço precisa de imagem.

O que vale hoje em dia no palhaço? Omelhor do palhaço é o trejeito, é o jogo de cor-po. Às vezes não é nem a piada, mas o jogo decorpo bem feito. Quando a gente diz: “Não,isso aí vem de família”, eu acredito que venhamesmo, porque não adianta nada... você podeser um bom palhaço, você pode se maquiarbem, se arrumar bem, mas será que você tem otrejeito realmente? Não dá para explicar, nãotem explicações. Você aprende, aprendendo oseu trejeito. Ou então, vai fazer o trejeito dodiretor: “Olha, você levanta aqui, vira para lá,volta para cá e senta de novo”. O palhaço, setiver um diretor, desculpa, não funciona, por-

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que trava a pessoa. Então, o palhaço tem queter a liberdade dele.

DA: O fato de você acompanhar o seu pai,trabalhar e estar na TV, mudou um pouco asua relação de vida de criança? Também derelação com os amigos?

B: Meu pai era mais infantil do que eu. Euera escada. Quando o Fuzarca se separou doTorresmo, eu já fazia televisão, já fazia teatro.Às vezes, a turma me perguntava: “Mas vocêé de circo?”. Eu comecei mesmo como mane-quim, porque naquela época não tinha essafrescura de ser gordinho ou magrinho, altinho,baixinho, bonitinho.

Meu pai morava em uma chácara ali emMairiporã, ali construiu um grande galpãoaonde tinha trens elétricos, era ferro-modelista.Era o maior prejuízo que dava para a minhamãe. Tinha maquete, tinha tudo e era colecio-nador de carros antigos também.

A minha mãe dizia “Que lixo”. Realmen-te todo dinheiro que ele ganhava, empatavaem “tralha velha”, minha mãe falava que eratralha velha. Mas ele tinha as coisas modernasdele também. Trocava a televisão todo ano!Tinha que ter a mais moderna, a mais nova.Filmadora, gravadora, máquinas fotográficas,ele tinha tudo do melhor. Só que, quando co-meçou a ficar doente, abandonou tudo. Ele ti-

nha nesse sítio a piscina dele, a sauna, estavabem de vida, Graças a Deus. Disso nós nãopodemos reclamar. Quando construiu o galpãoele botou umas telhas desses amiantos gran-des e arquivou tudo lá, aonde tinha tambémuma enorme maquete de trens elétricos e asgaragens dos carros antigos. Então, imagina otamanho do negócio e ele era muito organiza-do. Eu o ajudava muito, eu gostava. Não eramuito adepto dos ferro-modelismo e nem doscarros antigos.

Aquilo era um hobby dele. Mas deu umgrande temporal lá nessa chácara e acho que70% do material que ele tinha foi tudo embo-ra. E os outros 30% a gente ia dando a manu-tenção, ele estava muito doente na época, masdemos manutenção, não foi desleixo meu commeu amigo não. Eu ia lá todo dia ver como éque ele estava, fazia uma viagem. Aí eu fuiobrigado a trazê-lo para São Paulo porque alina cidade não tinha médicos. O que eu fiz?Vendemos o sítio e compramos uma casa paraele aqui em São Paulo; foi a última casa que eleteve, é onde mora a minha irmã hoje, ali pertodos Bancários, no Mandaqui. E ali ele veio afalecer e lá ficou muito abandonado. Nós aca-bamos vendendo. Quando eu fui tentar reco-lher, estavam se dissolvendo cartazes, fotos,filmes, gravações; só de discos nós gravamosacho que uns dez.

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Filho, tudo que fazem hoje, tudo o que vocêsfazem hoje era feito em menor escala naqueletempo. Hoje você tem aí o seu brinquedo com oseu nome, você tem o seu disco com o seu nome,você tem os seus shows com o seu nome. Anti-gamente era a mesma coisa, só que em menorescala, porque a televisão era também menor.Não era o veículo de comunicação violento quehoje é. Era um pouco mais simples. Nós passa-mos por uma censura terrível...

Os meus amigos aí, Gilberto Gil, a turmi-nha, Antônio Marcos, que era tudo da mesmaturminha nossa, porque mesmo eu trabalhan-do para criança eu tinha amizade com eles,nós passamos por uma situação que vocês nemimaginam de censura violenta e de “Oh, se nãoestiver legal, vai preso e vai embora”...

DA: Você teve programa censurado?B: Olha, sinceramente eu só tive um pe-

queno probleminha, mas que foi ultrapassadopelo meu pai e deu mais ou menos certo, por-que também eu não aceitava isso. Mesmo pe-las companhias que eu tinha, que era a turmado Avesso. A gente se reunia muito ali no Chá-cara Souza, em Santana, na época da JovemGuarda; tinha a Jovem Guarda do Rio e a Jo-vem Guarda de São Paulo, então, nós tínha-mos uma boa amizade entre nós artistas. Alinão tinha essa de ser cantor, de ser de teatro,

de ser de circo, a gente se reunia e, realmente,de vez em quando, alguém acho que bebia de-mais e começava a falar um montão de grito esempre tinha um porcaria de um polícia lá doexército para ficar olhando para a cara da gen-te e a gente falava baixo para não ter proble-mas, mas mesmo assim, tivemos bastante pro-blema. O Antônio Marcos quase que dançou,quase sumiu do mapa. Hoje a gente pode fa-lar. Mas foi ruim. Foi uma época politicamen-te ruim, mas, nós passamos.

DA: E teve muita namorada na TV?B: Cheguei a ter uma namorada por dia,

em um mês, todas desconhecidas. Sempre fuium cara muito caseiro, nunca fui da boemia.Eu não gostava. Meu pai não bebia, não fuma-va, não jogava. A criação que a gente teve foimais familiar mesmo. Eu montei uma bandacom quinze anos. Essa banda só não estourouporque “Os Incríveis” vieram junto. Fiquei por12 anos fazendo os bailinhos e shows com abanda e já trabalhava com o meu pai e estuda-va. Meu pai falava: “Trabalha durante o dia, ànoite e aos sábados e domingo você tem folgapara tocar no trabalho.” Mas tinha que estu-dar e fim de papo.

Quando passamos para a TV Bandeiran-tes, tive que trancar a matrícula da faculdadedurante uns dois anos. Demorei para me for-

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mar. Me fugiu um pouco o que nós estávamosconversando.

DA: Como conheceu sua primeira espo-sa, já que foi casado mais de uma vez?

B: A minha primeira esposa, por incrívelque pareça, eu a conheci no Lyons Club. Meupai era sócio do Lyons Club de São Paulo doTucuruvi e ele me convidou para ir a um jan-tar. Eu era moleque, não gostava daquilo. Masfui, sentei e a conheci. O Dr. Luciano Caseiroera presidente do Lyons Club, conheci a filhadele e ele fazia questão que eu fosse o namora-do dela. Namoramos por dois anos, casamos,tivemos três filhos.

Aí tive meu segundo casamento, não hou-ve nada, foi simplesmente uma separação pordivergência de pensamentos. Depois conhecia minha esposa no meu sítio, lá em Mairiporã.Era colega de estudos da minha sobrinha. Elaestudava no mesmo colégio. Depois da minhaseparação eu passei um ano morando no sítio.Lá eu montei um restaurante. Eu tinha quefazer alguma coisa. Quando me separei domeu primeiro casamento, virei para o meu paie falei: “Não trabalho mais com o senhor”,mesmo sendo o amigo que eu era dele, e fuivirar ermitão.

Me isolei por um ano. A cabeça voltou para

o lugar. Montei um restaurante no sítio, ga-nhei dinheiro. Meu pai sempre dizia que euera um bom empresário. Montei o restaurantee a minha sobrinha ia lá de vez em quandoajudar a olhar as crianças que iam nocirquinho, porque eu montei um cirquinho. Aíeu conheci a minha esposa. Meu pai estavavivo ainda, me ajudava bastante. Ele que meentusiasmou novamente. Eu parei, ele paroutambém. Eu era escada, mas ele podia arran-jar outro. “Você vai parar?”, “Vou, só que temuma coisa, não quero ninguém aqui comigo,vai lá para São Paulo”. Ele ia ao sítio só aosfins de semana. “Tudo bem? Está tudo em or-dem?”. “Está”. “Quando é que nós voltamos?”.“Não sei”. A gente brincava um com o outro.Ele falava: “Está sentindo tanto a separação?”“O que o senhor quer? Três filhos, uma mu-lher, de repente você perde tudo e fica sozi-nho, você quer o quê?”. Você sente e senti maisainda no bolso. No bolso é que foi difícil.

Se fosse só a pensão eu estava feliz. Ali nin-guém trabalhava. Quem trabalhava era eu. Falobrincando, mas tomara tivesse conhecido a mi-nha segunda esposa em primeiro lugar e não te-ria tido tanto problema. Estamos juntos quasehá vinte cinco anos, vamos fazer bodas de prata.

DA: Como e quando deixou de ser escada?B: Foi quando meu pai faleceu. Com a

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doença do meu pai, eu mudei para a casa queconstruí no interior e lá permaneci durante 14anos. Eu parei, meu pai faleceu, eu falei: “Che-ga, não há mais necessidade de...”.

Aí a minha esposa começou a perguntar:“Bom, e como é que faz?”. Ficou grávida, nas-ceu a menina. Tenho mania de deixar algumacoisa para cada um dos filhos. Nasceu a meni-ninha e eu estava muito sossegado. Fiquei mui-to doente também, eu tive um problema renalviolento e tive que vir me curar aqui em SãoPaulo. Conversando com a minha esposa, falei:“Estamos aqui sossegados demais para o nossogosto. Eu vou para São Paulo e vou começar amexer novamente na parte artística”. “Oh MeuDeus, mas você vai lá e nós vamos ficar aquisozinhos. E o André?”. “O André vai comigo evai prestar exame para a faculdade”. “Não, masvocê vai com ele para lá e vão ficar sozinhos eeu vou ficar sozinha com a menina?”. Falei:“Olha, vamos dar um tempo até eu me acomo-dar em São Paulo”. Em São Paulo não tinhanada. Voltamos para cá, o meu sobrinho tinhaum “Cafofo do Joama”, que era um porão ondea gente podia dormir. Fiquei por lá e comecei asair a procura dos meus velhos amigos, clientese velhos contatos.

E começaram a surgir as coisas, começa-ram a fluir, falei: “Olha, vamos lá!”. Fui prati-

camente criado na zona norte, eu tenho ami-gos demais lá. Então, ia ali, ia lá, procurava,pegava, formava uma equipe para poder co-meçar a trabalhar. Fizemos um projeto cha-mado Projeto Arte Infantil, onde há uma situ-ação de criação, uma situação de espetáculocircense, uma série de coisas. E deu certo. Oque eu fiz? Peguei e comprei um apartamentoaqui, eu e minha irmã. Compramos um apar-tamento barato, porque a minha irmã sempredizia: “Você não vai ficar aqui e eu tambémnão quero isso aqui, então ao invés de pagaraluguel, a gente compra e depois o dia que vocêquiser você volta, porque a minha intenção évoltar. Vou para o interior ou para uma praia,não quero ficar aqui”. Aí começou. “Vamosformar uma equipe para o show, né?”. Preci-sava formar uma equipe. “Bom, eu sou o Esca-da, eu preciso arrumar um palhaço”. Arrumeium palhaço, não vou citar nome.

DA: Tudo bem.B: Arrumei um palhacinho. Primeiro ar-

rumei um que era de teatro, muito amigo atéhoje, mas bebia um pouco; então tinha proble-mas sérios no dia seguinte, não deu certo. Fi-cou um tempo comigo, trabalhava bem, erabom rapaz, mas tinha esse vício e era boêmio,e você sabe que palhaço trabalha durante o dia.Dificilmente você faz alguma coisa à noite.Trabalha em horário escolar, em festinha de

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aniversário e precisa estar bem durante o dia.Para você estar bem durante o dia, tem que teruma noite boa. Então, ele tinha esse problema.Sempre trabalhei muitos anos com o Bruno,malabarista, com Rocan, o mágico, desde o tem-po da equipe do meu pai. Chamei os dois, masnão me acertava com o palhaço! Não adianta-va querer trazer o Picoli, ou o Roger, porqueeles tinham a dupla deles.

Eu precisava arranjar um palhacinhobom. Arrumei, por intermédio do Bruno Ed-son, o malabarista. Ele me apresentou o rapaz,maravilhoso, trabalhador, que sofria todas asdificuldades que sofre um artista. Falei: “Olha,vamos lá”. Começou indo bem, mas ele eraEscada do irmão dele. O que aconteceu? DoisEscadas. Ficou difícil. E uma vez, nós tínha-mos um show marcado, eram dois shows emuma escola e o rapaz não apareceu por moti-vo de doença. Ele era um bom rapaz, nuncadeu mancada. Minha mulher olhou para mime falou: “E agora? Não quer se maquiar?” Issohá uns dois anos e meio atrás. Aí eu falei: “Olha,tenho alguma outra solução?”. “Não, nãotem”. “Está bem... e quem vai ser meu Esca-da?”. Minha mulher disse: “Eu”. Putz, assis-tiu o meu pai, assistiu a mim. Essa minha se-gunda mulher é aquela que gruda. Só não veiohoje porque tinha que levar a menina na esco-la, senão estava aqui, falando um montão no

meu ouvido. “Eu faço para você”. E eu: “Vocênunca fez uma coisa dessas”. “Não? Vamosver o que acontece”. Aí eu peguei a roupa domeu pai, o colarinho, o nariz, as maquiagensimportadas que ele tinha e que gostava. Pe-guei uma peruca que era do Fuzarca, um cha-péu que era do Piolim, um sapatão que era domeu pai, a meia que era não sei de quem e mevesti. Só que não fiz a maquiagem do meu pai.Dei uma modificada, porque eu acho que parachegar aos pés dele, eu vou ter que comer mui-ta grama. Aí me maquiei e falei: “Estou me sen-tindo igual ao que eu sou sempre. Vamos nós!”.Ela entrou, apresentou. O pior é que agradou.

Quando o rapaz voltou, eu falei: “Olha,bichão, vamos fazer uma dupla. Você passa aser o Escada”. E ele: “Ah, beleza! E quem vaiser o palhaço?”. “Eu”. Ele olhou para a minhacara: “O senhor vai ser?”. Eu falei: “Vou”. En-tão vamos fazer o primeiro show. Fomos bem.

Mas eu digo para você; eu, particularmente,não gosto de me apresentar para público adulto.Meu negócio é criança e da faixa de quatroaninhos até onze aninhos. Passou daí, esquece...

DA: A receptividade é diferente.B: É diferente. Para adulto você tem que se

preparar e dar aquela pequena apeladinha. Cir-co à noite é isso. Circo durante o dia é outra

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coisa. A minha esposa, que tem muita experi-ência, outro dia estávamos em uma escola parafazer um espetáculo, com criançada muito le-vada, ou melhor, criançada muito esperta, por-que eu chamo de criança esperta. E ela travou.Você já viu alguém travar? Não sabe o que fala!

Ela entrou, começou a falar, a criançadalá embaixo: “Ah, la, la, ah”... ela travou. Eutive que entrar vestido de palhaço, para come-çar a organizar a bagunça que ela conseguiufazer. Eu trabalho para a criança, não queroque a criança trabalhe para mim. Eu não cha-mo criança para vir fazer brincadeira comigoem cima do palco. Fazer a criança trabalharno meu lugar? Isso aí eu nunca fiz, aprendicom o meu pai. Criança é como adulto: sentalá e assiste o que você vai fazer. Se você for umbom artista, a criança fica quietinha e te vê. Sevocê for um mau artista, a criança bagunça ocoreto e sai de perto. Criança é honesta. Quan-do ela gosta, gosta. Quando ela não gosta, eladiz: “Eu não gostei”. Então eu aprendi isso.Dificilmente exploro alguma coisa da criança.Eu apresento um espetáculo para a criança.Eu não vou fazer recreação com criança. Elestêm que sentar lá e assistir. Eu faço 1 hora e 15minutos de show que não arreda um pezinhodo lugar que está. Tenho cartas maravilhosasde escolas, tenho cartas maravilhosas da onde

a gente se apresenta. Então, eu acho que isso éo trabalho certo, correto. Depois mudaramtudo. Na própria televisão. “Vamos fazer osoutros trabalharem por mim”. “Para quê euvou trabalhar, se eu posso fazer o Joãozinho, oAntoninho, o Zezinho dançar, estourar bexi-ga, correr, fazer?”

Para mim isso não tem valor artístico. Aque-le que é o bonitinho que vai lá e é dirigido quenem os cabrestos do burro, “Olha, você faz isso,isso, isso, isso. Olha, não gostei! Faz de novo,isso, isso, isso... Olha, não gostei! Faz de novo...”até o cara aprender. Para mim, isso é máquina,você não acha? O diretor de novela tecondiciona. A não ser esses grandes artistas maisantigos que, às vezes, chegam para o cara e fa-lam: “Deixa eu fazer a cena do meu jeito”. Já viisso. Mas aqueles jovens que hoje participam,são muito mais maquinados e impossibilitadosde realmente poderem se tornar artistas de pal-co, sabe? Meu pai dizia, artista tem que ser es-tudado, tem que saber cantar, tem que sabertocar, tem que saber dançar e, quem sabe, falaruma língua. Então, veja quantos itens para vocêpoder chegar a ser bom artista. Eu digo, paraser palhaço precisa disso e um pouco mais.

DA: Em quem você vê um grande palha-ço ou comediante?

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B: Posso ser sincero para você? Os bonsmorreram. Temos bons palhaços, mas semchances, porque você só pode ser alguma coi-sa ou mostrar o seu trabalho se você tem umamídia. Se tem onde aparecer. Fazendoshowzinhos não aparece. É como se dependessedo boca a boca. Tem aí os Parlapatões, comuma mídia, sei lá se a mídia deles é feita poreles mesmos. Os Doutores da Alegria, estão aí,cada um no seu setor. Modernidade?Modernidade. Apóio, acho bacana paracaramba, inclusive o trabalho que vocês fazemem hospital eu também já fiz. Eu trabalhei como meu pai no Hospital do Câncer.

DA: Então chegou a visitar hospitalcomo palhaço?

B: Muitos! Santa Casa, Hospital do Cân-cer, Hospital do Câncer Carmen Prudente...

DA: Eram convidados pelos hospitais, é isso?B: Não, não éramos convidados. A gente

procurava. Nós fizemos homéricas campanhaspara o Hospital do Câncer. Vocês não devemse lembrar de quando vendiam o litro de leitenas garrafas de vidro e vinha aquela tampi-nha de alumínio em cima. Era um engradadoe vinham as garrafas de leite de vidro com oleite dentro e uma tampinha de alumínio, quetinha um valor inestimável. O pessoal jogava

aquilo. Fazíamos ecologia naquele tempo. Oque nós fazíamos? Pela televisão, a gente fala-va: “Vamos fazer uma campanha, umaangariação para o Hospital do Câncer CarmenPrudente”. Eu não conhecia o Sr. Prudente, euconhecia a Dona Carmen Prudente. Consegu-íamos sacos, toneladas daquelas tampinhas. Efediam a azedo porque a turma não lavava epunha dentro do saco e ia juntando.

A gente fazia os shows no Hospital doCâncer com histórias mirabolantes. A gentevisitava antes, os leitos dos idosos, dos jovens edas crianças, muitas eram jogadas lá porqueos pais não aceitavam, jogavam lá e sumiam.Nós íamos uns dois dias antes, levávamos umaslembranças que nós tínhamos dos nossos pro-dutos e dávamos para as crianças doentes comcâncer. Dois dias depois a gente ia fazer o es-petáculo, e a gente sempre era alertado pelosdiretores do hospital que diziam: “Olha, nãose incomodem se alguém começar a gritar”.

DA: Por quê?B: Por causa do câncer, da dor... Passa o

efeito do remédio... assistindo um espetáculode uma hora, meu amigo... Berra mesmo. Ber-ra... Desculpa, mas é assim, é a verdade.

Eu me lembro de uma vez que eu fui para

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o hospital com o meu pai para fazer uma visi-ta, conversar... Acho que tinham umas 15 ou20 crianças. O hospital era menor. Levamosuns brinquedinhos e tinha uma menininha comum câncer exposto no rosto, eu comecei a brin-car com a menina e eu lhe um brinquedo. Amenina deu um sorriso, mas não se movimen-tava muito não... “Vai assistir?”. “Vou”... Amenina deu um sorriso: “Amanhã eu vou as-sistir o show, depois de amanhã eu vou assistiro show...” Terminaram todas as visitas das cri-anças, dois dias depois nós fomos fazer o show.Então eles traziam os velhinhos nas cadeiras,as crianças, algumas na cama... É difícil pegar

um pessoal, que a gente já sabia que naquelaépoca estava mais condenado do que hoje, equerer transmitir alegria. Fizemos aquele show,eu tinha me engraçado com a menininha e nãoa vi no espetáculo. Eu falei: “A menina não des-ceu, ela não está boazinha, eu vou lá no quartover”. Subi no andar de cima com a Dona Car-men Prudente, aí a enfermeira veio: “Sinto mui-to, mas a menina faleceu ontem”. Estava lá noberço o bonequinho que eu dei para ela.

DA: Palhaços e muitas histórias. Obrigadopor esta entrevista.

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Walmir Chagas: Começando pela minhaficha de identidade: sou Walmir José Oliveiradas Chagas, conhecido como Walmir Chagas.Meu personagem central, alterego, de um tem-po para cá é o Véio Mangaba. Antes, havia opalhaço Furinho, que é outro estilo de palha-ço, com o qual nunca mais trabalhei. Nasci emum sábado de 1960, às 06h15 da manhã, naRua Augusta do Recife. Hoje tenho 47 anos.Minha mãe era muito bonita. Ela e meu pai jáse foram. Minha mãe veio do interior, era so-brinha de dois ex-cangaceiros de um grupo fa-moso que veio depois de Lampião (AntônioSilvino). Minha avó tinha dois irmãos que es-caparam. Um mais novo, outro mais velho. Umentrou no cangaço e levou o outro. Então ma-mãe vem das bandas de Canhotinho, perto deGaranhões, da cidade de Brejão, cidade de ori-gem de minha avó. Chegando em Recife, en-controu meu pai, que era filho de espanhol

mouro, aqueles morenos árabes. Não conhecimeu avô paterno, o Vicente Chagas. Quandose conheceram, minha mãe já tinha dois filhos:Luiz e Manoel. Esse Luiz conheci depois, mefoi apresentado e me levou para ter as primei-ras experiências de circo. Do casamento depapai com mamãe vieram minha irmãWalquíria e eu.

Minha mãe já tinha dois filhos e papai tam-bém, juntou os dela com os de papai.Waldemar, por parte de pai, era mais velho;foi embora para o Rio de Janeiro. Inclusive, eramuito amigo de Abelardo da Hora. Foi perse-guido mesmo antes e depois da ditadura, por-que era comunista guerrilheiro. Escultor e jor-nalista, trabalhou no Diário de Pernambuco.Depois foi embora. Está na lista dos desapare-cidos políticos. A história da gente é cheia denuances. Meu irmão Luiz aparecia de vez em

História de Vida: Walmir Chagas

Véio M

angaba

Gravação e transcrição para o Projeto Memórias de Palhaços e Comediantes, com depoi-mento de Walmir Chagas a Morgana Masetti no dia 30 de Abril de 2007, no estúdio cedido pelaESPM-RJ. Duração da gravação: 01:19:54. Transcrição por Global Translations.

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quando e trazia presentes para mamãe. E nes-sas vindas e idas — eu era pequeno,menorzinho, porque pequeno nunca deixei deser —, lá na Rua Augusta, do Bairro São José,pedia para que mamãe deixasse ele me levar,principalmente nas férias. As minhas férias doprimário, 3ª, 4ª série, quase nunca passava nobairro onde nasci. Sempre viajava com o meuirmão, peguei contato com o circo. Ele era umfaz-tudo, o tipo que hoje o pessoal chama demulti-artista.

Na verdade, essa coisa de multi-artista é comodiz o ditado: “em terra de cegos, quem tem umolho é rei”. Porque, na verdade, é mais do queobrigação de um artista cênico aprender de tudo.O pessoal de circo historicamente já tem isso, aténo DNA, oriunda daquela coisa cigana. A pró-pria sobrevivência faz com que você aprenda maisde uma coisa. É a própria necessidade que obrigaa não mandar ninguém fazer. Você mesmo faz.As pessoas, até hoje, dizem: “Mas Walmir, tu faza tua própria maquiagem? Eu pensei que...” Não,a gente aprende a fazer. A maquiagem tem umacoisa interessante. Para ter, para fazer a suamaquiagem, tem que se conhecer muito. Porquese pegar a maquiagem de um palhaço e pintar nacara de outra pessoa, vai ficar a coisa mais estra-nha do mundo. Lógico, a pessoa não é a mesma,o gesto, a forma... então ficará terrível. Cada um

tem que encontrar a sua maquiagem. Sua persona.Até no teatro se fala disso.

Bem, fui para o circo... a primeira vez queentrei em um circo foi numa viagem com o meuirmão. Ele foi pedir a papai. Lembro que papaidizia assim para mamãe: “O Luiz está perdi-do e quer perder o pequeno também. Quer le-var o pequeno para o caminho do mal”. Masdisse isso rindo, porque nunca foi de arte, masera músico amador. Antigamente, na épocadele, todos aprendiam algum instrumento.Tocava clarinete no bairro. Até participou debanda de música.

Doutores da Alegria: Quando era peque-no, quais as suas brincadeiras? Como você era?

W: Pegava os discos de papai... uns discosantigos, de 78 rotações e aproveitava quandotodos conversavam na sala. Tocava os discos epegava uns lençóis, umas coisas e saía vestido efazendo a dublagem da música que tocava. Eume vestia até de baiana... Fazia o maior estar-dalhaço... Cada vez que saía e voltava, era comum personagem diferente. Pegava até roupasda minha irmã. Ela ficava arretada comigo...Vinha vestido de Carmen Miranda, dançando.Aquilo que eu escutava, tentava reproduzir nacena. Inventava uma roupa que tivesse a vercom a figura que cantava. Para Jackson do Pan-deiro: eu vinha com um prato, uma panela to-

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cando, cantando. Gostava de fazer essas coisasde dublagem, mas brincando. Como se fossemapresentações... mas era sobre o que estava to-cando... não havia uma coisa específica. O queimaginava, tentava mostrar.

Entrei num circo pela primeira vez em Vi-tória de Santo Antão, num lugarejo chamadoNatuba. Daqui para lá, depois de Vitória, an-tes de Pombos, há uma plaquinha “assim” [ges-ticulando]. Sempre foi um ponto de venda decoentro, cebolinha, alface... Fui para esse lu-gar para ver o circo de um palhaço, não melembro do nome. Não havia a empanada decima, era o chamado deus-tomara-que-não-chova. O proprietário era um palhaço muitomoderno, na época. Tinha um nome esquisito:Palhaço Paquera. Aquela coisa de flerte, depaquerar. Uma coisa muito estranha.

Continuo achando uma viagem muito lou-ca a daquele cara, como dono do circo. Comoeu sempre digo, a família do dono do circo éfaz-tudo. Se ele é o mágico, sua mulher faz aparceria com ele. A filha vende amendoins.Depois, na outra cena, a mulher vai para a bi-lheteria ver como foi o “recado”, e a filha vaifazer seu número. O cara se transformou empalhaço... era um elenco muito pequeno quefazia tudo. As pessoas naturalmente aprendempela necessidade a fazer mais de uma coisa.

Sabem montar o circo... Logicamente, as tare-fas são distribuídas de acordo com a habilida-de e a força. Mas em questão de conhecimen-to, todos sabem fazer. Desde pequeno, come-cei a ter esse contato direto.

Havia as comédias ligeiras e os esquetes.Às vezes, não entravam esquetes, porque osclássicos já estavam mais formatados. Esta éuma linguagem usada para computadores, hojeem dia. Mas quero dizer que estavamformatadas para o palhaço, ou o palhaço e oajudante, o tony de soirèe; um mais engraçadooutro engraçado também, mas que serve deescada para o companheiro formatar, dar oresultado da piada. Como Didi e Dedé, o Gor-do e o Magro. Diferente daquele estilo Chaplin,Carlitos, individual, em que os outros sãofiguras...Aprendi isso desde pequeno. Oesquete tem entre 5 e 10 minutos, com o im-proviso, 15 estourando. Mas as comédias ligei-ras tinham em torno de meia hora. De 20 mi-nutos a 40 minutos. Algo grande, como: “Aagência pegou fogo”, “A agência Marineles”... havia outras também e havia dramas, che-guei a fazê-los, mas como figurante. Não ti-nha nem texto.

DA: Você se lembra dos títulos?W: “A afilhada”. É interessante que as

comédias antigas de circo, e os dramas, têm,

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como você pode ver até na obra de ArianoSuassuna e dos mamulengos, um título e umsubtítulo, que é uma explicação. “O filho pró-digo ou o milagre de nossa senhora da Concei-ção”. Aparentemente não há nenhuma cone-xão mas, na verdade, o filho foi embora e nofinal há o milagre de Nossa Senhora. “A Lou-ca do Jardim”, famosíssimo. Chegou-se a mon-tar aqui no Recife por Waldir Coutinho, juntoa um projeto da Prefeitura da época. Até li-vros foram escritos resgatando esses dramas ecomédias. Cheguei a participar de alguns. Eos esquetes, propriamente ditos, clássicos: “Odentista” — porque sempre vimos isso em gran-des circos. “O dentista”, “A alma”, “A sonâm-bula” são os mais antigos e mais conhecidos.

DA: Se você quiser descrever um...W: O esquete “A Alma” é interessantíssi-

mo porque aparecem dois palhaços do mesmocalibre, vamos dizer assim, não necessariamen-te um querendo ser mais engraçado do que ooutro, até para haver uma disputa, ver quem éo mais “tampa”. Começam a discutir... A cenaabre com um dizendo para o outro: “você émentiroso”. “Mentiroso é você”. “Ah, você jáfez mais coisas...”. “Eu viajei”. “Não, vocêque...”. “Eu que tenho mais experiência”. Co-meça aquela discussão e, de repente, um diz queé caçador, que já caçou leão. “Mas que menti-

ra! Você foi à África?”. “Não, mas aqui tinha,na época”. Tudo conversa furada. Um começaa querer ser melhor do que o outro. De repente,um diz que entrou na mata e quando se virou...Nesse momento, atrás do outro, a alma, vai en-trando e começa a cutucar um e outro. Um pen-sa que é o outro que cutuca. De repente, quan-do vai dizer que ia atirar na alma, vê, joga aarma para cima e corre. A alma vem e senta nolugar dele. Depois de um tempo, ele pega aarma: “Esse cabra é muito frouxo. Foi embora etal”. E começa: pega a alma e começa a conver-sar. Quando ele olha, vê que é alma também.

Portanto, sempre esses desfechos são mui-to, digamos, puros. Só que, dentro dessa pure-za, aquilo está transmitindo uma mensagematé mesmo religiosa. Da vida mesmo. Eu atédigo o seguinte: que nunca participei de ne-nhuma igreja formal, católica, nem isso, nemaquilo, porque a própria arte já me dá essa his-tória. Acho que um palhaço é um padre paraa igreja católica. Ele é um pai de santo paraum candomblé. Então, o nosso jeito de ser pa-lhaço já é de ser um monge. É um monge den-tro da nossa religião, que é a alegria.

A alegria no sentido da — algo em que tra-balho há pouco tempo — “equivocologia”. Tra-balhar sobre os equívocos. A gente, às vezes,

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persegue uma coisa, que é o estudo do equívo-co. O palhaço não necessariamente é alegre.Com essa Alegria, ele mostra a realidade davida. E nela, nem sempre há alegria. SegundoSão Francisco de Assis, se você sabe que vaisofrer, trate a dor com alegria. Porque se a en-carar de frente, enfrentá-la, com raiva ou ódio,é pior ainda. De qualquer maneira, vai ter quepassar por ela. Sofrer significa viver. Então vivacom menos sofrimento. Sofrer menos é alegria.Isso no nível humano, porque, na verdade, agente procura... ser anjo, mas enquanto a gen-te não chega lá, vamos sofrendo por aqui mes-mo.

DA: Walmir, você disse que seu irmão Luizte levou ao circo. Como via o palhaço, qual foia sua primeira impressão e como você se sen-tia naquele lugar?

W: Palhaço é feito ser humano: não é umacoisa só. Para mim, é sinônimo de homem, degente. E existe de todo tipo, cor e altura. A pri-meira experiência é lá de casa mesmo. Minhamãe era uma senhora palhaça e o meu pai umsenhor palhaço. Tudo o que faziam na vida,conseguir me criar naquela dificuldade... eu viaaquela alegria, aquela coisa... cantando. A pri-meira experiência é minha própria casa e meuirmão. E minha vida. O carnaval de onde nas-ci. No bairro de São José, comecei a ver os pa-

lhaços de carnaval, aqueles inclusive que vêmda Comédia Del’Art. Aquele trio: Arlequim,Colombina, Pierrô. Foram as primeiras experi-ências. O clown é chamado aqui no Recife e nalinguagem popular de Clóvis. Palhaço em in-glês. Eu já tinha essa experiência, mas não sa-bia, porque a gente só descobre depois. Quan-do vim para o circo, vi que o palhaço era exa-tamente como eu pensava. Inclusive, a experi-ência dos primeiros palhaços, como oPaquera... tinha a família dele... sua mulherparecia uma índia baixinha assim... ela canta-va. Cantava aqueles bolerões. Num espanholmeio misturado, mentiroso, né? Para enganaro povo, cantava umas coisas com a língua mis-turada. Dizia que aquilo era do sul da Escó-cia... Coisas assim muito loucas. Isso já é umapalhaçada. Conversa de cigano nordestino.

Esse cara era muito engraçado, porque erasisudo, bravo, andava com uma faca. Pareceque já tinha até furado alguém, porque tinhatirado onda com a cara dele. Coisas assim, umbaixo astral total, mas era o palhaço... Acho quecom certeza foi a minha maior aula. É justa-mente por isso: porque sem essa alienação...Alegria sem ser tomada como alienação e simtentativa de não ser infeliz. Fazer do ar quenteo mais frio possível, que é a própria vida. É ondeestá a coisa do equívoco...: “Vamos ser palha-

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ços! Hi, hi, hi...”. Não. Não vou rir, porque nãohá sentido em rir de algo... é mais necessáriosaber qual o sentido do riso do que rir. Se vocêentender para quê o riso existe, já é um grandepasso. Agora, rir sem saber porque pode até fa-zer mal.

DA: Você falou sobre a maquiagem e umacoisa bonita sobre não se encaixar no rosto deoutra pessoa. É autoconhecimento? Como foiesse primeiro palhaço que você fez, o Furinho?

W: Acho que as pessoas lembram damaquiagem do Furinho. Lembra muito oCarequinha, que morreu há pouco tempo comnoventa e tantos anos. Palhaço tem que seolhar muito no espelho. Saber como é sua cara.Se não tiver espelho, olhe no rio, no lago maispróximo, numa poça de água, mas tem queolhar muito, saber como é a cara. Sabendocomo é a cara, vê os lugares que trabalha mais,porque é diferente, cada pessoa tem o seu...Tem gente que não consegue mover isso aqui,mas move muito bem isso aqui [apontando parapontos no rosto]. Se não as pessoas seriamiguais. No caso do Furinho, descobri que tinhaum “trabalho” aqui da testa, então fiz duasbolas. Preto e branco, riscado de preto. Eu oachava meio tristonho. Era um riso, então co-loquei duas lágrimas. Na verdade, fechava oolho e riscava um pouquinho aqui. Ficava qua-

se uma cruz. O nariz — nunca usei muito aque-la bolinha propriamente dita — eu sempre pin-tava. Pintava de vermelho, às vezes untava atéuma massa, e ele ficava um pouco maiscompridinho, porque meu nariz não precisamuito botar outro não. Já veio grande de fábri-ca. A boca também já é vermelha. Parece quejá há um batom dentro da boca.

DA: E a roupa dele?W: Era aquela gola larga, inclusive, me

inspirei no próprio Carequinha. Quando fica-va com vergonha, a gola dele entrava na cara.Os dois punhos também. Uma camisa, mangacomprida às vezes, de malha listradinha, comgravata comprida e colarinho enorme, de pa-lhaço. Às vezes, quando ia mais para um es-petáculo adulto, inspirado nos palhaços de cir-co, essa gravata tinha um cordão por dentroque saía até no pé... Quando fazia assim, elafazia póim. Só que não se faz isso para crian-ça. Criança adora, mas os pais não querem...porque criança adora safadeza. Na verdade,criança sabe de tudo, de toda safadeza. Ficarepresentando para os pais que não sabem denada e vice-versa. A criança vê isso de umaforma pura. É só isso. É feito o amor. O amor éum só. Não existe amor fraternal, paternal...não. Meu pai dizia uma coisa muito bonita:“O amor é um só. O que existe são os comple-

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mentos do amor”. Muda de acordo com o quevocê vai fazer. A roupa era isso. Uma calçacom arame, que ficava larga, com suspensório.Um meião de jogador colorido e um sapatênis.Um chapéu que eu mesmo faço até hoje depapelão, imitando de palhinha, de palheta. Àsvezes, o fundo era falso. Abria e tirava confetede dentro. Todo cheio de coisa falsa. Na bun-da, um coração. Às vezes, aqueles corações, àsvezes, um bolso mesmo para o pessoal pensar...e você vai criando, mas a roupa básica era essa.Ia mudando ... tinha um paletó por cima.

DA: Isso foi você mesmo que criou?W: Eu me inspirava em outros palhaços

mais antigos. Posso citar três: o próprioCarequinha, o Arrelia e palhaços que via natelevisão e no circo.

DA: Você já era ator, trabalhava em teatro?W: Em 1969, ia fazer 10 anos. Estava com

9 anos de idade. Já tinha essa experiência des-de os 8 ou 9 anos com meu irmão. Havia umprograma de televisão ao vivo, no canal 2, Re-cife, TV Jornal do Comércio — os programaseram todos ao vivo —, chamado Cidade En-cantada. A Xuxa da época. A figura ainda estáviva. Graças a Deus ainda existe. A gente seencontra... o nome dela é Linda Maria. Foi dorádio e chegou a ser da televisão. Fundadorada TV Jornal. Tia Linda era essa figura cheia

de crianças ao redor. Eu me lembro que esseprograma era todo dia à tarde, ao vivo, preto ebranco.Houve uma chamada perto do carna-val para as crianças que queriam participar doconcurso de passos de frevo, de passista. Comonasci ali no foco do negócio, no bairro de SãoJosé, fui lá e me inscrevi. A gente ia à pé, anda-va, passava pela Pracinha do Diário e ia em-bora.

Antigamente, existia o Teatro Santa Isa-bel e o Teatro Marrocos, ao lado de onde hojeé uma Caixa Econômica. Lindíssimo, de ma-deira, junto ao Liceu de Artes e Ofícios. Passa-va pela porta, inclusive pelo caminho para ocanal 2, porque tinha que pegar a ponte, a Ruada Aurora e a Rua do Lima.

Todo dia a gente fazia esse caminho à pé,porque era na cidade, e a cidade era muitomenos turbulenta. Parei uma vez na porta doteatro; tinha aqueles cartazes enormes comaquelas bailarinas, vedetes. O espetáculo: “Émuito socó para um só socó coçar”. Teatro deRevista. Eu ficava olhando... o próprio BarretoJúnior, que era o comandante da história, àsvezes, estava pela porta, ali com o charutãodele... Para mim já era um velho de pastoril,uma figura assim... dessas figuras do Teatrode Vaudeville, que é um palhaço, um apresen-tador do Cabaré: “Senhoras e senhores...”,

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aquela coisa meio fanfarrão e palhaço. Só queum palhaço com outro estilo. Eu olhava e ti-nha aquelas placas, fotos que diziam assim:Impróprio para menores de 22 anos. “Quan-do é que eu vou ter 22 anos?”. Eu tinha 9, 10anos de idade. Por que não 23 ou 19? Nuncaconsegui entrar no Teatro Marrocos, mas che-guei a ficar na porta e via as mulheres entran-do para o espetáculo.

Fui para o canal 2 e ganhei como passista,na minha categoria de criança. Tia Linda mechamou para fazer parte, não do elenco prin-cipal, porque eu tinha 9, 10 anos — e pessoalassim já tinha. Cito até Ivanildo Silva, que fazmuita propaganda também, uma figura e queera do elenco principal. É um pouco mais ve-lho do que eu. Ele já tinha 15 anos, era umadolescente. Ele, Naná, Gracinha Lira eGuadalupe, a menina que casou comDominguinhos, da família da Fazenda Nova.Eu ali de pirralho, comecei a fazer umas pon-tas. Havia uma peça, se não me engano “Aliceno País das Maravilhas”. Me escolheram paraser uma carta, um soldado, daqueles de portade castelo. Tinha essa função e tia Linda gos-tava muito de mim. Nunca cheguei a atuar,mas havia alguns textos muito pequenos, por-que também era muito criancinha ainda. Issoé experiência em televisão. Venho desde essa

época participando daquelas propagandas, porexemplo... Propaganda ao vivo, como voltouagora nos programas. “Esse chá é muito bom,porque não sei o quê e tal. Tome aqui, meu fi-lho”. Então eu era o menino que tomava o chá.

DA: Tinha que dizer que estava gostoso...W: Eu não me lembro não, devia ser uma

merda. Mas tudo ao vivo. A gente ia aprovei-tando... Fiquei até meus 15 anos... Então co-nheci Paulo Ferreira, o pai dos Madureiras.Estava formando um elenco de teleteatro. Que-ria voltar com o teleteatro, em 1975. O AndréMadureira, que trabalhava com ele na produ-ção do programa, já tinha recebido um cha-mado do Professor Ariano para formar umgrupo de pesquisa de dança popular. Então agente formou o Balé Popular do Recife, em1976.

O Balé Popular, que não era balé. Era gru-po circense de dança popular, ou seja, eu tivetoda uma... pequena experiência já na épocapara esse grupo. Já indicava, inclusive... A gen-te fazia reuniões da gente... Para você ter umaidéia, o mais velho era André, que tinha 25 anosde idade. Era legal. A gente, inclusive, foi cha-mado na Polícia Federal, porque a palavrapopular era meio perigosa na época. Lembra-va comunismo, socialismo, como em Repúbli-

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ca Popular da China. Eu quase, com o meujeito metido de ser e de não agüentar muitacoisa... porque o palhaço, antes de ser engra-çado, é “dizedor” de verdades. Só que essaverdade pode ser minha, sua, de alguém ou deninguém. É um agente da verdade. Não podeser dita, como eu já volto a dizer, como umacoisa muito boa, às vezes, não. Verdade é ver-dade. O fogo é bom ou ruim? Para quê? O maré bom ou ruim? Você pode se afogar no mar,então é coisa natural. Não existe essa de bomou ruim. Para o que será que se destina? Paraque serve? Então o cabra da Polícia Federal,eu me lembro, todo arrogante, chegou e per-guntou, falando mais com André, porqueAndré era adulto, e eu ali olhando. Ele disseassim: “Por que esse negócio de Balé Populardo Recife?”. O André ficou assim meio commedo, aí eu me meti. Eu disse: “Balé porque...”eu comecei a ironizar com a cara dele, ele fi-cou sem entender...”Balé porque é um grupoque faz dança, né?”. André: “É”. Vê que con-versa abestalhada. Balé porque é um grupo quefaz dança, que criamos, porque antes era b, a,l, l, e, t: ballet, em francês. A gente que se arvo-rou e colocou em português mesmo,aportuguesou. “Creio que foi a primeira vezque se escreveu dessa maneira. “Olha, popu-lar...”. “Sim, popular, por quê?”. E anotando.“Popular porque é um grupo que não é erudi-

to, clássico. É um grupo de dança do povo, onome já diz...”. Ele disse assim: “Você estámuito engraçadinho, viu?” Eu disse: “E doRecife...”. Ele disse: “Se disser, você fica pre-so”, “porque não é de Olinda, nem de São Pau-lo”. Ele disse: “Se disser fica preso”. Isso já éuma cena. Essas cenas parecem brincadeira,mas são verdade. Você apresenta isso no tea-tro, parece uma brincadeira, mas a vida é issomesmo.

DA: É, e naquele tempo você já desafiavaautoridade.

W: O palhaço parece muito com uma crian-ça. A coisa pior do mundo é você ficar: “Você,criancinha, tem que ser boazinha, viu?”. Eu ga-ranto que essa criança tem uma grande tendên-cia a ser ruim. Você não pode ficar falando parauma criança que ela tem quer ser boa e muitomenos má. Você não vai dizer: “Você tem queser má”. Não, lógico que não vai fazer isso. Ago-ra, ficar com babaquice, porque tem que ser boa-zinha, porque não sei o quê... Criança é muitointeligente, não gosta dessa conversa. Tem quedar exemplos através da linguagem e da ação etem que ser verdadeiro. Criança é muito verda-deira. Por isso criança diz na cara, não tem medode ser presa. Criança não sabe o que é isso. Opróprio Jesus diz: “Se você se tornar criança, vocêentra no reino dos Céus.” Isso está dito na Bíblia

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e todo mundo fala isso. Cada um na sua lingua-gem. Então o palhaço é o quê? Um adulto que écriança. Mas temos que tomar a criança, nãocomo alienada, e sim como uma pessoa aberta,sem medo, natural. Brinca de viver ou vive parabrincar. Um ser brincante. Isso é muito bonito.Muito mais profundo do que se imagina.

No Balé Popular do Recife, tínhamos umameta a cumprir. No movimento Armorial, li-derado por Ariano, existiam “departamentos”.Na música, a orquestra Armorial, QuintetoArmorial, com Zoca, Nóbrega ... e na dança oBalé Armorial, que depois se transformou emBalé Popular. Só que o Balé Popular do Recife,antes de ser Balé Popular do Recife, se dedica-va ao que o nome já adiantava: Grupo Circen-se de Dança Popular. A gente fazia uma com-binação entre a dança popular e os tipos po-pulares, ou seja, o que a gente chama de pa-lhaço. Pagliaccio, em italiano. Vestido com umaroupa de palha, ou esse clown famoso ameri-cano, inglês. O que é o palhaço brasileiro nes-sa mistura que a gente sofreu? Será que no ín-dio não tem? O índio, sem nunca ter visto acoisa européia, não tem palhaço? Tem. A for-ma dele, que a gente chama de palhaço, o co-mediante, o cabra que mostra as mazelas dasociedade, os defeitos. A figura que diz, de for-ma bem humorada... o próprio pequenininho

da corte, o bobo, se dissesse algo para o rei... agente sempre toma como uma coisa européia.Mas em qualquer situação: na África, em qual-quer lugar, qualquer povo. Se ele disser aquilode uma forma ríspida, grosseira, chorando,não vai resolver. Primeiro, pode até conseguirresolver, mas é dizendo aquela verdade de umamaneira engraçada... isso acaba com o gelo.

O ser humano começou a descobrir quese pode dizer a mesma verdade de uma formagrosseira, brigando, chorando, ou dizer rindo,cantando. Você vai se dar bem da segunda for-ma. Descobriu-se isso. A gente tinha essa meta,querendo saber como seria o palhaço mais nos-so, porque eu particularmente nunca fiqueinaquela de dizer assim: “Não, porque o brasi-leiro...”. Não, não é que o brasileiro seja me-lhor do que ninguém. Já que nós somos mistu-rados, então a gente vai pegar esse pouquinhode cada um e tentar ser mais brasileiro. O mo-vimento de 22, o Modernista, foi uma tentati-va disso. A gente ficava sempre nessa dúvida:como seria o palhaço brasileiro? O palhaçobrasileiro já existia. Todo movimento, toda brin-cadeira popular tem o seu palhaço específico,ou seja, é o palhaço, mas com aquele sotaque,com aquele jeito.

No Cavalo Marinho, no Bumba-Meu-Boide Pernambuco, você vai encontrar o Mateus,

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o Bastião e a Caterina. Se transferirmos para ocirco europeu, temos algo muito semelhante na“Alma”, que é o palhaço Tony e a Colombina.O Pierrô, o Arlequim e a Colombina são oMateus, o Bastião e a Caterina.

DA: Só que são negros!W: Pois é! A coisa da mistura chegou a esse

ponto. Negros ou mestiços. O que acontece?Você vai para a brincadeira de rua, aonde atéo camelô é um palhaço. Ele vem, dança comuma boneca, pega o vendedor que faz teatrode rua — porque é uma espécie de teatro derua, mas está ali para vender. É o camelô. Ocabra que vende banha para dor, do peixe elé-trico, não sei o quê... O homem da cobra. Opessoal diz que “o Walmir fala mais do que ohomem da cobra”

Ninguém pode reclamar, porque se nãotiver ninguém para eu tirar onda, eu tiro co-migo mesmo. Ou seja, é como se fosse umamasturbação do riso. O Furinho, se olhar di-reitinho, tinha uma característica mais euro-péia mesmo. Essa característica européia ou,vamos dizer assim, universal... Por que o frevonão é universal? Porque não fala inglês. O rockand roll é universal porque fala inglês. Então seo frevo falasse inglês, seria universal. Ou seja,a língua dominante é que faz com que a cultu-ra seja dominante também. Esse palhaço, esse

clown, é universal por quê? Porque fala inglês.Então qualquer palhaço que não fale inglês, quefale tupi ou nagô, ou qualquer outra língua,não é universal. Torna-se folclore local. Eu dis-se: “Não, espera aí... Furinho que me perdoe,mas vai ter que dar uma reciclada na vida dele”.Ou seja, o Furinho se transformou no VéioMangaba. Ainda acho que existem os dois den-tro de mim. Que safadeza. Mas não é bem as-sim, não é o que vocês estão pensando não.Dentro de mim, existe um Furinho. O Furinhoestá aqui, é o palhaço universal, que fala meioinglês, mas o Véio Mangaba é o Faceta, o Bar-roso, o velho de pastoril — porque esse velhode pastoril, se você olhar, já é o velho tambémque é o palhaço do circo mambembe. As pas-toras são o que o pessoal do circo chama depátinas, ou as rumbeiras do circo. Aquelasmulheres meio ciganas que vão para a platéia,jogam o lenço e seduzem para ganhar um di-nheirinho. E, muitas vezes, é até esposa e filhado palhaço.

Hoje, por exemplo, tenho uma pastora queé minha filha. Então estou seguindo, de certaforma, a tradição. A diferença só é essa: a bus-ca, porque o palhaço existe, o que muda é acultura desse palhaço, onde o artista que faz opalhaço, que faz aquela persona, personagem,está localizado culturalmente. Se eu vivesse nosul da França, teria as características “a”, “b” e

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“c”. Já que vivo no nordeste do Brasil, tenho ascaracterísticas “y” e “z”. Na França é amour ena Inglaterra é love, mas o sentimento não é amesma coisa? O que muda apenas é o sotaque,a língua. O palhaço é o mesmo, o espírito é omesmo. Acho que o ideal é encontrar o fio dameada da sua cultura, seja qual for. Já que acultura brasileira é misturada, os palhaços nãopoderiam deixar de ser, só que essa mistura... écomo a história das raças de animais e o vira-latas. O vira-latas, de certa forma, é mais forteque os outros. A música brasileira, por ser umamúsica vira-latas, digamos, misturada, tem umatendência a ser mais forte, porque pegou o DNAde várias outras culturas. O palhaço brasileirotem uma tendência, por essa lógica, de ser mais“tamporoso” do que os outros, porque pegou oDNA de outros palhaços.

DA: Walmir, você chegou a ver algumaapresentação, do velho Faceta, do Barroso?

W: Cheguei. Voltando ao Balé Popular, naépoca que a gente vivia pesquisando, andan-do por circo, por terreiro de maracatu, na dé-cada de 1970. Inclusive, uma coisa que a gentenotava mesmo é que só quem fazia o folclore,vamos dizer assim, a cultura popular, era opovão mesmo. A classe média e a alta não gos-tava disso. Hoje você vê uma garota de BoaViagem tocando alfaia... Na época isso era

impossível. Uma coisa de negrinho, de“gentinha”, suburbano... Dançar uma coisa dopovo, brincar... A gente ficou sabendo que ovelho Faceta se apresentava — quem disse foiLeda Alves, que produziu os dois primeirosLP’s. Ele canta: “Papai ó que calor, / Calor nabacorinha...”, e por aí vai... “Pra nós na sua, /ai papai só é na minha...”. Ele chegou a ir paraa Globo, no Chacrinha, outro que levou a cul-tura do palhaço. Pernambucano, levou issopara a televisão. O Velho Guerreiro e suaschacretes, o que é? Tem a ver com o velho pas-toril. Chegou até a falar essa coisa: “Quem querbacalhau?”, e jogar bacalhau... abacaxi... e “vaipara o trono ou não”? Essas brincadeiras têmtudo a ver com o pastoril. Eu cheguei a ir na-quela rua onde o velho Faceta se apresentavaàs sextas à noite e aos sábados. Fomos eu, oAndré, Antulho, Madureira, Antero.

Cheguei a ver o velho Barroso, mais velhodo que o Faceta, no Pátio São Pedro, ainda naépoca que tinha as cirandas às sextas-feiras.Se apresentava também em um lugarzinho ali,em um “limpeiro”, um campinho de futebolem Afogados. A experiência vem dalí. A pró-pria maquiagem do Veio Mangaba vem dalí.O Professor Ariano me colocou na parede umavez e disse assim: “Walmir, por que essenome?” Ele queria que eu me chamasse Velho

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Mangaba. Eu disse: “Não, o nome do meu ve-lho é Véio Mangaba”. Eu disse para ele que onome era a minha marca. É a marca VéioMangaba. Sei que é um velho, mas o nome dovelho é Véio Mangaba.

Você pode perceber se observar atenta-mente que a maquiagem do meu palhaço émuito próxima da dos outros palhaços. Os ve-lhos do pastoril são mais diferentes. Há umadiferença entre essa forma européia e essa po-pular, de reisado, guerreiro, pastoril. Aqui vocêvai ver uma semelhança muito grande na for-ma de maquiagem. Geralmente, a cara é qua-se toda completa, ou grandes bolas. O Facetausava muito, o Barroso tinha uma cara muitointeressante: parecia um totem afro, porqueusava uma coisa meio melada mesmo. Não semaquiava não, melava a cara. Parecia que es-crevia umas coisas chinesas. Tinha a boca bor-rada. Feito criança quando pega o batom damãe. Uma coisa meio borrada. Me inspireimuito: “Não! Espere aí... Vou sair desse gran-de grupo, que é do palhaço europeu propria-mente dito, que de certa forma se abrasileirou,e vou para esse palhaço mais brasileiro, que édo reisado, do guerreiro”. Por isso minhamaquiagem hoje lembra muito essa caracterís-tica dos velhos de pastoril, lembra o velhoFaceta. Uma coisa que observei é que, com

raríssimas exceções, os nomes dos velhos depastoril são de três sílabas. Fa-ce-ta, Man-ga-ba, “Bar-ro-so”, Pin-do-ba. Tre-lo-so, Xa-ve-co.É alguma coisa cultural. Talvez uma tradição.

DA: E como nasceu o Véio Mangaba?W: Foi interessante. No Balé Popular do Re-

cife, criamos um grupo e um espetáculo chama-do “Olinda”. André disse: “Walmir, olhe, vai terum momento no qual eu queria que você entras-se vestido de velho de pastoril, homenageando...”— esse espetáculo homenageava Olinda, mas aOlinda holandesa. Os holandeses não chegarama Olinda. Chegaram em Pau Amarelo, que hojeem dia é paulista. A gente diz Olinda de formagenérica. De Olinda até Itamaracá é a nossaOlinda, digamos. Os velhos de pastoril, até hoje,se concentram muito naquela área antes deItamaracá, Igaraçú e Itapissuma. Aquela áreasempre foi um lugar de muitos velhos de pasto-ril. O velho Faceta também era de Itapissuma.“Walmir, a gente vai fazer uma personagem coma qual você se vista de velho de pastoril, home-nageando os velhos do passado: Cebola, Faceta,Barroso...” “Está bom. Vou fazer um híbrido.Faceta, Barroso e Cebola, este último não che-guei a ver, mas pesquisei as cantigas, e vou fazerum misto desses três”. Entrei nesse trecho do es-petáculo sem nome. Passou o espetáculo e eu gos-tei muito.

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Quando fui chamado por Lula Queirogapara fazer um guia eleitoral — na época erade Jarbas para a Prefeitura —, disse: “Walmir,qual seria a personagem âncora? Queria queno guia eleitoral aparecessem os caboclinhos,as pastoras da ciranda. Toda modalidade po-pular da cultura nordestina e pernambucana,por excelência”. “Seria o quê? Um velho pas-toril”, porque o velho de pastoril é um apre-sentador de televisão. Não necessariamenteprecisa... pode estar no pastoril, mas tambémpode fazer qualquer coisa. Então o velho vaiser o âncora do programa. Ele pode aparecerincluído no pastoril, pode aparecer apresen-tando os caboclinhos, o pessoal do côco, oscangaceiros, o que for. Ciranda, dançando,pintando miséria. “E qual o nome dele?”. “Eutenho esse personagem... não tem nome”. Sur-giu assim: eu e Lula, brincando, busquei... LulaQueiroga é o padrinho do Véio Mangaba. So-mos padrinhos do Véio Mangaba. Do nome...disse assim: “Mangaba... arretado, Mangaba”.Aí a gente foi elucubrar...

DA: Mangação...W: Não, engraçado... Aparentemente não

tem nada a ver com a coisa de mangação não,de mangar. Era por conta da própria frutamesmo. Ih, rapaz? Fruta hummm... não! Masfruta no sentido... a mangaba é uma fruta bemcaracterística do mangue do Nordeste, que está

em extinção. A fruta é deliciosa. A caracterís-tica psicológica do Véio Mangaba é exatamen-te a daquela fruta. É gostosa. É gostoso,docinho, mas é meio “travento”, “travoso”como caju. O caju é gostoso, mas é meio“travoso”. O Véio Mangaba não é tão bestinhacomo se imagina. “Eu sou gostoso pessoal? Mastambém se pisar no meu calo, se me arretar,sacudo pedra”. Tem essa história. Como se diz:“Sou eu, o Véio Mangaba, brincador dessa ci-dade. Sou eu, Véio Mangaba, respeitador dalei dos três poderes, civil, militar, eclesiástico,mas quando me arreto, sacudo pedra”. Ele écumpridor das leis, tudo certinho. Mas nãovenha bulir com ele não. O palhaço é o seualterego mesmo. É tudo aquilo que o Walmirnunca conseguia ser. Ter a coragem queWalmir não tem. Joga no cano de escape. Onome foi colocado por isso... É um cabra legal,gostoso, bonito. As meninas o adoram, sabo-roso, mas é “travoso”. Ranzinza também. Nãovenha com conversa mole.

DA: Walmir, como o Véio Mangaba tam-bém tem muita picardia, muito duplo sentido,porque isso também é uma característica dogênero popular, de sempre brincar com essadualidade, como é que você mexia isso com ooutro palhaço e com o velho?

W: Eu não cheguei a ir com o Furinho paraos circos, mas ele tinha característica de circo.

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Levei o circo para o aniversário. Levei o circo,ou seja, a filosofia circense de apresentação empicadeiro. Existe uma diferença entre — naépoca mesmo eu já falava — o pedagogo pin-tado, que tem aqueles jogos, e o palhaço. Tudoé jogo, mas é para termos uma dimensão maislúcida. Foi até uma coisa revolucionária, por-que existia o animador de aniversário, opedagogo pintado, e o palhaço propriamentedito, como se a pessoa do aniversário, a donado aniversário fosse no circo e contratasse umpalhaço para ir para a casa dela animar a fa-mília dela. Pronto, a diferença é só essa. Entãoo Furinho... tem essa característica de sair docirco e entrar no aniversário para levar oesquete, a conversa e, justamente por ser cri-ança, a picardia, vamos dizer, mas muito aci-ma dos jogos, ou da brincadeira, a brincadeirainfantil. Não no sentido pejorativo, mas sempiadas picantes, porque isso fica a cargo maisdo velho do pastoril. O Véio Mangaba saiu.Profanou o profano. “Walmir, o Véio Mangabafaz parte do profano?” “Olhe, existe pastorilreligioso e profano. O pastoril do VéioMangaba é o pastoril que profanou o pastorilprofano”, ou seja, eu peguei o Véio Mangabae dei outra dimensão. Se apresenta, hoje emdia, para criança com texto sem nenhumasafadeza explícita. Porque a safadeza da cri-ança é a safadeza implícita. Ela é uma safadezamais inteligente do que a safadeza do adulto.

O adulto, para rir de uma safadeza, precisa deuma safadeza pornô, aberta. A criança não. Acriança está sacando tudo, sem precisar... Sepassar uma mulher e o palhaço olhar para abunda dela, quando se virar para a criança,ela vai rir: “quá, quá, quá”... Ela entende tudo.Já o velho pastoril precisa pegar na bunda, le-vantar a saia para o adulto rir. A criança sacaa malícia. Há uma diferença entre maldade emalícia.

O palhaço não se define por estar pintadoou usar sapato grande, ou camisa colorida. Esim pelo modo de vida. É uma cultura. Serpalhaço é ser de um país, uma religião. Vocêvai tirar a roupa, ficar nu, mas é palhaço. Écomo se a maquiagem não saísse. Um pigmen-to que, se a gente fecha os olhos, se vê daquelejeito. É como se fosse uma tatuagem. Quandotinha 20 e poucos anos pensava: “Rapaz, vouficar tirando maquiagem? Vou fazer uma ta-tuagem logo. Ficar logo com aquela cara parao resto da vida” — feito aquela personagemdo Batman [o Coringa]. Então o palhaço paramim é uma característica de vida, um modode viver. Daí, como é que você vai encontrar oseu jeitão, é outra conversa, é outra discussão.Dessa questão do jeitão já se vai para a discus-são das habilidades. O que o palhaço faz? Tempalhaço que não precisa fazer nada e outrosque fazem cem coisas. Você pode ser um pa-

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lhaço calado, que só olha para os cantos... Nomeu caso particular, tenho muita inveja da-quele palhaço acrobata. Nunca consegui fazeraquele negócio. É como judeu, alemão, brasi-leiro, inglês, não sei o quê, mas antes judeu doque outra coisa. Acrobata, mágico, isso, aqui-lo, triste, alegre, bravo... Quem nasceu primei-ro? O ovo ou a galinha? Não sei se a necessi-dade de fazer várias coisas me levou a ser pa-lhaço, ou se, como palhaço, comecei a fazeroutras coisas. Tenho a impressão de que tantouma coisa como a outra é por conta da neces-sidade da sobrevivência.

No caso, sou músico, componho, já fiz ar-ranjos para teatro. Já dancei muitos anos comobailarino no balé popular. Pesquisei dança.Escrevo. Até digo: quando alguém começa aficar velho passa a ser escritor porque nãoagüenta mais fazer e começa a escrever paraos outros fazerem.

DA: Já que você está falando um poucode sua história de vida, o que você mudaria, eo que você aprendeu como palhaço?

W: Eu acho que não mudaria. Essa per-gunta é muito difícil. Eu queria, na verdade,não precisar ganhar dinheiro como palhaço.Há um momento na vida em que a gente nãoquer ser amador. Quer ser profissional, ganhardinheiro, ser respeitado. Estou no caminho in-verso. Queria deixar de ser profissional para

ser amador, ou seja, queria que fosse possívelviver da minha arte sem precisar ganhar di-nheiro, ou seja, morar em um castelo com o reipagando tudo e eu só tirando onda. Isso é oideal, ou seja, religião. Eu tenho o palhaço comomonge que entra no circo, sua igreja. A pró-pria religião sobrevive de grana, quem dirá umpalhaço. Se pudesse queria mudar isso. Que asobrevivência da arte não dependesse do di-nheiro do cachê. Isso empobrece muito o serhumano. A coisa do vil metal, mas é como agente vive. Se pudesse, mudaria isso. Eu achoque chego lá. Enquanto o artista quer apare-cer em qualquer divulgação, eu tenho uma ten-dência a me isolar. Isso não existe. Como é quepode? Quer aparecer, mas se isolar? Porque euacho que tudo demais é demasia, como diziaminha avó. Existe um limite na questão do su-cesso... O sucesso, para mim, é coisa muitoperigosa, porque de repente todo mundo podeobservar que o artista, não só o palhaço, chegaao ponto de deixar de ser ele mesmo, para sero mercado. Isso é perigoso demais. Tenho omaior cuidado com isso. Sei que preciso dosucesso para poder, inclusive, aumentar ocachê e, com isso, comer e fazer as minhas coi-sas melhor, mas em compensação, é meio ven-der a alma ao satanás. Estar entre a cruz e aespada. Deus e o demônio. “Para onde vou?Vou para Deus, mas vou morrer de fome, por-que não há dinheiro. Se for para satanás, hámuito de dinheiro. O que eu vou fazer? Vou

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ficar no meio dos dois, entre o cordão encar-nado e o fio azul”. É a Diana. O velho é a pró-pria Diana. Vai ficar patinando nessa história.Eu acho que eu mudaria isso, e de certa formaeu tento mudar mesmo, com as minhas atitu-des eu vou mudando. Sem querer ser purista,mas vou mudando. É isso que eu queria.

DA: O que você acha de ter participadodesta entrevistas, de falar disso, de relembrar?

W: Eu não entendo muito de uma formacientífica, mas tenho a impressão de que é comose fosse a um psicólogo. Quando está com umproblema, senta em um divã e vai conversar:“Ah, porque eu queria isso, porque não sei oquê...” e sai de lá aliviado e com o tempo ficacurado daquela história. Então para um pa-lhaço, um artista, é importante que conte a vidadele, até para se curar mesmo. Acho que é im-portante. Há uma piada, uma história muitobonita que sempre conto: existia um cara queestava com uma dor de cabeça enorme... — eunão sei se vocês conhecem essa história. O ca-bra tinha uma dor de cabeça terrível e foi parao médico. Chegando lá, ele disse: “Doutor, euestou com uma dor de cabeça aqui...” “Não,tudo bem...”. O médico nem conversa direito,porque já quer atender outro, essa coisa docapitalismo. Não como um médico realmentedeveria agir, mas como esses médicos idiotasagem. “Toma esse comprimido aqui e daqui a

uma semana você volta”. Ele foi. Voltou com acabeça estourando e disse: “Doutor, eu nãoagüento”. “Olha, vamos fazer o seguinte: vocêvai para o meu professor, porque é quem vailhe curar”. Deu o endereço e o cara foi. Che-gou lá: “Ah, fulano mandou para mim? Ele éum grande médico! Mandar para mim? Tudobem, você sente o quê?” “Dor de cabeça”.“Tome esse comprimido e volta em uma sema-na”. O cara voltou quase morrendo. “Estoumorrendo de dor de cabeça”. “Olhe, rapaz,você veio do meu aluno, está aqui comigo. Vápara o meu professor, que inclusive está apo-sentado”. Ele foi até o professor dele. Chegoulá, um velhinho: “Fulano mandou paraCiclano, que mandou para mim? Não é possí-vel! Você vai tomar este chazinho. Não estounem clinicando mais”. Aí voltou com dor.“Olhe, eu não tenho mais para onde mandarvocê, porque o meu professor já morreu. Já es-tou velho. Sabe aquela montanha ali?”. “Es-tou vendo”. “Tem um circo. Você conheceaquele circo?”. “Conheço”. “Vá lá que lá temum palhaço maravilhoso e você está precisan-do rir, extravasar. E você vai ser curado”. Aícomeçou a chorar, a chorar... “Por que vocêestá chorando?”. “Já sei que eu não tenho cura,doutor. Aquele palhaço sou eu...”. Uau!

DA: Muito obrigado.

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Pirajá Bastos: Sou Pirajá Bastos de Aze-vedo. Nasci em 1936, em Barbacena, Minas Ge-rais, e estou com 70 anos. Em primeiro de de-zembro, faço 71 anos. Sou a quarta geraçãocircense.

Quando meu pai se casou com minha mãe,ao invés de tirá-la de sua família, entrou paraa família dela. Passou a ser um filho mais ve-lho de meu avô, que manteve a família sempreno Nordeste. Meu bisavô materno veio de Por-tugal para abrir estradas, era engenheiro. Fa-zia ginástica olímpica, gostava de barras, seapaixonou pela minha bisavó que já era de cir-co e passou a viver no circo. Veio para o seioda família e seguiu o circo. Nasceu meu avô,que por sua vez casou-se com uma filha de umpadeiro da Paraíba, que também ingressou nocirco. Foi aí que tudo começou.

Minha bisavó era da primeira geração decirco. Meu avô, da segunda. Veio minha mãe,a terceira geração e eu sou da quarta.

Doutores da Alegria: Na época da sua bi-savô como é que era estruturado o circo?

P: Na época de meu avô, dava-se o nomede pau-a-pique. O que é circo pau-a-pique?Esse circo só se fazia nos povoados e terreirosde fazendas de coronéis. Meu avô chegava coma tropa de burros. O circo era transportado poranimais e carroções. Só se levava a roupa, ofigurino, os lampiões para clarear o espetácu-lo e o pano de roda. A madeira era tirada domato, por ordem do dono da fazenda. Entãofaziam aquele cerco, colocavam aquele panoao redor, os postes com lampiões penduradose os fazendeiros vizinhos traziam escravos combancos que eram colocados em volta. Era aoar livre. No banco, ficava um cartão: “Coronelfulano de tal”. Pertencia àquele.

Quando terminava a temporada de espe-táculo, meu avô deixava os paus roliços, enro-lava novamente o pano, carregava tudo, pega-va os cavalos e burros e ia para outra fazenda.

História de Vida: Pirajá Bastos de AzevedoTRANSCRIÇÃO PORTUGUÊS - ÁUDIO- 01:52:03

Pirajá

Gravação e transcrição para o Projeto Memórias de Palhaços e Comediantes, com depoi-mento de Pirajá Bastos de Azevedo a Morgana Masetti, Dani Barros, Diogo Cardoso e MarcosCamilo no dia 02 de Maio de 2007, no estúdio cedido pela ESPM-RJ. Duração da gravação:01:52:03. Transcrição por Global Translations.

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DA: E quem freqüentava?P: Ia o pessoal da fazenda e dos arredores,

os fazendeiros próximos. Quando se entravaem um povoado, armava-se um circomelhorzinho, mas sempre naquela base: semlona sobre o circo. Só o toldo embaixo e, dolado, os bancos. A função dos filhos menoresera não deixar que os peões ficassem nos ban-cos. Porque colocavam os bancos e se senta-vam. Minha mãe vinha dizer: “Oh: não podeficar. Tem que ir lá para a porta do circo parao seu patrão comprar o ingresso”. Meu avô,durante toda a vida, só pensou no Rio de Ja-neiro e em São Paulo. Achava que o meio ar-tístico era aqui. Mas apenas circundava o Nor-deste, pelas Alagoas, Ceará, Sergipe, aondeIam nascendo os seus filhos. Cada um de meustios é de um estado: alagoano, sergipano,paraibano, cearense. Era uma família nume-rosa: doze filhos. Minha mãe é pernambucana.

Num determinado momento, meu avô to-mou um navio para Pirapora, pelo Rio SãoFrancisco. Ao chegar, disse: “Aqui vai ser mi-nha decisão. Daqui, vou direto ao Rio de Ja-neiro”. Isso foi na época de 1932. Nasci em1936. O que ele fez? Colocou animais em pra-ça pública e fez um leilão. Venderam todos ostrinta e tantos cavalos, burros e carroças. Veiopara o Rio de Janeiro sem conhecer nada, semempresário. Foi morar com a família em umapensão na Rua Francisco Xavier. Naquela épo-

ca, já existia o Café dos Artistas, o Carlos Go-mes, que era o ponto dos artistas nas segun-das-feiras. Soube por alto e foi ao Café. Lámanteve contato com os Olimechas, que eramproprietários de circo, e com o palhaço Dudu,que tinha um circo fixo na Praça das Bandei-ras. Naquela época o teatro já começava a serapresentado nos circos. A primeira parte doespetáculo era picadeiro e a segunda teatro.Meu avô foi trabalhar com o Circo Dudu naPraça das Bandeiras. Todos os empresários fi-caram curiosos para ver o que faziam, porqueno Nordeste nossa família era uma das melho-res acrobatas.

DA: O que era apresentado nas fazendasdo Nordeste?

P: Apresentavam o palhaço de violão con-tador de pilhérias, piadas e burletas. Faziam vá-rias coisas: embolada, repentismo e cada filho ti-nha um número. Havia trapézio também. Em-bora ao ar livre, armavam uma espécie deforquilha alta de madeira, como uma trave degol, aonde penduravam o trapézio. Havia cordaindiana, um entrava para fazer fogo, entrava umpara fazer contorções... Nesse período de espe-táculo, meu avô, de vez em quando, entrava depalhaço para fazer uma parte cômica.

DA: E como o seu avô aprendeu a ser palhaço?P: Palhaço entra por acaso. Pelo menos na

minha família foi assim. Meu pai nunca foi pa-

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lhaço. Entrou para substituir um que faltou.Entrou e ficou. Num dia de espetáculo em Mon-tes Claros, no norte de Minas, meu pai perdeua voz; meu irmão, que fazia a parte cômicacomo clown, pintou a cara, substituiu meu pai.Entrei no lugar do meu irmão como clown, e omeu irmão caçula já passou a ser o mestre depista, que era a minha parte. Um vai passandoo papel para o outro. Com o decorrer dos espe-táculos, a pessoa já grava aquilo. São como ascomédias, os pastelões. Tenho todas as comédi-as aqui na cabeça. Se você me perguntar o au-tor, desde a época de meu bisavô, não saberei,ninguém sabe. Todas as comédias, os pastelõessão levados, quase em todos os circos com omesmo palavreado, com o mesmo enredo, semnunca haver uma peça escrita!

DA: Tudo é passado oralmente...P: Justamente. São tantos personagens!

Quando meu avô foi para o Circo Dudu, o Cir-co Sarrazane armou na Esplanada do Castelo,era 1934 ou 1935. Fizeram uma bela tempora-da! Vieram com três navios de material. Foi omaior circo que pisou o Rio de Janeiro.

Era alemão. Nosso sindicato quis fazeruma homenagem ao senhor Sarrazane. Emuma segunda-feira, fizeram uma seleção detodos os circos que estavam na Guanabara.Cada um mandou o melhor número. Ele ficoucom tanto medo do espetáculo dos brasileiros

que deixou uma parte preparada para substi-tuir no caso de um fracasso total. Mas quebroua cara, porque foi um fino espetáculo! Foram ocirco Olimecha, o Dudu, os Temperanis... Na-quela época, já existia o homem-bala! DuarteTemperani saía do canhão, fazia um saltomortal e segurava no trapézio. Fizeram aqueleespetáculo maravilhoso e terminaram comuma série de saltos. Todos, naquela época, ti-nham que fazer alguma coisa no chão, nemque fosse uma cambalhota. Foi quando minhamãe conheceu meu pai.

DA: Como se conheceram?P: Atrás da cortina, olhou para ela e fa-

lou: “Vocês são de que família?”. “Sou da Fa-mília Azevedo”. “Vocês estão trabalhando comquem?”. “Com o Circo Dudu”. “Sou filho doOlimecha”. Mamãe ficou doida de amores pelomeu papai, virou para as minhas tias e disse:“Aquele ali é dos Olimechas, filho do dono docirco”. Só que o meu avô não morava no CircoDudu. Morava na Rua Francisco Xavier, e denoite pegava o táxi, ia para o circo, trabalha-va, terminava o espetáculo e voltava para casa.Ele não participava dos fundos do circo.

Quando minha família fez o espetáculo noSarrazane, os Olimechas viram o potencial dosAzevedos. Imediatamente, no próprio circo, oSr. Luís Olimecha, meu futuro avô, contratoua família da minha mãe. Na semana seguinte,

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mudaram-se para o Circo Olimecha. Forammorar nos fundos do circo. Arranjaram umabarraca enorme de lona.

DA: Seus avós eram ambos de circo e sejuntaram?

P: Justamente. Veio o namoro e o casamen-to. Meu avô, com o casamento de minha mãe,se retirou do circo e pegou um contrato emBelém do Pará, para trabalhar no Teatro Mu-nicipal. Ele e um mágico de São Paulo, MárioGama, fizeram uma temporada de quatromeses. Meus avós ficaram na rua FranciscoXavier, na casa que haviam alugado. Mamãeficou sozinha. Quando vovô voltou de Belém,reuniu novamente a família, formando o Cir-co Azevedo.

Nesse momento, quando meu avô mater-no, Luiz Francisco Azevedo, saiu com a famí-lia, meu pai entrou em choque com seu pró-prio pai. Então foi para a companhia do meuavô. Largou o pai e foi morar com o sogro. Meustios foram casando e saindo, porque tinhamespírito aventureiro. Queriam viajar, pegarempresas maiores. Um foi para o Garcia, ooutro para os Irmãos Temperanis, em São Pau-lo, outros para os Irmãos Stevanovich, aqueleque pegou fogo, o norte-americano.

DA: Quando você começou a trabalhar nocirco?

P: Comecei com meu pai, que não era fi-lho legítimo. A família Olimecha é de origemjaponesa. Entrou aos 3 anos para a compa-nhia e saiu aos 24, já casado e com minha mãeme esperando.

DA: Por que foi adotado?P: Minha avó legítima morava em

Bonsucesso. Era de uma família muito pobrecujo esposo foi um soldado da polícia militar,morto pela tuberculose. Vivia de lavar roupas.Quando o circo chegava em Bonsucesso, napraça principal — porque naquela época saíaum circo em uma semana e na próxima outroocupava o terreno, já que não havia outro meiode diversão — ela ia ao circo e pedia para la-var as roupas dos artistas contratados. Comoo “Sr. Luís Olimecha” e a “Da. Arlinda” nãotinham filhos e ele adorou meu pai, perguntoupara minha avó: “A senhora não quer me daresse menino?” Ela respondeu: “Eu passo tantoaperto, mas é meu filho... Eu tenho um casal.A Beatriz e o Augustinho”. “Pô, mas eu nãovou sair do Rio. Posso dar educação para ele.Posso fazer dele um artista e ele vai ser meufilho. Me dá de papel passado. Eu quero depapel passado”. Ela foi ao cartório e passou.Papai passou a ser Augusto Olimecha, com trêsanos de idade.

Como eram várias as companhias dosOlimechas no Rio de Janeiro, [a renda] era en-

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globada na base da família. Ninguém possuíaordenado. Havia uma matinê aos domingoscuja renda era dividida pela companhia. Comoo Sr. Luís Olimecha fez o casamento e meu painão arcou com despesa nenhuma, saiu do cai-xa do circo, ele achou que não devia dar di-nheiro a meu pai! Chegava assim: “Augus-tinho, você trabalhou esta semana...”, — é atéuma coisa impossível, um artista como meupai... — “Você vai trabalhar esta semana parapagar os travesseiros que comprei. A outra se-mana o colchão”.

Minha mãe engravidou e era uma acroba-ta. Fazia voltas com a cadeira, os truques to-dos de acrobacia, salto mortal de canastilha eera muito magrinha. Papai começou a se pre-ocupar e foi falar com eles: “A Rosa precisa deuma alimentação melhor. Quero comprar fru-ta e tudo”. Ele disse: “Não. Enquanto não pa-gar o que gastei contigo, você não vai ter di-nheiro”. O papai: “Então vou embora. Nãoaceito isso. É escravidão. Sou seu filho ounão?”. Pegou a roupa, arrumou a mala e foipara o Café dos Artistas pedir trabalho, com23 anos. Minha mãe com 22. A bem dizer, eramdois meninos naquela época. Acontece quetodo mundo respeitava Luís Olimecha. Era omelhor circo do Rio de Janeiro. Ele chamou osempresários e disse: “Aquele que der guaridaa meu filho, estou de relações cortadas”. Pos-suía muita influência. Entrava na Câmara dos

Vereadores pela frente e saía pelos fundos.Fazia espetáculo para Alencar Guimarães, osenador. Papai corria para um circo e ninguémo contratava. Ia para outro. O Dudu estavaarmado na Praça das Bandeiras e era inimigocapital do velho Olimecha. Quando bateu lá,o Sr. Dudu: “Vem para cá... você vai ser meuartista. Comprei a briga!” Minha avó maternaescrevia para mamãe, perguntando, e a ma-mãe com aquela vergonha de dizer que estavanuma situação ruim, porque estava com omarido ali do lado e porque meus tios mater-nos não queriam o casamento. Iam perder umagrande artista na família. E começaram a fa-zer a cabeça da minha mãe: “Você vai cair mal,você vai ser maltratada...”. Com o casamento,meus tios saíram, mas mamãe não queria daro braço a torcer. Minha avó, por intuição, pen-sou: “Eu vou ver a Rosa no Rio de Janeiro”.Quando chegou no Circo Dudu, estava naque-la barraquinha modesta que o Dudu arranja-ra. A vovó se revoltou com aquilo. Falou:“Augustinho, vamos para o nosso circo. Aquelelá é o seu circo”. O que ele fez? Antes de ir, foia Bonsucesso, mexeu em tudo, foi no cartório,começou a fazer pesquisa para descobrir a ver-dadeira raiz dele. Por incrível que pareça, des-cobriu a irmã.

Quando papai saiu do circo, o velhoOlimecha rasgou o papel de casamento e mi-nha certidão. Eu já tinha um ano. Estava re-

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gistrado como Pirajá Olimecha. Sou o maisvelho. Quando rasgou o papel, disse: “De hojeem diante você não é mais meu filho”. Boba-gem rasgar aquele papel, porque tudo ficavaregistrado no livro do cartório. Papai foi lá,contou a situação ao cartório e eles começa-ram a mexer, remexer... Conclusão: resgata-ram a papelada toda do papai como AugustoBastos, filho de Luiz Bastos e Juventina Bastos.Minha verdadeira avó e avô. Fomos para o cir-co Irmãos Azevedo.

Como todos foram saindo, o circo foi fi-cando pequeno. Meu avô adoecia. Meu pairesolveu fazer uma sociedade. Um empresárioque conhecia o potencial da companhia a le-vou para o Nordeste. Só que já tinham feitotodo o norte de Minas como Circo Azevedo,Irmãos Azevedo. Então o empresário sugeriu:“Vamos mudar o nome, porque é o mesmo es-petáculo e nós vamos colocar mais uns dois outrês casais para melhorar o aspecto, mas que-ria mudar o nome do circo”. Batizaram de Cir-co Varieté.

Naquela época não existia o teatro. Com-punha-se unicamente da primeira e segundapartes (pastelão). Aquelas chanchadas que oOscarito levava e o Sr. Renato Aragão e o Sr.Didi levam até hoje.

DA: Quais as primeiras lembranças quevocê tem do circo?

P: A criança de circo aos quatro anos jávai para o picadeiro jogar serragem um nooutro. O nosso brinquedo é o picadeiro. E ospais incentivam. Por exemplo, tinha um circoem miniatura que meu pai fez para mim. Euarmava no terreno, de um metro e meio comlona e tudo. Igualzinho. Carregava minhascarretas como se carregavam as carretas docirco grande. Eu prestava atenção e aquilo jáera um ensinamento, porque o circo de interi-or na base da família é um SENAI. Tenho umirmão que nunca estudou mecânica. Tirava omotor de um caminhão, fazia uma retífica,colocava no lugar e o carro andava, porque anecessidade faz o sapo pular. Sei fazer umalona de circo. Sei levantar qualquer estruturacircense. Naquela época a gente fazia desde ofigurino à maquiagem. Meu pai fazia a tintapara pintar o rosto. Comprava óxido de zinco,um pires, azeite ou vaselina líquida, jogava opó, pegava uma pazinha, e ia mexendo até setransformar naquela tinta.

DA: Quando aconteceu sua estréia?P: Meu pai não deixou de fazer o número

de seu pai, o Olimecha. O forte deles era tra-balhar as habilidades com os pés. Deitava,punha os pés para cima e jogava a barrica, atranca e introduziu o volante: uma pessoa nospés. O meu pai começou a me ensaiar comquatro anos. Me jogava de todo jeito. Eu eracomo uma bolinha nos pés dele. O dia da mi-nha estréia foi em Juiz de Fora, Minas Gerais,

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com o circo superlotado. A primeira apresen-tação foi uma salva de palmas enorme! Come-çaram a jogar moedas no picadeiro. O pessoaltirava da carteira e jogava. Ele olhou para mime disse: “Está vendo como você agradou? Vápegar o dinheiro. É para você!”, “Pode, pai?”Peguei o chapéu e saí catando as moedas. Eele: “Viu? Viu como é bom ser artista?”. Já mecomprando. Depois de muito tempo fui saberque deu o dinheiro para o pessoal jogar lá, parachamar a atenção. Dali não parei mais. Fui oprimeiro filho e ele começou a enfraquecer daspernas. Comecei a fazer seu papel, já colocan-do meus irmãos no lugar de volante.

Somos em cinco irmãos. Meu pai era umhomem que não queria que nós, irmãos, seusfilhos, fôssemos uns melhores do que os outros,mas também não queria que fôssemos piores.Ele exigia que a gente fosse artista. Tínhamosque entrar no picadeiro para fazer alguma coi-sa, para chamar a atenção do público e paraos empresários nos respeitarem: “Eles sãobons”. Ele exigia muito. E nos maltratava mui-to, batia, perdia a cabeça. Embora mais tardese arrependesse, repetia o trato que recebeu dopai. Às vezes, notava que queria fazer carinho,mas tinha vergonha de chegar e dar um beijo.

Um dia nós compramos a cama elástica,foi o último número que aprendemos em famí-lia. Fazíamos acrobacias e quando vimos três

irmãos argentinos com aquele número, fiqueiempolgado e dei em cima dele: “Papai, vamoscomprar uma cama elástica?”. Começamos aensaiar. Meu irmão errou e ele deu uma bofe-tada. Meu irmão o encarou na mesma hora edisse: “O senhor está lidando com um filho,seu sangue”. Acho que aquilo o desarmou. Foipara a barraca e falou para minha mãe: “Rosa,de amanhã em diante não ensaio mais meusfilhos” — e se arrependeu daquilo. Mamãe mechamou, como o mais velho: “Pirajá, de hojeem diante você toma conta dos seus irmãos”.Comecei a dar outro tipo de ensinamento. É oque dou aos meus alunos na Escola Nacionalde Circo. Sou um professor brincalhão. Tinhamedo quando ele dizia: “Estou no picadeiro”— a gente já começava a tremer dentro da bar-raca, entrava em pânico e aí o ensinamentonão adiantava nada. Eu então passei a falarpara meu irmão: “Àquele que fizer o saltomortal, com o tapete esticado, àquele que fizera rodada final do salto mortal e cair em pé,dou um blusão”. Aí começava aquela rivali-dade. Tinha 16 anos.

DA: Como era a rotina de vocês?P: A rotina do circo é como a de uma em-

presa. Quando fechou o circo do meu avô, com-prei um bar em Minas Gerais, no norte, entreSete Lagoas e Curvelo. Em Araçaí, em 1954.Meus avós já eram falecidos. Na cidade, só ti-nha aquelas vendas grandes, que vendiam da

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rapadura ao bico, mas não tinha sinuca, nemestufa para vender salgadinho. Como conhe-cíamos o Rio de Janeiro, meu pai fez uma coi-sa mais moderna, uma espécie de lanchonete,mas a cidade era antiquada.

Como era o mais velho, ia na frente comorelações públicas do circo. Falava com o Pre-feito, o Delegado. Se o terreno pertencesse àPrefeitura, me cediam. Se fosse particular, ti-nha que alugar ou trocar por uma permanen-te (ingressos gratuitos). Cheguei em Araçaí, fuià Prefeitura, mas tratava-se apenas de um postofiscal, porque pertencia a Sete Lagoas. O fiscalfalou: “Meu filho, a área aqui é da Prefeitura,mas [está] atrás da igreja e os padres sãofranciscanos”, aqueles que usam sandália ebatina marrom. Arranjei o terreno com a Pre-feitura e falei com o delegado... Vínhamos deuma batalha enorme. Meu avô ficou interna-do em um hospital... Ficamos sem dinheiro.Houve o enterro e meu pai vendeu um dos ca-minhões. Chegamos à cidade. Quando estáva-mos descarregando o material no terreno,abriu-se a janela da sacristia da igreja e o pa-dre, um italiano, Frei Domingos, gritou: “O queestá descarregando aí no terreno?”. “Reveren-do, é um circo de família, um circo pobre. Nósestamos vindo de Montes Claros”. “Por quenão arma essa porcaria aqui dentro da sacris-tia?”. “Porque o Prefeito não mandou. Porquese ele mandar eu armo”. “Você é muito mal

educado”. “Mais mal educado é o senhor”. Elebateu a janela na minha cara. Papai, sentadono caminhão, falou: “Poxa, você procurou bri-ga logo com um padre? Nós não vamos fazernem para o café!”. “Ah, papai, poxa vida, agente vem carregando o circo, desarmando,vovô morrendo, situação financeira ruim, 20 etantas pessoas nas costas da gente com o pa-gamento atrasado...”. Abriram a janela denovo: “Rapazinho, faz favor...””Você está ner-voso?”. Eu acho que ele se arrependeu. Eu fa-lei: “Frei, nós aqui somos uma família, quase30 pessoas. Perdi meu avô há 15 dias. Vende-mos um caminhão para pagar o hospital eestamos tocando o circo aos trancos e barran-cos”. “Vai, vai, arma o seu circo”. Mês de maio,mês de Maria, havia as novenas. Ele ligou osom: “Alô, alô meus fiéis! Está chegando umcirco na cidade. Sexta-feira estréia. Conto coma presença de todos nesta casa de espetáculo.”

Foi uma temporada de render, mas tive dedar um espetáculo em benefício da igreja. Comaquela temporada toda, os fazendeiros pega-ram muita amizade a mim e à rapaziada. Jo-gávamos futebol todos juntos. Diziam: “Masgente, por que vocês não param aqui? Estãoatravessando uma crise tão grande!”. “O quenós vamos fazer aqui, gente?”

DA: Quanto tempo durava uma temporada?P: Quinze dias. Estourando vinte. Fazía-

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mos três domingos, 21 dias. Um fazendeirovirou para papai: “Quer vender o circo?”. Pa-pai: “Mas você vai comprar o circo para quê?”.“Vou pegar esse material todo, essas folhas dezinco, madeira e fazer curral, cobertura parao gado”. Vendemos o circo. Só ficamos com alona, o som, os mastros... para quê eles iamquerer o mastro, os aparelhos, o guarda-rou-pa e os figurinos? Ficamos quinze dias pensan-do o que fazer. Papai olhou, viu uma venda,outra venda, não tinha um bar decente parajogar sinuca. Fomos a Belo Horizonte, compra-mos uma sinuca, mesas, balcão. Fizemos umbar ultra moderno para a época. Eu levavamúsicas da época. Aquilo passou a ser um clu-be da rapaziada do time de futebol. Tornou-sea nossa sede. Mamãe começou a fazer salgadi-nho na hora, arroz doce, cocada. Começamosa ganhar dinheiro.

DA: Por que decidiram vender o circo?P: Porque já havíamos cansado da luta.

Mas sempre pensávamos no circo. Lá passavaa estrada de ferro Central do Brasil. De vez emquando, o Sr. Garcia passava com a composi-ção, os elefantes, as zebras, o circo e os artistasnossos conhecidos. Nosso bar era ponto de al-moço. “Fechem o bar, vamos embora!”. Davaaquela coceira doida. Naquela transição ferro-viária, quando um circo ia embora para umsentido, logo vinha outro no sentido oposto.Mas nosso movimento melhorava cada vez

mais. Fomos até para um salão melhor. Por issopapai passou a mão no dinheiro e foi compraraparelhos no Rio de Janeiro. Olha o que é odestino! Ele tinha um amigo da época de sol-teiro, um professor de matemática e língua quemorava na Ilha do Governador. Casualmentese encontraram no Café dos Artistas. “Ô,Augustinho, o que você está fazendo aqui?”.“Estou em Minas Gerais, agora sou comerci-ante, tenho meu bar”. “Mas você largou o cir-co?”. “Agora o Pirajá está tomando conta dasinuca e joga futebol. Já montei um grêmio eestou levando pecinhas ao teatro, com o pes-soal da cidade. Estamos erradicados”.“Augustinho, você já está em algum hotel?”.“Não”. “Então vai para a minha casa. Que diavocê embarca?”. “Em dois ou três dias”. Só queos Olimechas estavam na Ilha do Governador,em frente ao apartamento dele, e o velhoOlimecha tinha sofrido um derrame e estavatodo entrevado. Só falava em papai. A consci-ência pesava. A velha já havia morrido. Quan-do chegou ao apartamento, viu o circo.“Augustinho, trouxe você de propósito. Vá verseu pai. Ele chora demais da conta.” Quandoo velho viu, ficou doido. “Augustinho, peloamor de Deus, não me abandone! Venha pracá”. “Mas papai, estou erradicado.” “Não. Vaitomar conta do circo. Reerguê-lo. Está muitodecadente, todo quebrado. Estou inutilizado.Seus tios estão velhos, caindo pelas tabelas.”Papai voltou para Araçaí com a cabeça vira-

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da. Mamãe disse: “Augustinho, você vai sozi-nho e deixa o Pirajá aqui”. “Não senhora, aon-de vai a corda, vai a caçamba. Para eu ir, vai afamília toda”. Vendemos o bar e lá fomos nós.Sem figurino, nem número, porque ficamos trêsanos parados. Eu ainda fazia alguma coisa,porque ia para o campo de futebol, saltava,fazia Flip-flap, Dois-Tempos. Eu já tinha qua-se 20 anos.

DA: E estudava, naquela época em que ocirco viajava?

P: Não tenho nem o primeiro grau [Ensi-no Fundamental]. Meu primeiro professor foio primeiro ator que meu pai contratou paramontar teatro no circo. Ele pegava o caderno,fazia a-e-i-o-u e as quatro continhas para mim.

Meu pai fez uma transformação no circo.Entramos com força total, eu, ele e meus ir-mãos. Começamos a pintar o circo, ajeitar tudo,tirar e consertar a lona. Aquilo começou a irde vento em popa. O velho viúvo ainda tinhaos irmãos como cordeirinhos. Era o imperador.Reverenciavam-no. Fazia o que queria com odinheiro e não dava a mínima satisfação aosirmãos. Saímos da Ilha e fomos paraBonsucesso. Armamos o circo em Olaria. Com75 anos, arranjou uma mulher de 22, com ida-de para ser neta dele. O dinheiro ia direto paraos bolsos dela. Os irmãos chegaram para opapai: “Você é o mais velho aqui, você é fi-

lho”. “Não sou mais filho, estou abaixo”. “Masvocê foi criado com ele. Tem de resolver, gritarcom ele”. O velho, pela segunda vez, disse: “Ocirco é meu. Se quiser, vá embora”.

Com o dinheiro do bar papai comprouuma casa no Irajá e, até então, não éramosconhecidos no Rio de Janeiro. Éramos conhe-cidos, mas não conheciam nossos números.Com o espaço de três bairros que demos aosOlimechas, voltamos a fazer tudo de novo.Papai fez aparelhos e tudo o mais, só que nãotínhamos circo. Morávamos no Irajá. Traba-lhávamos feito feirantes: a cada semana, tra-balhávamos no circo de um bairro diferente.Fizemos as televisões: TV Tupi, TV Globo, TVRio... Ficamos cansados, nosso rosto era conhe-cido dentro do grande Rio. Todos queriam noscontratar. Eu é que peguei meus irmãos paraestudar: “Não estudei, minha irmã não estu-dou, nossa vida foi apenas circo, e vocês nãovão ficar burros”. Somos, em casa, uma tabade índios. Sou Pirajá. Tem Anapuru, Uirapuru,Ubiratan e Canagüari. Só falta o cacique. Fo-ram para o ginásio. Minha irmã ficou noiva deum rapaz, funcionário federal, casou e saiu docirco.

Ficamos tão conhecidos que nosso traba-lho começou a escassear, porque trabalháva-mos em vários circos de bairro do Rio de Janei-ro. Na televisão, fiz show com Ted Boy Marino

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e Célia Biar. Fiz Os Dez Mandamentos numshow com o Flávio Cavalcanti. Fiz programaslíderes de audiência. Quando nos contratavampara aparecer no Chacrinha, falavam: “Elesjá estiveram aqui a semana passada com o Flá-vio Cavalcanti”. Precisava comprar um circo.Porque não podia mais viajar, teria de tirarmeus irmãos do colégio. Os circos viajam de15 em 15 dias. Comuniquei minha decisão ameu pai, que me chamou de doido: “Você játeve o do seu avô, teve o nosso circo. Paramoslá. Depois viemos para os Olimechas e vocêviu no que deu! E agora quer comprar um cir-co?”. “Vou comprar e ser meu próprio empre-sário. Prefiro me aventurar sozinho a me aven-turar com esses empresários”.

Uma tia, em Porto Novo de Cunha, Mi-nas Gerais, casou com um funcionário da [li-nha ferroviária] Leopoldina, largou o circo, eme avisou por telefone da venda de outro porlá. Quando cheguei, o dono do circo ia paraSão Paulo. Tinha comprado uma padaria edevia três semanas aos artistas. Estes, por suavez, queriam tomar o circo em pagamento emontar uma cooperativa. O dono tinha sidonosso empregado no Nordeste. “Pirajá, estouvendendo o circo, mas tenho dívidas com eles.Gostaria muito de vender pra você porque co-nheço sua família, mas meu problema é dinhei-ro”. “Reúna-os no picadeiro”. Anotei o quan-to cada um deveria receber e combinei buscar

o dinheiro no Rio e acertar os pagamentos navolta. “Valter, como é que eu faço com o cir-co?”. “Pirajá, pagando minha dívida, eu finan-cio. Pague-me como puder. Sei que quer tra-balhar”. Eu possuía muitas jóias. Naquela épo-ca, parecíamos ciganos. Cordões de ouro, anéisde brilhante. Empenhei tudo.

Teve uma tia que foi muito boa para mim:Marina, irmã do Luís Olimecha. Casou-se comum funcionário federal. Trabalhava na prefei-tura do Rio junto com ele. Como minha irmã,casou e saiu. “Tia Marina, preciso de uma aju-da da senhora. Preciso de um Conto de Réis.Comprei um circo”. “Ótimo, só assim vai mos-trar ao seu avô que sabe tocar o circo”. Com odinheiro, voltei para Porto Novo de Cunha.Todo mundo saiu satisfeito com o pagamentoacertado. Dei um Conto de Réis ao Valter parair a São Paulo e ainda sobrou uma economia.Carreguei três vagões da Leopoldina e fui parao Rio de Janeiro. Descarreguei em Caxias e le-vei tudo para o quintal imenso de minha tia,no Irajá. Empilhei e falei: “Aqui vou pintar omaterial. Tenho uns trabalhos para fazer”. Erafinal de ano, outubro, novembro e dezembro,época de muitos shows.

Naquela época, tinha a chegada do PapaiNoel no Maracanã, shows da Xuxa, eventosgrandes da Coca-Cola, da Brahma. Nos con-tratavam porque precisavam de números gran-

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des para aparecer no campo. Já tinha quaren-ta e tantos shows com o Carequinha. Achei queseria possível, com a entrada do dinheiro, com-prar o som e ajeitar o circo. Mas, no dia 24 dedezembro, estava eu dentro do Tijuca TênisClube com o Carequinha durante um show,pegou fogo no Circo Norte-Americano emNiterói. O caso foi sinistro. O governador doestado, [Carlos] Lacerda, proibiu a atividadecircense na Guanabara.

Fechou todos os circos. O dono do CircoNorte-Americano, que era dos ciganosStevanovich, passou a mão nos destroços, colo-cou nas carretas e foi-se embora para o Paraná,e deixou aquele “movimento” horrível para ocirco no Rio de Janeiro. Ficamos sem trabalhar.

Vinha o Corpo de Bombeiros e fechava ocirco, vinha a polícia e interditava. Os que fi-caram armados não trabalhavam. Fiquei pa-rado, com o material no terreno, no fundo daminha casa. Como iria trabalhar? O dinheirofoi acabando. “Poxa, comprei o circo em máhora”. Meu pai falou: “Não quis o circo? Ago-ra vire-se. Não vou mexer uma palha”. Fez issopara que eu adquirisse experiência, sair daque-la e ter coragem para enfrentar as que vinhampela frente. Acho que foi uma lição que mepropôs. “Não, não vou falir”. Fui para NovaIguaçu e pedi uma audiência com o Prefeito.Mandou entrar: “Olha, Doutor...”. “Doutor

não” — foi a primeira coisa que falou “não soudoutor”. Expliquei a situação... a família nascostas, meus irmãos. “Não posso sair do Riode Janeiro porque meus irmãos estão estudan-do e eu tenho que trabalhar”. “Arme seu circoem um bairro bem afastado do centro. Vou te-lefonar para o delegado, que é meu amigo, parate liberar, mas você vai procurá-lo”. Saí comuma carta de recomendação, fui ao delegado,que assinou embaixo, e disse: “Ninguém vai teincomodar. Vai trabalhar clandestinamente,mas estou sabendo. Nenhum policial vai te in-terditar”. Desse modo, trabalhei em todos osbairros de Nova Iguaçu. Fiz a mesma coisa emCaxias e o circo foi liberado. Àquela altura es-tava com o circo muito bonito, porque eu emeus irmãos deixávamos de comprar uma ca-misa, um par de sapatos para empregar nanossa casa de trabalho. Tinha um materialmaravilhoso, todo de ferro. Dos circos, um dossons mais possantes do Rio de Janeiro era omeu, porque naquela época a gente não só le-vava o circo, como levava show de rádio. Eulevei o Roberto Carlos umas quatro, cinco ve-zes no meu circo. Na época, ia de lambreta,começando a Velha Guarda, Vanderléia, TheGolden Boys, a Evinha. Eu levava a Caravanado Roberto Munis. A primeira e a segunda se-manas eram circo, a terceira e quarta eram deshows de rádio. Arrebentávamos.

Meu cunhado, fiscal da SUNAB, ia ao cir-

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co. Morava e mora em Nilópolis. Uma vez medisse que eu possuía um circo muito bonito,mas não tinha nada registrado. “Acostumou-se. Não pode ser mais assim. Você tem que pro-curar um escritório de contabilidade, registraro circo, ver a papelada, ter um livro-caixa euma firma”. Eu cocei a cabeça. “E agora, comoé que nós vamos fazer?”. Em Caxias mesmoprocurei um escritório. Foi onde conheci mi-nha esposa. Ela é contadora até hoje. Há 40anos. Meus irmãos ficaram noivos. O casamen-to foi dentro do próprio circo: “Ah, vou ficarnoivo”. Aí comprava um trailer para ter suacasa sobre rodas. A família começou a crescer.

Começou a aparecer a nossa quinta gera-ção. No período em que comprei o circo, eranoivo! Conheci uma moça na PresidenteVargas. O pai era radialista, rádio-ator e locu-tor da Rádio Tupi: Carlos de Azevedo. Tinhameu sobrenome. Ela foi ao camarote assistir aoespetáculo e começamos a namorar. Ela mo-rava no IAPC do Irajá na Avenida Brasil. Onamoro foi ficando firme, mas ela sabia quequeria comprar meu circo. Ela me conheceuna Presidente Vargas, em um circo de dezmastros e seis elefantes... Eram duzentos e tan-tos artistas. O circo foi direto para Fortaleza,Ceará, e eu fiquei, porque meus irmãos tinhamde estudar. O namoro foi indo. Eu fazia showcom o Carequinha. Comprei o circo e fui à casadela: “Maria, comprei um circo!”. “Mas que

maravilha!”, ela imaginava que eu tinha com-prado um circo de seis elefantes, enquanto naverdade era apenas um “ameaço” de circo. Nodia da minha estréia, em Nova Iguaçu, foi coma família assistir o espetáculo. Quando chegoulá e viu o circo, foi uma decepção total. Ela vi-rou e disse: “Pirajá...”,”Pronto! Perdi a noiva...”

Ela olhou para a lona toda remendada, osrefletores todos caídos... Eu olhava como se es-tivesse no Beto Carrero. Ao final do espetáculo,paguei os cachês, porque tinha artista que nãomorava no circo. Além do meu espetáculo, con-tratava gente forte para melhorar. Para dize-rem por aí que se o circo é feinho, o elenco erauma maravilha! Ganhava dinheiro com isso. Àsvezes, entravam debochando da casa, masquando saíam diziam ser de primeira grande-za, apesar de pobrezinha. A parte cômica eratudo. Então fui melhorando, melhorando, equando cheguei à casa dela, falou assim: “Pirajá,quero falar sério contigo. Se não largar o circo,não caso contigo”. “Então você vai me largaragora, porque você quer status. Se eu tivessecomprado um circo de seis elefantes a coisa se-ria diferente”. Há males que vêm para bem.

Regularizei o circo, comprei lanchonete,carreta, passei a investir em animais, em feras(naquela época era liberado). Tinha um casalde leões, de chipanzés e fui melhorando, masnunca saí do Rio de Janeiro, porque queria meus

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irmãos concluindo pelo menos o Primeiro e Se-gundo Graus [Fundamental e Ensino Médio].

DA: E concluíram?P: Graças a Deus! Todos eles. Doidos para

ir para o interior! Não deixei sair até comple-tarem o segundo grau. Ainda queria continu-ar aqui, porque queria que cursassem uma fa-culdade, mas não queriam. O negócio delestambém era circo. Mas já eram rapazes feitose não podia mandar neles. Quando eram pe-quenininhos eu mandava, mas passaram a sermeus sócios. Tinha de sentar em uma mesaredonda e discutir, de igual para igual. Me res-peitavam: “Você falou, está falado”. “Não, nãoé assim. Temos que assinar embaixo o que fa-remos. O que comprar, como vamos seguir”.

Foi quando procurei um contador e encon-trei minha esposa: “Por que você não arma ocirco em Caxias, onde moro?”. Arranjei umterreno no centro de Caxias, perto da rodoviá-ria. Armei o circo e no dia da estréia foi assistirao espetáculo. Começamos a namorar. Ela eraórfã de pai, só tinha mãe e três irmãs solteiras.Estava na mesma situação que eu, com aquelaescadinha de irmãs. Era a chefe da casa. En-tão ela disse: “Não posso me casar agora. Te-nho que esperar as meninas crescerem mais umpouco. Estão estudando e têm que arranjaremprego para sustentar a casa. A mamãe ga-nha uma pensão muito pobre, não dá paranada, uma pensão de viuvez, mas vou fazer

uma coisa diferente. De sexta a domingo voupara o circo. Você está dentro do Rio de Janei-ro. Você pega a minha mãe...”, porque a velhanão a deixava namorar sozinha. Eu tinha queir à casa da minha sogra, pegar e levar para ocirco. Minha esposa saía do escritório na sex-ta-feira de noite para o circo, para poder seadaptar ao espetáculo. Ela começou a ensaiarcama elástica comigo!

Ela nunca foi de circo. Mas começou aentrar nas comédias, fazendo as mocinhas dospastelões. Eu fazia os galãs das comédias.Quando nós estávamos para casar, fui paraRocha Miranda, onde morava minha ex-noi-va. Na minha estréia, meu ex-sogro foi com afamília assistir ao espetáculo, mas não sabiaque o circo era meu, porque estava completa-mente mudado. Chegou na porta, parou, en-trou e disse: “Eu sou radialista...”, falando paramim. Eu falei: “Eu sei que o senhor é radialis-ta.” Ele olhou: “Ô, Pirajá...”; e eu falei: “Quemé que não sabe que o senhor é radialista? Va-mos entrar”. “Pirajá, esse circo é seu?”. “É, é onosso circo”. “Meu Deus, mas está lindo”. Eleolhou para ela, que estava solteira, e falou:“Está vendo o que você perdeu?”. “E essa ali-ança?”. Eu disse: “Estou noivo. A minha espo-sa está na bilheteria”.

Conclusão: dois dos meus irmãos concluí-ram o colégio e o outro fez exército. Saímos deviagem com o circo a título de experiência. Fi-

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zemos o litoral porque era verão. Fiz as praias:Cabo Frio, Araruama, Bacaxá, Saquarema, es-tourando, pondo pelo ladrão. Pensei que ia fi-car rico! Isso com um elenco pequeno. Saímoscom mais uns dois ou três casais. Resolvi esticaraté Campos. Ao chegar em Campos, meu ir-mão ficou noivo de uma campista. No verão,fiz as praias de Campos: Atafona, Grussaí, SãoJoão da Barra... Aí meu irmão casou. Compra-mos um trailer para ele. Dali, pensamos: “Va-mos pegar um pouquinho de Vitória?”. “Va-mos”. Fui para Marataízes, Guarapari. Entreiem Vitória e, quando menos se esperava, já es-tava em Fonte Nova, Bahia. Olhava o mapa edizia: “Meu Deus do Céu, como eu estou lon-ge!” Isso num espaço de 10 anos.

Meus irmãos todos casaram. O sogro deum era prefeito de uma cidade, o de outro eradelegado, do outro farmacêutico, do outromédico, e as esposas vieram para o circo. Nãohouve discriminação. Vieram mesmo, aman-do o circo! Umas tomavam conta da parte ex-terna de propaganda. A gente chegava na ci-dade, uma ia fazer reportagem na televisão,lançamento. Minha esposa pegava os filhos:“Não, burros não vão ficar!”. Seria a quintageração. Meu filho e meus sobrinhos foram osalunos que mais se transferiram no país. Faziaduas semanas, então saía com a carga horáriae a transferência de um colégio para o outro.Não sabia que havia uma lei de Getúlio Vargasde que todo colégio tinha de ter uma cadeira

livre para um artista de circo. Só queembananava muito. Às vezes a matéria dessecolégio já não era a mesma daquele outro colé-gio. Minha esposa chegava e o diretor falava:“Olha, tem gente de circo aqui. Eu quero ma-térias para eles, porque as matérias da outracidade não estão valendo”. Todos já eramrapazinhos e mocinhas, já se interessavam pe-las artistas do circo e as garotas da cidade já seinteressavam pelos garotões do circo. O meucirco naquela época era a coisa mais linda. Ti-nha casos, por exemplo, que eu saía de umacidade, chegava a outra e, como eu não queriaprejudicá-los no colégio, faziam a estréia co-migo, sexta, sábado e domingo, e segunda-fei-ra voltavam para a cidade anterior de novo.

DA: Quantos filhos você teve?P: Tive um filho, o Uirapuru teve cinco fi-

lhos, o Ubiratan teve três, o nosso Natal era acoisa mais linda. Todos reunidos, a companhiainteira, os empregados, a mesa no centro dopicadeiro, um se vestia de Papai Noel... No mêsde Natal, a gente tinha uma árvore ao lado dacortina do circo. Então vinham os brinquedos.

No Ano Novo, a gente tinha que liberá-lospara visitar os avós. Iam para a casa dos avóse passavam por aquela lavagenzinha cerebral:“Circo? Vocês não param em canto nenhum.Vocês parecem uma tartaruga. Aonde vai, levaa casa. Uns meninos bonitos, fizeram o colé-gio... uma caligrafia bonita, por que não fazem

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universidade?”. Quando voltavam, percebia odrama. Minhas sobrinhas, sobrinhos, meu fi-lho mesmo já com a cabecinha virada, já nãoestavam com aquele entusiasmo de querer tra-balhar. Já não queriam se maquiar direito, osapato de palhaço sem pintar, as roupas rotas,comecei a notar aquilo. Meus irmãos, caxiaspor completo, falavam: “Não, elas vão casarcom gente de circo. Não vão casar com gentede cidade. Eu as quero no circo, elas vão tra-balhar comigo no circo”. Todas já eram mo-ças. Eu, como mais velho, liberava mais: “Tio,hoje tem baile. Acaba o espetáculo mais cedo?”.Meus irmãos: “Não vai a baile nenhum”. “Queé isso? Vocês foram a baile, porque eles nãovão?”. Eu liberava a turma.

Fui um tio-pai, porque só tive um filho.Minha esposa não pôde ter mais porque teveum problema de eclampsia, quase morreu. Per-demos o segundo filho e paramos de tentar.Um dia, fui passando pelo ônibus no qual meuirmão morava, uma tremenda casa com ante-na parabólica, todo conforto, e escutei umasobrinha falando para a outra: “O tio Pirajáfica com esse negócio de circo. Eu não queromais circo, eu quero parar com o circo! Eu que-ro casar, estudar, fazer uma universidade, se-guir outra carreira. Eu estou com o saco cheiode circo. O que vão deixar para a gente? Umalona rota, uns leões velhos, caindo os dentesde tão velhos...”. Aquilo para mim foi uma tris-teza total. Fui para dentro do meu trailer, sen-

tei, abaixei a cabeça, me deu um nó na gar-ganta. Eu disse: “Eu vou ter um enfarte ago-ra”. A minha esposa entrou no trailer: “O queestá havendo, Pirajá?”. “Sabe, escutei umacoisa que nunca na minha vida achei que iriaescutar”. “É adolescente Pirajá, isso passa”.“Não, não passa não”.

Chegamos em Teresópolis. Uma sobrinhaficou noiva de um rapaz de Teresópolis. Tinhaum posto de gasolina e um supermercado. Esserapaz gostou dela por demais. Tanto gostouque casou. Ele chegou a andar 400, 500 kmpara ver a noiva e já estava fazendo a casadele para o casamento. Falei para ele: “Rogé-rio, você pretende casar quando?”. “Ah, tio...”,ele me chamava de tio, uma bela pessoa, eu oadoro.”Eu pretendo me casar em maio”. “Va-mos fazer o seguinte: quando for na vésperado casamento eu vou trazer o circo direto paraTeresópolis para fazer o casamento. O casa-mento vai ser dentro do circo”. “Pô tio, quelegal!”. Na véspera do casamento, eu trouxe ocirco para Teresópolis. Fiz as três primeirassemanas esperando o casamento. Por sinal, apraça foi muito boa em Teresópolis e houve umalmoço entre a família do rapaz, minha famí-lia e uns convidados íntimos do rapaz. Ele émuito querido na cidade. Pedi a palavra, comoirmão mais velho. Meus irmãos me olharam,pensando assim: “Bom, o Pirajá vai fazer umanova turnê, ou comprar uma lona nova, oucomprar mais uma carreta.” Eu disse: “Olha,

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a Georgina casando, eu largo o circo”. “O quevocê está falando?”. “Eu saio do circo. Até hoje,fui o irmão mais velho e quem resolvia tudo.Vocês estão crescidos, casados, com família.Vou para o Rio de Janeiro com o meu trailer,minha picape e para o meu terreno, porquenem casa eu tenho. Cada um de vocês tem umacasa junto de seus sogros. Você tem uma casaem Campos, você tem uma casa em Vitória,você tem uma casa em Juiz de Fora, você temuma casa em Friburgo. Eu não tenho casa. Te-nho um terreno ao lado da casa da minha so-gra. Está cheio de mato e tem um muro. Nemum portão grande para entrar o trailer não tem.Vou derrubar o muro, mas vou para o Rio deJaneiro”. O caçula bateu na mesa e falou:“Nunca mais quero ver o seu rosto. Você medecepcionou”. Falei para ele: “Hoje você ficacom raiva de mim, mas não dou dois anos paravocê bater na minha porta”. Acabou o almo-ço. A mamãe começou a chorar, foi uma tris-teza, mas eu tive que fazer aquilo.

Aconteceu o casamento. Um casamento lin-do na cidade, o altar na igreja... no circo, a mi-nha sobrinha casou e veio todo mundo, aquelacoisa toda. Quando terminou o espetáculo, nãose convenceu, virou para mim e falou assim:“Nós estreamos onde?”. “Eu não falei para vocêque amanhã eu estou descendo para o Rio deJaneiro?”. “Eu vou tacar fogo nisso”. “Tacafogo”. Fui para dentro do meu trailer. Ele ficouigual uma passadeira. Passava para lá, me xin-

gava, parava na porta e me xingava. E a ma-mãe controlando: “Ubiratan, pára com isso,Ubiratan! Pára que o seu irmão está certo”. “Estácerto nada, mamãe! Nós construímos isso aquicom o maior sacrifício. Agora estamos dandoconversa à quinta geração. Eles que se virem,larguem o circo. Nós vamos tocar isso sozi-nhos”. Ele não queria. Conclusão: cada um foipara junto do seu sogro, cada um saindodevagarzinho, o circo desmanchado.

Esse meu sobrinho tem um galpão grandeaté hoje. Coloquei o material lá dentro. Cada umfoi engatando seu trailer. Vim ao Rio de Janeiro,fui ao zoológico Dona Teresa e doei os animais,porque assim teriam um final feliz. Não ia ven-der para circo nenhum, porque tratar os animaiscomo eu tratei, podem até tratar, mas não tenhoconfiança. De vez em quando vou visitar meusanimais. Aqui, no Rio de Janeiro, meu filho fezadministração de empresas e arranjou um em-prego na Prefeitura do Rio. Quebrei o muro doterreno, coloquei meu trailer e falei assim: “Pirajá,e agora? O que vou fazer na vida?”

DA: E ficou morando no trailer no terreno?P: No terreno cheio de goiabeira, manguei-

ra, bananeira, tudo plantado pela minha so-gra que morava ao lado. Aí fechei o muro paranão sair mais. Eu tenho o meu trailer até hoje.Eu mato a saudade do circo indo para dentrodo meu trailer. Agora é casa de bonecas dasminhas netas.

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Eu, meu filho e minha esposa moramos notrailer. Ele chegava de manhã com a pastinha,de gravata: “Viu papai? Isso é que é vida. Umavida limpa, não tem nada de bater marreta, dedirigir carreta, de pintar a cara”. “Ótimo, é issoaí, vá em frente!”.

Eu fui para o Café dos Artistas. Eu façoum número até hoje, não faço sempre devidoà idade, mas ainda faço... De vez em quandoos alunos pedem para eu fazer. Estou ensinan-do o que aprendi para quatro alunos. Tem umque foi para a Itália este ano com o número:homem-foca. É um aparelho que se usa na bocae a que damos o nome de cachimbo. É umamadeira, aonde se equilibra a bola. É um nú-mero de origem japonesa. Faz-se o malabaris-mo com a bola, pula-se corda, cabecea-se abola, anda-se de monociclo cabeceando a bola.É um número lindo, não é igual a malabares.

Um empresário aqui do Rio de Janeiro dis-se: “Pirajá, esse número vai cair bem no meuespetáculo. Eu faço muitos shows. Eu faço mui-tas festas de aniversário”. Comecei a trabalhar,trabalhar, trabalhar... Quando vendi o circo,com a minha parte comprei o material para le-vantar a minha casa. Arranjei um pedreiro ecomecei a levantar a construção. Um péssimodia, cheguei em casa, cheguei do show de ma-drugada, estava meu filho deitado no trailer. “Oque foi Júnior?”. “Mandaram-me embora”.“Oh, você está esquentando a cabeça? O seu

pai está trabalhando. Vai atrás de emprego”.No dia seguinte, ele pegou o currículo dele evoltou sorrindo: “Papai, dei sorte. Já arranjeioutro emprego. Na Dutra, uma firma de japo-nês, Sano, que faz telhas, telhados. Estou traba-lhando no escritório”. “Ótimo, e seu pai estáaqui fazendo a bolinha”, e a minha esposa fazaqueles pratinhos. Já viu aquele número de ro-dar os pratinhos nas varinhas? São 20 pratos.Eu ganhava o meu pão e pagava o pedreiro.Em um ano já estava com a laje pronta, já po-dia entrar na casa. Cheguei no trailer, estavaele deitado: “Papai, perdi o emprego”. “E ago-ra, você vai fazer o quê?”. “Não vou trabalharmais para ninguém. Eu vou ser meu empresá-rio”. “Você vai fazer o que, filho?”. “Vou mon-tar uma equipe, vou montar um circo.” “Vocême fez vender um circo!” “Não, vou trabalhardiferente.” Aí ele foi na Escola Nacional de Cir-co, viu um ensaio, contratou um bom malaba-rista, uma contorcionista e um dos melhoresmágicos do Rio de Janeiro. Fez um material depropaganda, foi aos Colégios, começou no San-ta Mônica. Há dez anos que ele trabalha no San-ta Mônica, todo ano. Apresentou o projeto paraa relações públicas: “Não, não quero circo. Deusme livre, porque aqui já veio uma porção de cir-co, uns palhaços sem roupa, sem nada.” Ele dis-se: “Olha Da. Olga, deixa eu trabalhar de graçapara a senhora. Se a senhora não gostar do meuespetáculo, a senhora não me paga.” Ele levouo show no dia das crianças, em outubro. Arre-bentou! Ela abriu as portas para todos os colé-

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gios da rede. Começou a trabalhar e virou umabola de neve. Também partiu para área de brin-quedos infláveis. Hoje ele tem uma empresa com30 pessoas contratadas. Ele tem um barracãona Dutra, enorme, com funcionários, motoris-tas e caminhões de entrega.

Faz shows, aluga brinquedos, lonas de cir-co. Ele tem lonas para casamento, para festas,aquelas brancas, em pirâmide... Virou empre-sário e não tem mais tempo de pintar a cara.Só fecha e faz eventos. Em pouco tempo ele setransformou em um empresário, mas não dei-xa de estar na lona de circo.

É, e aí o que aconteceu? A quinta geraçãonão se acomodou. Partiu para aquilo que elesqueriam. Hoje, aos 71 anos de idade, sou umhomem muito feliz; os meus sobrinhos me têmcomo grande tio, às 10 horas da noite toca umtelefone: “Tio... como vai tião?”. “Titio, comoé que está, meu velho? Está forte? Um beijo. ÉFrancisca”. Aí daqui a pouco: “Titio, como éque está?”. Então, eu ponho a minha cabeçano travesseiro e sei que não prejudiquei nin-guém. Hoje eu tenho dois sobrinhos que estãofazendo medicina e se formam, tenho uma queestá fazendo direito, uma já se formou em di-reito, tenho duas professoras, tenho uma queestá trabalhando em Macaé na Petrobrás, te-nho um que tem uma loja de calçados noshopping de Campos. Graças a Deus, estãotodos estabilizados.

DA: E o senhor, o que faz hoje?P: Continuo na Escola Nacional de Circo

como professor. Há 12 anos.

DA: Dá aula de quê?P: Eu dou quatro matérias. Eu dou equilí-

brio em geral, qualquer tipo de equilíbrio, dousolo, o básico; dou cama elástica e um númeroque a gente dá o nome de acrobacia cômica. Éum número cômico. Eu sempre faço um triode canastilha, salto para ombro... Eu sempreestou montando esse número. Tem aluno meuque saiu daqui do Rio de Janeiro e está noCirque du Soleil. Tenho quatro alunos que es-tão no Circo Ringle, o maior circo dos EstadosUnidos, e tem muitos trabalhando individual-mente nos cassinos de Las Vegas. Recebo mui-tos cartões, muitas cartas desses alunos. Umdia desses peguei na internet um falando as-sim: “Alô, alô meu velho... alô, alô alunos daEscola Nacional de Circo, cuidado com essevelho. Tenham cuidado com ele que esse velhoé muito especial para mim.”

Meu irmão bateu no meu terreno. Aí eu olhei:“Entra Ubiratan”. Entrou, me abraçou e falouassim: “Você estava coberto de razão”. Falei:“Ubiratan, de que adiantava eu com 70 anos, vocêcom 59 anos, o outro com 60 e tantos anos, cincovelhinhos de cabelo branco, tocando o circo compessoas estranhas, lidando com empregado?”.Uma vez, na ida de Porto Seguro para Salvador,um camarada bêbado tombou a carreta com seis

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empregados. É uma responsabilidade muito gran-de. Chegamos na cidade com despesa. A minhasalvação foi que não teve vítima fatal. Foram to-dos medicados. A gente velhinho sem ter, pelomenos, 50% do espetáculo em casa. E logo veioessa proibição dos animais. Quer dizer, eu ia per-der os meus animais. Tive uma felicidade de doaros meus animais antes deles serem presos. Isso foimaravilhoso. Deus me ajudou nisso...

DA: Fala um pouquinho do palhaço nasua vida.

P: Se o palhaço de circo pequeno não agra-dar, pode desarmar o circo e ir embora, por-que o público quer ver o espetáculo, mas querver o palhaço. Então o palhaço de um circopequeno é um palhaço que não sai do picadei-ro. Ele tem a parte cômica, é o excêntrico, oclown e o mestre de pista, como eu falei paravocê antes. O mestre de pista fica ali na corti-na, aí o palhaço entra: “Boa noite...”, e o clown“Oh Seu Pirajá, por acaso você viu o Desaper-ta?”. “Pô, mas o Desaperta até agora... masque homem irresponsável, na hora do espetá-culo...”. “Oh, Desaperta!!!”. “Espera aí, estoudando banho na galinha, não sei!” Aí sai dacortina... “Boa tarde, macacada!”. “Quemacacada. Boa noite, rapaziada!”. Está enten-dendo? É o começo. Só que a entrada cômica,como eu falei, é igual uma comédia: ela temcomeço, meio e fim. Cada dia é um tema.

Por exemplo, o meu pai entrava: “Respei-

tável público, boa noite!”. Aí vinha o diretordo circo: “Pirajá, você chegou atrasado? Cadêo Desaperta?”. “Não, é o seguinte, eu chegueiatrasado porque eu gosto muito de caçada eeu fui fazer uma caçada ontem, na sexta-feira,e eu levei o Desaperta. Nós chegamos tarde.Vai ver ele está dormindo, mas ele não vai de-morar. Eu vou lhe contar o que aconteceu nacaçada. Veja você... eu peguei o Desaperta,peguei meus dois cachorros perdigueiros, comminhas duas espingardas. Andei 6 km e en-contrei uma lagoa repleta de patos. Aí eu che-guei para o Desaperta: Desaperta, se preparacom a sua espingarda, eu com a minha, vocêjoga uma pedra para os patos levantarem vôoe nós vamos atirar, porque o tiro fica mais bo-nito, é um tiro profissional. Aí ele pegou a pe-dra, jogou, os patos levantaram vôo, aí pá! Eeu contei antes de atirar nos patos... eram 32patos. Eu peguei a minha cartucheira e colo-quei 30 balas de chumbo, mandei o Desapertajogar a pedra, os patos levantaram vôo, eu ati-rei. Adivinha quantos patos eu matei?”. “Ah,você matou pelo menos uns seis patos”. “Não,eu matei os 32”. “Pô, você é caçador ou é men-tiroso para caramba...”. “É que o Desapertanão está aqui para contar a história, senão eleconfirmava”. Aí o Desaperta ia entrando...“Oh, Desaperta...”, aí eu puxava o Desaperta:“Tudo o que ele perguntar você diz que sim.”Aí o dono do circo dizia: “Desaperta...”. “Sim,sim, sim”. “Espera aí...”. “Sim, sim, sim”. “Maseu não falei nada, como é que você já está di-

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zendo sim, sim, sim? Eu quero que você meconte a caçada que o Pirajá fez.” “E que caça-da?”. “Oh, rapaz, a caçada que nós fizemosontem”. “Ah, eu não fui à caçada nenhuma”.“Rapaz...!!!”. Aí ele entendia que era uma men-tira. Aí ele confirmava a caçada e é aquela his-tória: “Vocês são dois mentirosos”. Aí o Desa-perta: “Você nem para combinar.” “Bom, vocêchegou na hora, mas vamos continuar na ca-çada. Olha, Desaperta, eu tenho um cachorromaravilhoso. Meu cachorro, se eu pego umasardinha e ponho no pires, ele come a carne edeixa a espinha completinha”. “Mas que ca-chorro inteligente! Mas o meu é mais inteligentedo que o seu”. “Ah, Desaperta, o que é isso?”.“O meu, se eu coloco no pires café com leitemisturado, ele bebe o café e deixa o leite”. Aí:“Me dá uma cadeira”. Aí vinha uma cadeira eeu sentava nela. Papai ficava em pé. “Não vêvocê, Desaperta, que eu peguei o meu jipe,andei 12 km...”. “Pirajá, essa história é muitocomprida?”. “Ah, é”. “Mas você está sentadoe eu estou em pé”. “Vai lá ao dono do circo epede uma cadeira”. Aí ele ia lá: “Sr. Uirapurume dá uma cadeira aí”. Aí o meu irmão comvoz de raiva: “Não há”.”Não há”. Eu falei:“Poxa, mas eu estou sentado aqui, eu estouvendo. Você chega lá e pede ‘uma cadeira aí’?Tem que passar uma vaselina, ter educação:“Sr. Uirapuru, por gentileza, o circo tem qua-se 2 mil cadeiras. O senhor pode me emprestaruma? Essa é a maneira de agir. Você quer vercomo eu arranjo a cadeira?”. “Vai lá, eu não

peço mais nada não”. “Sr. Uirapuru, por gen-tileza, o senhor pode me ceder uma cadeira?”.“Não há”. “Ele agora vai dar uma cadeira, oupor bem ou por mal”. O palhaço do interiorusa uma bengala. Eles dão o nome de mandio-ca. É uma bengala na qual ele se escora. Aípapai pegava a bengala, chegava para o meuirmão: “faça o favor...”, aí o meu irmão chega-va perto dele, e meu irmão era forte, aí papaipegava a bengala: “Me dá uma cadeira aí”. Aío meu irmão: “Não há”. Aí ele pegava a ben-gala: “Pirajá, segura a bengala que vai ser namão... me dá uma cadeira aí”. “Não há”. “Medá a bengala...”, aí ficava esse segura a benga-la, me dá a bengala, aí o meu irmão ia e davaum craque nele. Ele caia e eu: “Desaperta, nãoprecisa isso, vamos utilizar essa cadeira paranós dois”. Aí vinha a caçada de pato... a ca-deira era caída. Aí eu sentava na parte firme eele sentava na parte fraca. Um dia desses, sabequem estava levando isso? Didi, nos Trapa-lhões, porque o Dedé foi de circo e passoumuitas coisas para o Didi. Ele leva muita coisade palhaço de circo.

O público quer isso. O público quer que opalhaço apanhe, leve uma cascata, leve umpastelão na cara, então quase todos os palha-ços circenses de circo pequeno fizeram isso. NaEscola Nacional de Circo, eu passo muito paraos meus alunos as entradas de palhaços, maseu já passo mais a mímica, porque ninguémtem garganta para trabalhar no circo grande,

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num circo de 5 mil lugares, 50 metros de diâ-metro; a pessoa ou usa um microfone ou entãotem que fazer mímica. Toda última sexta-feirado mês nós fazemos um espetáculo de portõesabertos para as escolas públicas.

DA: E no circo tradicional, como no seu,de seu pai e de seus irmãos, quando se é pa-lhaço, também se faz de tudo um pouco...

P: O tempo todo...Meu pai teve uma apren-dizagem muito grande. Papai ia para a Ruada Carioca, para o Eldorado, que era o cinemae já não existe mais... Na segunda-feira, papaientrava às 10 horas da manhã e só saía de noi-te da sala de cinema, porque pegava as seçõesde Chanchadas, dos Três Patetas, CharlesChaplin, dos Irmãos Max, do Gordo e o Ma-gro, e daí papai tirava muita coisa, muita in-formação. Papai tinha muita coisa de CharlesChaplin, inclusive até a maneira de andar coma bengala.

E levava tudo isso para o circo. Agora, sevocê perguntar quem era o autor das entra-das, das esquetes, quem escreveu, ninguém vaite responder, ninguém. Essas comédias vêm debisavô para avô, de avô para pai e vai passan-do para netos e assim afora.

O palhaço do Nordeste, antigamente, eraum palhaço mais de violão que contava paró-dia... esta é uma paródia do meu avô. Essaparódia deve ter uns 100 anos, porque vovô, o

Belacho, morreu com 86 anos de idade. Eraassim: “Tira o olho, bota o olho, não faço ques-tão do olho, tira o olho, bota o olho, não façoquestão do olho. Lá no mundo é terra só desertanejo, o padre fez um festejo para o povodo lugar. Um povaréu, gente assim eu nuncavi. Uma hora eu me perdi. Eu mesmo fui meprocurar”. A platéia acompanha: “tira o olho,bota o olho...” Era uma coisa muito inocente.“E na igreja tinha gente que nem sardinha, poisa pobre de uma mocinha despencou-se lá docoro. E na parede tinha um prego bem com-prido que agarrou no seu vestido e livrou da-quele estouro. Tira o olho, bota o olho, não façoquestão do olho, tira o olho, bota o olho... apobre moça por baixo não tinha nada, com asaia levantada, pendurada lá no prego. O SeuVigário deu um conselho, eu não nego, se olharpara o coro, perde a vista e fica cego. Tira oolho, bota o olho... O povo todo obedeceu in-continente e a surpresa foi somente de um da-nado de um caolho que levantou e disse: Eunão sou otário, me desculpa Seu Vigário, vouarriscar o outro olho”

Ainda não tive a curiosidade de ver numdicionário o que quer dizer Belacho; tenho paramim que deve ser uma gíria no Nordeste. Aíveio a terceira geração, meu tio Francisco Aze-vedo. Esse tio Francisco Azevedo foi o primeiroa sair da família. Ele era um mecânico na épo-ca... olha o que o circo ensina. Foi para Panairdo Brasil e ficou sendo mecânico da Panair. Foi

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quando largou o circo. O nome dele de palhaçoera Fura-Fura. Aí veio Aluísio Azevedo, Lulu.Veio o Frank Azevedo, esse chegou a ser pro-fessor da Escola Nacional de Circo.

DA: Todos seus tios?P: Todos tios. Frank Azevedo, Pisca-Pisca.

Afonso Azevedo, Sassarico. Também tem osmeus tios por afinidade, que casaram com mi-nhas tias legítimas e passaram a ser meus tios.Vieram para o seio da família como veio o meupai. Veio Mário Campioli, esse é de família ita-liana. Os pais vieram da Itália com o circo,erradicaram no Brasil, morreram e ele casoucom a minha tia. O nome de palhaço dele eraQuero-Quero. Veio Lisandro Brandão, o paidele trabalhou com Sarrazane, foi adestradordos animais do Sarrazane. Morreu aqui noBrasil. Aí, depois que saiu do circo do meu avô,comprou um circo e colocou o nome do circode Circo Show América, e o nome de palhaçodele era Sacarrolha. Aí vem a quarta geraçãoque já toca a minha. Meu irmão Uirapuru que,com a morte do Sacarrolha, passou a usar onome, bem como meu filho pegou o nome dooutro tio que é Quero-Quero.

DA:O que é embolada?P: É o que acabei de cantar para você.

Embolada é o que? No Nordeste não existemos Repentistas? Isso vem a ser a embolada.Músicas de Luiz Gonzaga, de Zé Ramalho sãocantadas nas feiras do Nordeste por violeiros.

Só que ali eles fazem um plagiado. Eu escuteimuitas versões de Asa Branca no norte de Mi-nas, coisas lindas. Ali não tem direito, ninguémescreve nada, ninguém registra.

DA: Então, a gente está chegando ao fi-nal. Você quer deixar alguma coisa registradaque eu não te perguntei? Você quer perguntaralguma coisa?

P: Bom, eu queria falar uma coisa sobre ocirco. Eu sou apaixonado por circo. Eu e os meuscinco irmãos. Eu dizia que o meu velório tinhaquer ser dentro de um picadeiro. Infelizmenteisso não vai acontecer. Tive a felicidade de irpara a Escola Nacional de Circo passar aquiloque eu aprendi aos meus alunos. Eu fico muitocontente. A primeira palavra que eu perguntoa um aluno quando vai para um circo pelaprimeira vez, quando vai fazer aula comigo aoescolherem fazer a grade deles com o Profes-sor Pirajá: “O que o seu papai e mamãe falamsobre o circo?”. “Ah, eles dizem que eu vouser palhacinho de circo”. É uma vida muitodiscriminada. É a única tristeza que eu tenho.Já começa pelas autoridades, porque para le-var um circo para o interior, para circular,montar os circos nos terrenos é muita dificul-dade... Você sabe o que é um temporal no cir-co, um vendaval no circo? É um navio em altomar, um navio veleiro. Eu, em menos de trêsminutos, perdi uma lona, com o circo superlotado, coloquei as crianças todas dentro dascarretas, dentro dos trailers — porque os pais

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vão, colocam as crianças no circo e vão embo-ra para casa para tomar whisky e jogar bara-lho. Aí quando termina a matinê é que eles vêmapanhar. O tempo mudou de uma hora paraoutra e eu disse: “Meu Deus, vai ser uma coisahorrível!”. Fui pegando as crianças, jogandonas carretas, não machucou ninguém, não teveum arranhão. Teve até no dia seguinte umacrônica falando sobre o nosso espetáculo. Issoem Calcária no norte do estado. O circo aca-bou, a lona caiu por cima do globo, aquelasestacas de ferro voavam e eu fiquei com ascriancinhas todas dentro das carretas, os ar-tistas conversavam e distraíam e a mamãe le-vava uns para os trailers para rezar...

O que eu fico chateado é que toda a cidadede Minas Gerais tem um estádio para ter avaquejada, mas não tem uma área para armarcirco. Às vezes você é obrigado, com o seu cir-co, a dar um pulo de 300, 400 km. A despesaaumenta. Tem cidades que o Prefeito faz umalei na Câmara Municipal que pode entrar doiscircos no ano. Não pode entrar mais ninguém.Por quê? “Porque o circo vem aqui e eles vãolevar o dinheiro todo da cidade”. Eles achamque os artistas não comem, não bebem, os filhosnão estudam, não tomam leite, não têm gastoscom roupa. Leva movimento para a cidade! NaBahia você arma o circo e na porta do circo apa-rece logo uma feira livre. As pessoas vão ven-der manguzá, vatapá, caruru, acarajé, melan-cia, melão, abacaxi... vira uma feira!

A última discriminação é essa que eu fa-lei para você: eu não me conformo que umatrupe receba R$ 60.000 de patrocínio e umcirquinho que está na Baixada Fluminense quecompra uma lona, arma a loninha dele pedin-do a Deus para não vir um temporal, um ven-daval e ganha R$5.000 por ano, quando é sor-teado. Isso é um absurdo! Um Beto Carrerorecebe R$ 60.000... Ele faz isso de pipoca nocirco dele. Por que não dividir esse dinheirotodo entre todos os circos? Nós temos quasetrês mil circos dentro do Brasil. Que cada umganhe R$ 5.000 no final do mês para compraruma lata de tinta, para fazer um tapete novo,para chegar no Natal e ele comprar uma gar-rafa de vinho e pôr na mesa para tomar com aesposa e os filhos. Visita um circo pequeno!Visita. Você vai ver que tristeza! É essa a mi-nha reclamação...

DA: Agradeço muito o seu tempo, a suadisponibilidade. Foi muito bom!

P: É isso! Com o meu circo eu mudei mui-tos cirquinhos. Se vinham na porta do circo eme pediam um caminhão emprestado, eu di-zia: “Vai leva. Não precisa abastecer não. Ocaminhão já está com óleo ou gasolina.” Quan-do comecei tive muita ajuda. Um dono de circofoi assistir ao meu espetáculo em Viçosas, Mi-nas Gerais, e as minhas cadeirinhas de madeiraestavam todas caindo aos pedaços. Ele tinhacomprado as cadeiras de plástico para ele emandou 300 cadeiras de ferro da Antártica para

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mim de presente. Foi uma ajuda. Então é isso.Então você pega os Anônimos, não estou desfa-zendo mas eles têm o apoio da FUNARTE, têmapoio de patrocínios, são 10, 15 patrocínios.Agora, uma pessoa que toca um circo, carregaum caminhão, vai para outra cidade, chega nodia da estréia a filha do fazendeiro casa. Aí ofazendeiro faz uma tremenda festa, churrascoaberto para todo mundo, chope para todo mun-do, quem é que vai ao circo? Não aparece nemmosquito na porta do circo. Aí eles já perdemum espetáculo. No outro dia vem um temporalderrubando tudo, você perde aquele espetácu-lo. É triste, é lamentável!

Eu era um dono de circo que aumentoumuito o circo, mas eu aprendi muito com o Sr.Garcia com quem trabalhei por mais de oitoanos. O Sr. Garcia adorava uma roça. O que éuma roça? Uma meia dúzia de casas, muitaplantação, uma fazenda, um campo de fute-bol, uma igreja e uma venda que vende detudo. Aí quando chegava com o circo que oleão dava o urro, descia nego da serra, descia

gente de todo lado, quando chegava de noite,o circo estava super lotado, porque ali não iadiversão! O camarada não quer sair do asfal-to, não quer amassar o barro... Às vezes, 6, 7km de barro... Eu ia lá para dentro. Aí a gentevia o público entrar na porta do circo e falavaassim para a minha esposa: “Dona, como é queeu faço com a minha família? Eu pago ingres-so para eles todos?”. Aí a minha esposa falavaassim: “Vamos fazer o seguinte: os pequenini-nhos o senhor não precisa pagar, não. O se-nhor paga o seu, o da sua esposa, as suas fi-lhas que são noivas, que estão com os namora-dos. Só os adultos, as crianças são de graça”.Aí com o chapéu na mão: “Muito obrigado,viu dona, dá licença”. Pedia licença para en-trar no circo. Aí no dia seguinte vinha umacarroça cheia de abóbora, melancia que elemandava da fazenda para os artistas do circoe para os animais, para os pássaros, os maca-cos... O circo era importante, o pessoal do cir-co era importante...

DA: Muito obrigada!

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Agostinho Blaske: Sou Agostinho Blaske.Nasci em 1939, na cidade de Itajobi, perto deCatanduva, Rio Preto. Meu pai não era de cir-co, mas todos os meus avós maternos sim. Meupai foi José Blaske, estudante de família alemãde Caconde, divisa de Minas com São Paulo.Minha mãe, Araci Dantas, da família Dantasde circo, contorcionista, trapezista, todo mun-do conhece. Nasceu em Vassouras, do casa-mento de minha avó, também de Vassouras,com meu avô, que veio de Portugal na primei-ra metade do século XIX com os irmãos. Co-meçaram a se namorar e se casaram.

Doutores da Alegria: Seu avô não era decirco?

AB: Sim. Veio de Portugal. Morreu com alíngua enrolada. Só entendia quem estava pertodele. “Mais jesus, bamos fazeire um drama”— só falava assim. Era bom ator.

DA: Mesmo porque essa era a linguagemusada nos dramas.

História de Vida: Agostinho BlaskeTRANSCRIÇÃO PORTUGUÊS – ÁUDIO – 01:18:00

Rom

iseta

AB: Exatamente. Fazia papéis cômicos. Alíngua dele era a graça da coisa. Baixinho por-tuguês, gostava de vinho, andava comsalaminho no bolso e uma garrafinha de pin-ga ou vinho. Casou-se com a minha avóJosephina Dantas. Com o circo, vieram atéPouso Alegre, na divisa de Minas Gerais comSão Paulo, durante uma revolução. Não seidizer se foi a de 1932. Ficou em Pouso Alegre,trabalhando. Foi ser cozinheiro! Trabalhou noexército. A turma gostava muito dele. Passoua ser o cozinheiro do exército. Fazia aquelasbacalhoadas e aquelas coisas que ninguém sa-bia fazer...

Nasceram meus tios: Valter Dantas, Jorge,Armando e Dida. Minha mãe já era mais velha,nasceu no Rio de Janeiro, em Vassouras. Moci-nha, com uns 14 anos, veio com o Circo-TeatroSudan e passou por Pouso Alegre. Aquela famí-lia grande... Passaram então por Caconde, terrado meu pai, estudante na época, onde ela o co-

Gravação e transcrição para o Projeto Memórias de Palhaços e Comediantes, com depoi-mento de Agostinho Blaske a Ângelo Brandini no dia 06 de Março de 2007, Edson Lopes eMaria Rita Oliveira, no estúdio cedido pelo Museu da Pessoa.net. Duração da gravação: 01:18:00.Transcrição por Global Translations.

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nheceu. Namoraram escondido... Ela apanhoumuito naquele tempo... Tinha de ser virgem.Namora para lá, namora para cá, não deixa aqui,não deixa lá, até que fugiram. Ele com 19 ou 20anos, fugiram para Rio Claro. Meu avô foi atrás.Pegou-os, trouxe de volta o casal com a polícia efizeram o casamento.

DA: Com a polícia?AB: É, o tenente era bravo. Casaram-se.

Meu pai se tornou um grande ator, mas bebiamuito... morreu de tanto beber.

DA: Geralmente é o contrário, o circenseé que se casa com uma moça da cidade.

AB: Sempre é o homem que pega a moça.Mas ela passou a mão no “véio”... Ele era deuma família tradicional de Caconde. Seu paiera prefeito. Chamava-se Frederico Blaster.Nunca conheci meus avós porque deserdarammeu pai. Quem se casava com moça de circonaquele tempo era cigano. Meu pai, antes demorrer, pediu que eu nunca fosse lá, já que elefoi deserdado, como cigano de circo.

DA: E os irmãos? Nunca teve notícias?AB: Conheci meus tios muito depois da

morte de meu pai, quando vieram ao circo. Fa-zia um show em São João da Boa Vista, num cir-co que também acabou, quando apareceram doistios meus que moram em São José do Rio Pardo,

perto de Santa Rita do Passa Quatro. Quando vipassarem pela porta logo notei a semelhança commeu pai. Idênticos: “Somos seus tios. Não ia veros seus tios, não? Viemos até aqui”. Deram aquelabronca... falaram, falaram...

DA: O seu pai já tinha morrido?AB: Sim. “E o Zé, seu pai?”. Disse “Infe-

lizmente morreu”, do jeito que não gostaria devê-lo morrer, mas a vida é assim. “Conta pramim, morreu em algum acidente?”. “Não. Detanto beber”. Água no pulmão, na pleura, nãosei bem. Tirava a água do pulmão dele cominjeção... Continuou bebendo e virou pus. En-tão foi internado em Bauru. Fazia aniversáriode 48 anos naquele dia 8 de dezembro. Vi-onaquele domingo. Estava com o meu circo emAraraquara. Fui a Bauru no dia do aniversá-rio dele. Foi a última vez que o vi.

DA: Morreu jovem.AB: Bem mais novo do que eu. Era muito

grandão. Alemão. Fui naquele sanatório paraver meu pai. É terrível entrar num sanatório...quando o vi estava pior do que quando o in-ternei. Muito magrinho. Uma cama do lado decá e outra lá. Uma turma de gente doente. Euo vi. Ele conversou comigo. Falou para eu to-mar conta das minhas irmãs.

DA: E te falou aquela coisa de nunca pro-curar...

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AB: Sim. Tornou a falaAB: “Não vá ver,meu filho. O dinheiro não é tudo. A dignidadevale mais. Pesa muito mais. No final da vida,você vai ver que a dignidade vale mais que odinheiro. O dinheiro, às vezes, compra muitacoisa fútil, mas não compra as coisas boas domundo”. Eu passei por situações apertadas,mas nunca fui.

DA: Seu pai era palhaço também?AB: Meu pai fez uma dupla com a minha

mãe. Tocava muito bem violão. Cantavam nocirco. Era bom ator nos dramas. Foi para aqui-lo que deu, porque não era de circo. Tornou-seum grande ator, nas peças, nos dramas e era oexcêntrico. Minha mãe era atriz, fazia trapézio,contorção e foi assim que aprendemos.

DA: Como você virou palhaço?AB: Fazia trapézio. Saltava muito... Quan-

do tinha de 7 para 8 anos, um carro foi lança-do no Brasil com o nome de Romiseta... pare-cia uma bolinha. Meu nome era Bagacinho.Nome do palhaço do meu pai e do meu avô.Eu saltava muito. Entravam os artistas parasaltar, fazer aquele charivari de acrobacia1, eeu pequenino saltava, de palhacinho, e faziacair a calça e tal... Saiu esse bendito carro, creioque em Santa Bárbara... Então, pegaram umapromoção desse carro para fazer e me coloca-ram de palhaço. E passaram a me chamar deRomiseta, Romisetinha! “Se colar, ele vai ga-

nhar um carro”. Ganhei esse carro e nunca vi.Era pequeno. Quem ganhou o carro foram osoutros.

DA: Nunca dirigiu o carro!AB: Fiquei com o nome até hoje. Tirei foto-

grafias com o carrinho, sobre o carro. Abria aporta pela frente. Só lembro que era amarelinho.

DA: E o que fizeram com o carro?AB: Não sei. Sumiu.

DA: Venderam?AB: Se venderam não sei. Mas o nome fi-

cou até hoje.

DA: Então você foi palhaço desde criança?AB: Desde os 6 anos. Porque o circo, quan-

do você chegava nas cidades... Maringá, quehoje é aquele cavalo de cidade, era do tama-nho de um bairrozinho muito pobre aqui deSão Paulo. Muito pequenininha. A gente ar-mava o circo no centro de Londrina. Era umacidade pequenininha. Era muito difícil andarcom o circo porque tudo era de barro. Nãohavia asfalto. A cidade tinha calçamento deparalelepípedo. De Londrina à Apucarana, porexemplo, com uma média de 30 km de umacidade para outra — Araponga, Apucarana,Cambé, Rolândia — demorava uma semana!

Se chovia tinha que enrolar corda no pneu,

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pôr correntes. Demorava dois dias para fazeruma viagem de 25 km, de uma cidade para aoutra. Íamos em cima de caminhão. Criança,gente, os artistas, era muito difícil. Quando sechegava na cidade, na estréia, se contratavamas bandas. Toda cidade tinha uma banda. Erabonito: quando dava 20h00, a banda vinha,saía do jardim, dava a volta no jardim e vinhapara o circo. E vinha o povão todo atrás. Eulembro dessa época, em que meu pai me pu-nha no ombro e acompanhava a banda até ocirco. Só pra mim!

DA: Ele era o dono do circo?AB: Não. O dono era meu avô materno.

DA: Então vocês herdaram o circo?AB: Não, não, não... não se herda. Você

compra. Você sai, vai guardando o seu dinhei-rinho e compra o seu circo. O meu pai nuncacomprou, nunca teve um. Meu pai só cuidavade beber, infelizmente... E, por fatalidade, vimeu pai dia 8, no aniversário dele. Vi e fui paracasa. Voltei para Araraquara, para o circo.Morreu na terça-feira e foi enterrado como in-digente. Aquilo foi o pior negócio do mundo,da minha vida.

DA: Como morreu?AB: Não sei. Disseram não saber. Naquele

tempo, a comunicação não era como hoje. Eramuito difícil. Telefonar era muito trabalhoso.

DA: Ainda mais no circo. Você não temcomo encontrar.

AB: Não, não tem. Estava ali pertinho, emAraraquara, e ele em Bauru. Ele falou “Com-pre umas frutas para mim, filho”, muito baixi-nho. Aquilo me deu muita tristeza. Fui ao cen-tro. O sanatório ficava afastado, depois do cam-po do Noroeste, o qual fui assistir jogar e medespedi dele. Voltei. Não tinha carro. Alugueium táxi, fui comprar as frutas e trouxe de vol-ta. Perguntei para o enfermeiro, para o médi-co. Eles falaram: “Agora ele está bem”. Pegueium pacote de dinheiro, de notas, e dei paraele. “Filho, esconde debaixo do meu travessei-ro, porque aqui só tem ladrão”. Os caras esta-vam ali do lado: “Está vendo? Esse aí rouba omeu dinheiro.”. “Cala a boca, pai”. “Não, elesroubam mesmo. É tudo ladrão aqui”. Aí pusdebaixo do travesseiro. Aquilo me marcou.Quando o circo mudou dali para Andradas,Minas Gerais, mandei minha irmã vê-lo. Ia es-trear na sexta-feira. Falei: “Você vem na quin-ta-feira, que na sexta-feira vou estrear”. Ela foi.No dia em que ela tinha que chegar — na quin-ta-feira — para o circo estrear na sexta, eu des-cia para o circo. E ela vinha subindo. Quandome viu, começou a chorar. Eu parei, já na cal-çada da praça, e falei: “O que é, maninha?”.“Vai estrear amanhã?”. “Não, porque o terre-no está muito cheio de água. Vou ter que mu-dar, passar para outro”. “Não vai estrear ama-

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nhã?”. Eu falei: “Não, essa semana perdeu”.“Bom, se fosse estrear, eu não ia falar nada.Mas como não vai ...”. Ela enfiou a mão nabolsa e tirou: “Olha o dinheiro que você dei-xou com o pai. O atestado de óbito dele estáaqui. Você o viu no domingo. Na terça-feira,ele morreu e o enterraram como indigente,enrolado em um lençol”. Passei a beber vinho.Ali tem muita fábrica de vinho. Trabalhavabêbado todo dia. Chorava muito. A única coi-sa que eu tinha era meu pai. E chorava muito.

DA: A tua mãe estava viva?AB: Estava.

DA: Estava no circo?AB: Estava. Não vi o enterro de meu pai.

Nunca mais voltei a Bauru. Nunca, nem a pas-seio, nada. Tive um bom contrato para fazerna televisão de lá. Nunca quis ir. Nunca. E aliestá enterrado meu avô materno.

DA: Em Bauru também?AB: Um [ônibus da viação] Cometa o pegou...

DA: Foi atropelado?AB: Descendo de um ônibus, que deu ré e

passou por cima da perninha dele. E cortou.Sarou e ainda trabalhou em uns 7 ou 8 dra-mas no circo do meu tio Jorge. Uma noite, co-meçou a sentir dor na perna. Já tinha termina-do o espetáculo. Levaram-no para o hospital e

ele morreu. Enterraram ali mesmo. Não vi. Es-tava no Paraná, com outro circo.

DA: Como é que você chegou a formar oCirco Romiseta? Como passou de palhaço aproprietário de circo?

AB: Fui para Buenos Aires com um circo ame-ricano, o Ringle. Em Mendoza, caí do trapézio equebrei um braço em oito lugares e outro em doze.

DA: Fazia aquelas loucuras sem rede tam-bém ou não?

AB: Sem rede. Quebrei o braço, o nariz e aperna. Fiquei todo engessado, parecendo umamúmia. Eles me largaram lá. Mudaram o circoe foram embora. Fiquei lá jogado.

DA: Você ficou em Mendonza?AB: Fiquei lá jogado. Passei tudo o que

você puder imaginar lá na Argentina. Fome,vergonha, miséria.

DA: Mas o circo foi embora e nem faloupara onde ia? Não avisou?

AB: Foi embora e me largou lá. Não tinhalei sobre esse negócio. Não tinha nada disso.

DA: E você estava todo machucado. Nãointeressava, também.

AB: Eu não podia falar nada... Não tinhanada. Só orava, pedia a Deus, à Nossa Senho-ra Aparecida. Consegui sair. Voltei para cá e

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comecei a trabalhar com os braços engessadosmesmo, em outros números que fazia com asminhas irmãs. Achei que tinha que comprarum circo para mim. Trabalhei na TV Coroado,em Londrina. A única televisão que existia noParaná. Trabalhei, ganhei mais um dinheiri-nho. Fazia um programa infantil. Peguei o di-nheirinho e guardei. Vim para São Paulo, paraa TVS. Gravava o Domingo no Parque com oSílvio, o Bozo... Montava aquela abertura doDomingo no Parque. Ganhei um dinheiro.Apareceu uma oportunidade em Garibaldi,Porto Alegre, de comprar uma churrascaria.Fui fazer um show em Porto Alegre e vi, depassagem, aquela churrascaria com a placa“Vende-se” e algum movimento. Falei: “Vamosjantar”, e entrei com minha mulher, que mefalou: “Você podia comprar isso aqui”. Pergun-tei se vendiam: “Vendo, mas só se for dinheiroà vista, chê”. “Quanto o senhor quer?”. “130milhões”. “Dou 120 agora”. “Não, 120 não.125”. “Então dou 110 agora”. Aceitou. Com-prei. Estava indo de vento em Garibaldi, a ter-ra do vinho. Sábado e domingo eu saía. Pega-va meus artistas. Porque ficaram comigo ali.Não mandei ninguém embora... Ficaram todosali comigo. Um ficou de garçom, a outra degarçonete... Sábado e domingo eu fechava tudoe fazíamos um show.

AB: Em 1986, aluguei a churrascaria para

o prefeito fazer uma festa de confraternizaçãopara os funcionários. Estava sentado perto docaixa. A casa em festa. Era véspera de Natal.O telefone tocou à 1h30 da manhã. Fui aten-der. A moça falou: “Pode deixar Sr. Romisetaque eu atendo aqui”. Todos já estavam maispara lá do que para cá. Vi que a moça ficoubranca. Eu estava conversando mas olhava. Amoça falava e olhava muito para os lados eolhava para mim. Eu falei: “Vem cá. O que estáacontecendo? Algum problema?”. Ela falou: “Éum problema Sr. Romiseta. Mas eu vou ter quefalar. É sua sobrinha que está ao telefone”.“Quem é?”. “A Simoni. Chegou da Espanhapara passar o Natal aqui no Brasil na casa dasua família. Quer falar com o senhor. Falei queera melhor deixar para depois, mas ela querfalar agora. O telefone está aí.”. Eu falei: “Oque foi, filha?”. Ela falou: “Bênção, tio. Comoestá? Tudo bom, tio? O senhor tem churrasca-ria, né? Feliz Natal. Um ano novo cheio de fe-licidade.” Começou a chorar. Pensei: “minhamãe mora em Sorocaba”. E falei: “Algum pro-blema com a minha mãe?”. “Não tio, é maisgrave. O problema é com o seu filho”. “Meufilho? Qual é o problema?”. “Oh tio...”.

Trabalhei muito para ele se formar e nãoser de circo, para não passar o que passo hoje.Formou-se contador. Um bom rapaz. Não be-bia, não fumava, não jogava. Tinha 26 anos e

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seis meses de casado. Veio no meio do ano àSão Paulo e dei um carrinho para ele. UmFiatizinho, para ele ir ao serviço, ao escritório.

Ela continuou: “O senhor tem que vir, ur-gente, para São Paulo.” “Por quê?”. “Porqueferraram o Lúcio”. “Ele bebeu, fez alguma coi-sa?”. “Não tio, mataram e cortaram a cabeçafora. Você tem que vir aqui. A cabeça está deum lado e o corpo do outro.”

Corri para o aeroporto pegar um avião.Não tinha. Todo mundo festejava. Peguei ocarro e vim para São Paulo. Cheguei no outrodia. Passei no necrotério. O cara puxou e fa-lou: “Aqui está o corpo, veja se é.”. “Pelo cor-po já vi que é do meu filho. Mas e a cabeça?”.“A cabeça está ali naquela outra área”, e pu-xou. Colocaram a cabecinha dele ali, com osolhos meio entreabertos.

DA: Mas você sabia quem tinha feito aquilo?AB: Mais ou menos, pelo que o delegado

falou. A filha do delegado passou pela mesmacoisa. A história é terrível. O delegado falou:“Se você achar os bandidos, mate. Tira a polí-cia do meio e mate, porque matei os bandidose, hoje, tudo o que eu tenho, gasto com advo-gados para não ir preso; fizeram isso com aminha filha, no último ano de faculdade dela.Acabaram com ela”.

Aluguei um avião e comecei a andar atrásde bandido por aí. Em todo lugar que vocêpuder imaginar, Chile, Paraguai, Uruguai,Bolívia.

DA: E você encontrou?AB: Não. Só que tem um problema sério.

A mulher dele também sumiu. Ninguém sabese a mataram ou se está com os bandidos.

Não teve jeito. Estava gastando todo o di-nheiro. Tudo aquilo que havia conseguido emtantos anos. Comprei um circo mais uma vez,tive 2, 3 circos além desse, mas nunca a sério.Dessa vez, comprei bichos. Estava fazendo umpalco só para levar teatro, porque gosto de te-atro em circo.

DA: Houve o temporal... e você perdeu ocirco também?

AB: Foi um vendaval, acabou com tudo.Perdi tudo em São Carlos. Não tive como re-cuperar. Quando você cai é difícil. Não pensevocê ... se você tem um par de sapatos, conser-ve-os, porque se você perdê-lo, não compraoutro.

DA: E essa churrascaria, você vendeu paracomprar o circo?

AB: Não. Eu estava perdendo tudo. Já nãome dava mais prazer em nada. Eu tinha quecomprar o circo para poder andar. A minha

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esperança era comprar o circo e andar naque-le fundão do Mato Grosso, do Paraguai, paraver se eu descobria. Comprei o circo para isso.Vendi a chácara em Sorocaba, vendi a casa naPenha, vendi a casa no Jardim Jaraguá, umacasinha bonitinha, um sobradinho. Estavaalugada. Vendi para quem morava lá. A outracasa, da Penha, vendi para um colega meu decirco.

DA: Como é que chamava esse último circo?AB: Real de Paris Circos. Você vê como

são as coisas. Eu tinha firma de shows, a TheWorld of Marvel. Tradução em português: AMaravilha do Mundo. Comprei o circo, fizoutra firma, Real de Paris Circos Ltda. Perditodo o dinheiro nisso, por causa dessas firmas.

Quando vem a maré de azar, você pode con-tar. Se não tomar cuidado ela te leva tudo. Aminha consolação é que vi gente muito grandeentrar no buraco. Os Matarazzo, o Circo Norte-Americano, que ficou na pindaíba... o CircoGarcia acabou. Gente que vi milionária, dentrode São Paulo, com o chapeuzinho na mão.

DA: Romiseta, isso é interessante. Essemovimento do circo. Houve uma queda do cir-co como um todo. Por que você acha que issoaconteceu?

AB: Brusca, brusca... se você perguntar paramim se foi a televisão, discordo. Colegas meusdizem isso: “A televisão veio para acabar”. Não.

Eu acho que veio para modernizar. Um ponto:ela tem coisas que não me prejudicam. Ela pre-judica a sociedade com aquilo que é contra opudor, contra a dignidade humana. Cenas desexo na televisão eu não me conformo. Vocêpode falar que isso é modernismo. Beijar na fren-te de uma criança ... isso não é educação. Nocirco, você nunca viu isso. Nunca!

O circo sempre foi recriminado. Chegava àuma cidade e as mulheres eram tachadas deprostitutas, vagabundas. Cansei de ver falaremda minha mãe... Não existia mercado. Era ar-mazém. Não existia supermercado e você ou-via falaAB: “Você viu aquela mulher do circomostrando as pernas? Indecente”. Se uma mu-lher de circo saísse com uma bermuda na rua,não entrava em uma casa de família nunca.Então você via esse tipo de coisa. Só que até unsanos atrás você tinha uma média de 7 ou 8 milcircos no Brasil. Hoje devem existir 400.

Na minha família, todos eram de circo e tra-balhavam. Saltavam, faziam trapézio, palhaço... eram bons atores, boas atrizes. Os que foramcrescendo, foram tirando os filhos do circo.

DA: Porque não queria que passassem...AB: Por aquilo. Só que a situação é outra.

Daí dizem por aí que o circo acabou. Não aca-bou. O Zani está aí para provar.

DA: É verdade.

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AB: Eu sou fã deles.

DA: O que você acha disso? O que acha,sem juízo de valor, dessa galera nova, dessepessoal novo do circo?

AB: Eu não tenho mais condições finan-ceiras, mas se eu tivesse, montaria um circoigual ao do Zani. Um pouquinho maior, só deplatéia, e um belo de um palco, com a ilumina-ção, a tecnologia de hoje. Você pode pegar umafita de vídeo e ir a uma Prefeitura. Não precisanem conversar. “O meu espetáculo, meu cir-co, é esse. O senhor assiste para depois me darum alvará”. Ele leva para casa, tem um DVD,assiste. Verá a categoria. Ninguém faz isso. Ospalhaços são os piores possíveis. Parece queembasbacaram, pararam.

Os maiores atores de televisão, de filmeamericano, nenhum cursou uma faculdade deartes cênicas. Victor Mature, por exemplo, quefez Sansão e Dalila. O diretor italiano ia pas-sando em uma avenida e o viu pegando uvas,de costas. Chamou e deu o cartãozinho. Pro-curava-se talentos. Não adianta você estudarse não tem talento. Vai tentar me ensinar acontar piadas, fazer graça, mas não consegue.Se eu não tiver o dom, você não ensina.

Não existe quem faça rir. Tem que pos-suir o dom. Ter caída. Se não, não tem técni-ca que resolva.

Não adianta estudar. Se pintar o rosto evocê me disseAB: “Romiseta, vão ter 500 cri-anças e 10 mil adultos”. Prefiro trabalhar paraadultos, porque conto piadas, faço graça e mí-mica. Criança não gosta disso. A criança gos-ta que você leve tapa, caia, se suje. Não façoisso. Trabalhar para criança, para mim, é hor-rível. Não sei fazer, não tenho esse dom. Sequiser trabalhar mímica num teatro, numaboate, pode ir, eu vou lá com você.

DA: Independe de você ter nascido emuma família de circo ou não. Às vezes, no pes-soal mais velho — não em todos, mas em al-guns —, eu já ouvi gente falaAB: “O sujeitoveio do teatro: nunca bateu estaca”.

AB: Qual é o problema de não bater esta-ca? Porque o seu sangue puxa.

DA: Voltando àquela história, você disseque acha que o circo decaiu porque as famíliaspararam de incentivar os filhos a seguir o mes-mo caminho...

AB: Correto. Tomo isso como prova mate-rial. Gostaria que meu netinho estudasse paranão ser o burro que o avô é. Gostaria que eletivesse um anel de formatura no dedo. Fosse oque quisesse ser, mas que pintasse a cara.

Meu pai me internou em Jacarezinho paraser padre. Não era de circo. O sangue dele nãopuxava muito para esse lado. O da minha mãe

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puxava. Ele queria que eu fosse padre. Você jápensou? Que bagunça ia ser! Fui internado.Fugi duas vezes. Cada bebedeira do meu pai,eu fugia. Fazia uma bagunça desgraçada!

Eu contava piada. Não tinha jeito, elesmorriam de rir. Achava que aquilo não erapara mim... Sentar, ficar rezando, quietinho.Não fico. Brinco, saio, volto. Levo a sério pou-cas coisas. Se você leva tudo muito a sério, vocênão me tolera.

A vida não é antipática. Você a faz anti-pática. Eu não vou discutir se “aquele ali nãobateu estaca, não armou circo, não sofreu”. Eusofri. Só mudava circo em cima de caminhão.Com os meus 12 anos, em cima de caminhãocom minha mãe e meus irmãos. Você não vaiser um bom ator só porque não estava lá emcima sofrendo comigo? Não tem cabimento. Oator bom, se reconhece no falar.

Para fazer o papel de um personagem, ostrejeitos daquele, a pessoa, a personalidade ésua. Não tem jeito. Por isso, existe o ator gené-rico e o ator não genérico. O genérico faz qual-quer papel. Eu não faço. Se você me der umpapel de amor para fazer, derrubo a peça.Vamos todos para o buraco. Se me der umpapel de bêbado, de homem sério, dono da fa-mília, daquele que sofre.

DA: Como foi sua vida no circo-teatro?AB: Era o galã e o palhaço. O trapezista

novinho. Se era bonito? Não, mas tem tantoartista de televisão e de cinema que não é bo-nito, mas ficava bonito pelo papel que faz.

O mocinho sempre matava o bandido e amulherada ... Quando saía na rua: “Ele é aqueleque...”, pronto, já estava ali. Não agüentavaver uma sainha azul e blusinha branca de es-tudante. Esse era o meu fraco!

Nós levávamos um drama: “Os Transvia-dos”, de Amaral Gurgel. Levávamos em qual-quer lugar do país, porque é drama fino. Ummédico, noivo da Lídia. A Lídia, que é irmãdaquele que morre, é professora. O outro ir-mão dele é padre. Forma-se padre no dia emque ele morre. O outro irmão é advogado. Équem vai tirá-lo da cadeia. E ele é aquele quenunca estudou. É a ovelha negra da família, oque trabalhou para todos estudarem, seremgente. E ele é o que morre no dia de Natal. Eufazia o promotor, quem o acusa. No primeiroato, é só aquela briga do promotor e do advo-gado. Um defendendo o irmão e o outro acu-sando. Depois, punha a roupa de velho, bran-queava o cabelo e ia fazer o irmão de todos. Éo que morre no dia de Natal. Esse drama paramim era o charme. Quando você está morren-do no dia de Natal, a turma chegando e tal...

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A mãe dele feliz, porque saiu da cadeia... E elemorre naquela hora.

O papelzinho que eu fiz e arranquei aplau-sos, e eu faço bem toda vez, é o pai da Nely,que entra no primeiro ato e no final. O queprende De La Torre. O cômico.

Como “Alberto, meu amor”, pegava namão de Nely. E eu não sabia onde punha amão. Segurava na mão dela: “Nely, eu te amo”.Quando ele está tirando a venda dos olhos damãe, da avó da Nely, diz: “se os olhos nosmostram as suas belezas, também nos mostramas suas desgraças. Quando a senhora abrir osolhos...” Quando ela abre os olhos, vê o cadá-ver da neta, a Nely. Tira e olha...”Não acredi-to no que estou vendo”. “É a pura verdade”,fala o Alberto. “Ali está o cadáver de Nely”.As minhas peças preferidas eram “Os Trans-viados” e “O mundo não me quis”.

Nós levávamos “A Roda dos Enjeitados”e “A filha do mar”. “A cabana do pai Tomás”,“Os dois garotos”, “Os dois sargentos”, “He-róis de Monte Castelo”, “Lágrimas de Ho-mem”. Nele, o povo chora. A menina condenao pai, sem saber que está condenando. É mui-to bonito.

DA: E agora que você não tem mais circo,como vive?

AB: É difícil. Não tenho jeito de falar. Euteria que fazer pelo menos uns dois, trêscachezinhos por semana em uma casa de fa-mília, um aniversário, alguma coisa. Nesta si-tuação, sem ter um telefone fixo, é difícil. Quan-do morava aqui em São Paulo, tinha tudo.Dois, três telefones. Conforto. Dinheiro chamadinheiro. Se você não tem dinheiro, o dinheiropassa longe de você. Espalha, amigo. Se todosnós temos condições iguais... Você tem dinhei-ro, eu tenho dinheiro. Hoje você paga, ama-nhã eu pago. Nós vamos a uma festa, vamos aum bar, vamos a uma lanchonete. Se estamosnuma festa e vemos que você vem chegando,eu falo: “Ih, vem vindo. Vamos dar desculpa,vamos sair.” É espalha-festa. Quando chega,falam: “que bom você ter chegado. Pena queeu já estou saindo. Tenho que buscar a minhafilha na escola” “Para onde você vai?” “Euvou para lá” . “Então você me leva, eu voubuscar a minha mulher.” “Espera aí, vamosnos encontrar lá no outro bar.”

Eu me sinto assim, espalha-festa. Se vocêestiver em má situação, vai ser um espalha-festaaonde chegar. É duro, muito difícil.

DA: Mas você ainda tem amigos de circo?AB: Não. Não tenho mais amigos. Sem di-

nheiro, não se tem amigos em lugar nenhum.Marquem o que eu estou falando.

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DA: Mas continua criando seus números?AB: Eu faço tudo. Você não pode criar

nada. Tenho na minha casa o guarda-roupaque peguei da Disney. Aqueles bichinhos to-dos da Disney, tudo que peguei. Estava emVitória do Espírito Santo. Porque quando aca-bava uma temporada, tudo era levado a umcampo e tocavam fogo. Não levavam de volta.Fica mais barato, porque lá já têm tudo. Sevoltassem no próximo ano, não iam trazeraquilo. Trariam guarda-roupa novo e umanova montagem.

Então um cara comprou isso. Entraram oOrlando Orfei e o Sérgio Venturini no meio.Começou uma briga. Quando chegou em Vi-tória do Espírito Santo, estourou tudo. Um fu-giu para a Suíça, outro não sei para onde. OOrlando Orfei se escondeu aqui. Eu vim brigarcom ele. O material ficou guardado lá. Tinha alista de tudo. O dono mesmo, o SérgioVenturini, me deu uma procuração e fui até amulher do governador. Conversei com ela emVitória. Ela me cedeu dois advogados, que fo-ram à Polícia Federal. Então peguei essas coi-sas e guardei em uma igreja evangélica. Des-carregaram duas carretas de material lá den-tro. Ficou um ano por lá. Aí os advogados vie-ram: “Sr. Romiseta, o senhor não foi buscaraquelas coisas? A turma vai pegar aquilo para

pular carnaval.” Estava numa baita pindaíba,na TVS fazendo “Alegria 81”. Com o dinhei-ro, paguei um caminhão para ir buscar. Trou-xe e pus na porta da minha casa. Pus uns plás-ticos, mas começou a apodrecer. Um sujeitoda Espanha comprou parte do material. Ti-nha seis elefantes Dumbo da Disney e fiqueiapenas com um. A primeira cópia do fuscaHerbie de “Se o meu fusca falasse”, estavacomigo. Vendi tudo. Mil cruzeiros, naqueletempo.

DA: Romiseta, você foi assistir o Cirquedu Soleil?

AB: Não. Mas acho que tudo que é mo-derno vale a pena. Eles ficam com esse negó-cio de teatro e circo... Tudo aquilo que vocêpegar no teatro, serve para o circo. Eu achoque o Cirque du Soleil está “dentro do esque-ma”. Criaram um circo moderno. É mais difí-cil fazer o circo antigo funcionar. mas podeatingir todas as classes, porque no ato de vari-edades pode contar piadas para agradar amocidade e os dramas teatrais para agradaros coroas. Pode levar aqueles dramas pesadosque ninguém quer levar, ninguém quer gastarhoje em dia. Têm medo. Gastaria em um circode teatro tranqüilamente, modernizado comoestá hoje. Você vê que as novelas de hoje pas-sam do limite. Cenas de cama estão fora decogitação. De resto tudo que é moderno é bom.

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DA: Você acha que há mercado? Que umcirco-teatro daria certo nos dias de hoje?

AB: Tranqüilo. A novela está aí para mostrar.

DA: Mas você não acha que haveria umaconcorrência forte? Você acha que ointeriorano desligará a televisão, na hora danovela, para ir ao circo?

AB: Desliga. Com os dramas, desliga. Es-tou falando. Agora, há pouco tempo, um cara,em Aquidauana, Mato Grosso, me falou: “es-cuta, aqui tem muito povo do exército. Vocêsnão tem algum drama que mexe com o povo?”“Tem! Você pode levar ‘O Desertor’, ‘Heróisde Monte Castelo’. Eu ensaio”. Levamos a peçaao teatro. “Heróis de Monte Castelo”. Forroude gente. Só aquele povo do exército. No últi-mo ato, depois de muita briga, dois irmãos vãopara a guerra. Um deserta para namorar amulher do irmão e acaba casando com ela,enquanto o outro está na guerra. Trai o irmão.A chegada do irmão é bonita: vem sem os doisbraços, passa pela porta. Um não sabe da si-tuação do outro. Quando começa o diálogo,via-se aquele povo do exército chorar.“Oficininha!” O que retorna, olha para a ofi-cina. O outro irmão já está com remorso, en-tão fala: “Ricardo, você já viu sua oficina? Sim,mãezinha. A minha oficina...! Até parece queontem eu estive nela.” Mas ficou anos na guer-ra. E olha para o corpo, porque já não tem os

braços para trabalhar. “Serve-me alguma coi-sa como naquele dia que fomos para a guer-ra? Fizeram aquela festa!!” A Julieta, que iaser a mulher dele, serve a bebida e é “certi-nha” aquela cena: “Julieta, sirva-nos algumacoisa como naquele dia em que nós partimos”.Serve para todo mundo e chega nele. Dá paraele. Ele não tem braço. Ele olha para ela e diz:“Julieta, me coloca o cálice na boca já que eunão posso”. Ela, com remorso, levanta, vaipegar o copo, começa a tremer e deixa cairno chão. “Não, não agüento”.

Ele assusta. Aí é que ele vai tomar ciên-cia de tudo que está acontecendo. O povo todojá sabe. O irmão ajoelha e pede: “Meu irmãoRicardo, me perdoe. Sou um traidor”. “Sim,meu irmão. Traíste duas vezes. Traíste a tuapátria e traíste o teu irmão. Deixei na guerradois braços, um por mim e outro por você,que não foi. És covarde duas vezes meu ir-mão”. A noiva fala: “Mate-me Ricardo”. “Eusó poderia te matar com os olhos, mas debai-xo dessa farda tem um boneco de gesso queagora não tem coração e nem alma, Julieta”.Ele vai falando:”Mãezinha, abre a porta. Vouembora”. “Se você gosta da tua mãe, fiquemeu filho”. Ouvia todo o povo do exército eaquelas senhoras ali sentadas chorando. Oator começava a falar e chorar. E ela doidapara não chorar, tem dia que pegam você na

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“veia” boa. Você chora mesmo sem querer,vendo os outros chorar.

Pois nós levamos esse drama a semanainteirinha na hora da novela. Todo dia, às 8horas. Iam buscar o povo do Paraguai paraassistir o drama também. Não tinha [interessena] novela. O povo ia. O Cirque du Soleil cus-ta 200, 300 paus e o povo vai. E não paga 5para assistir eu e você ali.

Fui trabalhar em uma escola ontem cobran-do dois reais, incluindo três espetáculos de gra-ça. E foi difícil pagar. O povo paga o que é bom.Eu censuro os meus colegas. Ao invés de fazeraquilo que fazem na cooperativa2, deviammelhorar o espetáculo.

Põe roupa no espetáculo. Iluminação deúltima geração. O povo não vai sair de sua casacom conforto, TV a cores, para pisar em umaterra cheia de barro, numa cadeira que não éconfortável, para assistir um espetáculo quenão condiz com aquilo que é anunciado. “En-graçadíssimos palhaços”: são todos sem gra-ça; “Lindas garotas”: tem duas velhas; “Ani-mais de todo o tipo”: não tem animal nenhum,só cachorro.

Se montasse um circo, sabe como ia fazer?Se tivesse condições, palavra de honra. Ia ter

um palco do jeito que você pensasse de bonito.Camarins atrás, todos com chave para os ar-tistas. Não seriam poltronas, mas quatro ca-deiras confortáveis e uma mesa. Tirava a ban-cada fora, as cadeiras do meio. Seria uma mesae quatro cadeiras, e uma florzinha no meio.Uma garçonete muito bem vestida, uniformi-zada, para servir. Sem correr na bancada pravender. Com whisky, bebidas finas.

Agora, você vai ao circo para beber pinga,batidinha e comer pipoca. Tudo é a tradição.O pirulito e a pipoca são a tradição do circo,mas você tem que ter o jeito. Ter higiene. Hojeem dia, tudo é muito higiênico. Sabe qual seriaa propaganda de um circo, hoje em dia? Umsanitário muito bem feito, com espelho, por-que a mulher é vaidosa. A mulher quer fumarescondido, ou conversar com a outra colega.Entra no banheiro, senta ... tem que ter um sofá.Senta no banheiro. Vai ao espelho, arruma, eladá uma retocada na maquiagem. Vai ao sani-tário, à pia ... uma toalhinha, sabonete, tudo.Quando chega em casa, fala: “Você viu, bem?Até o banheiro do circo é melhor do que essenosso. Você viu só?”. Ela comenta. A outra vemporque ela quer ver o banheiro. Ela não querver o espetáculo.

Se você senta em uma cadeira confortá-vel. Não é mais aquela bancada que passa gente

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por baixo, que entra aquele ventinho. Você sesenta ali, confortável. Assiste ao espetáculocom a sua família, tomando um negocinho.Aplaude sossegado. Isso modernizaria. Assim,hoje você vem. Amanhã ou depois, volta. Vaiindicar. O circo pode até abrir à tarde.

O cara vai ao circo: aquela bancada, po-leiro, a cadeira suja. Senta e vê um espetáculomedíocre, ruim. Não critico os meus colegas.Critico o jeito de tocar. Aqueles que tocam otipo antigo. Quer tocar o tipo antigo? Toque,faça uma bandinha. Contrate uma bandinha.Põe o uniforme nela como os americanos. Todomundo entra de smoking dentro da barreira.Os empregados com macacão com o nome docirco. O cara que vai anunciar está de smoking,de Summer, de fraque ou casaca. O apresenta-dor tem que estar de cartola, bota, culote bran-co. Mas hoje não se toca nem o tipo antigo,nem o moderno, coisa alguma. E quer que opovo vá naquela boquinha, compre o ingressoe assista? Tem ainda aquele palhaço sem gra-ça. Aquele troço sem graça, o mesmo que vocêviu lá no circo do ciclano. Acho que tudo semodernizou. O circo se modernizou.

Se chegar um circo aqui na cidade, se vocêentra e se sente bem. Você sentou e não é for-rado, não tem carpete, mas tem a serragem,que está limpinha... Sente o cheiro da serra-

gem e senta. A tradição é a serragem. Trata ocara bem. Põe duas pessoas descentes paraatender. Se você é bem atendido, volta.

Se você vai ao circo com sua família e ébem tratado, se sente bem, eles voltam. “Va-mos ao circo hoje?. “Hoje vai passar um dra-ma, rapaz”. “Eu ouvi falar nesse drama. Va-mos?”. “Vamos”. Gostou? Amanhã, vocêanuncia e ele vem. O cara sai, chora um pou-co, ri. Amanhã volta. “Ah, vamos para o cir-co?”. “Vamos.” “Ah, é bom. Você viu comotrabalham?” Há quantos anos eu não vejo isso!

O circo não acabou. Acabou aquilo quevocê faz atualmente. Primeiro, cuida do quevocê está vendendo. Vende um bom materialque amanhã redobra o preço. Não vale a penadiscutir o teatro, o circo, o circo-teatro. São amesma coisa. Para mim, não há diferença. To-dos dependem do público e o público dependede você. E se o dono do circo ou do teatro ga-nha bem, o artista recebe bem. Se o dono dacompanhia vai mal, o artista recebe mal. Masquem sou eu para criticar?! E a situação queeu ocupo hoje na sociedade não é de criticarninguém. Quem é bom, quem está errado, quemestá ruim.

Todo mundo quer ganhar. Você quer ga-nhar. Você quer, eu quero, mas tem hora que

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não é só o dinheiro que faz isso. Às vezes, umaapresentação pode repercutir lá na frente.

DA. Qual era o circo de sua família?AB: Teatro América e também Circo de

Lauro. Circo-Teatro Rosário, Circo Sudam.Depois vieram outros. Tive meia-dúzia meus.Nesse meio, comprava um, largava, compra-va outro. Depois foram os circos grandes. Pe-guei o Circo Águias Humanas, o Circo Garcia.Circo-Teatro Brasília, Circo dos Irmãos Bocute,Circo Irmãos Melo, que já é da parte de outrafamília, da minha irmã casada com um rapazda família dos irmãos Melo. Eram oito irmãosMelo. Depois ainda tivemos o Circo Tiane quehoje está no México.

Todos eram circos de tiro. O Circo-TeatroGarcia depois se tornou circo de tiro. Circos-teatro foram o Circo de Lauro, Irmãos Bocute,Irmãos Melo, Rosário, Teatro América e o Pa-vilhão Amácio Mazzaropi.

DA: Você trabalhou com o Mazzaropi?AB: Trabalhei. Quase minha família intei-

ra trabalhou. Fizemos um filme. O Betão Ron-ca Ferro. Antes da TV Tupi fechar, tinha a no-vela Beto Rockfeller. O Mazzaropi fez a comé-dia, a paródia: “Betão Ronca Ferro”. Foi feitono Circo Giglio e em um circo em Taubaté, láperto da fazenda do Mazzaropi mesmo. De-

pois fizemos mais filmes. Trabalhei em “O Sí-tio do Pica-pau Amarelo”. Fomos fazer o filmeem Divinolândia, há muitos anos. Não sei qualera a companhia. Nunca assisti. Vi uma vezno cinema da Avenida Ipiranga, onde era oBanco Econômico. Tinha um desfile na fazen-da do Monteiro Lobato. A galinha andava debotas, o peru andava de sapatos. Coisas deMonteiro Lobato.

DA: O pessoal da TV ficava de olho nopessoal do circo, como caça talentos?

Não, eu nunca soube disso. O que se en-volvia um pouco no circo era o teatro, mas eramuito difícil. Saíam muitos do circo para o te-atro. Muitos atores que você vê por aí traba-lharam no circo. O picadeiro do circo é muitodifícil. O teatro se torna muito mais fácil, quan-do você sai do picadeiro. No picadeiro, vocêestá no meio deles. Não tem reserva nem sepa-ração nenhuma. É muito difícil. Sente quandoo povo está gostando ou não. O povo respon-de. No teatro, você vê o povo lá embaixo e tra-balha aqui no palco, que é todo seu. Você tema cena. No picadeiro, o povo está em volta.

No circo você vê o povo em cima, na suafrente, do teu lado, atrás. Para um mágico tra-balhar, é difícil porque os truques geralmentesão escondidos na parte de trás. É onde sãomanipulados. Para um mágico trabalhar no

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circo é dificílimo. O palco do Tiane — para mimo maior circo que tivemos no Brasil — agoraestá no México. Vão para Las Vegas montarum circo de cimento armado fixo.

DA: Os circos são empreendimentos caros?AB: Não acho caro. Acho caro aquilo que

você vai fazer. Na fábrica de lona, dá para com-prar um circo, hoje, por 20 paus. O que se fazdentro de um circo é caro. Como cortina develudo, jogo de luzes bonitas, um palco de acrí-lico para pôr a luz por baixo, para pôr a televi-são..., então é muito difícil. E para um bom te-atro, hoje em dia, um bom espetáculo, você temque fazer isso. Qual é o número mais medíocreque temos no circo? É o número de fogo, apirofagia. Até o cara que não é artista faz aqui-lo. Mas para o povo é bonito. Para nós, é o maiscomum. Não me sujeito a fazer isso. Prefiroparar com o circo. Para nós, é feio e não é caro.Se você quer montar um número, como esse,como montaríamos se todo mundo faz? Va-mos montar um número desses como ninguémfaz. O que vamos gastar? Aquela moça vai fa-zer o número de fogo com uma roupa de índiomuito bem feita. Vamos pegar dois bumbos ecolocar dois rapazes vestidos de índio comaqueles cocares num canto batendo, com umbalé acompanhando. Para criar suspense e at-mosfera. Com uma fogueirinha, como os índi-os fazem, feita de lâmpada vermelha por bai-

xo. Tudo isso para uma coisa simples. Mas temque criar, tem que gastar.

Você pode pôr um biquini na coitadinha,um sutiã, passar batom... Ela vai lá dentro,passar fogo aqui, passa fogo ali, passa fogo nascostas, passa fogo nas pernas, depois sopra epronto, acabou. Isso é o que se faz por aí. Já sefazia em 1900! E nada. Faziam quando eragaroto e continuam ainda. É necessário quevocê acompanhe a evolução.

TRANSCRIÇÃO PORTUGUÊS –ÁUDIO: ENTREVISTA B – História de Vida:Romiseta – 00:33:00

DA: E Romiseta, me diz uma coisa, vocêconheceu a sua senhora no circo? Ou não?

AB: No circo da minha família. Trabalhan-do. Foi trabalhar comigo. E aí meu filho, na-moro é fogo. Fazia trapézio, contorção e ara-me. Fazia a corda indiana. Estava cheio derapazinhos no circo, um mais bonitinho do queo outro. Um é trapezista, outro é palhaço, ou-tro é ator, outro é equilibrista.

DA: Qual foi o bom palhaço que você viutrabalhando? Você sabe dizer?

AB: Um bom palhaço que vi, em primeirolugar, meu tio já falecido Lingüiça. Depois vi-eram outros, inclusive um outro Lingüiça, quecaía com um tapa e ficava rodando com a ca-

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beça no chão. Depois veio Palpitoso, grandepalhaço, naquele tempo. Já faleceu. Piolim éoutro grande palhaço. Um ídolo aqui em SãoPaulo. Existe um muito melhor, OChincharrão. Pai do Torresmo, que foi ummestre deles todos.

Esses palhaços eram bons tanto no teatro— faziam partes cômicas nos dramas —, comoem comédias. Em entradas cômicas, saltavam... eram todos bons. O Arrelia foi um bom ator,um palhaço mais de televisão. O Carequinhaera de uma família tradicional de circo, bommais para criança. Cada um tinha um estilo,uma especialidade. Tivemos grandes palhaços,grandes cômicos e excêntricos. Existiam aque-les intermediários, que pegaram mais nome, etiveram mais chance de aparecer. Uns namídia, outros pelo rádio, televisão, cinema.Trabalhariam hoje em qualquer lugar do mun-do, qualquer programa. Trabalhavam mais emcircos do interior. Outros menos conhecidos,mas grandes artistas, grandes cômicos. A gentefala em atores... eu perdi um grande amigo,há pouco tempo, o maior ator que conheci emtoda a minha vida.

Chamava-se Ilson Nogueira da famíliaNogueira. Morreu em Bauru, esquecido. Trou-xeram-no para São Paulo e o colocaram noTeatro 5ª. Avenida, Teatro Santana, sem ex-

pressão. Aquilo não é teatro, é um negócio destriptease. Aliás, todos os teatros estão virandoisso. Era um camarada que você conversavacom ele cinco horas e ele tinha assunto. Faziarir, chorar... estudadíssimo. Aqui em São Pau-lo, não teve sorte. Em televisão, teatro e cine-ma era o maior. Morreu esquecido, largado emBauru. O palhaço de circo também não apa-rece. É o que acontece com os cantores hojeem dia.

A minha mocidade foi com Nelson Gon-çalves. Namorando e cantando suas músicas.Morreu esquecido. Você viu o que aconteceucom o Wanderley Cardoso? Saiu da mídia. Amídia encosta.

Palhaços têm aos montes na rua. Você vênas portas de lojas, nos faróis. Pega esses ca-ras e coloca em um picadeiro, coloca em umteatro... Não funciona. Eles nem sabem comoentrar. Sabem lá no meio da rua, na porta daloja. Não sabem, não vão encarar. Vê aquelepovão em cima dele, todos os olhares ali emcima e a perna bambeia.

Para mim, hoje em dia, o maior showmanque o Brasil tem chama-se Moacir Franco. Pre-cisa vê-lo num palco, numa televisão coman-dando um programa. Mas parece que não dãoum programa para ele. Para mim o dom do

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Moacir Franco é único. Outro Sílvio Santosnão vai nascer. Assisto pouco ao programadele. Briguei muito com ele. Estava sempreerrado. Quem era eu para brigar com ele?Briguei. Não devia, mas fiz.

De palhaço eu posso falar. De artista decirco eu posso falar. Eu sei. Vivi a vida inteirano circo. Às vezes, falo errado, mal. Às vezes,coloco a palavra errada no lugar certo. Àsvezes, coloco a palavra certa no lugar errado.Mas é o que sinto naquela hora. É o que vivi,o que passei, como passei.

Você assiste Zorra Total para rir? Quemquer rir não assiste aquilo. O único quadro

que eu gosto é o primeiro. O da Marta que traio marido e depois vira heroína. Assisto aquelequadro, mas já está ficando repetitivo. Por quenão colocam o Chico Anysio? Ele é o maiorcômico desse país. O que aconteceu com ele?As crianças e os jovens não sabem quem é. Essenegócio de tradição já era. Se tradição é viverna pindura, eu sou tradicional.

DA: Muito obrigado.AB: Disponha do teu amigo aqui.

Notas(1) Evoluções acrobáticas executadas por um gru-

po. Nota do revisor.

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São Paulo, 19 de abril de 2007.

Gravação para o projeto Memórias de Pa-lhaços e Comediantes, com depoimentos deJosé Barroso, concedido a Edson Lopes e Ma-ria Rita Oliveira no dia de Março de 2007 noestúdio do Museu da Pessoa.net, à rua

José Barroso: O meu nome é José Barroso.Nasci em São Paulo, em 17 de agosto de 1929.Filho de Pedro e Adelina Barroso, nascidos emSão Paulo e descendentes de italianos. Moreino Bom Retiro, na Rua da Graça, no tempo emque ainda existiam os lampiões a gás. Eu tinhamais ou menos uns 11 anos quando comecei asentir prazer em conhecer o circo, porque meupai era operador de cinema e, na minha ado-lescência, ele me levava ao trabalho dele. Euassistia aqueles filmes do Gordo e o Magro, doCharles Chaplin e me sentia com vontade derepresentar.

No bairro do Bom Retiro, apareceu um cir-co chamado Circo Teatro Arithusa. Ai MeuDeus, que circo! Eu me apaixonei por esse cir-co. Tinha 11 anos, mas naquela época meu paiera pobrezinho e eu não conseguia ir ao espe-táculo. Então, o que aconteceu? Houve umcaso pitoresco. Eu pegava o bonde que custa-va 200 Réis. Esse circo ficou armado na Av.Rudge, no Bom Retiro. Os palhaços eram umacoisa linda. Foi em 1940. Uns meninos e eu,por curiosidade, começamos a freqüentar afrente do circo. Um dia nós achamos que tí-nhamos de entrar de qualquer maneira. Nun-ca me esqueço da peça que iam passar: "Ferroem Brasa". Era muito linda. O que aconteceu?Combinamos e varamos o circo por baixo dopano! O circo tinha uma saliência de madeirapor baixo e ao redor. A gente tinha que fazerburaco no chão. Eu era muito levado, não ti-nha dinheiro e estava louco para assistir o cir-co, para ver o que era aquilo. Imaginava que

História de Vida: José BarrosoTRANSCRIÇÃO PORTUGUÊS - ÁUDIO - 01:20:00

Gachola

Gravação e transcrição para o Projeto Memórias de Palhaços e Comediantes, com depoi-mento de José Barroso a Edson Lopes e Maria Rita Oliveira no dia 19 de Abril de 2007, noestúdio cedido pelo Museu da Pessoa.net. Duração da gravação: 01:20:00. Transcrição por Glo-bal Translations.

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lá aconteciam muitas coisas boas. Todo mun-do fez os buracos, passaram e eu fiquei porúltimo. Quando fui passar, senti alguém mepegar a perna. Naquela época meu pai erapobrezinho e me comprou um sapato que erade pneu de borracha. Eu tinha muito orgulhodaquele sapato, quando o vestia. O rapaz co-meçou a puxar, a puxar, e eu não sabia quemera! E eu queria entrar! O circo estava lotado,consegui entrar e o sapato ficou na mão dapessoa. Entrei no circo, sentei na "geral" e es-condi o pé porque tinha perdido os sapatos.

Escondi o pé até que o porteiro me achou.Ele até foi muito bom comigo, mas não quis meentregar o sapato. Assisti à peça "Ferro em Bra-sa", me apaixonei por aquilo, assisti o palhaço. Ecomo era bom, aquele palhaço Tomé! Ele tinhauma característica: não precisava nem se pintar.A voz dele já era engraçada. Eu me senti orgu-lhoso de ver aquele espetáculo quando criança.Mas fui para casa só com um pé de sapato.

Meu pai deu uma bronca danada quandochegou em casa. Perguntou onde tinha deixa-do o sapato. No circo. Isso foi num sábado. Nodomingo, era matinê, e a gente foi lá. Meu paiconversou com o porteiro, pegou e me deu osapato. Conclusão: me chamaram de lado, seeu queria trabalhar no circo e vender balas.Gostava do circo, então comecei a vender ba-

las e guarda-chuvinhas de chocolate. Sentia-me orgulhoso por estar dentro do circo. E viaos espetáculos. Oh, quantos espetáculos! Nun-ca me esqueço de "Ferro em Brasa", "Honrarástua mãe", "A Dama das Camélias", "Jane Eyre","Os Irmãos Corsos", "Os Dois Sargentos", "OSinal da Cruz", "Lágrimas de Homem", "APaixão de Cristo". Assistia e convivia com eles.Vendia, ficava ali, cheguei a abrir até cortina!Conversei muito com o palhaço Tomé, umgrande amigo também. Mandava-me comprarbala, cigarro... Eu vivia no circo...

Depois de seis meses o circo foi embora. Fi-quei um pouco triste, mas veio o Circo IrmãosQueirollos e novamente os dramas. Fiquei mui-to entusiasmado com aquilo. No fundo do quin-tal da minha casa, arrumava pau de vassoura efazia as estacas, pegava os lençóis da minhamãe, as cobertas... naquele tempo, tinha as ba-las do Piolim, o palhaço... e as balas Craques,que eram de futebol, e a gente colecionava. En-tão, eu cobrava para entrar no meu cirquinho,dentro de casa no fundo do quintal. A turmaentrava e eu fazia acrobacias, pulava - porqueera elástico -, e gostava. Lembrava do que o pa-lhaço Tomé fazia e fazia também.

Doutores da Alegria: Como era o BomRetiro?

JB: No bairro do Bom Retiro, na Rua da

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Graça, onde morava, às 6 horas da tarde vinhamos lanterninhas colocar gás no lampião. Nãohavia luz elétrica ainda. Meus pais ficavam dolado de fora conversando — no tempo de calor— na rua. Pegavam umas cadeiras e iam parafora, conversar. Não havia televisão. A únicacoisa que havia era o rádio, e a gente assistia"Nhô Totico", "Alvarenga e Ranchinho","Jerônimo, o Justiceiro do Sertão". E o que nósfazíamos, eu e aquela molecadinha sapeca? Oscoitados iam acender os lampiões de gás, queeram quadrados e tinham uma altura de uns 3metros. Depois, nós subíamos no lampião paraapagar. Vinha bronca. Depois iam lá e acendi-am de novo. Passou-se o tempo e veio a luz. Erauma felicidade, aquela luz na rua, tudo claro.

Com 14 anos escrevi minha primeira peça:"O Louco e a Cruz". Uma peça bonita que te-nho até hoje. A levava aos teatros de arena, nacidade, e em muitos lugares. Comecei a escre-ver e fazer teatro amador. Censurei e registrei.Representava e montava shows nas entidadesparoquiais.

DA: Como sua família via isso?JB: O meu pai gostava muito, a minha mãe

também. Eles gostavam demais, me acompanha-vam e davam força. Compravam roupas paramim... me vestia com aquelas roupas de palha-ço, largas, e pintava a cara. Naquele tempo, tam-

bém, começaram a aparecer duplas sertanejas.Eu fazia um show de variedades e vinham ossertanejos. Se apresentavam, cantavam, tocavam,e entrava o palhaço. Eu trabalhava com um pa-lhaço chamado Bonguinha, já falecido. Mais tar-de me envolvi com o circo Romiseta.

DA: E como eram os circos de sua época?Lotavam? Como as famílias iam ver?

JB: Era uma beleza. No Circo IrmãosQueirollos acontecia primeiro um show de va-riedades, vinham palhaços e depois as pessoaspegavam as cadeiras e colocavam na frente dopalco. O picadeiro era para a palhaçada e odrama no palco. Naquele tempo, existia a col-cha acústica. Não sei como se chama o alça-pão em que se fazia o ponto, em que se trans-mitia os textos, como "Jane Eyre" e "A Damadas Camélias", para os artistas.

O que acontecia? Passava-se um drama e,no intervalo, a gente ia vender coisas por lá.Tudo lotava. As pessoas corriam com as ca-deiras para a frente do palco para assistir odrama.

A gente assistia as peças... chorava, ria...Nunca me esqueço que no Circo Arithusa, as-sisti "O Guarani". O Tomé fazia papel de índio.Para o pessoal rir, tinha umas palavras que elefalava que a gente achava engraçado, era uma

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sátira. A gente gostava muito. O circo era as-sim, bem estruturado, com lonas bonitas. Quan-do fui morar na Rua Anhaia, no Bom Retiro,apareceu novamente o Circo Teatro Arithusa.Só que o Teatro Arithusa não apareceu maiscom lona. Era um pavilhão de zinco, onde selia: Circo Pavilhão Arithusa. Fui me desenvol-vendo, escrevendo peças, brincando com aspessoas, contando piadas, até que comprei umcirco também. Chamava-se Circo Comanche,mas já estava casado, com vinte anos.

DA: Era muito namorador?JB: Gostava de namorar. Era um pouco tí-

mido, moço, jovem... penteava o cabelo... Na-quele tempo, o pessoal do Bom Retiro, a "Tur-ma dos Cabeleiras", enchia de vaselina, deixa-va o cabelo bem cheio com aquelas calças comboquinhas fechadinhas embaixo. Era um or-gulho. Eu me achava muito só, às vezes. O quefazia? "Vou ver se arrumo uma namorada".Me trocava bonitinho e andava nas ruas. Ruada Graça, Rua Javaés, Rua Mamoré... Ficavaandando e via se encontrava alguma pessoapara eu conversar, alguma menina.

Havia muitos italianos no Bom Retiro.Quantas vezes, na paróquia da Rua dos Italia-nos, eu fazia peças teatrais e percebia italianosna platéia. Havia o bonde a 200 Réis. No tem-po do Getúlio, o dinheiro valia muito. Meu pai

me dava 200 Réis e eu ia comprar bala. Enchiao bolso de balas! No Bom Retiro havia várioscampos de futebol. O bonde passava na Ave-nida Rudge. Todas as ruas eram de terra. DaAvenida Rudge até a Casa Verde. O bonde saíado Largo São Bento, na Rua Florêncio deAbreu. Nunca me esqueço do Bonde 55. Comonão tinha dinheiro, a gente "chocava" o bon-de. O cobrador vinha cobrar de um lado, e agente corria para o outro lado. Descia do bon-de para ir ao circo.

Arrumei um colega que morava em Jaú.Trabalhava numa fábrica de colchões. Apren-di a fazer colchões. Ele recebia, a cada quinze-na, uma carta lá de Jaú, da namorada. Falavapara ele: "Geraldo, só você recebe cartas, eunão recebo nada!". "É, tem uma moça lá quechama Helena. Mande uma carta para ela".Essa colchoaria se chamava Colchoaria Elegan-te, na Rua Tenente Pena. Então mandei umacarta. Veio a resposta. Queria me conhecer equeria que mandasse fotografias.

Começamos a nos corresponder. Mandeiuma fotografia, que tirei na Fotos Leite, na Ave-nida São João. Ela só me enviou cartas. Come-çou a pedir que eu fosse para Jaú conhecê-la; omeu amigo Geraldo tinha casa lá e uns paren-tes na cidade. A gente combinou, na vésperado Natal, de ir para lá. Comecei a juntar di-

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nheirinho, trabalhando. Arrumei uma mala depapelão. Se molhasse, encolhia toda. Pus umasroupas e combinamos com ela às 7 horas danoite, no coreto de Jaú. Eu não conhecia nada.Ela era Bonita. Tinha cabelo comprido. Fiqueientusiasmado. Eu tinha 17 anos. Na véspera doNatal, pegamos o trem, demoramos 12 horaspara chegar. Fiquei na casa dele, me preparei, agente jantou lá. Ele me apresentou para os pais,que já conheciam a moça e já estavam sabendoda história. Falaram para mim: "Ela está deses-perada no coreto, esperando...". Fui, conheci amoça, começamos a conversar. Ela era muitotímida, mas eu era de São Paulo e me destacavamais. Namoramos.

Ela me apresentou o pai. Tinha uma agên-cia de carros e uma fazendinha. Conheci a fa-zenda, arrumei um quartinho e fiquei dormin-do por lá provisoriamente. Passei o Natal comeles e vim embora. Mandei tantos presentespara ela, mas o destino é um troço ingratomesmo. Meus pais mudaram para a Rua Zilda- em frente havia uma festa de São João, emque se levantavam mastros com aquelas trêsbandeiras... Em frente a essa nova casa, mora-va uma moça por quem comecei a perder acabeça. Fui esquecendo a de Jaú e acabei ca-sando com a vizinha Isaura. Casei e tive circopor dois anos. Andei... viajei para muitos lu-gares: Jaú, Bauru, Pederneiras, Andradina,Marília, todos esses lugarezinhos.

DA: Qual era o circo?JB: Circo Comanche. Era mais ou menos

anônimo, mas aonde ia o circo lotava. Era gos-toso. Uma família trabalhava comigo: meucunhado, minha irmã... A gente formou umafamília e fomos fazer shows.

DA: Era muito caro comprar um circo?JB: Não. Na época lutei bastante, guarda-

va dinheiro. Sempre fui um rapaz econômico.Fiz esse circo no Imirim. Tenho até os contra-tos em casa. Comprei lona, mastro, tudo. In-clusive, um artista argentino foi armar o circoa primeira vez para mim, em um pátio cha-mado Cobra Coral. Depois fiquei um poucocansado e vendi o circo para um tal deOrlandinho, a quem ensinei a trabalhar comopalhaço e a dirigir; hoje o filho dele tem umgrande circo. Fiquei muito tempo sem circo.Trabalhei em teatro de arena, fazendo shows,palhaçada. Entusiasmava-me com as crianças,brincava, fazia shows de aniversário e conhe-ci os palhaços que, agora, são os meus amigos:Romiseta, Chuchu, Reco-Reco, Pururuca,Piolim, Picolino, Futrica, Rapa-Rapa.

O senhor Novais era empresário de circo,arrumava shows para nós, nos encontrávamosno Bar do Café, no Paissandu. Toda segunda-feira, os artistas de circo e os donos iam procu-rar shows, tratar cachês.

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O Sr. Novais tinha um escritório com as-sociados do circo. Naquele tempo, eu tinhacarteira da censura federal, valia muito. O Sr.Novais gostava muito da gente. Arranjou mui-tos shows para nós, muitos circos. "Sr. Novais,eu estou sem trabalhar." "Espere umpouquinho. Ó, amanhã você vai ao CircoQueirollo. Amanhã, no Circo Marília..." A gen-te chegava, pegava as propagandas, entrega-va lá e fazia os shows. Às vezes, lotava, às ve-zes não. Cheguei a dar dinheiro para dono decirco comer.

DA: De quais circos participou?JB: Eu participei um pouco com o

Romiseta do Garcia, no do Xereta, no CircoJoana D'arc da Dona Lola. No Garcia conhecimuito a Dona Carola. Gostava de ver os chim-panzés dela. Ela amava aqueles macaquinhos.Circo do Orlando, do Orlandinho. Participeitambém do circo do Sérgio Malandro.

Comecei a trabalhar por minha conta, fa-zer teatro, circo... Ia a essas paróquias, até quefiquei sócio da cooperativa paulista de circo.Conheci a cooperativa no Bar do Café, depoisque o Sr. Novais morreu.

DA: De onde vem o nome Gachola?JB: Eu fazia clown com um palhaço cha-

mado Bachola. Fazia escada para ele. Traba-

lhamos muito juntos. Nós arrumávamos pro-paganda, salão, até que ele casou e foi morarem Francisco Morato. Eu precisava de um par-ceiro. Arrumei um e falei: "Como é que eu voume chamar agora?". Eu me entusiasmava...Aprendi muito com esse palhaço Bachola. Aítirei o "B" de Bachola e pus o "G": ficou Gachola.

Fui me acostumando com Gachola. Naépoca, fazia dramalhões: "O Ébrio e a Bone-ca", "O Encarcerado", "O Louco e a Cruz","Adeus minha Mãe", todas peças minhas. Meuapelido era Zé das Lágrimas.

DA: Por quê?JB: Porque fazia o pessoal chorar. Nos mo-

nólogos que eu fazia, percebia que as pessoasficavam com lágrimas nos olhos.

Até eu me entusiasmava e, no decorrer dosmonólogos, sentia minhas lágrimas também.Aí começaram a me chamar de Zé das Lágri-mas e o apelido pegou. Tinha esse nome até nacarteirinha da censura, aonde tenho peçasregistradas. Só que a carteirinha da censuranão existe mais, perdi.

DA: Para quem oferecia as peças?JB: Eu oferecia as peças para os salões pa-

roquiais. Às vezes, fazia shows beneficentes.Às vezes, só cobrava uma ajuda de custo.

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DA: São todas monólogos?JB: Depende. Na peça "O Louco e a Cruz"

são cinco atores. "O Ébrio e a Boneca" já sãomais. Tenho duas peças pelas quais estou apai-xonado e eu preciso ver se consigo arrumaratores profissionais para executá-las.

Trabalhava muito com teatro amador. "OÉbrio e a Boneca" é uma peça muito linda,muito cheia de truques. Não é só conversação:Há truques de iluminação, de som...

Meu pai era operador de cinema e eu oacompanhava muito. Conheci muitos artistas.Digo para você que conheço quase todos os ar-tistas antigos de cinema. Comecei a fazer truques:relâmpagos, truques de sangue, chuva... Essapeça "O Ébrio e a Boneca" é uma peça muito lin-da. É sobre a vida de um bêbado. Ainda não tivea oportunidade de executá-la com profissionais.

"O Louco e a Cruz" é uma peça em queme inspirei sozinho, porque não tinha nin-guém para trabalhar. Pensei: "Eu preciso fa-zer qualquer coisa". Então comecei a fazer ummonólogo com uma cruz. Depois montei "OLouco e a Cruz". Envolvi-me em uma históriaminha, montei a peça e ficou bonita, só que nofim eu morro espetado na cruz. Punha uns di-zeres assim: "E assim criaturas inocentes ga-

nharam o céu. E este pobre infeliz, ganhará océu também? Isto só Deus saberá".

Eu ainda estou querendo passá-la em umsarau em breve. Vou pegar o texto e ver se con-sigo passar essa peça lá, porque eu também jáestou baqueado. Quando era moço, era maisarrojado, fazia o louco com mais interpreta-ção, o monólogo com mais ênfase. Agora es-tou mais baqueado, mas assim mesmo aindafaço, porque não sei se alguém ainda vai mesubstituir nessa peça. Mas ainda vou ter o pra-zer de quando tiver uns 80 anos - que eu voudescansar - vou jogar essa peça. Ela é censura-da e registrada. Foi para o Rio de Janeiro.

DA: Ela foi censurada?JB: É, foi. A censura era assim: no caso de

"O Louco e a Cruz", eu montei a peça, escrevio texto e mandei para a federação de artistas.Mandaram para o Rio de Janeiro e voltou apro-vada, só que eu tinha que censurar a peça. Paracensurar, era necessário apresentá-la em umteatro. A censura teria de escrever "Censura"e deixar duas cadeiras para ela. Fiz o show degraça, para lotar o Ás de Ouro, na Casa Ver-de. A censura foi, sentou, assistiu e depois fo-ram ao camarim com os documentos e me de-ram a mão dizendo: "Parabéns, da sua peçanão precisa tirar nada. Está bem programada.

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Está registrada". Carimbaram e me deram aCensura Federal. Eu tenho até hoje. É de 1984.

DA: E que tipo de peça eles censuravam?JB: Não passei as outras peças para a cen-

sura. Fazia chanchadas, mas via aquela cen-sura em comédias. Em comédias, você nãopodia falar uma palavra obscena que eles cor-tavam. A censura existiu por muito tempo."Alvarenga e Ranchinho" foram censurados."Tonico e Tinoco", às vezes, eram censurados.Dependendo do que eles escreviam, algumascoisas tinham de ser trocadas. A censura fede-ral antigamente existia para todo o teatro.

DA: Você participou, fez programas derádio?

JB: Não. Programas de rádio não partici-pei. Visitei muitas rádios. Em Tupã, participeida rádio, mas falando da minha peça, onde iapassar, em qual bairro. Conversei com NhôBigode, que era o rei do bairro. Ele era o locu-tor, moço jovem, simpático. As moças tambémiam lá, mas de rádio eu não participei. Fiz pon-tinha na televisão, na Tupi, canal 4. Outro dia,passou "Xeque Mate", aonde trabalhei tam-bém, só que fiz um empregado do Carlos Zara,uma espécie de mordomo, mas eu não tinhatempo. Eles me ligavam e eu não tinha tempo.Viajava muito. Gostava de fazer shows no in-terior... viajei muito. Tinha um carrinho de

praça no qual viajava. Nem trabalhava aquiem São Paulo. Colocava seis pessoas dentro docarro e ia embora.

Gostava e trabalhei muito com teatro ama-dor. Fazia monólogos em teatro de arena. Com-prei um caminhão que me ajudou muito a le-var o circo. Na época, comprei um Chevrolet46. Não me esqueço de ter ido para Curitibacom ele. Era novo ainda, jovem, carta nova,louco para viajar. Coloquei o circo em cima efomos para Curitiba com o circo. Não era mui-to grande não, era pequeno. A época não foimuito boa. Um colega meu tinha um caminhão.Trouxe o circo para São Paulo e, para eu nãoperder a viagem, o frete, peguei uma viagemde madeira. Ele vinha com o circo na frente eeu, como o Chevrolet era mais lento, vinha como caminhão de madeira. Quando chegamos àSerra da Ribeira, quilômetro 27, a gente foisubindo, voltando para São Paulo. Foi subin-do... quando chegou lá em cima, umpouquinho antes de Apiaí, joguei a segundareduzida no Chevrolet 46 e ele empinou. Maseu não sabia que a madeira estava escorregan-do. Não carregaram o caminhão direito. Quan-do chegou na curva da serra, engatei a primei-ra e o caminhão levantou. Eu, afobado, assus-tado, pisei no freio. Naquela época, havia umasanta no meu carro, Nossa Senhora Aparecida.Quando o caminhão começou a descer, para

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cair no barranco, eu pulei fora. De noite, umasoito horas, o caminhão clareou para cima comos faróis e o rapaz, que vinha atrás com o ca-minhão Hell - se atrasou um pouquinho e fi-cou para trás -, percebeu e falou: "Caramba,será que foi com o meu colega que aconteceualguma coisa?". Gritei apavorado. Sabe o queeu queria fazer? Queria segurar o caminhãopelo pára-choque, rapaz! porque eu estava opagando ainda. Sozinho ali, dirigindo, barbu-do já, cansado. A minha sorte é que a madeiraenganchou no barranco. Não desceu.

Os gaúchos calçaram logo o caminhão, memandaram descansar, me deram água e foramembora. Deixaram o caminhão com as madei-ras ali jogadas. Eles não podiam fazer nada,estavam com pressa. Mas aquele meu amigoparou o caminhão com as luzes acesas e come-çamos a descarregar, para depois arrumar di-reitinho. Carregamos até a meia-noite. Cansa-dos, com frio, fomos embora. Paramos em Apiaí,jantamos. A vida de motorista era essa: pararem restaurante e comer. De lá, vim embora,porque o meu primeiro filhinho já tinha nasci-do. Eu já tinha até esquecido do rostinho dele.

DA: E a sua mulher te acompanhava nocirco?

JB: Não, não acompanhava. A minha mu-lher, infelizmente, não gostava. A vida dela era

fazer tricô e ir à igreja. Ela achava que eu esta-va perdendo tempo, porque, às vezes, não ga-nhava cachê e passávamos necessidades. Hojeeu tenho lá na Rua Zilda uma casa muito gran-de. Graças ao meu sogro também, que me aju-dou muito. Ainda estou casado com a minhamulher. Depois de velho, comecei a conheceresses artistas: Reco-Reco, Romiseta, Chuchu,Pururuca. Fui me entrosando com eles na coo-perativa paulista de circo e hoje faço shows.Quando eles precisam de mim, me chamam.

Eu tive três filhos: Ari, Reinaldo eVanderlei. O Vanderlei ainda está moço, temtrinta e poucos anos. Lutei muito para educá-los. Meus filhos gostavam de circo e de cine-ma. Até me incentivavam muito, mas a minhamulher não. Ficava sempre de fora, não gosta-va. Eles sempre assistiram às minhas peças, iamaos meus shows. Às vezes, iam uns colegasmeus lá em casa para ensaiar. Ela perdia a noitede sono, ficava meio chateada. Perdi muitosamigos também, que trabalharam comigo e jámorreram.

DA: Apresentou "A Paixão de Cristo" nocirco?

JB: Tenho escrita até hoje. Fiz uma adap-tação. Comecei a história com a prisão deBarrabás. Fiz a crucificação no meio da pla-téia. Tem um caso até pitoresco, de um garoto

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que fez o Jesus. Tinha 18 ou 19 anos, mas ti-nha um vício: fumava: "Pare com isso!". Eraviciado mesmo. E fumava cigarro.

Antes de abrir as cortinas, pediu um ci-garro para uma pessoa e começou a fumar comas mãos amarradas. Toquei o sinete para abriras cortinas. Estava entusiasmado dando ori-entação aos textos, com o contra-regra, quan-do abriram a cortina. Ele jogou o cigarro fora ecaiu no pé, que estava amarrado! "Estou quei-mando o pé... estou me queimando o pé!" Fe-chamos a cortina depressa.

Eu era bem caprichoso com a Iluminação,sonoplastia, disco, figurino, móveis, truques,contra-regragem, panfletos. Tenho até hoje emcasa panfletos das peças entregues na hora doshow. Fui um ator quase anônimo. Não meinfiltrava na mídia. Agora que estou meinfiltrando, fazendo shows, saio em jornais.Mas depois de tantos anos...

DA: Eu tinha perguntado se o senhor erareligioso e tinha feito a encenação da paixãode cristo, não só porque era uma encenaçãocomum aos circos, mas pelo crucifixo que car-rega ao pescoço.

JB: Eu sou muito religioso. Quando aque-le caminhão empinou, gritei pela Nossa Senho-ra Aparecida. Quando era garoto, em perigo,

gritava: "Mãe, mãe..." Se o cachorro corria atrásda gente para morder: "Mãe...". Nesse dia, não.Gritei pela Nossa Senhora Aparecida. "NossaSenhora Aparecida, o que está me acontecen-do?". Eu senti ... para mim, que aquilo foi ummilagre. Talvez tivesse caído lá embaixo, dobarranco. Ia perder o caminhão e a carga. En-terrei as unhas na grama. Não aconteceu nadacomigo. Fiz muitas viagens, tenho tantas coi-sas para contar sobre caminhão, carro, aciden-tes, histórias do "através do pára-brisas"...

DA: Você disse que sua família tambémpassou muitas dificuldades e tinham o circocomo pano de fundo.

JB: Sim. Meu pai participou da revoluçãode 1930. Eu me lembro muito bem. Eu tinha 3anos. Ele tinha as fotografias com aqueles ca-pacetes e granadas na mão. Depois dessa cri-se, sofremos com uma grande enchente. Elepassou muita necessidade, tanto é que chegoua vender pipoca no circo também. Ele e minhaavó. A minha avó fazia cus-cus na porta docirco. Eu ficava ajudando, mas a abandonavapara ir ao circo.

DA: As pessoas criavam um comércio emtorno do circo.

JB: Inventavam coisas para vender. Eu melembro dos guarda-chuvinhas, dos puxa-pu-xas. Tinha fotografias. Eu vendi muitas foto-

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grafias de artistas, de gente de circo. Eu gosta-va do Tijelino, do Circo Teatro Arithusa, por-que não fazia o galã. Fazia o ruim e trabalha-va bem. Eu me apaixonei por esse circo. Todasas peças que assisti lá, eu não me esqueço, estáaqui dentro, todas, perfeitamente.

DA: Qual foi o palhaço que mais te im-pressionou?

JB: O grande palhaço da minha paixão foio Tomé. Já faleceu. Não sei se era só eu que ria,mas me sentia satisfeito quando o assistia. De-pois vieram os grandes palhaços: veio o Piolim,que foi um grande palhaço. Do Pururuca gos-tava muito. Do Torresmo e do Fuzarca, tam-bém. Do Picolino gostei muito de vê-lo traba-lhar. Do Carequinha.

A mulherada gostava muito do Tomé. Tra-balhava bem. Antigamente, a dupla de palha-ços era engraçada: o clown, o escada, se vestiade Pierrô, como o Pimentinha e o Arrelia. As-sisti muito ao Pimentinha e ao Arrelia. Hoje agente faz duplas com os dois palhaços juntos...é uma bagunça. Embora seja uma sátira muitogostosa. A gente improvisa muito. Antigamen-te, se improvisava muito também. Eu me lem-bro do Circo Umuarama. Os trapezistas fazi-am e eu era curioso. De palhaço, subia naque-la coisa para cair na rede. Fazia aquelas pa-lhaçadas. Fazia muito aquelas palhaçadas no

trapézio. Um salto, uma queda... até que umdia escorreguei da rede e quebrei a clavícula.Gostava muito do trapézio e do globo da mor-te. Quem trabalha no circo, aprende de tudo.Mas também vai esquecendo aos poucos. Ocorpo já não é mais ágil. Já não dou salto mor-tal. Tenho medo. Às vezes, dou umas"cambotas" (cambalhotas), mas a gente senteque os ossos estão fracos. Não é brincadeira.Não me julgo velho, mas carregado de muitosanos. Tenho um peso de 77 anos nas costas,mas sempre me sinto jovem. Brinco, converso,me divirto, faço as minhas piruetas.

Vivi uma vida muito gostosa. Se começas-se a contar para o senhor do tempo em que eramoleque, o que a gente fazia nas várzeas, nocampo de futebol, das lanternas que a gentefazia de lata de óleo... A gente ia para os cam-pos à noite, com aquelas lanterninhas acesas.Não tinha medo de nada. Chegava em casa 2,3 horas da manhã! Levava um couro do pai. Ovelho não queria nem abrir a porta! A gentegostava. Ia nadar naquelas águas, alagados.Nunca fiquei doente, mas ia nadar naquelaságuas sujas, lagos que existiam na cidade.

Meu pai foi um grande nadador. Nadáva-mos no Tietê. Amarrava as coisas nas costaspara chegar do outro lado, para trabalhar depedreiro. Eu o acompanhava. Atravessava

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para não dar volta na Ponte da Casa Verde.Mergulhávamos. Ele na frente e eu atrás, apren-dendo. Me ensinou a dar dois fôlegos debaixod'água.

DA: Você me disse que vai a bailes e aos77 anos está muito bem?

JB: Eu vou ao Carinhoso. Danço com umamoça já há uns 20 anos. Às vezes, vou aoPiratininga. Danço bastante para não ficarmuito mole e sempre ágil. Minha mulher nãogosta de baile. Não pode ir mesmo. Mas se elasouber... não sabe que eu vou. Pode ser quesaiba, mas não fala nada.

DA: Rola uma paquera no baile?JB: É, sempre rola, mas isso é relativo. Sabe,

essas velhinhas sempre pensam que é a últimavez. Estão sempre querem conquistar a gente.Vocês são novos ainda, mas quando tiveremuma certa idade, se forem ao Baile da Sauda-de, da velha guarda, vocês vão ver que gostosoque é. Aquelas senhoras todas educadas, aque-las velhinhas contando as coisas delas. Corpoquente, sabe? A gente não perde aquela sensi-bilidade do sexo. A gente ainda sente aqueleprazer gostoso. Porque é isso. Baile é sexo. Aúnica coisa que une um casal, homem e mu-lher, é a música. Dança um tango, dança umavalsa... você está sempre unido com uma mu-

lher e isso é gostoso. O colóquio de duas pesso-as se encostarem, isso rejuvenesce a gente.

Eu tenho muita coisa para falar, para con-tar... Ainda quero escrever um livro: "Após aminha morte".

DA: Como Memórias Póstumas?JB: É, eu tenho na minha cabeça como re-

tratar a vida de um cara que morreu: a famíliaolhando, os caras que carregam o caixão, as vi-úvas que choram no caixão, o que ele deixou, oque os filhos reclamam... Porque um não ga-nhou, o outro já sai brigando. Um dia vou es-crever. Talvez faça um monólogo para falar nomicrofone. Eu quero contar umas coisas ainda...Meus projetos sempre são contar histórias.

É aquela base que eu vejo na televisão:quem não tem dinheiro, conta história. Tiveamigos que foram para a guerra. Quando aca-bou a guerra, por volta de 1945 ou 1946, fuiver os expedicionários na Estação da Luz. Eramocinho. Lembro-me do IV Centenário, quan-do os aviões jogavam aqueles folhetos triangu-lares todos prateados. Lembro do Bom Retiroquando tinha chão de terra. Não era asfalto.Do bonde camarão, que ia para Santo Amaro,do trenzinho da Cantareira. Do Monte Serrat,

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o trem para Santos. Subia a serra, amarradocom aqueles cabos de aço.

Lembro de um caso, não sei se foi no CircoArithusa ou nos Irmãos Queirollos. Tinham umFord 29 a gasogênio e me mandavam limparaquilo, porque ficava tudo preto, aquele chei-ro. Tinha que limpar porque no tempo da guer-ra, acabou a gasolina. Era só gasogênio e eutinha uma bronca de limpar aquilo, mas de-pois de prontinho, a gente ia fazer propagan-da. Colocava uma tabuleta de um lado, umatabuleta de outro e o rapaz ia falando... nemmicrofone era, era uma corneta: "Alô... TeatroCirco Queirollos, hoje apresenta, aqui, na pra-ça tal, tal." A vitrolinha deles, pequenininha,ficava atrás do palco. Colocavam o disco para

tocar os truques de som que a gente fazia. Fizmuita contra-regragem... Pequenininho, fica-va atrás do palco e colocava os discos... aque-las músicas com latas de zinco, com calhas.

O palhaço é como o toque de um violão:você nunca aprende a tocar violão. Não temfim. Sempre tem uma coisinha para tocar. Vaiadquirindo suas características, prática e im-proviso. Uns são engraçados, outros não. Unsde um jeito, outros de outro. Por isso, dou va-lor aos palhaços.

DA: Muito obrigado pela entrevista.JB: Obrigado também.

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José Barroso durante entrevista concedida aosDoutores da Alegria. Foto de Edson Lopes.

Benedito Esbano durante entrevista concedida aos Dou-tores da Alegria. Foto de Edson Lopes.

Nelson Garcia durante entrevista concedida aos Douto-res da Alegria. Foto de Edson Lopes.

Apresentações do palhaço Figurinha - Nelson Garcia, o garoto-propaganda da marca Monark - em monociclose bicicletas.s/d.

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Walter Di Carlo durante entrevista cedida aosDoutores da Alegria. Foto de Danielle Barros.

Brasil João Carlos Queirollo durante entrevista cedi-da aos Doutores da Alegria. Foto de Edson Lopes.

Agostinho Blaske durante entrevista cedida aosDoutores da Alegria. Foto de Edson Lopes.

Walter Di Carlo durante entrevista cedida aos Douto-res da Alegria. Foto de Danielle Barros.

Walter di Carlo e companheira, parceiros em shows de exêntrico musical.

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Alguns palhaços proeminentes citados nas entrevistas.

Anchizes Pinto durante entrevista cedida aosDoutores da Alegria. Foto de Danielle Barros.

Palhaço Esbano - Benedito Esbano. Arquivo particular do entrevistado.

Ankito em Metido a Bacana, direção de J. B. Tanko, 1957,99 minutos, CINELANDIA.

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Apresentação de salto mortal para ombros de Pirajá,Anapuru e Augusto no Circo Real Palácio em 26 desetembro de 1959. Acervo particular de Pirajá Bastosde Azevedo.

Palhaços do Rio de Janeiro:Orlando - Carequinha - Chocolate - Pirajá - Bolão - Baltazar - Zumbi - Chiquinho - Zé Carioca

Ankito em Sai Dessa Recruta, direção de Helio Barro-so, 1960, 88 minutos, CINEDISTRI/CINELANDIA.

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